O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 1907

Terça-feira, 6 de Dezembro de 1988 II Série - Número 61-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1988-1989)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 59

Reunião do dia 4 de Novembro de 1988

SUMÁRIO

Deu-se continuação à discussão do 1. ° relatório da Subcomissão da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC) respeitante ao preâmbulo e aos artigos 1.º a 11. ° e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso titulo, para além dos Srs. Secretários Carlos Encarnação e José Magalhães, no exercício da presidência, pela ordem indicada, os Srs. Deputados António Vitorino (PS), Pedro Roseta (PSD), Alberto Martins (PS) e Pais de Sousa (PSD).

Página 1908

1908 II SÉRIE - NÚMERO 61-RC

O Sr. Presidente (Carlos Encarnação): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 11 horas e 15 minutos.

Srs. Deputados, vamos começar a discussão do artigo 9.°, relativamente ao qual foram apresentadas propostas de alteração por parte do CDS, do PS, do PSD e do PRD. Este artigo trata das tarefas fundamentais do Estado, havendo aqui diferente arrumação e alguma inovação em relação ao conteúdo das diversas alíneas.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Secretário José Magalhães.

O Sr. Presidente (José Magalhães): - Srs. Deputados, o relatório da Subcomissão relativo aos artigos 1.° a 11.° refere, em síntese, as alterações em debate sobre esta matéria e, quanto ao artigo 9.°, o seguinte:

Artigo 9.°

Propõem alterações a este artigo os projectos do CDS, do PS, do PSD e do PRD.

Na alínea c) o projecto do PSD propõe a substituição da expressão "assegurar a participação organizada do povo" pela expressão "incentivar a participação dos cidadãos".

O projecto do CDS propõe a substituição da alínea d) por um preceito com a seguinte redacção:

d) Promover o bem-estar do povo, a qualidade de vida, a solidariedade e a justiça social e a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais.

O projecto do PS propõe a substituição da expressão "mediante a transformação das estruturas económicas e sociais, designadamente a socialização dos principais meios de produção, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem" pela expressão "mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais".

O projecto do PSD propõe a substituição da alínea d) do artigo 9.° por um preceito com a seguinte redacção:

d) Promover o bem-estar do povo, a qualidade de vida e a real igualdade de oportunidades para todos os portugueses, bem como a efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais.

O projecto do PRD propõe a substituição da expressão-"designadamente a socialização dos principais meios de produção, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem" pela expressão "e a eliminação das causas de injustiça, de exploração e de opressão".

Finalmente, o projecto do PSD, quanto à alínea e), propõe o aditamento in fine da expressão "e assegurar um correcto ordenamento do território".

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta de alteração do PS diz apenas respeito à alínea d) e consiste na substituição de uma expressão que, consabidamente, tem um cunho ideológico unilateral e uma forte marca de inspiração partidária que, de acordo com os princípios que presidiram à elaboração do projecto do PS, em nosso entender constitui factor de conflito e de divisão entre os Portugueses, colocando a Constituição no centro das lutas político-partidárias e no âmago de uma contestação que entendemos dever ser arredada do texto da lei fundamental. Por isso mesmo entendemos preferível substituir a expressão em causa por uma expressão que, tendo um conteúdo equivalente, é mais aberta e, sobretudo, pode ser objecto de uma interpretação mais pacífica.

Trata-se, portanto, de fazer uma referência genérica à transformação e modernização das estruturas económicas e sociais, já que o sentido da modernização e da transformação dessas estruturas será sempre aquele que, naturalmente, resultar da interpretação sistemática do conjunto do texto constitucional e da vontade das forças políticas que forem legitimadas pelo sufrágio universal para o exercício do poder em cada momento. Naturalmente que, na óptica do PS, essa transformação e modernização das estruturas económicas e sociais será feita de acordo com a inspiração fundamental dos ideários e dos valores do socialismo democrático se e quando o povo português conferir ao PS os instrumentos para exercer o poder e levar à prática o seu programa.

Neste contexto, trata-se de uma proposta inserida na preocupação que temos tido de expurgar da Constituição aquela carga ideológica de inspiração programática e unilateral que tem vindo a constituir factor de divisão e de querela entre os Portugueses.

E por ora, Sr. Presidente, apresentaria só a proposta, pronunciando-me depois sobre as propostas dos outros partidos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Srs. Deputados, vou começar também pela alínea d), em homenagem ao Sr. Deputado António Vitorino e às propostas dos outros partidos, embora o CDS e o PRD não se encontrem presentes. Nós pensamos que esta alínea deve ser muito reduzida na sua extensão, em primeiro lugar por conter expressões de forte cunho ideológico, inspiradas, em nosso entender, na vulgata marxista que teve muito curso em tempos passados, mas que hoje está, ela própria, em crise. Mas, ainda que o não estivesse, entendemos que a Constituição não deve conter normas programáticas e que o Estado não pode ter como tarefa fundamental levar a cabo uma determinada ideologia. O Estado não é partidário, é de todos os portugueses, estando ao serviço de todos os portugueses, e, por consequência, não pode de modo nenhum apropriar-se de uma ideologia e ter como tarefa fundamental implantada e levá-la a cabo mediante estes ou aqueles meios.

Não vale a pena, portanto, vir para aqui ler ad nauseam o programa do PSD, que temos obrigação de conhecer, porque o que acaba de dizer vale tanto para aquela ideologia de raiz marxista como para qualquer outra (revisionista, bernsteiniana, rawlsiana, democrata-cristã, liberal, etc..). É uma questão de princípio. O actual preceito constitucional contém expressões ideo-

Página 1909

6 DE DEZEMBRO DE 1988 1909

lógicas muito marcadas, é uma norma programática, e por isso pensamos que deve ser fortemente reduzido na sua extensão.

Acrescentaria ainda o seguinte - e aqui vou bastante mais longe de que o Sr. Deputado António Vitorino, embora tenha havido nesta matéria uma coincidência anterior ao acordo de que o Sr. Deputado José Magalhães tanto gosta de falar: há neste artigo uma discrepância entre a alínea d) e as alíneas á), b), c) e e). Todas as outras alíneas elencam as tarefas fundamentais do Estado, sendo algumas indiscutíveis [o caso das alíneas a) e b), pois ninguém, nem mesmo o CDS, propõe qualquer alteração, limitando-se também as alíneas c) Q é), embora sejam mais discutíveis, como veremos a seguir, a enumerar tarefas fundamentais do Estado].

No entanto, a alínea d), da qual estou a tratar neste momento, vai mais longe e, para além de dizer que o Estado tem como tarefa promover o bem-estar, etc.., acrescenta, a seguir à expressão "mediante", os meios: "mediante a transformação das estruturas económicas e sociais, designadamente a socialização dos principais meios de produção". Ora, isto parece-nos errado, não só por razões sistemáticas, como por razões de harmonia do texto constitucional. É evidente que para garantir a independência nacional e os direitos e liberdades fundamentais, defender a democracia política, etc., o Estado tem de desencadear determinadas acções. Só que essas acções não constam de nenhuma das alíneas do artigo 9.°

Assim sendo, não posso deixar de perguntar: por que é que, pelo contrário, se insiste em que, na alínea d) por razões como vimos ideológicas ou programáticas, os meios constem? Os meios devem estar noutras secções próprias do texto da Constituição, mais adiante, em artigos que se refiram a matérias ligadas, por exemplo, aos direitos sociais e à qualidade de vida. Há aqui, efectivamente, para além dos aspectos ideológicos de que falei, um enxerto que torna este artigo - não sei se esta expressão se usa - desarmónico, ou seja, sem harmonia e sem uma consonância entre as sua alíneas, pois há umas delas que contêm qualquer coisa que as outras não têm: além das finalidades, os instrumentos para as efectivar. Por consequência, propomos que, quando se chega à expressão "mediante", se pare. Propomos também a abolição não só do inciso entre "mediante" e "meios de produção" mas também, obviamente, da expressão "abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem", que nos parece uma expressão puramente demagógica e panfletária, até porque, como se sabe, todos aqueles que têm defendido esta expressão têm construído, obviamente, novas formas de exploração e de opressão.

Queria referir-me, ainda a propósito desta alínea, a um aspecto que os meus companheiros do PSD propuseram: à substituição, na primeira parte, da expressão "promover [...] a igualdade real entre os Portugueses" pela expressão "a real igualdade de oportunidades para todos os portugueses". Julgo tratar-se de uma questão de realismo e diria mesmo - se me permitem - de humildade. É evidente que os grandes princípios da liberdade, da igualdade e da solidariedade não estão em causa, pois julgo resultarem do conjunto do texto da Constituição, mas aqui não é disso que se trata. Aqui estamos a discutir apenas as tarefas fundamentais do Estado. Ora, atribuir ao dito a tarefa de promover a igualdade real entre os Portugueses é atribuir-lhe uma tarefa que ele hoje, sozinho, já não pode realizar. Sejamos realistas!

Poderia ler alguns textos recentes sobre as limitações da acção política no mundo dos nossos dias, mas não vou maçá-los. Ainda ontem falámos aqui a propósito das Comunidades Europeias e poderíamos falar da interdependência entre todos os povos e das evoluções económicas e sociais que nos transcendem. Se quisermos ser realistas e modestos, melhor seria atribuir ao Estado a promoção efectiva da igualdade de direitos, do bem-estar, da qualidade de vida e da real igualdade de oportunidades - e se o conseguisse já não era mau - do que atribuir-lhe esta tarefa de realizar a igualdade real entre os Portugueses, que é quase uma tarefa de Sísifo.

O que é que significa "a igualdade real entre os Portugueses"? Penso que discutir esta questão obriga-nos a entrar no debate sobre se todos os mitos igualitários não serão a base dos totalitarismos e se não levam à criação de estruturas pseudo-igualitárias ou que teoricamente promovem a igualdade, mas que, na prática, constróem a opressão e a desigualdade, além de limitarem a liberdade.

Trata-se, portanto, de uma questão de realismo e de modéstia. Penso ser melhor que o Estado faça aquilo que pode e deve, ou, se quiserem, mais popularmente, que tente ter um pássaro na mão e não dois a voar. Porque o Estado não tem meios, por si só, no mundo contemporâneo, estando Portugal integrado em grandes conjuntos de países - sem falar já em toda a interdependência entre as várias regiões do Mundo - para promover a igualdade real entre todos os portugueses. Esta é pois uma expressão pura e simplesmente demagógica e é também atribuir ao Estado uma tarefa - como disse há pouco - de Sísifo, pois o Estado, sozinho, não tem possibilidade de a realizar.

Se quiserem manter na Constituição utopias irrealizáveis, por que não transcrevemos textos pré-marxistas, da autoria de uma personalidade de que gosto imenso e que até gostaria que me inspirasse - São Tomás Moro? Só que não me parece ser esta a sede para fazer um tratado de comentário à sua obra Utopia. Há doutas academias que fazem estudos moranos, mas não me parece ser, obviamente, esta a sede para os levar a cabo.

No que diz respeito à alínea e), julgo que será fácil haver um consenso largamente majoritário sobre a proposta de aditamento do PSD. O PSD propõe o aditamento da expressão "e assegurar um correcto ordenamento do território" e, embora não me tenha por especialista nesta matéria, penso que esta é uma das áreas em que - e não sei se o CDS estaria de acordo, pois há grandes divergências nesse ponto entre um social-democrata e um neoliberal ou um conservador - o Estado tem uma tarefa essencial a desempenhar. Com efeito, é fundamental nesta área a acção do Estado, entre outras razões para evitar - sem ofensa para os nossos amigos gregos, que não traduzirão estas actas - o que chamaria a "atenização" de Portugal.

Seria conveniente que o Estado desenvolvesse cabalmente esta tarefa, assegurando um correcto ordenamento do território, ou seja, entre muitas outras coisas, um equilíbrio entre as regiões do interior em vias de desertificação - não todas, mas, pelo menos, uma grande parte delas - e o litoral, fomentando, através

Página 1910

1910 II SÉRIE - NÚMERO 61-RC

dos adequados meios de comunicação e dos estímulos à iniciativa privada, o renascimento de certas zonas adormecidas, que têm grandes potencialidades, e evitando, portanto, a continuação da concentração da população e da riqueza em Lisboa e no Porto. Caso contrário, estaremos perante uma dupla "atenização", ou seja, em dois grandes núcleos urbanos, sendo tudo o resto um deserto, quanto muito com umas praias que seriam ocupadas em certas épocas do ano. Aqui, sim, o Estado tem um papel muito importante a desenvolver e como, em geral, vejo que alguns dos meus colegas nesta Comissão gostam de alargar as tarefas do Estado, certamente que aceitarão a consagração constitucional desta.

Finalmente, o PSD propõe algumas alterações à alínea c), propondo substituir a expressão "assegurar a participação organizada do povo" pela expressão "incentivar a participação dos cidadãos". Esta parece-nos uma fórmula mais correcta e mais realista. Deixa de utilizar-se o termo "assegurar", que é uma fórmula demasiado paternalista, apelando-se mais à criatividade dos cidadãos. Parece-nos uma expressão mais positiva e mais exequível e, a não ser que o deputado José Magalhães queira ver aqui alguma coisa de terrivelmente méchant, não me parece que haja uma dupla intenção. A intenção é a de tornar a expressão mais incentivadora e mais participativa, dentro da ideia da democracia participativa, de que, aliás, vamos falar também a seguir a propósito do artigo 10.° Era fundamentalmente isto que queria dizer, mas voltarei com alguns dos meus companheiros à discussão num momento posterior.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, desejo somente pronunciar-me sobre a proposta do PSD e acerca de alguns comentários produzidos pelo Sr. Deputado Pedro Roseta.

De facto, o artigo 9.° é indubitavelmente um preceito onde não será possível encontrar uma fórmula de explanação dos conceitos que nele se devem conter, que seja, na sua totalidade, harmónica ou equilibrada, na medida em que, quando se trata de elencar os fins do Estado, todos temos de reconhecer que provavelmente incorreremos em métodos expositivos que não serão de todo em todo totalmente conseguidos. No fundo, o que são as tarefas fundamentais do Estado senão uma fórmula funcional de exprimir uma dada interpretação dos fins do Estado?

Entretanto, o Sr. Deputado Pedro Roseta identifica no texto actual da Constituição e, por extensão, embora com uma diferença de graduação, no texto do projecto do PS um desequilíbrio relativo na alínea d) do artigo 9.°, na medida em que se introduziria em ambos os casos um critério instrumental in fine, quando o elenco do preceito nas demais alíneas é todo ele construído na óptica de um critério finalístico, ou seja, dos fins a que se destina a actividade do Estado e não dos meios. Em meu entender, não é também totalmente assim.

De facto, a alínea a) do artigo 9.° é também ela já hoje uma alínea que combina uma lógica finalista, traduzida na expressão "a garantia da independência nacional", com uma outra meramente instrumental, consubstanciada na formulação "criação das condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam". Esta promoção refere-se à finalidade atrás referida.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas na versão actual do texto constitucional, que ataquei muito mais do que a proposta de alteração apresentada pelo PS, vai-se ao ponto de, com o inciso "a socialização dos principais meios de produção", se chegar a medidas de política programática. Portanto, vai-se actualmente muito mais longe do que no que respeita à alínea á) do artigo 9.° É, pois, uma diferença de grau muito sensível.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sim, Sr. Deputado. Por isso mesmo propusemos a alteração da alínea d). Acontece somente que a única coisa que por ora adiantaria a este respeito é que é difícil, quando a Constituição contém um determinado conceito, poder-se prescindir absolutamente de qualquer referência, embora equivalente ou meramente aproximativa àquilo que já hoje nela se contém. É essa a nossa dificuldade, que não a do PSD, pois o PSD corre pele texto da Constituição à desfilada com uma espada mais livre do que aquela que, apesar de tudo, está colocada nas mãos dos deputados do PS, embora esta já de si seja para outros um verdadeiro camartelo.

Portanto, não sei se seria banal dizer in médio virtus est, ou seja, que aqui nos quedamos até este ponto, e mais além não vamos.

Quanto às propostas apresentadas pelo PSD, devo dizer que acolhemos com simpatia o aditamento na alínea é) da referência ao ordenamento do território, que nos parece perfeitamente justificável. Preferimos a redacção da alínea d) do nosso projecto à do PSD. No respeitante à alínea c), verifica-se que o PSD teve a preocupação de afastar do texto constitucional as referências ao povo, substituindo-as por referências aos cidadãos. Mas é uma tarefa que não nos parece particularmente salutar; bem pelo contrário, até há vantagens, em certas circunstâncias, em que a Constituição se refira com uma certa polissemia a estas duas realidades, povo e cidadãos, para que também não sejamos obrigados, às vezes, a fazer interpretações em que o excesso de rigor poderia sacrificar algumas realidades abrangidas pelo texto constitucional. Ou então, como diria o Sr. Deputado Almeida Santos, pelo menos uma consequência da proposta do PS quanto à alínea c) seria a de impedir as crianças de participar na defesa da democracia política, uma vez que essas não são cidadãos!... Enfim, é uma blague!...

Pensamos, apesar de tudo, que no artigo 9.°, cuja epígrafe é "Tarefas fundamentais do Estado", se deve manter o povo como um dos elementos constitutivos do Estado, por tributo à velha trilogia "povo, território e poder político".

Relativamente à questão entre igualdade real e real igualdade de oportunidades, que daria decerto ocasião a um debate interessantíssimo sobre o sentido político e até filosófico subjacente a esta proposta de alteração, que poderia começar em Tomás Moro mas acabaria provavelmente em John Rawls, pela nossa parte entendemos que não surgiram até ao momento dificuldades de interpretação da alínea d) do artigo 9.° da Constituição pela referência a este conceito de igualdade real quê justifiquem ou até imponham a sua substituição.

Página 1911

6 DE DEZEMBRO DE 1988 1911

É verdade aquilo que o Sr. Deputado Pedro Roseta diz, que não pode o Estado arcar sobre os seus ombros com a exclusiva responsabilidade dessa tarefa gigantesca. Porém, a verdade é que o artigo 9.° não refere que seja exclusivo atributo do Estado a promoção da igualdade real entre os Portugueses. Não menciona, pois, que a igualdade real dos Portugueses só pode ser alcançada através da acção do Estado. Pelo contrário, dispõe-se que o Estado, tal como interpreto e com a devida vénia, na esfera da sua competência própria ou no quadro da sua actuação promove a igualdade real entre os cidadãos. No entanto, para além do Estado, todas as outras instâncias, com relevância para a vida comunitária, podem e devem, no meu entendimento, contribuir no mesmo sentido, até porque aqui a referência ao Estado tem de ser entendida num sentido bastante amplo, ou seja, que não se restringe aos instrumentos político-jurídicos que a lei fundamental consagra às instituições político-jurídicas, que consagram o Estado em sentido restrito, mas tem de ser considerado como englobando o conjunto da comunidade em que nos inserimos. Aliás, só assim se pode entender alguma das outras referências que se contêm também neste artigo. De facto, não é só ao Estado que cabe, por exemplo, valorizar o património cultural. As esferas de iniciativa da sociedade e dos cidadãos como tais, por exemplo as iniciativas privadas de valorização desse património, são extremamente relevantes. O facto de se referir neste articulado que cabe ao Estado proteger e valorizar o património do povo português não significa que não haja outras iniciativas, também convergentes com este objectivo, fora do aparelho do Estado propriamente dito, isto é, dos órgãos e instituições do poder político. E o mesmo critério se poderia referir à garantia da independência nacional, que não é apenas garantia através da instituição militar ou do Estado armado, mas também de uma plêiade de entidades e de factores que ultrapassam em muito o sentido estrito da acção do Estado.

Estes são os comentários que faço às propostas do PSD no sentido da adesão à alínea e) e de reafirmar que preferimos a nossa redacção da alínea d).

Vozes.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vou, de seguida, exprimir o juízo da minha bancada sobre os preceitos em debate.

Na verdade, tudo está verdadeiramente na espada a que fez alusão há pouco o Sr. Deputado António Vitorino ou, então, no camartelo. A questão está mais no resultado do que na causa.

Já debatemos, a propósito dos artigos 1.° e 2.°, com que o artigo 9.° está inequivocamente conexionado, a parte substancial ou a questão fulcral que é suscitada nesta sede. A discussão sobre o socialismo constitucional tem neste ponto um corolário mas não a sua sede principal. Isto quer dizer que dou por reproduzidas as considerações feitas na altura própria sobre o significado das opções que o PS e o PSD pretendem praticar nesta esfera.

Não citarei de novo as declarações do Sr. Deputado António Vitorino na sede própria, em 1982, sobre a importância de que não se perdesse o norte da Constituição nesta vertente de orientação programática. Não reproduzirei, também, as declarações do Sr. Deputado Almeida Santos a propósito do mesmo tema e, designadamente, as suas fogosas congratulações pelo facto de as propostas da AD, com o seu conteúdo denso, não terem sido acolhidas nessa revisão constitucional "graças ao voto do PS". Hoje, é o PS que entende fazer as suas propostas, que então rejeitou e repudiou veementemente. Neste momento, o têmpora, é o PS que invoca a "necessidade de alijar" aquilo a que chama "a carga ideológica da Constituição", em busca de uma pax constitucionalis que não encontra interlocutor disponível. Revela-o bem o discurso do Sr. Deputado Pedro Roseta, mas outros há ainda mais ajivarados e assanhados nessa esfera. No futuro, partindo-se desta concepção, é possível imaginar outros discursos ainda mais carregados ideologicamente e, de resto, nada inocentes a propósito da supressão que o PS se dispõe a admitir...

Gostaria ainda de lembrar uma coisa, porventura esquecida: o artigo que estamos agora a discutir foi aprovado por unanimidade em 1982, como traduz o Diário da Assembleia da República, n.° 130, 1.ª série, de 30 de Julho de 1982, p. 5474.

Vozes.

Ora, na sua versão originária, o artigo 9.° referia qualquer coisa como isto: "b) Assegurar a participação organizada do povo na resolução dos problemas nacionais, defender a democracia política e fazer respeitar a legalidade democrática." Isso foi objecto do desdobramento que é patente. A alínea c) estatuía o seguinte: "Socializar os meios de produção e a riqueza através de formas adequadas às características do presente período histórico, criar as condições que permitam promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, especialmente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem."

O que verdadeiramente é notável é que todo o debate desta matéria em 1982 foi percorrido por uma preocupação de tornar não fixa, ou não imobilista, mas, apesar de tudo, caracterizada por um certo número de balizas, a modelação dos contornos da organização económica nesta sede de fixação das tarefas fundamentais do Estado (em consonância com as grandes opções firmadas nos artigos 1.° e 2.° e, posteriormente, materializadas no título da organização económica propriamente dita). Em 1982 foi também eliminada a expressão "classes trabalhadoras", o que, aliás, aconteceu como critério geral, de resto proposto pelo PS em homenagem ao tal princípio da "descarga ideológica", com os resultados que hoje estão à vista, em relação aos quais não creio que o PS se possa congratular excessivamente (mas em matéria de morbidez política os limites são infinitos, como se sabe).

Curiosamente, na altura invocou-se a favor dessa opção uma linha de argumentação sintetizada, por exemplo, pelo Sr. Deputado Jorge Miranda que, a pp. 3332 e 89 do Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.° 108, de 8 de Outubro de 1981, dizia o seguinte: "Iria ao encontro de algumas preocupações da Aliança Democrática e não deixaria de conter referência à socialização dos principais meios de produção, entendida não como objectivo fixo, imobilista e absoluto, mas com um certo número de balizas que a organização económica teria de aceitar." Depois, o mesmo depu-

Página 1912

1912 II SÉRIE - NÚMERO 61-RC

tado sublinhava esta ideia: "Aliás, socialização dos principais meios de produção neste sentido é uma fórmula que se encontra na Constituição Alemã ocidental."

Repare, Sr. Deputado Pedro Roseta, o horror que se encontra no preâmbulo da Constituição Francesa de 1946, em vigor por virtude do preâmbulo da Constituição de 1958, de certa maneira na Italiana e ainda na Espanhola, em relação ao qual já o Sr. Deputado Costa Andrade in illo tempore replicava, entre outras coisas: "A mim o que me repugna nem é a expressão socializar os principais meios de produção', "o que subscreveria inteiramente." (Eis o Sr. Deputado Costa Andrade nas malhas da "Utopia igualitária" do "totalitarismo" e de outros desvarios seguramente repugnantes para qualquer social-democrata "distinto de um neo-liberal"!)

Referia o mesmo deputado ainda: "Parece-me uma certa violência em pôr isto constitucionalmente; ao menos que pudéssemos socializar ou social democratizar ou cristã democratizar, também para permitir todos os meios possíveis de realizar o bem-estar e o progresso dos Portugueses, o que todos nós na prática aceitamos."

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Foi isso que eu disse, Sr. Deputado! O que eu não queria era ver só certas expressões na Constituição!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Pedro Roseta, nestas matérias do passado o melhor é ouvir tudo primeiro antes de começar a fazer interposições de satisfação ou horror!

O Sr. António Vitorino (PS): - É preciso ler tudo!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, obviamente, ao citar a página, estou a cumprir a regra tabelar e básica que permite a qualquer ler tudo! São, aliás, uns milhares de páginas!

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - V. Exa. parece uma réplica do deputado João Camoesas!

Risos.

O Sr. Presidente: - E acrescentava: "Quanto à proposta do deputado Jorge Miranda, salvo melhor exame, parece-me que agrava os inconvenientes deste: é que traz para a primeira fila os objectivos, o processo e o bem-estar", e diz: através da socialização como se vinculasse apenas que esses fins só podiam ser realizados através da socialização. Quer dizer: promover o bem-estar e a qualidade de vida socializando os principais meios de produção.

Isto faz-me lembrar aqueles tipos legais de crime onde se proíbe um determinado resultado mas apenas por uma acção típica. Só se preenche por aquele caminho. Quem conseguir realizar o mesmo resultado fora do caminho já não preenche o modelo típico. Aqui também os partidos ou as forças políticas concorrentes às eleições eram obrigados a promover o bem-estar e a qualidade de vida através da socialização. Qualquer outro caminho era inconstitucional. Creio que isso não é realista, mas talvez possamos deixar isto para melhor amadurecimento, sendo certo que, pelo nosso lado, defendemos com grande convicção a necessidade de assegurar o pluralismo. O Estado tem tarefas neste domínio, que é assegurar o pluralismo real e o pluralismo efectivo e não obrigar qualquer partido a promover o bem-estar segundo os processos que outrem entende que são os bons, mas que não são os meus".

Ora, isto foi dito em Outubro. Porém, em Agosto o texto em vigor era aprovado. Recorde-se que, nesse mês de Outubro de 1981, o Sr. Deputado Jaime Gama (honni soit qui mal y pense!) sublinhava, em réplica a esta interrogação sobre o pluralismo: "Apenas gostaria de prestar um esclarecimento ao Sr. Deputado Costa Andrade, não tanto pela incidência deste problema na questão constitucional, mas para lhe lembrar que a expressão socialização não se encontra na Constituição por um capricho do PS." (Sublinho que era o PS de então!)

Vozes.

O Sr. Presidente: - E continuava o mesmo Sr. Deputado, inteiramente insuspeito, seguramente, nesta como em todas as demais matérias: "Constitui hoje um património ideológico dos partidos sociais-democratas e dos partidos democratas-cristãos; é um termo ultra utilizado em todos os documentos da doutrina social da Igreja e, tal como certamente V. Exa. recorda e o Sr. Deputado Pedro Roseta seguramente recordará melhor ainda, constitui há dois anos uma das grandes expressões da ofensiva ideológica do PSD."

Trouxe isto à lembrança porque há determinadas coisas que não devem jazer nos arquivos poeirentos da história e devem ser trazidas a debate quando as coisas que estão a ser debatidas são da importância das que agora debatemos.

É evidente que o preceito, tal qual se encontra redigido, tem uma profunda lógica. Como o Sr. Deputado António Vitorino sublinhava, aquilo que se exprime no artigo 9.° é, sem dúvida, uma certa concepção do Estado em consonância com os princípios definidos nos artigos 1.° e 2.° Aquilo que o PS se apresta a pactuar com o PSD é uma reconformação, uma reconformação redutora do projecto constitucional. Repito, é-nos indiferente que o instrumento que pratica ou conduz a esse resultado seja uma cimitarra, uma navalha ou um camartelo: o resultado é que nos parece, ele próprio, um recuo, e um recuo negativo - uma diminuição negativa.

Não creio, Srs. Deputados, que a diferença entre um social-democrata e um neoliberal esteja na alínea é) a que se agarrava o Sr. Deputado Pedro Roseta como o afogado à tábua. A alínea e) do artigo 9.° escapa um pouco (diga-se em abono da verdade) à própria lógica do artigo na sua conformação originária; por isso vos trouxe, aliás, a leitura do texto integral da versão originária da Constituição neste ponto. O texto, nas primeiras alíneas da norma, é a tradução em tarefas do Estado dos princípios constantes dos artigos 1.° e 2.°; tem uma harmonia, tem uma lógica, tem uma função até desagregadora de tarefas específicas do Estado em diversas vertentes. O PS entende alterar o próprio elemento principológico, que é a matriz destas consequências, que são as tarefas - essa é a questão central. Tudo o mais é uma discussão derivada.

O PS diz alguma coisa que merece profunda atenção, dada a natureza, o conteúdo e as implicações futuros da alteração constitucional que é proposta. O PS

Página 1913

6 DE DEZEMBRO DE 1988 1913

afirma que, feito tudo o que o PS se dispõe a fazer, não haveria alteração do conteúdo fundamental da Constituição. O PS agiria meritoriamente no intuito de retirar "a carga ideológica", "o carácter unilateral", "o carácter marcado do conteúdo político da Constituição", e tudo o mais que o Sr. Deputado António Vitorino disse em linguagem própria de Partido Socialista e que o Sr. Deputado Roseta, numa outra óptica, qualificou como a "expurgação da vulgata marxista" e "da utopia totalitária", a "exclusão e postergação das normas programáticas", o "repúdio da demagogia panfletária", que, aliás, consta do programa do PSD, como ele, traumaticamente, referiu.

Tudo isso não conduz -segundo o Sr. Deputado António Vitorino - à alteração de uma característica fundamental da Constituição. Segundo o PS, trata-se de realizar e até aprofundar a democracia económica, social e cultural a que ficaria aludindo o artigo 2.° Em termos de definição principológica não haveria na definição das tarefas do Estado uma mutação essencial se fosse aprovado tudo o que o PS propõe - diz-se.

Creio que, sobre esse ponto, valeria a pena que o PS pudesse aprofundar um pouco os argumentos. A leitura que a proposta é susceptível de induzir é diferente; é, quiçá, contrária a essa. Ao suprimir-se a ênfase nos instrumentos - o instrumento transformação das estruturas económicas e sociais e socialização dos principais meios de produção - diminui-se uma componente, atenua-se e reduz-se uma componente fundamental do projecto constitucional e faz-se isso no pórtico, nas cabeças de capítulo da Constituição. Mas (como sabemos do texto do projecto do PS e até do texto do pacto entre o PS e o PSD) o PS e o PSD entendem que essa alteração quanto aos instrumentos deve ser praticada, também, nas sedes respectivas da constituição económica. E isso tem implicações muito concretas. Este artigo tem um valor a se, sabemo-lo, mas alterado assim e articulado com as outras alterações que o PS ou propõe ou se dispõe a pactuar, conduz ou pode conduzir a uma diminuição, uma redução, uma alteração, uma amputação de um dos vectores fundamentais do texto constitucional tal qual se encontra hoje conformado. E isso parece-nos profundamente negativo.

Por outro lado, gostaria de sublinhar que a alusão contida na parte final da proposta do PS ao conceito "modernização", decorrente de uma palavra polissémica por excelência, não diminui o alcance das questões que suscitei. Bem pelo contrário! Neste contexto, a palavra "modernização" pode assumir uma das suas leituras mais banais, menos alteradoras do status e menos compatíveis com um caminho de real aprofundamento da democracia económica, social e cultural.

Aquilo que afirmei aplica-se sem alterações e com agravamento àquilo que o PSD propõe, em particular à alínea d), que aparece inteiramente arrasada e esvaziada de conteúdo. Nesta matéria, aliás, o Sr. Deputado Pedro Roseta arvorou a alínea é) em pedra-de-toque definidora da entidade partidária e da distinção entre um social-democrata e um neoliberal. Mas não me parece, verdadeiramente, que a diferença entre tais famílias políticas possa estar nessa alínea - há-de estar seguramente até nas anteriores todas; nesta é que não está! Aliás, ela foi aprovada por unanimidade - aprovada por unanimidade pode ser a sua alteração, desde que o PSD precise um pouco mais as vantagens de introduzir na Constituição a expressão "ordenamento do território", que adiante já vem sugerida também.

Já tivemos ocasião de fazer um ligeiro debate sobre esta matéria, se não estou em erro, a propósito do artigo referente ao direito à habitação. Na altura, o PSD ficou de aprofundar pontos de vista que nos permitissem ter a certeza de que não estamos a introduzir na Constituição, por esta via, alguma coisa que poderia não ser mais do que uma homenagem a um jargão tecnocrático de voga passageira, que neste momento tem, por exemplo, projecção na designação de um ministério, mas que não é absolutamente seguro que tenha de ter projecção, por um lado, na designação dos próximos ministérios responsáveis pela mesma área e, seguramente, na Constituição, que tem uma aspiração de vigência superior à da duração do Sr. Ministro Valente de Oliveira. Gostaria que a norma "Valente de Oliveira" pudesse, apesar de tudo, ter uma duração de vida, política naturalmente, superior à do ministro em causa. Por outro lado, só assim ela poderá ter um conteúdo mais útil do que a mera menção, porque (como se sabe) não estamos a introduzir na Constituição, aqui, um conceito que tenha valor por si; ele há-de ter, como outros conceitos relativamente indeterminados da Constituição, um conteúdo correspondente àquele que decorre da conceptologia ordinária, comum, que a Constituição importa, de certa forma, absorve e perfilha, mas não tem um conteúdo constitucional autónomo, próprio.

Não faz sentido que a Constituição faça uma definição autónoma de ordenamento do território. Esta será, em grande medida, aquela que decorre daquilo que os nossos debates sejam. Sucede que o PSD, neste domínio, foi muito ateniense no apelo ao "salvai Atenas! Que Portugal nunca seja a Atenas da Europa!". Tal apelo poderia ter algumas vantagens e algum sentido, claro. Mas o PSD não foi muito específico em relação ao conteúdo concreto da sua proposta.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Era evitar a "atenização", no sentido de evitar o que é a Grécia hoje; isto é, que metade da população de Portugal se concentrasse na região de Lisboa e daí resultasse um enorme conglomerado à custa de toda a seiva económica, e até vital, demográfica, de todo o país. E seria mau mesmo se a concentração se desse para lá de Lisboa; também na cintura urbana do Porto, ou Grande Porto. Isto aconteceu na Grécia; certamente V. Exa. já visitou Atenas e sabe como é hoje horrível; uma cidade ultrapoluída, ultramegalópole, que tem quase metade da população daquele país. A minha referência era no sentido de que o ordenamento do território visa, entre muitas outras coisas, evitar isso. Julguei que tinha sido claro - nada tem a ver com a Grécia antiga, nem com a Atenas ideal, que todos nós amamos.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado Pedro Roseta. Certamente todos nós visitámos já Atenas sem sair do nosso quarto, como manda um velho livro de viagens evocado por Garrett. Portanto, a questão que eu colocava não era essa. Como, obviamente, a definição do ordenamento do território não corresponde a esse excurso pela Atenas moderna e antiga que V. Exa. acaba de fazer, antes é um conceito com uma acepção

Página 1914

1914 II SÉRIE - NÚMERO 61-RC

muito precisa no jargão do respectivo ministério, e como o Sr. Deputado não se deu ao cuidado de trasladar para aqui essa acepção muito precisa, a minha inquietação é que, no futuro, não encontrem os intérpretes da Constituição, no excurso que V. Exa. acaba de fazer, arrimo bastante para um conceito escorreito, enxuto e perceptível do que seja o ordenamento do território. Foi esta apenas a minha preocupação!

Creio que ainda estaremos a tempo de poder reflectir sobre a matéria, tendo uma definiçãozinha sucinta, enxuta e bem elaborada do ordenamento do território, porque ele não se esgota na dimensão que V. Exa. acaba de citar, e não se esgota, seguramente, no caso português na problemática da macrocefalia do centro urbano dominante.

Em relação às outras considerações do Sr. Deputado Pedro Roseta, deixaria para uma segunda abordagem a reflexão sobre os malefícios supostos, inventados ou reais, do artigo 9.° A questão fulcral já está equacionada. Não creio que haja grande vantagem em elucubrarmos sobre se as tarefas do Estado democrático são, verdadeiramente, o suplício de Sísifo, ou de Tântalo, ou de qualquer outra personagem da mitologia. Basta-nos a dificuldade de construir o Estado de direito democrático com as suas características tal qual as assume em Portugal. Pela nossa parte, admitimos que o Estado de direito democrático é um desafio que vale a pena, embora seja um desafio tormentoso, como a história portuguesa recente o vem demonstrando.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Queria dizer só duas coisas muito rápidas. A primeira é que estamos sempre a tempo de inventar novos suplícios e de lhe dar novos nomes. A segunda é que peço para trocar com o Sr. Deputado Alberto Martins; ele falaria primeiro e eu depois, porque ele precisa de sair e eu hoje tenho um horário mais flexível.

O Sr. Presidente: - Com certeza.

Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Eu deixaria as incursões atenienses, muito agradáveis embora, para apresentar apenas duas notas, sobretudo uma chamada de atenção para o argumento lógico que se pode retirar da proposta apresentada pelo PS e que é o que diz respeito ao conceito de socialização dos principais meios de produção; já vimos, pelo incurso do Sr. Deputado José Magalhães, da natureza polissémica do conceito de socialização, sobretudo uma não coincidência entre a leitura, que parece ser feita, do Prof. Jorge Miranda e a que é feita pelo Prof. Gomes Canotilho e Dr. Vital Moreira, quando os segundos apontam para uma ideia, não só de titularidade, mas também envolvendo um tipo diverso de relações sociais em função do domínio desses meios de produção. Ora, o argumento lógico que retiro incide sobre a estrutura da propriedade dos meios de produção, da qual, na última revisão constitucional, foi retirada a ideia de que a propriedade social tenderia a ser predominante; quando, de entre os meios apontados neste artigo, é eleita a socialização como algo exemplar ou exemplificativamente superior, eleito como predominante, ou podendo ser assim visto, creio que há uma incoerência lógica com a ideia que acabou por ser vertida no artigo 90.°, após a última revisão constitucional. Isto é: quando se apontam as finalidades e se diz "a socialização é um meio privilegiado", tal está em contradição com aquilo que foi retirado, que era "a propriedade social é predominante". Portanto, retiraria daqui, sem prejuízo da argumentação e da discussão já havida sobre os artigos 1.° e 2.°, um novo argumento de natureza lógica e sistemática quanto à necessidade de retirar esta exemplificação.

A outra nota é a seguinte: a expressão "abolição da exploração do homem pelo homem" é tautológica, pleonástica nalguma medida, porque a igualdade real entre os Portugueses implica, necessariamente, a abolição da exploração do homem pelo homem. Portanto, não faz sentido essa expressão, porque está contida na ideia de igualdade real entre os Portugueses.

O Sr. Presidente: - Se o Sr. Deputado António Vitorino permitisse, gostaria de fazer, sectariamente, um comentário na qualidade de parte.

Creio, Srs. Deputados, que é perfeitamente indispensável que cada qual assuma o que propõe até ao fim; neste caso concreto, creio ser extremamente difícil vislumbrar suporte para a primeira das observações do Sr. Deputado Alberto Martins. O artigo 9.°, alínea d), tal qual está redigido encontra-se em consonância com aquilo que a primeira revisão constitucional estabeleceu quanto ao artigo 90.°, quanto ao artigo 80.°, quanto ao artigo 83.° - que, como se sabe, ficou intacto nessa circunstância. Há no "designadamente" utilizado no segmento intermédio desta norma uma virtude, qual seja a de que enumera a título exemplificativo - não enumera àquele título que o Sr. Deputado Alberto Martins citou. Não se estabelece um privilégio. O "designadamente" é o contrário do privilégio, é o contrário da unicidade, é o contrário da exclusividade, é o contrário do meio único. O "designadamente" significa um sublinhar de que é inconcebível, ou incompreensível, ou irrealizável um bem-estar, uma qualidade de vida, uma igualdade real e uma efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais sem um quid, sem um quantum de transformação das estruturas económicas e sociais, a qual é conseguível, designadamente, através da socialização dos principais meios de produção que, como se sabe, não se identifica com a sua estadualização ou estatização. Isto está, evidentemente, em consonância com o disposto no artigo 80.°, na sua redacção actual, alínea c), e está em consonância com o artigo 90.° na sua redacção actual.

Nós sabemos que o PS propõe, nesta revisão constitucional, a alteração do artigo 80.°, no sentido de suprimir a alusão à obrigação de apropriação dos principais meios de produção. Mas isso é um efeito que decorrerá, se o texto for aprovado, desta revisão constitucional! Não decorre do texto actual da Constituição!

Por outro lado, em relação à propriedade social, sabemos que o PS altera na sua proposta a noção da natureza, da conformação, do sentido constitucional da propriedade social; que propõe, em relação ao artigo 89.°, uma alteração, com significado, aliás, dos sectores de propriedade dos meios de produção, com contornos que, de resto, não estão excessivamente bem definidos e que o Sr. Deputado Almeida Santos confessava não saber rigorosamente o que pudessem ser, em termos de elucubração definitiva. Não sei se, no quadro do acordo PS-PSD, isto foi objecto de algum

Página 1915

6 DE DEZEMBRO DE 1988 1915

aprofundamento e se existe até alguma proposta que materialize mais rigorosamente aquilo que, no projecto do PS, está materializado em termos menos claros. Em todo o caso, em seu tempo, saberemos tudo isto.

O Sr. António Vitorino (PS): - Por ora gostaria apenas de recordar a V. Exa. que nesse debate tive ocasião de proferir uma intervenção sobre essa matéria, onde tentei caracterizar, pelos vistos infrutiferamente, o que era o sector da propriedade social - que, aliás, não deve ser confundido com o conceito de propriedade social que constava, por exemplo, do artigo 90.° da Constituição na versão originária. Isso ficou claro na minha intervenção, mas pelos vistos não ficou para o Sr. Deputado José Magalhães - terei de a reproduzir em momento oportuno.

O Sr. Presidente: - Creio que poderá ser útil, sobretudo depois do acordo. Ficámos à espera de saber em que é que o articulado se traduz nessa parte. Das duas uma: ou o articulado reproduz rigorosamente o projecto do PS e a intervenção de V. Exa. manterá valor, embora agora deva ser perfilhada pelos dois nubentes em matéria pactícia (adquirindo assim outro sentido) - será necessário que o Sr. Deputado Pedro Roseta subscreva, ou cossubscreva, ou, de alguma forma, perfilhe essa criatura proposta pelo PS, - ou então o texto a aprovar será diferente e nesse caso será necessário que os proponentes venham afirmar o sentido exacto...

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, isso é pura perfídia argumentativa. O acordo não tem nada a ver com a questão dos sectores de propriedade. Como V. Exa. sabe perfeitamente não consta nenhuma referência aos sectores da propriedade de os meios de produção no acordo PS-PSD.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - O Sr. Deputado José Magalhães gosta de esgrimir com fantasmas.

O Sr. Presidente: - Não se trata de um fantasma, Sr. Deputado Pedro Roseta. Trata-se de um problema, e de um problema bastante sério, uma vez que, tendo o PS anunciado em termos razoavelmente terminantes, como sublinha o jornal Acção Socialista do dia 20 de Outubro...

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Esta sala não é uma sala de leitura de jornais!

O Sr. Presidente: - Mas é uma sala de leitura de acordos! Não deve é ser cartório de carimbá-los sem os ler sequer! Se os fazem lá fora, ao menos tragam-se aqui e leiam-se com toda a frontalidade!

A p. 8 desse texto sublinha-se, sob o título "Exposição de Constâncio à comissão política" e sob o subtítulo "Para além do acordo", o seguinte: "Sublinhou-se - a personagem citada - por outro lado que os dois partidos ficam obrigados por este acordo a votar unicamente os pontos que o integram, isto implica que em muitas alterações, discussões ideológicas que o projecto do PS consagra - por exemplo os artigos 1.°, 2.° e 9.° - o PS votará apenas o seu texto." Diz-se aqui: "por exemplo os artigos 1.°, 2.° e 9.°". Suponho que, obviamente, o artigo 89.° também estará compreendido. E portanto o PS votará apenas o seu texto.

Em todo o caso, e como o Sr. Deputado António Vitorino sublinhou, com carácter sisifiano, verdadeiramente, só quando chegarmos ao artigo 89.° é que saberemos. Foi isto que referi na minha intervenção.

O Sr. António Vitorino (PS): - É a isso que chamo o suplício de Magalhães.

Risos.

O Sr. Presidente: - Chame-lhe o que quiser! Quanto ao primeiro aspecto, entendo que há uma alteração. Não há contradição no texto actual, mas há uma alteração da redacção agora proposta pelo PS e essa alteração tem implicações.

Em relação ao segundo aspecto - o da tautologia - é um problema sério do ponto de vista político. Se o PS entende que a substituição de expressões, como aquelas que temos estado a abordar, é apenas a supressão de tautologias, sem alteração de conteúdo, a alegria do Sr. Deputado Pedro Roseta esboroa-se, porque a vontade de ver a Constituição descarregada desses conteúdos normativos programáticos (como se sabe, nos termos da Constituição também têm uma carga normativa, uma carga puramente panfletária), nesse caso o desiderato do PSD não ficaria atingido.

Pela nossa parte parece-nos um jogo perigoso. Sustentar-se uma identidade alterando-se o suporte semântico, que permite corroborar inequivocamente essa identidade, pode conduzir à equivocidade. E este é, como se sabe, o caminho da diluição da normatividade das constituições, é o caminho da desnaturação do seu conteúdo. Esse caminho o PCP não corroborará, não facilitará, nem coonestará por qualquer forma.

O argumento de que a tautologia constitucional é suprimida, mas não o conteúdo constitucional, é um argumento reversível, perigoso, e que abre portas a leituras que V. Exa. seguramente não desejará, uma vez que está a sublinhar que é seu objectivo a supressão da exploração do homem pelo homem e que não quer dizer outra coisa quando proclama a necessidade de "uma igualdade real entre todos os homens".

Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - O entendimento da supressão que é sugerida é esse. É uma recusa da opressão social e a tentativa de criar uma expressão que seja aberta e que resolva definitivamente e de modo claro uma luta ideológica que tem uma hipoteca nominalista muito forte e fecha um conceito, evitando a sua abertura, digamos, evitando a identificação das diversas sensibilidades e forças políticas com o texto, que pode ser "aberto". Isto no que diz respeito ao segundo aspecto.

Quanto ao primeiro, creio que o "designadamente" não é só o "exemplificativamente". Este "designadamente", aqui, é uma exemplificação privilegiada, sobretudo, elegendo como meio essencial ou como meio fundamental esse. É uma eleição, uma escolha privilegiada, dos meios possíveis, não é apenas um exemplo entre muitos outros. E, ao ser uma eleição dos meios possíveis, estou em crer (numa leitura em que estou a privilegiar a coerência entre os argumentos lógico-gramaticais) que a fórmula que ficou na Constituição, a este nível, é uma fórmula relativamente incoerente com a alteração do artigo 90.°, na medida em que a formulação anterior é "socializar os principais", aqui a ideia de "socializar" manteve-se neste texto, elegendo

Página 1916

1916 II SÉRIE - NÚMERO 61-RC

ainda a ideia do privilégio da socialização dos meios de produção, quando, ao invés, no artigo 90.° a propriedade social deixou de ser predominante.

E já vimos também que a propriedade social não corresponde apenas à apropriação dos principais meios de produção. Ora, assim sendo, o texto do PS, a que o Sr. Deputado José Magalhães faz referência, a este nível, mantém a ideia da apropriação dos meios de produção, repito, apropriação "de meios de produção".

A leitura do que significa a retirada de "os principais" não é unívoca, mas nela mantém-se a ideia da apropriação de meios de produção. Não é posta em causa, na sua essencialidade, esta possibilidade a que o Estado pode recorrer. Portanto, a meu ver, ela não permite a leitura com a extensão que V. Exa. lhe pareceu dar. Admito até que "a apropriação colectiva dos principais meios de produção" ou "a apropriação colectiva de meios de produção possa conduzir, em termos de resultado, a soluções coincidentes.

Porque: o que são os principais meios de produção? Hoje, esse conceito está contido em diversas Constituições não com a ideia de socialização dos meios de produção nesse sentido lato, mas sim no sentido de apropriação colectiva dos principais meios de produção.

Aqui, esta ideia de "apropriação dos principais meios de produção", que é conferida ao Estado e que está em muitas Constituições, deixa em aberto a possibilidade, de a todo tempo, o Estado definir quais são os concretos meios de produção que devem ser nacionalizados. Isto naturalmente em obediência a uma ideia de subordinação do poder económico ao poder político, que a generalidade das Constituições ocidentais consagra.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, vou resistir a fazer um comentário imediato a essa matéria porque há oradores inscritos.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Começava por concordar com o Sr. Deputado José Magalhães - para também não perder totalmente esse hábito - em que este artigo 9.° é, de facto, uma decorrência dos artigos 1.° e 2.° e da alteração a eles proposta pelo PS. Infelizmente não tive o prazer de estar aqui quando o Sr. Deputado José Magalhães falou sobre os artigos 1.° e 2.°, não tive ocasião de ouvir as transcrições que fez das minhas intervenções, o que é uma pena, mas, como a procissão ainda vai no adro, estou certo de que ainda terá oportunidade de reproduzir aquilo que citou, para que eu lhe possa responder nos devidos termos.

Logo de seguida passava a discordar do Sr. Deputado José Magalhães, quando concluiu da leitura organizada que fez do que foi dito na 1.ª revisão e (por comparação) do que está hoje, aqui, em cima da mesa, por iniciativa do projecto do PS, na síntese das suas próprias palavras, que "o PS faz suas as propostas que rejeitou no passado". Não é verdade! Não é verdade! As propostas que o PS rejeitou no passado não correspondem àquelas que o PS está aqui hoje a fazer, e V. Exa. sabe-o perfeitamente. O que o PS hoje faz é proceder à apresentação de propostas próprias de reformulação do que está no texto da Constituição, com base em soluções que nunca foram equacionadas na 1.ª revisão. A síntese correcta da nossa posição é, pois: "o PS hoje propõe que se altere aquilo que no passado entendeu que não devia ser alterado". Mas não o faz acolhendo propostas alheias, fá-lo com as suas próprias propostas e nos termos da sua própria interpretação das propostas que faz. O que é totalmente diferente.

Aliás, sobre esta matéria podemos continuar aqui eternamente a debater o que foi a interpretação que cada um fez da 1.ª revisão e o que é a interpretação que cada um faz e fará desta 2.ª revisão. O Sr. Deputado José Magalhães posiciona-se face à 1.ª e 2.ª revisões como quem se posiciona face à linha Maginot em relação à 1.ª revisão e face ao bunker em relação à 2.ª Na 1.ª revisão estava em causa a linha Maginot: a tal concepção de que estávamos num período histórico, transitório e precário, e revolução continuada e por isso a Constituição era, ela própria, transitória, consolidando um estádio já adquirido da revolução, com o objectivo de projectar, com um certo determinismo histórico, para uma subsequente fase superior de evolução desse processo revolucionário, que nos termos do discurso político do PCP poderia alterar, até qualitativamente, alguns dos aspectos do regime constitucional (eventualmente no plano dos direitos e liberdades), mas que, sob o ponto de vista económico, era considerado um estádio de evolução irreversível, uma concepção da irreversibilidade generalizada não apenas às nacionalizações, mas a muitos outros aspectos da Constituição. Esta era a linha Maginot do discurso constitucional do PCP, que caiu na primeira revisão, e então o PCP gritou: "golpe de Estado inconstitucional". Gritou aos sete ventos. Consta, aliás felizmente, da declaração de voto de encerramento do debate da 1.ª revisão feita pelo Sr. Deputado Carlos Brito.

O Sr. Presidente: - Obviamente não encontra, Sr. Deputado, nenhum grito de abaixo o golpe de Estado inconstitucional!

O Sr. António Vitorino (PS): - Abaixo?...

O Sr. Presidente:... O golpe de Estado inconstitucioal. É uma expressão particularmente pitoresca, que o Sr. Deputado António Vitorino encontra no seu espírito, para resumir aquilo que consta de duas páginas e tal do Diário da Assembleia da República, no seu teor e susceptível de ser lido in extenso, coisa que é recomendável.

O Sr. António Vitorino (PS): - Vou trazer para a próxima reunião a declaração do Sr. Deputado Carlos Brito onde vem a expressão qua tale. Também logo na altura, em 1982, achei um excesso e comecei logo a pensar o que iria o PCP dizer cinco anos depois. É porque, agora, quando é o bunker que está sob ameaça, já não é a linha Maginot, mas tão-somente o bunker, já não sei o que o PCP há-de gritar a não ser "Estado de golpe". E a única hipótese alternativa que têm.

Ora, isto significa que o PCP optou, decididamente, por uma estratégia sem saída, em meu entender, neste debate. Mais vale a semantização da Constituição, ainda que ela possa produzir efeitos irreversíveis e prejudiciais no combate político em geral, do que o PCP perder a âncora que o faz aspirar a tutelar o projecto constitucional através de certas expressões do texto constitucional de que no passado foi o principal inspi-

Página 1917

6 DE DEZEMBRO DE 1988 1917

rador. Essas expressões não servem comprovadamente para reger o País, porque são objecto de querela, e inequívoca e sucessivamente o sufrágio universal já demonstrou a valia dessa conclusão. Mas servem para dar cobertura às agruras da evolução do pensamento constitucional do PCP. Em nome da defesa das dificuldades da evolução do pensamento constitucional do PCP, mais vale manter na Constituição expressões cujo desfasamento em relação à realidade conduz à semantização e ao desrespeito do próprio texto constitucional.

Cumpre perguntar: o que é que vale mais, o interesse do País ou o interesse do partido? É evidente que a eliminação da carga ideológica pode não eliminar a querela constitucional, mas eu nunca disse o contrário. A menos que o PCP nos diga: "Viva a querela permanente", já que a querela é a razão de ser da vida, porque é dialéctica, e é isso que vivifica a Constituição, o facto de ser contestada nos seus pressupostos filosóficos, ser desautorizada, até, inclusivamente, pelo curso político dos acontecimentos, e então, para serem coerentes com a posição que estão a defender, o PCP devia era preconizar mesmo o reforço da querela ideológica, isto é, o reforço da carga ideológica da Constituição. Assim, quanto mais se reforçasse a carga ideológica da Constituição, quanto mais forte fosse essa carga ideológica, melhores condições haveria de os herdeiros da versão originária do texto constitucional se moverem na luta política, dividindo aqui, como sempre o faz o PCP, entre herdeiros fiéis - o PCP - e herdeiros infiéis - o PS e as forças da esquerda democrática. Penso é que deveriam levar a vossa lógica às últimas consequências, em vez de tomarem as vestes de Catão acusando, dedo em riste, o PS de infidelidade ou de deturpação do texto constitucional originário.

Isso é tão evidente no discurso do Sr. Deputado José Magalhães, tão evidente, que até ao ouvi-lo, na fase final da sua intervenção, me fez lembrar uma personagem de desenhos animados: recordo a história do galo e do cão, em que o galo se entretém pacificamente a zurzir o cão. Zurze, zurze, zurze, e o cão fica exangue. Mas o galo não pode deixar que o cão desfaleça porque senão o jogo deixou de fazer sentido, deixa de haver objecto de zurzimento. Portanto, sempre que zurze no cão, o galo dá-lhe uma palmadinha nas costas ou deita-lhe um copito de água para o focinho para ver se reanima, para manter o jogo. É assim o Sr. Deputado José Magalhães em relação ao PS, foi assim na 1.ª revisão, é assim na 2.ª Zurze no PS de alto a baixo, desanca as posições do PS, acusa-o das coisas mais terríveis, mas depois abre uma portinhola final na intervenção dizendo: "mas vejam lá se não podem deixar aqui, de pé, qualquer declaraçãozita que permita utilizar a posteriori a favor da nossa própria tese". É esta a situação com que estamos sempre confrontados, neste debate, a propósito de todos os artigos. Por que não também a propósito do artigo 9.°?

Assim sendo, sempre lhe vou deixar a portinhola aberta, Sr. Deputado José Magalhães.

E a porta aberta que lhe deixo é esta: quem é que trouxe a este debate uma interpretação flexibilizadora do sentido da expressão cuja eliminação agora se propõe? Foi o próprio Sr. Deputado José Magalhães. E fê-lo tentando demonstrar que a expressão, já na 1.ª revisão, tinha sido mantida pelo PS em nome de uma interpretação flexibilizadora e, até, quiçá descaracterizada do cunho ideológico, partidário e unilateral que ela poderia ter. E que, portanto, era possível mante-la, mau grado certas interpretações pérfidas do que ela poderia conter. Foi, pois, o Sr. Deputado José Magalhães que deu a porta de saída para a sua própria angústia, a que eu quase não precisaria de acrescentar nada. Isto é, o Sr. Deputado José Magalhães demonstrou também os efeitos limitados da operação de eliminação que o PS leva a cabo, porque, se não faz mal que fique o que está na Constituição, porque vale pouco, à luz do que já disseram os próprios Deputados do PS na 1.ª revisão da Constituição, há-de reconhecer que também não faz muito mal que se retire o pouco que já lá está. Porque o que já lá estava, como o Sr. Deputado acabou de reconhecer, já era fruto de uma interpretação flexibilizadora, já era decorrente de uma interpretação não apropriadora de um cunho partidário e unilateral da expressão "socialização dos meios de produção". Se já era isso e se isso hoje em dia é uma mera expressão nominalista, se é apenas facto de querela, sem que daí se retirem efeitos eficazes para o combate político, por que não eliminá-la da Constituição pelo preço da paz constitucional de que falava o Sr. Deputado José Magalhães? Sinceramente, o que para nós é essencial neste artigo 9.°, na redacção que agora propomos, mantém-se. E mantém-se exactamente à luz do que foi o discurso do Sr. Deputado Jaime Gama na 1.ª revisão da Constituição ou até do que foi a minha própria intervenção na 1.ª revisão. Simplesmente os instrumentos da concretização dos objectivos em causa é que se deixam em aberto para a livre opção do poder constituído, e aí há uma certa flexibilização. Mas essa opção do poder constituído não é uma opção arbitrária, não é uma opção completamente livre. É, obviamente, uma opção condicionada. Em primeiro lugar pelo texto constitucional, pelo que cá fica e muito cá fica e muito nele se contém e continuará; a conter, já que não se pode ler a Constituição só à luz do acordo que tanto obsessiona as intervenções do Sr. Deputado José Magalhães. É preciso ler exactamente o que está no acordo, e o que passará a constar da Constituição por via do acordo e do que se contém na Constituição e nela se continuará a conter, e nesse quadro fazer a interpretação conjugada de uma coisa e da outra, do artigo 80.°, do 89.°, que nós propomos que passe a 81.°, e deste artigo 9.° da Constituição.

Finalmente, o que pretendemos significar com esta alteração é que a socialização dos meios de produção não é o único meio de garantir o bem-estar, a qualidade de vida do povo, a igualdade real entre os Portugueses e a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais. Não é o único meio, há outros meios. Cabe ao poder político, legitimado pelo sufrágio, eleger esses meios em cada momento. Agora, o que nós também afirmamos, com muita clareza, é que a socialização não fica excluída, não fica de modo algum proibida. Portanto, se a vontade popular determinar a composição de um poder político que entenda que a socialização dos principais meios de produção deve ser o instrumento privilegiado ou até único para realizar o bem-estar, a qualidade de vida do povo, a igualdade real entre os Portugueses e a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais, poderá fazê-lo, mesmo para além da alteração que o Partido Socialista propõe ao texto do artigo 9.° da Constituição. Esta afir-

Página 1918

1918 II SÉRIE - NÚMERO 61-RC

mação releva de uma concepção sobre o papel da Constituição e sobre a articulação entre o que está na Constituição e o que cabe ao poder constituído e às suas opções políticas determinadas pela vontade popular. Nesse sentido é que digo que nesta matéria não há alteração das regras do jogo. E porquê? É que a tal interpretação flexibilizadora feita pelo deputado Jaime Gama do significado da alínea d) da redacção actual levava a resultados exactamente idênticos àqueles a que conduz a alteração que o PS agora propõe. Fica assim a portinhola aberta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, queria responder não a esta brilhante intervenção do Sr. Deputado António Vitorino, mas sim à anterior..

Gostaria de dizer o seguinte: congratulo-me com a proposta do Partido Socialista, que, a meu ver, melhora em relação ao actual artigo, na medida em que faz uma descarga ideológica da Constituição, uma aproximação na lei fundamental ao conjunto dos Portugueses, contribuindo para que deixe de ser uma Constituição programática para passar a ser uma Constituição normativa, aceitável por todos.

Também me congratulo com a aceitação do nosso aditamento à alínea é), que não tem qualquer carga ideológica e, muito menos, tecnocrática. Longe de mim a vontade de importar para aqui ou para onde quer que seja conceitos tecnocráticos. Estou convencido de que a tecnocracia é um dos males da sociedade contemporânea. Aliás, pode-se entender que é uma variante da famigerada classe burocrática, contra a qual sempre me bati. De modo algum defenderia a introdução no texto constitucional de um preceito tecnocrático que tivesse a ver com a designação, efémera ou não, de um titular de uma pasta. É evidente que para nós o correcto ordenamento do território é muito mais do que isso. Devo acrescentar que referi o caso da macrocefalia apenas a título de exemplo. Sublinhei que o que importava era que o Estado actuassse no sentido de um equilíbrio maior em todo o País entre o interior e o litoral, entre certas áreas do País e outras, para evitar, entre outras preversões, a macrocefalia, mas evidentemente não só. Julgo que em relação a este assunto já estamos esclarecidos.

Já não posso estar de acordo com o Sr. Deputado António Vitorino quando se refugia num argumento conservador que o Partido Socialista já utilizou em 1982. Apenas estive cá nas primeiras sessões de trabalho, mas dei-me conta disso. Depois da minha partida, alguns dos meus companheiros transmitiram-me que um dos vossos argumentos continuava a ser: "já cá está, portanto fica". A nosso ver não deve ser assim e não me parece que seja um argumento que possa ter qualquer peso decisivo. Penso que ele até está um pouco em contradição com aquilo que acaba de dizer. Mais importante é acabar com a querela constitucional e transformar a Constituição em algo que seja vivido e querido por todos os Portugueses, sejam quais forem as suas convicções políticas, criando um consenso alargado entre todos aqueles que se movem no terreno da democracia. Como é óbvio, este desiderato tem muito mais peso do que esse argumento conservador, que me parece claramente menor, residual.

Congratulo-me mais uma vez, agora, por ter reconhecido maior rigor jurídico à nossa fórmula "incentivar a participação dos cidadãos". É evidente que não tenho nada contra a manutenção da palavra "povo". Aliás, neste ponto não sei qual foi o motivo que levou a substituir a expressão. Julgo que a nossa precisão é positiva. Surpreende-me que o Sr. Deputado não concorde com ela, porque quem costuma fazer intervenções algo mais confusas sou eu. Vejo agora VV. Exas. argumentarem contra o rigor jurídico Ora, acho muito bem que os Srs. Deputados zelem pelo rigor jurídico, mas sempre ... Assim, deveriam aprovar a proposta do PSD, que é juridicamente mais rigorosa. Neste caso há realmente uma incongruência, Sr. Deputado. O Sr. Deputado António Vitorino diria: "Quem faz assim intervenções confusas é o Sr. Deputado Pedro Roseta, que está longe há muito tempo, que não tem o rigor jurídico dos professores de direito, etc.." Creio que o Sr. Deputado até me deveria apoiar e dizer: "Até que enfim que este confuso vem aqui defender uma fórmula mais rigorosa, que é a de incentivar a participação dos cidadãos."

O Sr. António Vitorino (PS): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado Pedro Roseta, eu nunca disse "intervenções confusas". Peço desculpa, mas não o disse.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Alguém já o disse, Sr. Deputado. Não sei de foi o Sr. Deputado...

O Sr. António Vitorino (PS): - Se isto fosse apenas um exercício entre juristas e especialistas da matéria, seria um trabalho académico, e não uma assembleia política.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Mas não é, nem pode ser um trabalho académico!

Nós estamos aqui, efectivamente, numa assembleia política. Portanto, trazemos aqui conceitos filosóficos, políticos, no desempenho do mandato que os nossos eleitores nos deram. Estou aqui a defender estas posições porque o eleitorado do Partido Social-Democrata, tanto quanto posso interpretar e dentro dos princípios da democracia representativa, me mandatou para defender estes princípios. Faço-o com muita honra porque entendo que o meu eleitorado quer que a Constituição seja também dele. Aliás, tem direito a que o seja: o sufrágio universal tem-nos dito que é assim. O nosso eleitorado quer que nós transmitamos determinadas posições sobre matéria constitucional e outras. É por isso que estamos aqui a proceder a uma discussão política, e não jurídica, académica e, muito menos, histórica. Esta não é uma discussão histórica. Sr. Deputado José Magalhães, o que interessa não é o que diz o programa do PSD, seja ele respeitável ou não. É um argumento que serve para aqueles, como o Sr. Deputado, que têm uma visão, programática da Constituição. Nós não queremos introduzir nela o programa do partido. Mesmo quando pretendemos aditar a expressão "assegurar um correcto ordenamento do

Página 1919

6 DE DEZEMBRO DE 1988 1919

território", não o fazemos por ser uma expressão social-democrata. Nós pensamos que há uma larga gama de forças que podem estar interessadas em adoptar esta expressão, incluindo o CDS. Parece-me ser um aditamento importante. Com efeito, de acordo com a filosofia fundamental que nos rege, pensamos que toda a actividade política tem que ser subordinada à prossecução do bem comum. Ora, no Portugal de hoje, para a prossecução desse bem comum é fundamental um correcto ordenamento do território. É tão-só isto. Voltando ao Sr. Deputado António Vitorino...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Pedro Roseta, só gostaria de o tranquilizar quanto à questão da liberdade plena de utilização dos argumentos de qualquer índole nesta Comissão. Na condução dos trabalhos não houve da minha parte qualquer intenção de, por alguma forma, restringir a bitola de apreciação e de discussão. Temos usado sempre um critério de máxima abertura e de inteira liberdade de exposição. V. Exa. é inteiramente livre de citar Rawls, Mofina Mendes, Shakespeare e quem entender, mas, naturalmente, dentro dos limites decorrentes do facto de estarmos a discutir artigos da Constituição e de, portanto, a eles terem de vir a reverter os argumentos e as linhas de raciocínio expendidos. Esse é o único limite. Tudo o mais é inteiramente livre e a natureza do mandato de cada um não é questionada - aliás, não seria imaginável que o fosse.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, queria aduzir ainda outros argumentos.

No que diz respeito à alínea d)t volto a sublinhar que a expressão "mediante a transformação das estruturas económicas e sociais, designadamente a socialização dos principais meios de produção", não tem uma carga tão marxista como aquela que vem a seguir, "abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem".

O Sr. Presidente: - Agora já está a ficar mais preciso Sr. Deputado.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Era a essa que me queria referir há pouco.

O Sr. Presidente: - Eu ainda tenho a esperança de que, por fim, admita que a ideia de exploração é susceptível de ser partilhada por outras forças que não apenas aquelas em cuja família o PS, o PCP e outras se situam!

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, há no texto diversas expressões com carga marxista. A expressão "socialização dos principais meios de produção" pode ter, obviamente, outras interpretações. Foi isso que foi dito na 1.ª revisão constitucional, em 1982. Não ignoro que o conceito muito amplo de "socialização" até consta da doutrina social da Igreja. É um conceito que foi adoptado depois da guerra, sobretudo pelo papa João XXIII e pelo Concílio. Portanto, é um conceito que poderia ser aplaudido por todos, incluindo o CDS. No entanto, a questão não está aí. Como afirmou o Sr. Deputado Alberto Martins, este é entre outros um meio possível. É por isso que o texto diz: "designadamente". Mas pode-se perguntar: por que razão para promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo se tem que referir "a transformação das estruturas económicas e sociais, designadamente a socialização dos principais meios de produção"? Por que não outros meios? Por que não acrescentar, então, "mediante a transformação de outras estruturas, além das económicas e sociais"? A promoção do bem-estar, da qualidade de vida do povo, da igualdade real dos Portugueses, etc.., não tem a ver também com outras estruturas, que vão para além das económicas e sociais? Estamos aqui também perante uma concepção oriunda do pensamento marxista que sobrevaloriza a estrutura económica e social.

Em conclusão, penso que a manutenção da expressão "mediante a transformação" - agora com o aditamento "modernização das estruturas económicas e sociais" - é redutora.

O Sr. Deputado Alberto Martins para justificar a eliminação da expressão, relativamente aceitável, "a socialização dos principais meios de produção" utiliza um argumento que depois o Partido Socialista já não usa a propósito da expressão "mediante a transformação das estruturas económicas e sociais". Ora, o argumento, mutatis mutandis, vale o mesmo.

E, por favor, não me venham dizer que na alínea a) há também meios contemplados. A alínea á) limita-se a estatuir que é tarefa do Estado garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que o promovam. Não há uma indicação de meios, ao contrário do que acontece na alínea d). Não há um "mediante" uma actividade concreta, não há um "designadamente" isto ou aquilo.

Portanto, julgo que o seu argumento, Sr. Deputado, resultante da comparação entre as alíneas a) e d), não é válido.

Penso que estes quatro pontos merecem uma consideração sua. Não me parece que devessem ficar sem resposta. Mas quero voltar a congratular-me, no essencial, com o avanço que vejo nas suas propostas, Sr. Deputado António Vitorino.

Ao Sr. Deputado José Magalhães gostaria de dizer o seguinte: há aqui expressões que têm, efectivamente, uma carga ideológica marxista e que nós queremos retirar. No entanto, há outras que podem ser aceitáveis, mas que são, apesar de tudo, programáticas, mesmo que caibam na doutrina social da Igreja, mesmo que caibam no programa do Partido Social-Democrata. Nós entendemos que a Constituição não pode ser uma soma de programas e muito menos, como foi até hoje, carregada ideologicamente de uma só banda. Não queria, de modo nenhum, obrigar-me a dizer, a propósito da alínea é), que eu quero substituir uma carga por outra. Talvez o Sr. Deputado saiba que em 1981 já eu queria que fosse eliminado da Constituição aquilo que não fosse essencial. Não propomos, de modo nenhum, substituir aquilo que está na Constituição por aquilo .que é a nossa ideologia. É evidente que não! O que quero é retirar a carga ideológica sem pôr nenhuma outra.

É claro que subscrevo integralmente o que disse o Sr. Deputado Costa Andrade e não vejo onde está a contradição. Na sua intervenção em 1982 o Sr. Deputado Costa Andrade disse que uma norma programática não deve constar da Constituição. Para nós, o facto de em 1976 ela ter sido eivada de normas programáticas não a pode transformar num bunker. "No

Página 1920

1920 II SÉRIE - NÚMERO 61-RC

que cá está vamos manter o programa como defesa do bunker." Não é possível! Todos os programas são mutáveis. O programa do PSD, se ainda não mudou, um dia mudará. Repare no que foi a evolução dos programas da social-democracia alemã, desde o célebre programa de Gotha até hoje! Repare na reflexão que actualmente se faz ao nível dos diversos partidos sociais-democratas, dos próprios partidos comunistas! As sociedades evoluem, a vontade popular impõe-nos determinadas evoluções. Portanto, os programas, sejam eles quais forem, não devem ser cristalizados na Constituição.

Tal como disse o Sr. Deputado Alberto Martins, a "socialização dos meios de produção" não é um conceito unívoco, é um conceito discutível. É uma expressão que deve ser eliminada, já que tem uma leitura muito pulverizada, muito variada. A meu ver é, portanto, uma fonte de interpretações possivelmente con-flituais.

O Sr. Deputado António Vitorino, por seu lado, afirmou que neste preceito haveria um outro conceito, mais amplo, de Estado. É um argumento a ponderar, mas mesmo assim não me convence. É que, quando se afirma que é "tarefa fundamental do Estado" - ainda que se tome o "Estado" nesse tal sentido amplo - "promover a igualdade real entre os Portugueses", está-se ainda a ignorar a evolução das sociedades e do pensamento dos nossos dias, e nós estamos a fazer uma Constituição para o futuro, e não para o passado. A reflexão moderna pensa - e eu sigo-a, embora vá causar horrores ao Sr. Deputado José Magalhães - que, hoje, a acção política não pode ser tão pretensiosa. A acção política está hoje, por força das circunstâncias, não direi inibida, mas limitada. Há fenómenos internacionais que se sobrepõem à acção do Estado, de todos os Estados (incluindo os Estados Unidos e a União Soviética, mas vamos deixar as superpotências), e, por maioria de razão, no caso de Portugal - sem falar já nas directivas das Comunidades e da política comunitária ontem referidas - há algo que se sobrepõe à acção do Estado e que é hoje falado em todos os fora internacionais: a interdependência mundial.

Assim, não interessa estabelecer que o Estado deve promover a igualdade real dos Portugueses, mas, sim, consagrar aquilo que ele poderia fazer com mais utilidade: a igualdade real de oportunidades entre os Portugueses.

Por outro lado, sabem que um dos aspectos inovadores da reflexão contemporânea versa sobre o carácter complexo e incontrolável das sociedades. Hoje colocar-se o problema de saber até que ponto a vida social, com a sua nova complexidade, é sequer controlável utilmente por acções estaduais ou outras. E isto já nada tem a ver com a dinâmica que é imprimida pelas variáveis internacionais, mas, sim, com a dinâmica própria das sociedades modernas. E essa dinâmica é de tal ordem que estas sociedades entraram num processo de complexificação tal que não é por se dizer que o Estado promoverá a igualdade real dos Portugueses que ele poderá fazê-lo com utilidade. A não ser que se trate de uma formulação utópica e demagógica. Poderíamos cair numa discussão interminável - que eu não posso fazer porque o meu partido seria capaz de me tirar logo da Comissão, e com razão - sobre aquela dinâmica que, segundo alguns autores, se tornou puramente incontrolável. E o facto de o Estado ou as forças políticas quererem controlá-la e comandá-la é contraproducente e é uma ilusão! Mas talvez estejamos já a entrar num campo que pouco tem a ver com a Constituição...

Seja como for, a formulação proposta pelo PSD evita os riscos que referiu.

Sabemos que as proclamações igualitárias têm, se quiserem, uma utilidade externa para alguns. Porém, aquilo a que alguns autores chamam a "máquina igualitária", o desencadear das acções igualitárias, não só mantém as desigualdades tradicionais como introduz novas desigualdades que agravam as coisas e que põem em risco a liberdade! Há estudos da OCDE que chegam também a esta conclusão.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas esse critério não se aplica só à igualdade real, mas também se aplica, nessa lógica, à igualdade de oportunidades...

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Não se aplica, não!

O Sr. António Vitorino (PS): - Ver até onde é que o PSD coloca a fasquia na contestação do igualitarismo...

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Há uma diferença enorme entre a promoção da real igualdade de oportunidades, que, essa sim, é, a nosso ver, uma tarefa fundamental do Estado, decorrente do princípio de justiça e que não põe em risco a liberdade. Por isso ela consta do nosso projecto, pois consagra uma concepção de justiça social aceite por todos: cristãos, socialistas, sociais-democratas e outros. Para haver igualdade de oportunidades há acções correctoras a introduzir, que constituem tarefa do Estado. Muito diferente é desencadear a tal máquina igualitária, que, como se tem visto, acaba por pôr em risco a liberdade, por gerar novas opressões e por criar novas desigualdades...

(Por deficiência técnica, não foi possível registar as palavras dos oradores.)

O Sr. Pais de Sousa (PSD): -... coloca em questão o princípio da independência nacional, mas não a do Estado de direito ou o princípio democrático contido na alínea c). Assim, trata-se apenas de mexer profundamente na alínea d), na medida em que se nos afigura que o projecto constitucional não deve ou não tem de englobar o chamado princípio socialista, que, como já aqui foi dito, caducou constitucionalmente. No fundo, não faz sentido fazer chocar um princípio com a realidade envolvente. E não colhe o argumento do programa do PSD, pois, como já foi referido, não colocamos o programa do partido ao nível da Constituição...

O Sr. Presidente: - O qual, de resto, já terá caducado, pela sua argumentação.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - É o Sr. Deputado que o diz, não eu!

O Sr. Presidente: - Não! Estava apenas a utilizar o argumento de maioria de razão!

Página 1921

6 DE DEZEMBRO DE 1988 1921

O Sr. António Vitorino (PS): - Enquanto o Dr. Rui Machete não o declarar, não está caducado!

Risos.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - No que concerne às alíneas c) e d), pretendemos desideologizar e clarificar o sentido destes preceitos, sendo certo que relativamente à alínea d) ela não só é - e esse sentido já aqui foi versado claramente - susceptível de apropriação partidária como dispõe de uma fraseologia a todos os títulos controversa.

Já quanto à alteração proposta pelo PSD para o segmento final da alínea e), sendo certo que colhe toda a argumentação produzida pelo meu companheiro Pedro Roseta, registamos o acolhimento que esta proposta mereceu junto do PS. Por outro lado, permitir-me-ia ainda acrescentar, em termos de justificação ou motivação do nosso projecto, o seguinte: quando se propõe o inciso "assegurar um correcto ordenamento do território" por parte do Estado, não temos dúvidas de que isto, sim, constitui uma tarefa fundamental do Estado. Por exemplo, se a respeito da preservação dos recursos naturais se está perante uma tarefa do Estado e, correlativamente, perante um direito dever dos cidadãos, aqui, por maioria de razão, as questões do ordenamento do território têm a ver globalmente com o Estado assim considerado, sendo, portanto, necessário assumir cautelas a vários níveis, quer no plano da malha urbanística, quer no plano da política de solos, quer no plano do eventual impedimento - não tenho receio de o afirmar - da eucaliptização.

Registamos, portanto, a posição do PS, mas não ficou clara a posição do PCP a este respeito - certamente terá ainda oportunidade de a clarificar.

Finalmente, pretendia dizer que, para o PSD, do que se trata em sede de artigo 9.° e respectivas alterações é, no fundo, da adequação das tarefas do Estado aos fundamentos da comunidade política portuguesa, e isto em coerência com as nossas propostas quer para o artigo 1.° quer para o artigo 2.° - por que não dize-lo? Nós propusemos uma redacção nova, para salvaguarda de determinados princípios de valor, com a lógica que temos vindo a sustentar neste tipo de alterações.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não farei neste momento qualquer comentário à intervenção do Sr. Deputado António Vitorino sobre o galo, o cão, a linha Maginot, o bunker, os herdeiros da Constituição, as espadas, as declarações de voto, as regras do jogo, o nominalismo, a querela constitucional, etc.. Terei de o fazer, mas isso seguramente nos ocupará um pouco dos nossos trabalhos na próxima terça-feira, pelas 15 horas e 30 minutos, altura em que retomaremos o debate do artigo 9.° e artigos subsequentes.

Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 13 horas e 5 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 4 de Novembro de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Pedro Manuel Cruz Roseta (PSD).
Guilherme Rodrigues da Silva (PSD).
Virgílio de Oliveira Carneiro (PSD).
Manuel António de Sá Fernandes (PSD).
Carlos Lélis da Câmara Gonçalves (PSD).
João Costa da Silva (PSD).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel de Carvalho Ferreira Vitorino (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).

Página 1922

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×