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Segunda-feira, 12 de Dezembro de 1988 II Série - Número 62-RC
DIÁRIO da Assembleia da República
V LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1988-1989)
II REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
ACTA N.° 60
Reunião do dia 8 de Novembro de 1988
SUMÁRIO
Finalizou-se a discussão do J.° Relatório da Subcomissão da CERC, respeitante ao preâmbulo e aos artigos 1.° a 11.º e respectivas propostas de alteração.
Iniciou-se a discussão do artigo 290. ° e respectivas propostas de alteração.
Durante o debate intervieram, a diverso titulo, para além do Presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), António Vitorino (PS), Pedro Roseta (PSD), Almeida Santos (PS), Pais de Sousa (PSD), Maria da Assunção Esteves (PSD) e Mário Maciel (PSD).
Em anexo à presente acta é publicada uma proposta de regulamentação da segunda leitura e da votação a fazer na CERC, apresentada pelo Sr. Deputado Rui Machete.
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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 16 horas e 25 minutos.
Srs. Deputados, na última reunião tínhamos ficado na discussão do artigo 9.° Pretende algum dos Srs. Deputados pronunciar-se ainda sobre este preceito?
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Na passada reunião plenária, em resposta a algumas observações feitas por mim, em nome da minha bancada, o Sr. Deputado António Vitorino teve ocasião de fazer um conjunto de imputações e de aprofundar alguns dos fundamentos do texto, apresentado pelo PS, de reformulação da alínea d) do artigo 9.° da Constituição. Nessa altura, o Sr. Deputado fez algumas considerações críticas sobre a visão que o PCP tem sobre a revisão constitucional neste ponto, que eram resposta a algumas que eu próprio tinha formulado em relação à estratégia de revisão constitucional do PS. Ficou acertado implicitamente que aprofundaríamos o debate sobre essas matérias neste momento.
Tudo aquilo que o Sr. Deputado António Vitorino disse faz parte de um contencioso e de um património de debate que seria pretensioso considerar susceptível de encerrar numa reunião como esta. Em todo o caso, creio que algumas das observações que fez merecem alguma consideração imediata. No fundo, o PS alega que retirar aquilo a que chama a "carga ideológica da Constituição", eliminar aquilo a que também aqui foi chamado a "hipoteca nominalista" e suprimir as alusões ao socialismo seria uma meritória contribuição para transformar a Constituição em algo susceptível de ter reconhecimento alargado entre as forças que ocupam o espectro político-partidário português, de pacificar, em termos de opinião pública, a própria existência constitucional, no fundo, susceptível de relegitimar a Constituição ou alargar a sua base de legitimação. A isto respondi o que consta das actas. O Sr. Deputado António Vitorino entendeu replicar com afirmações que são verdadeiros pedregulhos políticos e ideológicos. Ouvimos-lhe coisas como: o PCP tem relativamente ao PS uma relação "waltdisneyana" de galo que gosta do cão (suponho que a metáfora foi esta) e que portanto não é capaz de o atacar senão na medida exacta em que, quando ele está exangue, precisa de lhe dar um suplemento de alma que lhe permita aguentar a continuação, porque, verdadeiramente, galo sem cão não é coisa nenhuma e cão sem galo também não...
Creio que é um péssimo estão de debate. Pode pensar-se o que se pensar da estratégia de revisão constitucional do PCP, mas não se pode deixar de reconhecer que ela é coerente e que visa preservar, na máxima extensão possível, aquilo que é o património constitucional da revolução democrática do 25 de Abril. Essa nossa recusa de considerarmos ideias derimidas, os ideais pelos quais nos batemos e, mais ainda, que obtiveram consagração constitucional com o voto do PS num determinado momento histórico, essa coerência, essa persistência não nos pode ser censurada senão com fundamentos alargados e com uma demonstração, uma evidenciação de que a operação proposta pelo PS colhe, que ela é susceptível de produzir os efeitos que se reclamam, que não é apenas mais uma tentativa inútil de satisfazer guias que não se aplacam com isso, mas que, pelo contrário, se reforçam; que não é mais uma cedência susceptível de reforçar aqueles que sempre se opuseram à Constituição que, coerentemente também, batalham contra ela por todos os meios e que, neste momento, desenvolvem uma estratégia (em nosso entender, perigosa) de semantizar, de incumprir a Constituição e de a violar sistematicamente para a destruir o mais que possam. Dizer que o PCP se opõe por uma relação perversa, de galo/cão, parece-me, francamente, que é fazer derivar uma discussão extremamente grave para uma verdadeira anedota, para um verdadeiro desenho animado. Aquilo que o PS aqui tem de provar, ou deveria provar (talvez tenhamos uma ambição excessiva), é que se pode prescindir sem desvantagens de tudo aquilo de que o PS entende poder prescindir.
O Sr. Deputado António Vitorino, no fluxo das suas alegações, dizia também: a espada do PSD é mais livre do que a do PS, quase sugerindo que nos congratulemos pelo facto de a espada do PS cortar o que corta, mas apenas o que corta. E nós entendemos que tal visão, sem dúvida própria de uma máquina cortadora de fiambre, não é, seguramente, a mais adequada para encarar a preservação do texto constitucional. Não conseguimos congratularmo-nos com o facto de, olhando a proposta do PS e olhando a proposta do PSD, podermos dizer: "São diferentes." Porque devo dize-lo à puridade: são diferentes! Mas isso não basta: é que também coincidem demasiado em demasiados pontos.
Procurei sublinhar durante o debate em que é que consistiam as diferenças, procurei sublinhar que, ao aceitar esta proposta, o PSD não deixaria de o fazer (não sabemos se e em que termos o fará) com uma certa reserva mental, com uma certa aceitação provisória, com uma certa aceitação com condição. Lembremos a declaração feita pelo Sr. Deputado Pedro Roseta de que o ponto de vista do PSD não é bem este e a revelação de que o PSD aceitaria (não sabemos ainda se aceitará e em que termos) uma proposta como a do PS, não abdicando da sua concepção e da sua perspectiva nesta matéria. Tal como em relação à revisão constitucional de 1982, o PSD aceita o mais possível, recebe o que o PS lhe dá, sem renunciar às suas concepções nessa matéria e sem renunciar à possibilidade de um aprofundamento ulterior daquilo que agora não consiga obter.
E mais ainda: como o PSD faz tudo isso tendo em atenção o quadro de poder, como o PSD faz tudo isso tendo em atenção não só a revisão constitucional como tal mas outras coisas [por exemplo, já imagina uma próxima revisão constitucional, surda, a fazer no Tribunal Constitucional (TC) e pela via da legislação ordinária consentida ou passada no TC], a opção que o PS nos coloca é, a todos os títulos, infrutífera num domínio, perigosa noutro domínio, e acima de tudo preocupante quanto à própria definição que faz do que deva ser a Constituição da República Portuguesa.
Creio, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que a opção feita pelo PS, aqui trazida e sustentada pelo Sr. Deputado António Vitorino, constitui uma opção decorrente de uma funda alteração de concepções. Nestes anos
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muito ocorreu - mas a transposição de tais coisas para a Constituição não pode deixar de merecer a nossa atitude de rejeição.
Finalmente, em relação ao conteúdo da proposta apresentada pelo PS, gostaria de fazer uma observação. Como é evidente, entendemos que alguns dos objectivos constantes da proposta do PS são de eminente importância. É evidente que a colocação da consecução de uma igualdade real entre os Portugueses (figurem estes com maiúscula ou com minúscula), como objectivo e tarefa fundamental do Estado é, sem dúvida, um dos combates que valem a pena, e é um combate central na sociedade portuguesa, no qual nos reconhecemos plenamente e pelo qual nos batemos integralmente. Entendemos, aliás, que aquilo que pode acontecer em sociedades como a nossa é uma profunda erosão da democracia, por força de um crescimento avassalador de toda a espécie de desigualdades. De facto vivemos numa Europa incensada como próspera que tem hoje cerca de 44 milhões de cidadãos qualificados como pobres, cada um dos quais tem menos de metade do rendimento individual médio do seu próprio país (e em 1976 esse número era, ao que parece de 30 milhões, o que significa ter havido um crescimento e um agravamento de pobreza na Comunidade Europeia). O quadro em que estamos é dominado pela existência, grave, de gente vivendo abaixo de limiares de subsistência, em particular, gente idosa, em particular, gente isolada, incluindo mães de família celibatárias, sustentando as suas famílias sem apoio adequado do Estado; uma Europa onde há cerca de 16 milhões de desempregados, dos quais muitos aguardam trabalho há mais de dois anos (desempregados de longa duração); um quadro em que Portugal está assim inserido, com os seus próprios e tristes indicadores, justifica plenamente que se exija a igualdade real em grande objectivo.
Vozes.
Estou inteiramente de acordo, só que não estamos a fazer uma Constituição nova, mas, sim a rever a Constituição da República, que, tal qual está redigida, consagra hoje, de forma que plenamente excede o nível de consecução que o PS agora vos propõe, todos esses objectivos. É esse o significado fundo da própria ideia que hoje é contida no preceito, tal qual está redigido. O PS empobrece o preceito e aquilo que deixa dele não pode ser obviamente diminuído. Nesse sentido, recusamos as leituras minimalistas do PSD, recusamos as leituras mais liquidacionistas, recusamos as leituras que vão além da própria medida e da própria vis do PS. Não queremos contribuir para essas interpretações redutoras, Sr. Presidente e Srs. Deputados, nem para atenuar as responsabilidades daqueles que aceitem reduzir o conteúdo da própria Constituição e reformular, empobrecendo, um dos seus vectores e uma das suas directrizes fundamentais.
Gostaria também de sublinhar, de novo, que nos dissociamos profundamente de um estão de argumentação que procuro diluir numa luta escatológica entre quaisquer animais aquilo que é uma discussão gravíssima na família democrática portuguesa e no quadro das forças democráticas portuguesas.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, serei muito sucinto, visto que o que ontem disse está dito e registado. E aquilo que ontem extensamente disse não corresponde, nem de perto, nem de longe, a este resumo, feito com algum complexo de culpa, que o Sr. Deputado José Magalhães nos trouxe hoje aqui. Trouxe-nos um resumo pobrezito, de quem apenas quis trazer à colação a visão daqueles aspectos que lhe convinha trazer e não do conjunto da intervenção que proferi. Compreendo essa posição da parte do Sr. Deputado José Magalhães: é tão velha quanto é velha a arte de argumentação, é velha a táctica de reduzir a argumentação do adversário ao caricato, comparando-a quase a uma fábula de La Fontaine, e por isso o Sr. Deputado Magalhães acabou por dizer que o discurso do PS sobre o artigo 9.° se limitava à relação ambígua entre o galo e o cão dos desenhos animados. É velha a táctica de menosprezar os argumentos do adversário nesses termos caricatos, apenas para não ter que responder, talvez, aos argumentos de maior valia que adiantei, como, por exemplo, os que se referem à relação ambígua que o PCP cultiva entre os efeitos do texto constitucional tal como hoje existe, em alguns aspectos em progressiva semantização, à luz do interesse nacional, e o interesse relativo dessas expressões proclamatórias, cada vez mais destituídas de sentido prático, que relevam apenas para a sobrevivência do discurso ideológico do PCP - este argumento, por exemplo, o Sr. Deputado José Magalhães não o reteve decerto por distracção, só reteve a parte caricata da imagem do galo e do cão. A própria tarefa de desdramatização da operação de descarga ideológica da Constituição foi aqui trazida pelo Sr. Deputado José Magalhães, ao citar declarações dos deputados socialistas na segunda revisão constitucional e ao sublinhar exactamente aquilo que nós hoje vimos a coonestar: que a polissemia dos termos constantes da Constituição nesta alínea d) do artigo 9.° permite retirar, sem empobrecimento da pluralidade de interpretações político-fílosóficas, uma norma de natureza proclamatória, que constitui factor de divisão entre portugueses, substituindo-a por uma expressão que continua a consentir interpretações que, em nosso entender, correspondem ao que há de essencial num preceito como o artigo 9.° sobre as tarefas fundamentais do Estado. Esse argumento, essa desdramatização da própria proposta do PS, foi trazido à colação pelo Sr. Deputado José Magalhães, porque lhe convinha, porque lhe interessava, porque a cinco anos de vista lhe parecia importante que, também nesta revisão, ficasse registado esse ponto, tal como já tinha ficado registado em 1982 o discurso do Sr. Deputado Jaime Gama sobre a não apropriação unilateral do conceito de socialização ou de sociabilidade. Portanto, não se nos afigura que o facto de o conceito, que em si mesmo já é aberto, ser substituído por um conceito igualmente aberto possa considerar-se um "tiro no navio almirante", uma descarga eléctrica no coração ideológico da Constituição...
Não nos parece, pois, legítimo que o Sr. Deputado José Magalhães faça esse extenso rol de acusações ao PS, contrapondo aquilo que, no seu entendimento, é a estratégia coerente do PCP, de defesa do património do 25 de Abril, e ao que seria a estratégia (pois claro, incoerente) de desbaratar do património do 25 de Abril, perpetrada pelo PS.
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Nós já dissemos que não reconhecemos ao PCP, que não reconhecemos ao Sr. Deputado José Magalhães o direito de se arrogar no definidor do que é património do 25 de Abril, o direito de se arvorar em patrono de leituras unilaterais do que é o conteúdo democrático e progressista que a Constituição da República contém. Pelo contrário, o que nós dizemos é que o PCP cada vez mais confunde o que é o verdadeiro património do 25 de Abril com expressões semânticas, com expressões que correm o risco de colocar a Constituição em acelerado processo de nominalização e que constituem um factor de divisão entre os Portugueses, com o que só se debilita a eficácia e a valia do próprio texto constitucional.
Naturalmente que há uma pergunta sobre a qual o Sr. Deputado José Magalhães não pode obter resposta neste momento: quais os efeitos da estratégia que o PS adopta em matéria de revisão da Constituição? De facto, é ela um instrumento suficiente para pôr termo à querela constitucional ou, pelo contrário, é apenas mais um estádio que vai ser percorrido para que, daqui a cinco anos, se ergam novas vozes reivindicando mais descarga ideológica, maior poda no texto constitucional? Essa é uma pergunta a que o Sr. Deputado José Magalhães só terá resposta daqui a cinco anos. Sinceramente, pela nossa parte, estamos convencidos de que, com a nossa redacção para o artigo 9.°, não mais será possível construir uma querela ideológica, nem nenhuma querela constitucional terá base literal. Estamos convencidos de que a redacção que conferimos ao artigo 9.° permite que todas as forças políticas se revejam no que nele se contém, porque, nem da direita, nem da esquerda, se contesta, por exemplo, o princípio do bem-estar e da qualidade de vida do povo, ou a transformação e a modernização das estruturas económicas e sociais.
Parece-nos portanto que, sem esse ónus emprobecedor que o Sr. Deputado José Magalhães pretende ver em todas as propostas de descarga ideológica do PS, a revisão pode permitir retirar algumas expressões que apenas constituem factor de divisão, expressões essas já destituídas de qualquer eficácia prática relevante. Não conheço nenhum acórdão do Tribunal Constitucional que tenha declarado inconstitucional uma só lei, decreto-lei ou acto normativo que seja com base no facto de a alínea d) do artigo 9.° estabelecer que se deve proceder à socialização dos principais meios de produção. Sinceramente, não conheço! Podemos, portanto, esgrimir aqui uma luta ideológica como D. Quixote esgrimia contra moinhos de vento, mas não é isso que faz com que os moinhos de vento continuem a ser o que são: moinhos de vento.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Rui Machete, devolvo-lhe a presidência.
Neste momento, assumiu a presidência o Sr. Presidente Rui Machete.
O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, continuamos portanto no artigo 9.°?
Vozes.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Explico aos Srs. Presidente e Vice-Presidente que na passada sexta-feira a reunião foi curta, por ter começado tardiamente. Aliás, houve uma discussão longa e interessante que agora está a terminar; não quero repetir a minha longa intervenção...
O Sr. Presidente: - Não conviria!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Não conviria, mas gostaria de fazer algumas previsões, Sr. Presidente. O Sr. Deputado José Magalhães, na referência que fez à minha última intervenção, parece ter-me atribuído algo que estava longe do meu pensamento, ou seja, pôr em causa o direito geral à igualdade. Ora, toda a minha intervenção foi feita aã perspectiva exclusiva das tarefas fundamentais do Estado. O que eu disse é que, de acordo com a nossa proposta, entendemos que compete ao Estado promover o bem-estar, a igualdade de direitos, a real igualdade de oportunidades, a justiça social, etc.. Referi que, atendendo a fenómenos internacionais que se sobrepõem à interdependência crescente entre todos os países e à própria evolução da sociedade, que não podem ser dirigidos pelo Estado, o poder político nos parece cada vez mais impotente para uma promoção da igualdade real de todos. Aliás, pelo mundo fora hoje tende é a consagrar-se o direito à diferença... No entanto, de modo algum me pode atribuir a ideia de que o PSD ou eu próprio seríamos contra o principio geral do direito à igualdade. Aquilo que contestei foi que se mantivesse a demagogia de se afirmar que cabe ao Estado promover a igualdade real.
A meu ver, a igualdade real, que é um conceito dinâmico, só poderá eventualmente resultar a longo prazo de uma evolução dos grandes espaços continentais, de uma melhoria constante do nível cultural e também de uma exigência ética mais elevada do conjunto das sociedades que compõem aqueles grandes espaços, Da referida constatação de que a sociedade limitada de um simples país resiste às modificações ou às utopias que a classe política lhe quer impor, não vou de modo nenhum pôr em causa a necessária luta pela justiça social nem mesmo a consagração de um princípio geral de igualdade.
Parece-me estar perante uma ambição excessiva, um orgulho desmedido, mesmo megalómano, do poder, porque aquilo que nós gostaríamos, de acordo com a nossa proposta, seria que o Estado se propusesse fazer aquilo que pode fazer, num prazo razoável, de uma vida humana, por exemplo, e não algo utópico que por si só nunca poderá conseguir. Que eu saiba, as únicas sociedades igualitárias que existiram nos tempos históricos foram as reduções da Companhia de Jesus no Paraguai, que, julgo, não serão um modelo para o Sr. Deputado José Magalhães, mas mesmo essas não foram promovidas pelo Estado - sublinho isto! O Estado deve é promover a justiça social e a igualdade de oportunidades através dos meios que a própria Constituição prevê, nomeadamente através da fiscalidade, promovendo a redistribuição da riqueza. Não vou citar, são vários os artigos da Constituição que a prevêem.
O que é mais que suficiente para não mantermos textos que nos parecem perfeitamente irrealistas.
No que diz respeito à alínea c), e deste modo concluo, o PSD propõe a substituição da fórmula "assegurar a participação organizada do povo" pela fórmula "estimular a participação dos cidadãos". Entendemos que a primeira fórmula está matriciada numa concep-
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cão colectivista do Estado e no papel que a organização das massas assume em certas ideologias, nomeadamente nas de raiz marxista. Nós entendemos que o povo participa, sim, mas não enquanto organização: participa, à luz do pensamento democrático, na resolução de todos os problemas nacionais, muito simplesmente porque o povo não é parte. Estamos perante uma contradição para a qual chamo a atenção, nomeadamente dos Srs. Deputados Almeida Santos e António Vitorino: o povo não é parte, ele é o próprio soberano, ele é o todo, como resulta do n.° 1 do artigo 3.°, em nosso entender de acordo com os princípios democráticos, a tarefa do Estado deverá ser a de incitar, estimular e acolher a participação dos cidadãos na vida nacional, motivando cada um não só a exercer regularmente os seus poderes soberanos, mas também a contribuir, segundo o seu modo próprio, para a resolução dos problemas nacionais específicos. Essa participação cívica diária não tem, a nosso ver, de ser sempre necessariamente organizada; umas vezes será, mas possivelmente, numa democracia sadia, a participação cívica mais frutuosa será informal e espontânea, como é, por exemplo, a que se concretiza no exercício de inúmeros direitos, como a liberdade de expressão do pensamento - já Kant, entre outros, pensava assim.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não é possível, nas presentes circunstâncias (já o percebi), aprofundar o debate e o diálogo com o PS sobre a matéria do artigo 9.° Isto pela simples razão de que o Sr. Deputado António Vitorino entendeu transpor um estado de espírito de alguma animosidade e má disposição - à qual seguramente sou alheio, bem como o meu partido - para uma discussão em que não foi feito nenhum "resumo probrezito" - apenas foi feito o resumo que me parecia adequado ao discurso, que não qualificarei de discussão, produzido pelo Sr. Deputado António Vitorino na sexta-feira. Mais nada! Se eu quisesse adoptar o mesmo estão queixoso do Sr. Deputado António Vitorino agora arrepelaria tudo o que são capilares, dizendo que ele tinha resumido de uma maneira que não vou agora adjectivar - senão estaria a fazer aquilo mesmo que digo não estar a fazer - e tinha desnaturado o fio do meu discurso.
Só gostaria de fazer duas observações: primeiro, o Sr. Deputado António Vitorino pode ter a certeza de que não tomámos isoladamente a proposta do PS relativa ao artigo 9.° É evidente que transparece, em tudo aquilo que eu disse, uma leitura integrada e integral não só do projecto de revisão constitucional apresentado pelo PS, como do conteúdo do acordo político de revisão constitucional celebrado em 14 de Outubro, e mesmo aquilo que entendemos serem os riscos de novos entendimentos para aprovação de outras alterações eventualmente constantes do projecto do PSD. Foi isso que transpareceu naquilo que sublinhei.
E se eu, como V. Exa., não conheço nenhum acórdão do Tribunal Constitucional que, como base no artigo 9.°, alínea d), declare inconstitucional uma norma, ou segmento de norma que seja; em contrapartida, conheço algumas espécies (V. Exa. também) bastante interessantes, que, com base no artigo 83.° que VV. Exas. se dispõem a rever, declaram inconstitucionais diversas normas - não uma, não duas, muitas. E é obviamente isso, tudo isso que nos preocupa, e não apenas - mas não despiciendamente - o artigo 9.° Creio que isso deve ser tomado em consideração. A discordância é mais funda, não é uma mera discussão principológica; é uma discussão mais funda. Não tenho, portanto, a aspiração ou pretensão de que ela seja travada compactamente aqui, já, agora, agora, agora e para sempre! É obvio que não! Em todo o caso, não gostaria de deixar de firmar o nosso ponto de vista.
Em segundo lugar, creio que o Sr. Deputado foi bastante mais prudente e bastante mais reticente, e infelizmente bastante mais realista, ao analisar a questão da paz constitucional nesta sua segunda intervenção. O meu receio é ouvir a sua enésima intervenção sobre esta matéria daqui a algum tempo, sobretudo se se consumar tudo aquilo que está anunciado. Isto porque há alguns sinais neste momento - e teria sido, quiçá, prudente o PSD não os ter emitido, mas já há alguns sinais - de que não só não há disponibilidade do PSD para essa paz constitucional, mas muito pelo contrário. Há uma disposição de entender os ganhos desta revisão como tácticos e provisórios. Aquilo que vem publicado no jornal Semanário, de 29 de Outubro, é um alerta. Só não percebo como é que V. Exa., que um jornal no passado fim-de-semana qualificava como "o talentoso negociador do acordo de revisão da Constituição com o PSD em 1988, como já o fora na revisão de 1982", ignore aquilo que é público e notório e que consta da boca de um deputado e dirigente da bancada do PSD.
O PSD tem razões para estar satisfeito com as alterações, na parte mais essencial, da constituição económica, mas será perigoso esquecer que, talvez mais cedo do que se possa prever, podem surgir novas "obstruções de fundo constitucional a medidas correntes do Governo, como aconteceu e continua a acontecer com a legislação laboral" (Pacheco dixit). O PSD não pode, por isso, segundo o mesmo "deixar que a tese do PS sobre o fim da querela constitucional se torne, pelo seu silêncio e omissão, convincente. O discurso político, sério e fundamentado, sobre os melefícios da Constituição deve continuar, porque há que tornar inevitáveis os temas da próxima revisão". E isto é dito e assumido publicamente; quiçá, por deslize táctico, por desbocamento menos pensado, por vanguardismo decorrente de uma certa posição de dedo no gatilho, agora e sempre. Em todo o caso, é dito! E creio que não pode ser subestimado.
V. Exa. não nos pode dizer: "Falem connosco daqui a cinco anos, depois a gente vê; o acordo está de pedra e cal, no meio da grande tempestade, no meio dos grandes incêndios; pode arder o Chiado todo que este acordo de papel é à prova de fogo." Disse-o o PS, no passado domingo, aliás. Sr. Deputado, permita-me que lhe diga que esta perspectiva nos parece propiciadora de grandes preocupações. Aquilo que eu fiz foi exprimir essas profundas preocupações. É não é daqui a cinco anos, é já; antes da consumação e não depois dela.
Último aspecto: V. Exa. confirmou um certo grau de redução e polissemização do texto constitucional. E é um facto óbvio, é objectivo - há esse grau de redução! Mas evidentemente, não nos pode acusar de ser-
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mós filiados na famosa corrente do "quanto pior, melhor". Não pode esperar da nossa boca interpretações ad terrorem, destrutivas, que se insiram numa espécie de leitura corroboradora das piores teses do PSD. Não, isso não terá, não faremos isso! Em todo o caso, não podemos deixar de assinalar o grau de redução do texto constitucional que VV. Exas. induzem com esta nova redacção proposta.
Talvez o aspecto mais curioso seja ver a justificação que o PSD aduz para a sua posição em relação ao vosso texto. Repare-se que o PSD não diz: "Nós votaremos o texto do PS." O que o PSD faz é uma coisa diferente: faz alegações, por vezes confusas e desconexas, em que cita tudo e mais alguma coisa (por último até trouxe Kant pelos cabelos para o próprio debate) para sustentar teses que não têm o mínimo arrimo no texto que VV. Exas. propõem.
Ninguém consegue compaginar duas coisas: o texto proposto pelo PS e as alegações do Sr. Deputado Pedro Roseta; são coisas que estão absolutamente nos antípodas, quanto aos grandes presssupostos, quanto à atitude face ao indivíduo e face ao povo. De resto, o PS não propõe nada que se assemelhe à expurgação do povo da alínea c) do texto constitucional - isso é uma proposta do PSD, sobre a qual, aliás, o PS não se pronunciou em definitivo.
O Sr. António Vitorino (PS): - Por acaso pronunciou-se, em sentido contrário até!
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, vamos tentar passar adiante.
O Sr. José Magalhães (PCP):- Vou concluir, Sr. Presidente. Não posso, obviamente, face à posição do PS, ter a pretensão de aqui e de súbito fazer aquilo que não foi feito ao longo de muitos anos. Gostaria apenas de sublinhar que o PCP não é indiferente àquilo que o Sr. Deputado António Vitorino qualificou de "progressiva semantização da Constituição". O que não podemos é coonestar a substituição de uma semantização indesejável por uma mutilação pura e simples. Isso seria a substituição do mal pelo pior! E é isso que o PS propõe. "Terapêutica" contra a semantização: expurgação! Não, não se pode contar connosco para isso. Nem para o resto, incluindo aquilo que referi em relação ao artigo 83.°
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Vou ser telegráfico, primeiro, para dar mais um desgosto ao Sr. Deputado José Magalhães - ainda não foi desta que conseguiu pôr-me maldisposto; aquilo que interpretou como má disposição era apenas uma intervenção norteada pelo princípio da economia de esforços, embora compreenda que esse princípio lhe possa desagradar.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ah, já percebi que isso se confunde com maus modos!
O Sr. António Vitorino (PS): - Eu era lá capaz de confundir uma coisa dessas tratando-se de responder ao Sr. Deputado José Magalhães!
Dois pontos apenas me parecem de reter: eu não disse que a proposta do PS introduziria uma redução e uma polissemização do texto constitucional; o que eu disse foi que essa era a operação interpretativa que já se continha na intervenção que o Sr. Deputado Jaime Gama fez na revisão de 1982, sobre o significado da expressão "socialização dos principais meios de produção" e que o Sr. Deputado José Magalhães trouxe à colação. A operação interpretativa de abertura da expressão "socialização dos principais meios de produção" já se contém no debate da revisão de 1982.
O Sr. José Magalhães (PCP): - VV. Exas. vão mais atrás do que isso, foi isso que eu disse.
O Sr. António Vitorino (PS): - Portanto, neste momento, o que se trata é de eliminar uma expressão proclamatória que, em nosso entender, constitui factor de querela e de divisão, mas não entendemos que essa operação no texto constitucional reduza o que quer que seja em relação àquilo que já eram as interpretações possíveis, à luz do que foi feito na primeira revisão da Constituição, em relação à expressão "socialização dos principais meios de produção".
Naturalmente que o Sr. Deputado José Magalhães reconduz sempre tudo ao artigo 83.° - e aí até estou de acordo consigo, o artigo 83.° é que é uma alteração verdadeiramente importante. Por isso é que eu esperava que, apesar de tudo, não gastasse tanto os seus cartuchos na denúncia destas operações em relação à descarga ideológica, que são muito menos relevantes do que outras alterações que o PS introduz noutros pontos do texto constitucional. Simplesmente, o que pretendi foi chamar a atenção apenas para uma questão de medida ou, neste caso, de falta de medida na crítica, que também me parece às vezes importante e relevante para ajuizar das posições de cada um dos partidos.
Quanto à questão da paz constitucional, naturalmente que não ignoro que já dois destacados dirigentes do PSD tomaram posições posteriores ao acordo PS/PSD no sentido de tentarem ressuscitar a querela constitucional - um foi o deputado Pacheco Pereira, num artigo do Semanário; o outro foi o Sr. Dr. Alberto João Jardim, num artigo do Tempo. Apesar de tudo, há uma diferença entre eles: um queixa-se da lei laboral e o outro queixa-se do Ministro da República. Acho interessante que se faça uma querela ideológica e uma querela constitucional, por haver Ministro da República - acho, aliás, que será uma estratégia cheia de sucesso e cheia de futuro. Mas não tenho a pretensão de pôr fim a nenhuma querela constitucional ex professo, de ditar eu próprio o termo da querela constitucional; pelos vistos, neste momento, até a querela constitucional já tem dois novos filiados para futuro - são os Srs. Deputados Pacheco Pereira e José Magalhães! Bem me parecia que alguma coisa haveria de os unir!
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O PS é que se une aos "pachecos" de Portugal!
O Sr. Presidente: - Vamos encerrar a discussão do artigo 9.° Consoante me tinha comprometido, trouxe uma proposta escrita (que foi, basicamente, ditada e
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reduzida a escrito e, portanto, tem algumas imperfeições formais, que a vossa inteligência rapidamente suprirá) acerca da regulamentação que proponho para a segunda leitura e para a votação a fazer na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. Talvez não valha a pena estar a repetir aquilo que aqui está explicitado e que, de resto, já foi objecto de uma comunicação anterior - portanto, não*^ nenhuma surpresa. Gostaria apenas que VV. Exas. se pronunciassem, querendo, sobre a abordagem desta matéria ou já, ou, se entenderem preferível, amanhã; e que levassem para consideração, para vosso trabalho de casa, sem se prenderem exageradamente com a circunstância de, por exemplo, os "que se estarem escritos com letra pequena, de não haver um "que", de haver uma repetição - enfim, coisas desse tipo-, visto que, repito, foi-vos entregue a versão à máquina de algo que foi ditado com alguma velocidade.
Gostaria que atendessem à substância e amanhã discutiríamos o problema.
Iríamos então passar ao artigo 10.° Existem duas propostas de alteração, uma do CDS relativa aos n.ºs 1 e 2 do artigo e outra do PSD relativa apenas ao n.° 1. Penso, e por uma questão de acelerar a velocidade dos trabalhos, que poderia desde já apresentar as razões, de ordem sistemática e de coerência jurídica, que levam a incluir, por parte do PSD, no n.° 1 do artigo 10.°, a indicação de que a vontade popular se manifesta, para além do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, também através "do referendo" - é este o inciso que é acrescentado ao n.° 1 - "nos termos da Constituição e da lei", visto que não é apenas a Constituição, mas a lei, que regula estas matérias. Estas são as alterações que propomos e que resultam de a circunstância de também termos proposto o instituto do referendo e portanto ter sentido que se inclua essa referência. O referendo não é exactamente um sufrágio universal e daí haver também, do ponto de vista da epígrafe, uma alteração a fazer, que é consubstanciada na expressão "vontade popular e partidos políticos" em vez da actual "sufrágio universal e partidos políticos". Por outra parte, e como referi, no texto do artigo mencionamos, para além da Constituição, a própria lei, embora com certeza uma lei materialmente constitucional. A lei ordinária, e não apenas a Constituição, terá de regular esta matéria. Não se trata de um ponto de reforma que reputemos particularmente importante, porque, no fundo, o seu impacte político não vemos que seja grande nem altere substancialmente as coisas. O que é importante é consagrar ou não o referendo como instituto constitucional. Esta proposta resulta de uma preocupação de maior aperfeiçoamento da Constituição em termos da sua sistemática e da sua técnica jurídica.
Está aberta a discussão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Assim como não considero de alto valor positivo a proposta de VV. Exas., também não consideramos de alto valor negativo a sua rejeição. De qualquer modo, não vemos vantagem em consagrar uma referência expressa ao referendo. Primeiro, porque nos parece que é um caso de sufrágio universal. Para quem entender que não é especificamente um caso de sufrágio universal cá está a referência às "demais formas previstas na Constituição", já
que o referendo passará a ser uma dessa formas. Também não vemos vantagem em se incluir, além das "demais formas previstas na Constituição", a referência expressa à lei, na medida em que a lei é uma forma, prevista na Constituição, de exercício do sufrágio universal, directo e secreto. Sinceramente pensamos que o acrescento "a lei" poderia justificar perplexidades interpretativas, que não vemos vantagem em introduzir através deste acrescento. Seríamos favoráveis a que se mantivesse qua tale o texto actual.
O Sr. Presidente: - Mais algum Sr. Deputado se quer inscrever?
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Não vou repetir as palavras do Sr. Presidente, mas gostava de dizer ao Sr. Deputado Almeida Santos que endendo que o texto actual da Constituição é limitativo. Limita, tal como o leio, o exercício do poder político por parte do povo, processualizando-o, digamos assim, através da prescrição de determinadas formas, "sufrágio e outras formas previstas na Constituição". Julgo que, se entendermos o conceito de poder político num sentido amplo - podia citar vários pensadores, por exemplo Max Weber, Habermas -no sentido, que é mais largo, que hoje se lhe dá, arcaísmo da intenção normativa que aqui está parece-me evidente, só numa visão muito estreita da realidade democrática é que se pode pensar em submeter todas as manifestações do poder político do povo à aplicação estrita das normas constitucionais. Numa visão que qualificaria como aberta, prospectiva, o que poderia era, tão-só, estabelecer-se o princípio segundo o qual o povo não pode exercer o seu poder político por formas contrárias à Constituição. Isto seria para nós aceitável, o resto parece-nos que é limitativo. Com efeito, a Constituição é para nós um limite, mas não o critério do exercício do poder político total por parte da communitas civium. A Constituição deve servir o povo, não é o povo que serve o Constituição. Poderia aduzir outros argumentos, mas vou ficar por aqui, insistindo que a nossa intenção é alargar, e não limitar, acrescentando a explicitação do referendo.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Na verdade, acrescentou mais argumentos à minha convicção de que o texto deve ficar tal como está. Isto por razões opostas às suas, que, aliás, respeito e já sabia que eram essas. O PS entende que é perigoso, pelo menos na fase actual da democracia portuguesa, criar alguma indefinição sobre a forma de exercício do poder político. Achamos que o que está aqui é um salvaguarda importante e não estaríamos muito dispostos, neste momento, a criar indefinições deste tipo.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.
O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Apenas um acrescento ao que já foi dito. Desde logo e com respeito à alteração que o PSD propõe à epígrafe, portanto introdução do termo "vontade popular", penso que já foi suficientemente explicada pelo Sr. Deputado Rui Machete como forma de
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abranger quer o sufrágio quer o referendo. Penso que a expressão "vontade popular" concretiza, indubitavelmente, o princípio democrático. No fundo, o artigo 10.° é o artigo que define os meios de realização da democracia política. E tal como se encontra hoje redigido ele remete-nos para o sufrágio universal por um lado e para os partidos políticos por outro. Ora, e isto na sequência do que foi referido pelo Sr. Deputado Pedro Roseta, uma vez que o exercício do poder político não se esgota no sufrágio que, obviamente, assume um papel fundamental, em termos de democracia representativa (democracia moderna), introduz-se expressamente no texto - e é essa a proposta do PSD -, em sede de princípios fundamentais, o referendo que é, inquestionavelmente, uma forma de democracia representativa.
Quanto à alteração pontual, o segmento final "e da lei", no fundo, é uma alteração consequente face à introdução do instituto do referendo. O PSD entende que com a introdução do referendo, e aqui faz-se de alguma maneira uma remissão para a nossa proposta em sede de artigo 138.°-A, este instituto terá de ser visto numa perspectiva de clara opção democrática, compatível que é com o princípio representativo. A sua inserção no texto o na actual lei fundamental não suscita, a nosso ver, grandes problemas, quer face às expressas alusões que existem quanto à democracia participativa, quer quanto à declarada participação directa dos cidadãos na vida política, que se fará sempre sem prejuízo da prevalência do sufrágio.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Posso acrescentar uma coisa, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - É evidente que se ficar aqui, sobretudo com a remissão - o referendo não está em causa -, achamos que é inútil na medida em que achamos que ou está já incluído ou de qualquer modo é uma das formas previstas na Constituição, visto que vai passar a estar. Esse não é o nosso ponto principal. Mas esse alargamento, com referência à lei, permitia que aquilo que não é proibido pela Constituição, em matéria de formas de exercício do poder político, podia passar a ser permitido através da lei. Que mistérios vêm aí? Não sei! Mas quando também vejo, por exemplo, a preocupação de restringir algumas formas de expressão da vontade popular, que estão previstas na própria Constituição, não percebo bem que, por um lado, se pretenda restringir e, por outro, se pretenda ampliar de forma abstracta e aberta, de forma vaga. Isso é que me parece perigoso. Porque neste domínio, com a verdura e a falta de experiência da nossa jovem democracia, era perigoso abrir uma autorização vaga para outras formas, que não as previstas na Constituição.
Parece-me que o que está aqui é uma salvaguarda que ainda consideramos útil. Estão aqui muitas formas previstas na Constituição. Até as organizações populares de base são uma forma de participação. Há, pelo menos, dez referências à participação, organizada ou não, do povo no exercício do poder político. Referências que não são só o sufrágio. As previstas sabemos quais são. Uma remissão aberta para a lei, que fosse uma moldura onde se metesse a fotografia que cada um quer, sinceramente achamos que neste momento não merece o nosso voto. É só isso, mais nada.
O Sr. Presidente: - Mais alguma intervenção? Pausa.
Faça favor, Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que lhe daria uma profunda alegria se lhe dissesse que faço minhas as palavras do orador antecedente. Verdadeiramente poderia dize-lo...
O Sr. Presidente: - Daria, mas como não acredito!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Poderia fazê-lo a respeito deste artigo. Infelizmente não o pude fazer no artigo anterior, o que provavelmente seria mais interessante e teria mais significado.
Em todo o caso, creio que poderei aditar a este debate apenas dois aspectos, que são, no fundo, duas correlações, duas remissões. A concepção que enforma o projecto de revisão constitucional do PSD, nesta matéria, quebra ou altera e em nosso entender desnatura um dos princípios fundamentais da definição constitucional do Estado democrático. Ele é definido como Estado democrático-constitucional, e isso significa, entre outras coisas, que as formas de exercício do poder político estão sujeitas, estritamente, ao princípio da constitucionalidade, que é consignado, directa e inequivocamente, no artigo 3.° e tem aqui uma outra expressão ou afloramento. O PSD quebra essa regra em vários sentidos. Quebra-a, desde logo, no artigo 3.°, ao procurar estabelecer, inovadoramente, que o Estado se subordina à Constituição, às leis e ao direito. Obviamente não introduzirei aqui o debate que sobre a matéria travámos, mas, obviamente também, cabe-me relembrá-lo.
O Sr. Presidente: - V. Exa. é um jusnaturalista heróico.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o que seguramente não sou é um jusnaturalista destravado...
No caso concreto, o jusnaturalismo desemboca em atitudes constituícidas bastantes significativas.
Mas não era esse o aspecto que mais me preocupava. O aspecto que me preocupava era, sobretudo, fazer, por um lado, a correlação com o disposto no artigo 3.° do projecto de revisão constitucional do PSD e, por outro, a correlação com a proposta constante do artigo 111.° do mesmo projecto de revisão constitucional. Nessa disposição o PSD também visava introduzir uma alteração fundamental em relação à definição constitucional das regras sobre o exercício do poder. E também visava uma remissão para a lei, quer a supressão do monopólio constitucional de conformação das formas de exercício do poder, quer em benefício de uma partilha com a actividade e com os poderes de conformação do legislador ordinário. O PSD, no fundo, desejaria, para si próprio e para a sua maioria parlamentar, o poder de definir a arquitectura do exercício do poder. Não nos parece que isso seja vantajoso.
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Não nos arrogamos a capacidade e o poder de prever tudo. Em todo o caso algumas das coisas que são susceptíveis de ser acobertadas e abertas através de um dispositivo deste tipo não nos parecem de aceitar. E, mais, conhece-se o pensamento político de algum PSD e esse pensamento político é sumamente inquietante quanto a algumas das formas através das quais poderia ser, na lei ordinária, dada expressão a esta abertura, que agora se obteria por esta forma.
Foi dito em relação ao artigo 111.° que o PSD estaria preocupado em "temperar o exclusivismo do sistema representativo", conseguir "acréscimo de legitimidade refrescante do sistema", substituindo "a legitimidade abstracta e fria" por uma outra, porventura, "popular", etc.., leia-se a acta respectiva. Em todo o caso, aquilo que assim se faria não merece, seguramente, a nossa aprovação.
Gostaria de sublinhar, por outro lado, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que nesta revisão o PS e o PSD pretendem realmente introduzir uma outra forma de exercício directo do poder político a acrescer ao referendo local já hoje previsto, às intervenções em assembleias populares deliberativas no artigo 246.° e àquilo que, na vossa visão, subsiste das organizações populares de base territorial através da releitura feita pelo PS no artigo 263.°, que infelizmente é acompanhada da supressão do artigo 118.° Em todo o caso, isto, que é uma inovação, poderia ser objecto de reduções e distorções pela porta larga e abrindo sobre o desconhecido que o PSD pretende introduzir neste ponto do articulado do seu projecto de revisão constitucional.
Eis, sucintamente, as razões pelas quais o grupo parlamentar do PCP não pode aderir a uma proposta como a que agora foi fundamentada pelos Srs. Deputados do PSD.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não me vou alargar até porque o PSD já apresentou, claramente, qual é a razão por que faz esta proposta de alteração. Mas pretendia apenas dar um pequeno contributo para aquilo que penso que é desvanecer a complicação que se gerou à volta de uma proposta que é uma proposta concreta, ela sim de simplificação, de aperfeiçoamento e de mera preocupação técnica por parte do PSD. Afinal não faz sentido que se crie, por exemplo, por parte do Sr. Deputado José Magalhães, esta intenção de, no plano da Constituição, gerar uma espécie de cinto de segurança que permita que as formas de participação política sejam constitucionalmente descritas sem que haja um alargamento "improvisado" (entre aspas) por via legislativa - preocupação que aliás é comum ao Sr. Deputado Almeida Santos -, porquanto, no fundo, a nossa fórmula vem completar, de modo mais aperfeiçoado, certos preceitos constitucionais que, eles sim, também a propósito de certos modos de organização política, dos cidadãos, remetem para a lei.
Faria uma pergunta concreta ao Sr. Deputado José Magalhães. Por que é que o PCP não propôs uma alteração do artigo 264.°, sobre as organizações populares de base, quando no n.° 1 o actual texto constitucional remete a definição da estrutura daquela organização para a lei? Não são modo de participação política? Não será mais aperfeiçoante - de acordo por exemplo, não é o nosso caso, porque não temos sobre o artigo 264.° a mesma posição que aqui o PCP e mesmo o PS expuseram -, não seria melhor, a manter por exemplo este artigo no quadro de um sentido de completude da própria Constituição, que o artigo 10.° previsse que a vontade popular se manifesta nos termos da Constituição e da lei? Isto é, não estaria mais de acordo com a própria lógica de, pontualmente, haver remissões da definição de certas estruturas de organização política para a lei? Não seria mais correcto e mais adequado que, ao avançar uma formulação genérica, se falasse também na possibilidade de a lei prever formas de participação? A pergunta que dirijo ao Sr. Deputado está formulada. Isto é: como é que o artigo 264.°, no seu n.° 1, fica completo na sua intenção se não houver uma previsão genérica que se refira à manifestação do poder político e ao seu exercício nos termos da Constituição e da lei, já que naquele caso a estrutura da própria organização é ela remetida para o legislador ordinário?
O Sr. Presidente: - Suponho que a Sra. Deputada Assunção Esteves não fez uma pergunta para obter uma resposta, mas foi apenas uma figura de oratória. Por outra parte, é evidente que, já agora permitindo-me fazer uma observação, o Sr. Deputado José Magalhães, quando faz as suas considerações, não é que esteja a pensar que a lei possa subverter a Constituição e seja superior a ela, mas porque isso lhe permite fazer outro tipo de considerações de carácter político e ninguém lhe pode levar isso a mal. O que eu diria é que talvez não valha a pena estarmos a embrenhar-nos numa discussão jurídica que não tem grande sentido depois daquilo que dissemos anteriormente. As coisas estão suficientemente explicitadas; não vale a pena estarmos sempre a contestar as coisas que já foram contestadas ao longo de variadíssimas sessões, a inteligência do leitor das actas facilmente depreenderá aquilo que é a argumentação técnico-jurídico e aquilo que é a argumentação política. Portanto, solicitava veementemente que passássemos ao artigo 11.°, "símbolos nacionais", que estão à nossa espera já há algum tempo.
Mas o Sr. Deputado José Magalhães pediu a palavra. Faça favor, Sr. Deputado. Suponho que não interpreta como figura de retórica a pergunta que a Sra. Deputada Assunção Esteves lhe fez e quer responder. De qualquer modo, não tenho outra alternativa senão dar-lhe a palavra.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não tenciono de alguma forma coagir a sensibilidade direccional da Mesa. Em todo o caso, creio que a Sra. Deputada procurou argumentar e um argumento merece sempre alguma consideração - é apenas isso. Por outro lado, não pode V. Exa. esperar que eu entenda que, celebrado o acordo, a argumentação "está feita" e "é dispensável", "é tudo argumentação política" - à chacun sa raison. Esse ponto de vista não pode ser, seguramente, partilhado pela minha bancada.
O Sr. Presidente: - Continue, Sr. Deputado, ninguém lhe está a coarctar a palavra. Estamos aqui há meia hora, ou há três quartos de hora, a discutir uma coisa que não tem sentido nenhum estar a ser discutida depois do que foi dito, mas VV. Exas. insistem, fazem
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favor. Aliás, as culpas estão igualmente repartidas - não tem que tomar as dores, porque as culpas estão igualmente repartidas pelos diversos partidos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, serei brevíssimo. Creio que o argumento utilizado pela Sra. Deputada Assunção Esteves não tem em conta a dimensão, a natureza, da proposta do PSD. É certo que a Constituição, hoje, devolve ao legislador ordinário, no artigo 264.°, a fixação das questões relacionadas com a estrutura das organizações populares de base territorial, cuja transmutação constitucional o PS propõe, solução a que o PSD adere entusiasticamente. São coisas diferentes essa solução e as propostas do PSD: no caso concreto das organizações de base territorial, trata-se de poder o legislador ordinário intervir dentro dos precisos limites que a Constituição traça; aquilo que o PSD quereria, ao propor uma cláusula como esta que figura no artigo em apreço e nos dois outros artigos que citei, era conceder ao legislador ordinário um poder geral para modelar, ele também, as formas de expressão política, as formas de exercício, pelo povo, poder político - o que quebraria o monopólio constitucional existente em relação a todos esses aspectos. O Estado deixaria de se poder definir como democrático-constitucional para termos de passar a defini-lo como Estado democrático-constitucional-legal.
O Sr. Presidente: - Essa é a sua interpretação, não era a nossa quando a propusemos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ó Sr. Deputado Rui Machete, todo o meu esforço foi precisamente para procurar saber por que é que o PSD, propondo o que propõe, não assume as consequências daquilo que propõe! Se V. Exa. propõe que a lei passe a poder definir os aspectos relacionados com as formas de expressão política, então o Estado passa a ser democrático-constitucional-legal - creio que é extremamente difícil sair disto.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, peço-lhe imensa desculpa mas eu explicitei que, na nossa ideia (o que aliás, diga V. Exa. o que disser, se mantém), não é apenas a Constituição, mas há-de ser desenvolvido na lei. Agora a lei não pode substituir-se ou contrariar a Constituição - é óbvio.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É óbvio. Mas pode ir "para além" da Constituição? Essa é a questão! Hoje não pode. Com o vosso texto poderia!
O Sr. Presidente: - Isso, o "para além de" significa duas coisas distintas: se é em termos de execução, pormenorização, detalhe de desenvolvimento, pode com certeza, senão não valia a pena faze-la; se é no sentido de a desvirtuar, não pode. E isto é a mesma coisa que acontece em todas as matérias do princípio da legalidade, seja no princípio da legalidade quanto aos regulamentos e aos actos, seja em matéria da constitucionalidade quanto à lei. Não há aqui nada de novo nesta matéria. V. Exa. pode, do ponto de vista político, tentar argumentar num outro sentido e sublinhá-lo - está no seu pleníssimo direito; agora o que não pode é arrogar-se o direito de dizer que essa é a interpretação correcta e a única possível porque não é - a correcta foi aquele que explicitei.
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Rui Machete procurou agora clarificar (e porventura tê-lo-á conseguido, o que é bom) genericamente o alcance da proposta do PSD. Mas, ao fazê-lo, tornou-a inteiramente inútil. Porque, se é só isso, é óbvio que o legislador pode mover-se dentro dos limites da Constituição.
O Sr. Presidente: - Por isso mesmo, Sr. Deputado José Magalhães, é que nós não nos batemos por ela e eu disse-lhe que era uma mera precisão de ordem técnica, e a retirei, desvalorizando-a - foi isso mesmo exactamente aquilo que eu lhe tinha dito inicialmente quando tentei prevenir um debate que se me afigurou inútil.
O Sr. José Magalhães (FCF): - Ó Sr. Presidente, mas seguidamente o Sr. Deputado Pedro Roseta valoriza-a num sentido inteiramente inaceitável, o Sr. Deputado Pais de Sousa valoriza-a num sentido inteiramente inaceitável - esperará V. Exa. que nós irrelevantizemos as opiniões da sua bancada?!
Admito que a posição de V. Exa. seja definitiva, peremptória, total e autêntica e que, portanto, irrelevantize todas as demais (está clarificado o aspecto). Sendo assim, isso quer dizer que a proposta é inútil e, logo, mante-la é perfeitamente nocivo para a própria clareza dos debates. Em todo o caso, o PSD é soberano e plúrimo, como se acaba de ver.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, já agora permita-me que lhe diga o seguinte: eu não subscrevo inteiramente, do ponto de vista daquilo que é o meu entendimento da Constituição, aquilo que o Sr. Deputado Pedro Roseta disse - não é uma verdade de fé aquilo que ele disse, eu não o subscrevo inteiramente e nada disso tem importância na perspectiva de pertencermos ao mesmo partido. Mas há coisas que o Sr. Deputado Roseta referiu que eu acompanho perfeitamente. Por exemplo, sabe V. Exa. - e com isto faz-me cair na tentação de também prolongar o debate e eu, confesso o meu pecado, acabo por fazer aquilo contra o que me insurgi - que, em matéria daquilo que é a livre realização da personalidade dos cidadãos e depois das associações que eles livremente instituíram e que constituem uns e outras a sociedade civil, a regulamentação estruturada da Constituição não esgota essas possibilidades - suponho que é isso que me une àquilo que disse o Sr. Deputado Pedro Roseta. Depois ele diz algumas coisas do ponto de vista técnico que eu me permito pensar e enquadrar da maneira diferente - não são verdades de fé, cada um entende da sua maneira. Mas, diga aquilo que disser este artigo da Constituição, o Sr. Deputado Pedro Roseta continuará a pensar assim e a ter, de um ponto de vista jurídico-filosófico ou filosófico-jurídico, argumentos a seu favor, e eu também. E, portanto, V. Exa. continua a esgrimir em sentido contrário, mas também aí os argumentos valem o que valem e cada um ficará com a sua. Assim sendo, no que respeita à discussão
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técnica que estamos a ter, reafirmo aquilo que lhe disse há pouco; no que se refere ao problema de ordem filosófica, aí a filosofia divide-nos muito mais a nós os dois, do que a mim e ao Sr. Deputado Pedro Roseta, como, aliás, é natural! É por isso que o Sr. Deputado Pedro Roseta e eu somos sociais-democratas e V. Exa. é comunista.
Vamos então passar ao artigo 11.° - "Símbolos nacionais". Aqui há uma proposta de aditamento de um n.° 3, por parte do PCP, e dava a palavra ao PCP para justificar, querendo, sucintamente a sua proposta.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Se o Sr. Deputado José Magalhães não se importasse eu emitia já a minha opinião, porque é muito clara, até para facilitar a sua intervenção - permite-me, Sr. Deputado?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Com certeza, Sr. Deputado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas antes disso - há bocado não quis interromper - não resisto a "fazer uma graça" relativamente ao Sr. Deputado José Magalhães: não deixe de cumprir o dever de inteligência de não referir o acordo PS/PSD, ao menos em relação aos artigos em que nós declarámos que não estamos de acordo com as propostas do PSD. Ao menos nesses casos!...
O Sr. Presidente: - Essa não é praeter, é contra, é contra pactum.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Quanto aos outros, enfim, aguardo a oportunidade, mas, num artigo em que nós acabámos de dizer que não estamos de acordo, invocar o acordo é de mais!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, isso é excessiva sensibilidade dermatológica. A acta comprovará rigorosamente o que eu disse - eu não disse isso.
O Sr. Almeida Santos (PS): - É uma graça, não passa disso.
E como eu não sou vingativo queria dizer que, relativamente a esta proposta do PCP, nós temos abertura para votar a parte que refere que "A Bandeira Nacional é símbolo da soberania da República e da independência, unidade e integridade de Portugal". Não mais que isso. Relativamente ao que vem a seguir já não votaremos em circunstância nenhuma. Era só para simplificar a discussão na parte que nos diz respeito.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, esta proposta do PCP auto apresenta-se virtualmente. Sabe-se como foi inovadora a Constituição da República na sua consignação de normas sobre a garantia e a difinição dos símbolos nacionais; sabe-se, também, que foi extremamente concisa no conteúdo normativo correspondente. Falta uma definição de Bandeira Nacional - é um facto. A Bandeira Nacional surge caracterizada rigorosamente: nenhuma dúvida poderá caber quanto às características da Bandeira Nacional, ou seja, quanto à sua configuração, quanto à sua conformação, quanto ao facto de se tratar da Bandeira verde e vermelha que é o património e herança da Revolução Republicana de 1910. Em todo o caso, a definição de Bandeira Nacional deveria estar contida no próprio texto constitucional. Compreendo, tomo nota e transmitirei à minha bancada as observações feitas pelo PS e, seguramente, as feitas pelas outras bancadas (em particular pela bancada do PSD), mas gostaria de sublinhar que a norma, sendo composta por dois segmentos (o inicial e o final), é obviamente susceptível de todas as reconformações para que os Srs. Deputados estejam disponíveis. Pela nossa parte, reafirmo (seria quase desnecessário fazê-lo) a nossa completa disponibilidade para considerar uma formulação que exprima correctamente, e o mais consensualmente possível, a ideia basilar do preceito que adiantámos, e puramente adiantámos. A segunda parte da norma, o segmento que refere "devendo ser utilizada nos termos da lei em todo o território nacional", caracteriza-se, por um lado, pela expressão de uma evidência...
O Sr. Presidente: - Pelo jusnaturalismo!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Optámos pela utilização de uma remissão prudente e inevitável para o legislador ordinário. Mas é evidente que uma bandeira nacional não utilizada no território nacional seria obviamente uma bandeira parcial, o contrário de uma bandeira nacional. Seria um contra-senso.
Relembro, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que foi publicado, em 30 de Março de 1987, um decreto-lei, o Decreto-Lei n.° 150/87, que, referindo que a legislação relativa ao uso da Bandeira Nacional está dispersa e é incompleta, alguma dela sendo datada, em alguns casos, do princípio do século, disciplinou algumas das formas de dignificação da Bandeira Nacional como símbolo da pátria e "como forma de avivar o seu culto" (expressão é do preâmbulo do decreto-lei que referi) entre todos os portugueses. Estabeleceram-se assim algumas regras gerais para o uso da Bandeira Nacional. Aliás o artigo 1.° desse diploma refere: "A Bandeira Nacional como símbolo da pátria representa a soberania da nação e a independência, a unidade e a integridade de Portugal, devendo ser respeitada por todos os cidadãos, sob pena de sujeição à cominação prevista na lei penal." Ò artigo 2.° refere: "A Bandeira Nacional será usada em todo o território nacional de harmonia com o previsto neste diploma, sem prejuízo do estabelecido na lei quanto ao seu uso no âmbito militar e marítimo."
Creio, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que, quer se faça uma transposição de dimensão maior ou menor, o facto de a Constituição ser enriquecida com uma norma deste tipo seria, obviamente, positivo. Devo dizer que consideraríamos extremamente negativa uma não consagração.
Não foi de ânimo leve que adiantámos esta proposta. Tomámos boa nota de todo o debate travado na Assembleia da República por ocasião do lamentável episódio a que alguns chamaram a "guerra das bandeiras", tomámos boa nota das reflexões e das contribuições dos diversos partidos das diversas bancadas para uma solução razoável de todas as melindrosas questões então suscitadas, bem e mal (talvez mais no plano do
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mal do que do bem). A solução para que caminhámos teve em conta o património desse debate. Não no sentido de o desnaturar, mas no de consagrar ao mais alto nível as respectivas conclusões. Essas conclusões foram, aliás, partilhadas larguíssimamente - creio que nenhuma força se dissociou delas. A norma, inserida na sede própria, foi aprovada por unanimidade, coisa que consideramos estimável e irreversível. Assim sendo, não quisemos (sublinho de novo, por mera cautela) avivar o que quer que fosse de uma querela que entendemos perimida. Quisemos, pelo contrário, corroborar, com uma norma situada na sede mais adequada, uma orientação que nos parece largamente partilhável, e definir, em termos inequívocos e susceptíveis de serem partilhados por todos os quadrantes, a Bandeira Nacional como símbolo comum a todos, coisa que justifica bem uma normação comum a todos os partidos com assento nesta Assembleia. Nesse sentido, apelaria a um esforço que permita um resultado positivo.
O Sr. Presidente: - Vou fazer algumas reflexões que exprimirão uma primeira posição do meu partido, mas, em todo o caso, são feitas essencialmente a título pessoal.
Apraz-me muito registar que seja o PCP a propor uma norma deste tipo, preocupado assim em acentuar um símbolo tão importante para a pátria portuguesa. Também quero registar positivamente a circunstância de o PCP prevenir que não pretende reacender polémicas que foram extremamente desagradáveis, ocorridas no ano passado, aquilo que impropriamente se chamou "a guerra das bandeiras".
A meu ver, já existe algo sobre a Bandeira Nacional, no n.° 1 do artigo 11.°, e, se se consignar uma disposição que, de algum modo, reforce a definição desse símbolo nacional, é natural que haja que retocar essa redacção, de contrário as coisas não ficarão muito perfeitas. Por outra parte, julgo que é importante fazermos a afirmação por uma forma clara e inequívoca, numa matéria em que se sublinha algo de muito importante e com o qual me identifico, que são os valores da pátria portuguesa, da unidade nacional, da independência e da integridade do território português. Em todo o caso, é bom que saibamos, de uma maneira clara, que hoje essa afirmação não tem o significado que teve sob a ditadura, isto é, todas as parcelas do território português querem, e querem livremente, manter-se portuguesas. Eu não subscreveria nenhuma posição que significasse, de algum modo, sob a via disfarçada de agora sermos uma democracia, bem feitas as contas, situações, em relação a qualquer parcela do território nacional, que fossem uma mera sequela de uma atitude colonial - só que agora não teríamos uma situação colonial típica, mas teríamos uma situação de domínio. Não duvido que a razão por que o território nacional é e será aquele que neste momento existe resulta do querer livre da esmagadora maioria, senão da totalidade, das populações portuguesas residentes nessas diversas parcelas. Isto é fundamental e não penso que, pela via de uma pressão qualquer indevida, seja daqueles que pescassem em águas turvas para defesa de alguns interesses fraccionários e para fomentar atitudes separatistas, seja daqueles que, identificados com uma posição maioritária, gostem de usar de uma atitude arrogante, se viesse a pretender usar a força numa matéria em que deve ser a coesão social assente na comunhão dos mesmos valores a garantir e a ser o esteio dessa mesma unidade e integridade. Os Açores e a Madeira fazem parte de Portugal porque os que lá nasceram e vivem são portugueses e querem continuar a sê-lo, não porque alguém os força a isso. Essa é também a razão por que são portugueses os Transmontanos, os Estremenhos, os Alentejanos, os Algarvios, etc.. Todos partilhamos em igualdade um presente e um devir comuns. Meia dúzia de indivíduos que eventualmente pensam e agem diversamente provam que há democracia - não serão perseguidos desde que não violem a lei -, mas em nada alteram esta forte realidade da unidade do povo português.
Isto dito, julgo que um preceito do tipo daquele que é apresentado pelo PCP no que respeita à afirmação de que a bandeira é o símbolo da soberania da República, da independência, da unidade e da integridade de Portugal, é algo em que, não vendo que a Constituição esteja amputada pela circunstância de nela tal não estar consignado, também não vejo nenhuma desvantagem - e vejo até algumas vantagens - em incluir. Já existe um artigo - e entendo que ele é necessário e muito útil - em que se faia nos símbolos nacionais e em que se mencionam, expressamente, a bandeira e o hino nacional, penso que ficará bem dizer um pouco mais do que aquilo que, parcamente, se refere no n.° 1 do actual artigo 11.°, onde se faz uma referência histórica de que a bandeira nacional é a adoptada pela República instalada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910.
Assim sendo, do meu ponto de vista, consignar-se que a bandeira é o símbolo da soberania da República (o que é um pouco repetitivo em relação à epígrafe, mas não faz mal) e da independência, da unidade e da integridade de Portugal - e também fazer uma referência a que essa bandeira, na sua configuração figurativa, é a adoptada pela República instalada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910 -, penso ser positivo e subscrevo-o.
Já no que respeita à segunda parte do n.° 3, tal como é apresentado pelo PCP - "[...] devendo ser utilizada, nos termos da lei, em todo o território nacional" -, me parece, de algum modo, ser regulamentar e uma redundância. A lei já o regula, pois decorre naturalmente da afirmação de princípio, e poderia ter o efeito perverso de, mesmo não o querendo, vir a acentuar alguma coisa que neste momento já está resolvida - a tal chamada "guerra das bandeiras" de que se falou há pouco. Isto é, poderia, de uma maneira involuntária, ao sublinhar, no nível constitucional, uma coisa que é óbvia, mas que, por o ser, não necessita de ser sempre repetida, vir a despertar conexões históricas desagradáveis que, muito justamente, se quer erradicar.
E não é que eu não esteja de acordo com o facto referido na expressão "devendo ser utilizada, nos termos da lei, em todo o território nacional". Existe, de resto, um decreto-lei que subscrevo integralmente, mas não é disso que se trata. Estamos a analisar uma matéria suficientemente importante e delicada para que tenha o direito de esperar que todos os membros desta Comissão acreditem nas palavras que estou a dizer e que não sejam tentados a fazer algum tipo de argumentação marginal em relação à questão que está a ser discutida.
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Por consequência, em minha opinião, a posição do PSD - e efectivamente teremos de a analisar um pouco mais e, aquando da votação, na segunda leitura, explicitá-la-emos em termos mais definitivos - é no sentido de que me inclino, em primeiro lugar, para que aprovemos a proposta do PCP, no que respeita ao n.° 3 que o PCP agora adita, até ao final da expressão "integridade de Portugal", mas já não no que diz respeito à segunda parte da frase, que começa em "devendo ser utilizada, nos termos da lei, em todo o território nacional". Em segundo lugar, parece-me que algum arranjo terá de ser feito entre on.°leon.°3 e, porventura até, na colocação do n.° 2, de modo a encontrar-se uma fórmula mais elegante e mais ática em relação à que resultaria da simples adição desse n.° 3.
Não, portanto, quanto à substância sobre a qual o meu partido não tem quaisquer dúvidas, mas atendendo a este aspecto do condicionalismo que já foi focado, gostaria de reservar a nossa posição definitiva para essa votação, embora adiante desde já que me pude afoitar sem grandes preocupações a explicitar o que explicitei.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, na qualidade de proponente, gostaria tão-só de sublinhar que nos parece positivo o facto de os dois partidos que, neste momento, estão na Comissão, além do PCP, terem podido exprimir uma posição favorável ao fundamental da proposta que apresentámos. Não tínhamos nós, de resto, outra ideia que não a de lograr um consenso o mais alargado possível. Temos a esperança de que esse consenso ainda seja mais alargado, assim que outros partidos, igualmente aqui representados, possam pronunciar-se sobre a matéria.
As considerações feitas pelo Sr. Presidente, em nome da bancada do PSD, parecem-nos, nesta medida, positivas. Reitero a completa disponibilidade para considerar uma formulação que possa contemplar preocupações que são comuns, na parte em que, seguramente, o são, com o que contribuiremos positivamente para uma melhor definição constitucional num domínio que é, evidentemente, da maior importância e do maior melindre.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.
O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sr. Presidente, não posso crer que esta proposta do PCP venha única e exclusivamente na sequência da já abordada polémica das bandeiras. Tal seria, aliás, extremamente injusto para os proponentes da alteração estatutária que desencadeou esta polémica. Concordo com o enaltecimento dos símbolos nacionais - a Bandeira Nacional e o Hino Nacional - e faço votos para que isso não fique apenas no papel da Constituição, mas seja também transposto para a prática. É importante que as crianças portuguesas saibam cantar o Hino Nacional, com a sua precisa letra, e saibam, desde muito pequenas, reconhecer os símbolos nacionais, pois é, de facto, a partir de tenra idade que se vão enaltecendo a soberania da nação e o conceito de pátria, que muito nos deve orgulhar.
Por outro lado, também é importante que bandeiras de natureza clubística não tenham por vezes a importância que têm a nível da comunicação social. Não é que não se deva respeitá-las. Mas deve a Bandeira Nacional estar sempre acima delas e, nesse contexto, deve valorizar-se também, no devido plano, as bandeiras das regiões autónomas, que representam duas parcelas autónomas da Nação Portuguesa.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, toda a formulação e eventual fusão entre os n. os 1 e 3, agora proposta, será vista na segunda leitura?
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, vamos ter a oportunidade, na segunda leitura, de apresentar propostas de alteração e será principalmente sobre elas - se concordarem com a proposta que hoje apresentei - que incidirá o debate. Vamos então ter a oportunidade de as reformular e, se chegarmos a um consenso, não haverá nenhuma dificuldade nesta matéria.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - É que tenho algumas dúvidas sobre a formulação apresentada pelo PCP e sobre a própria sistemática que faz aparecer referida a Bandeira Nacional nos n.ºs 1 e 3 deste artigo e o Hino Nacional no meio dos dois.
O Sr. Presidente: - Se o Sr. Deputado teve a oportunidade de ouvir o que eu disse, ter-se-á certamente apercebido de que não tenho dúvidas de que teremos de fazer alguns retoques, só que são retoques de ordem sistemática. De resto, o PCP nesta matéria e em, aliás, toda a matéria esteve aberto a que se encontrassem fórmulas consensuais.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Gostaria de dizer que vou reflectir sobre esta proposta porque me parece, apesar de tudo - e não quero estar hoje, ao contrário do que é costume, sempre em pequenas discordâncias com o Sr. Presidente -, que há uma certa repetição, mesmo se se retirar a segunda parte da proposta que começa pela palavra "devendo" e que, para nós, pelos motivos já ditos, é absolutamente inaceitável. Efectivamente, mesmo na primeira parte da proposta, que termina na palavra "Portugal", parece-me haver entre a primeira parte deste período - "A Bandeira Nacional é o símbolo da soberania da República" - e o resto uma ligeira repetição e uma pequena redundância que talvez se pudesse eliminar.
O Sr. Presidente: - Mas aí não estamos em desacordo. Pelo contrário, estamos de acordo. Aliás, muitas vezes o que temos é divergências quanto ao aspecto praeter.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Então iremos tentar sintetizar a proposta.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que o Sr. Deputado Pedro Roseta, no processo de reflexão que vai seguramente encetar, terá em conta o Decreto-Lei n.° 150/87, de 30 de Março, que referi e seguramente, também, entre outras coisas, o parecer da Procuradoria-Geral da República no processo n.° 86/86, livro 63, publicado no Diário da República, n.° 34, 2.a série, de 10 de Fevereiro de 1987.
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O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sabe que quero sempre abreviar o mais possível o texto da Constituição, cortando tudo o que for inútil ou redundante.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Breve, mas rigoroso!
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, passamos agora ao artigo 290.°, sobre o qual existem propostas de alteração apresentadas pelo CDS, pelo PS e pelo PSD. Começaria por pedir ao PS para apresentar sucintamente a sua proposta.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, a nossa posição é a de que entendemos que limites materiais expressos ou implícitos existem sempre, como é óbvio, e o facto de serem expressos pode ser útil relativamente àqueles que sejam menos nítidos. Penso que muito destes limites aqui expressos não precisavam de o ser para continuarem a existir na Constituição Portuguesa, tais como a independência nacional, a unidade do Estado, a forma republicana do Governo e â própria separação das igrejas e do Estado, limites materiais que hoje ninguém põe em causa, tal como os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Seria impensável, sem uma ruptura constitucional, alterar os artigos que consagram estes valores. A esse respeito não tenho a menor dúvida.
No entanto, admito que, embora este texto tenha sido aprovado, na redacção inicial da Constituição, senão por unanimidade, pelo menos por quase unanimidade, o clima em que foi feita a Constituição tenha levado a introduzir neste artigo alguns limites materiais que não são tão materiais como isso. São mais formais do que materiais e à sua expressividade não corresponde um valor ínsito na matriz da Constituição material. Admito isso. É, nomeadamente, o caso da participação das organizações populares de base no exercício do poder local. É óbvio que este limite formal não tem dignidade constitucional para ser erigido em limite material da revisão constitucional. Mas não me parece que alguém possa defender seriamente que a Constituição, defraudada deste princípio, não é a mesma, e que há uma ruptura com a constituição material. Não me parece ser este o caso.
Por isso mesmo, nós, aderindo, como se sabe, à tese da dupla revisão não simultânea, entendemos que devíamos respeitar este limite, apesar da sua fragilidade material na actual revisão, e eliminar o limite para futuras revisões. Está, portanto, explicada a nossa posição quanto à alínea j) e, quando nos preocupamos em respeitar este limite, o nosso raciocínio foi já explicado a propósito do texto que se refere às organizações populares de base. O que há de condenável nessas organizações é mais a nomenclatura do que a realidade. Ou seja, como se pôs o ponto final na leitura desta alínea em "base" - organizações populares de base -, ficou aqui implícita e no ar uma ideia de basismo que, na verdade, não é tão nítida como isso. No fundo, as organizações populares de base, bem lida a Constituição, são organizações de moradores com competências que não fazem mal a ninguém e que podem, inclusivamente, ser melhoradas na própria lei ordinária, uma vez que há uma referência a uma delegação vaga de poderes pelos órgãos do poder local nas organizações populares de base. Até hoje não tiveram grande expressão na realidade, podem vir a tê-la, podendo ser amanhã recuperadas dentro do princípio da participação dos cidadãos no exercício do poder político.
Por consequência, pareceu-nos que, eliminado o limite para futuro, deveria ser respeitado nesta revisão na medida em que por nós o foi. Nem mais, nem menos. Houve quem pretendesse que, esse respeito, não era necessário, mas nós entendemos que é eminentemente necessário, dentro, do princípio de que, segundo o nosso entendimento, nesta revisão os direitos materiais têm de ser respeitados e nós temos a veleidade de os respeitar.
Igualmente, substituímos, para futuras revisões, o princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios pelo limite da coexistência do sector público, privado e social da propriedade dos meios de produção. E desapareceu, na sua actual formulação, o princípio da alínea f), mas não desaparece, nesta revisão, o seu respeito. Não fomos até ao seu desrespeito na actual revisão constitucional. É claro que isso, na altura, foi muito discutido e fizemos o que consideramos uma interpretação actualizante deste princípio, baseada no facto de que, desde que há doze, treze e catorze anos, não há uma só apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos. Considerando nós que, no contexto desta Constituição, poderá defender-se a obrigatoriedade da apropriação colectiva de tudo quanto seja principal meio de produção, a verdade é que a prática não abona esta interpretação, não fazendo sentido continuarmos a manter no texto constitucional uma formulação que a própria realidade não secundou. A experiência não a secundou, tendo antes desvalorizado a formulação como princípio imperativo de apropriação de todos os principais meios de produção.
Assim sendo, pareceu-nos que desde que mantivéssemos, na actual revisão, a regra da apropriação colectiva de meios de produção e solos - de todos e não apenas dos principais - dávamos respeito ao limite. É que se nos referimos a "meios", sem qualificativo, também estamos a referir os "principais". Não apenas esses nem imperativamente só estes. Introduzimos um novo elemento que não tem nada de inconstitucional, nem viola o limite, porque sempre se teria de entender que, apesar de o limite estar reformulado como está, haveria sempre de existir em função do interesse público, pois nunca poderia imaginar-se que a apropriação colectiva dos principais meios de produção se ia fazer com base no interesse privado. Fizemos apenas uma explicitação daquilo que já hoje teria de entender-se como estando aqui consagrado, embora só implicitamente, dizendo, na alínea c) do artigo 80.°, "apropriação de meios de produção e solos, de acordo com o interesse público, bem como de recursos naturais".
Será necessário também ligar a esta redacção o artigo 82.°, para o qual propomos um elemento novo que também teria de subentender-se sempre, uma vez que não está prevista na Constituição a expoliação da propriedade privada. Isso levou-nos a dizer que a apropriação colectiva de meios de produção e solos se faz de acordo com o interesse público, "devendo a lei determinar os critérios de fixação da correspondente indemnização em caso de nacionalização ou expropriação". O que significa que quer a nacionalização quer
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a expropriação ficam a ser claramente uma "faculdade" de qualquer governo, mas deixam de ser uma "imposição" constitucional, se essa é hoje a melhor interpretação da alínea f) do artigo 290.°
Devo dizer que essa interpretação não decorre directamente da formulação de limite, mas pode decorrer do seu enquadramento constitucional ligado ao plano e a outras regras com as quais o artigo 290.° tem de ser sistematicamente relacionado.
Para além disso, de acordo com a nossa interpretação de que a planificação económica deve deixar de ter a omnipresença que tem hoje na Constituição, e até o sentido algo colectivista que tem no actual texto, pareceu-nos que deveríamos reformular a redacção deste limite em termos de simples existência de planos económicos no quadro de uma economia mista.
Introduzidas estas únicas alterações, com as quais estamos de acordo, e o nosso voto não poderá ir além delas, parece-nos que os restantes limites materiais de revisão não criam problemas a nenhum partido e muito menos à vida e à interpretação da Constituição. Até porque uns seriam sempre limites materiais independentemente da formulação. Os outros merecem essa mesma formulação expressa.
Parece-me que a Constituição, despojada destes três limites, que poderiam criar alguns problemas quer a nível da constituição económica quer ao da organização do poder político na referência às organizações populares de base, só ganha e nada perde. A inserção de expressões como "a independência dos tribunais, a autonomia das autarquias locais, a autonomia político-administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, a fiscalização da constitucionalidade por acção ou por omissão, o pluralismo de expressão, sufrágio universal, os direitos dos trabalhadores, os direitos, liberdades e garantias, etc.., devem, em nosso entender, estar fora de disputa. O artigo 290.° fica agora reduzido ao essencial. Não é necessário levar mais longe a sua alteração.
Esta é a nossa posição, aliás muito reflectida. Assumimos as alterações que nele introduzimos e não daremos o nosso acordo a qualquer modificação que não sejam estas.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o artigo 290.° é, de algum modo, uma síntese da interpretação da Constituição e, simultaneamente, o precipitar daquilo que as diversas forças políticas consideram essencial.
Na nossa perspectiva, entendemos que houve um claro exagero, aproveitando uma maioria na Assembleia Constituinte, em virem consignar-se normas em matéria de limites materiais de revisão constitucional muito para além daquilo que são os princípios, os preceitos e as instituições mais fundamentais à existência de um Estado democrático que seja consensualmente aceito. Daí que numa das fórmulas que temos repetidamente referido tivéssemos considerado que, na realidade, há concretizações daquilo que é um princípio estruturante fundamental do nosso Estado e da Constituição, que e o princípio democrático, e há no artigo 290.° outras realidades que vão muito para além dele. Aliás, mesmo que não existisse um artigo 290.°, o princípio democrático e as suas concretizações constituiriam um limite material de revisão, visto que esses limites materiais não existem pela circunstância de serem consignados na lei, mas, sim, porque fazem parte da natureza das coisas e descaracterizariam o Estado e a lei fundamental se forem desrespeitados. Contudo, para além disso, procurou-se, de uma maneira porventura ingénua e, simultaneamente, habilidosa, garantir determinadas opções circunstanciais, rodeando-as da ideia de que poderia haver uma estabilização ad seculum seculorum através da sua inclusão num artigo sobre limites materiais da Constituição. E foi o que aconteceu a propósito daquilo que costumamos designar como "afloramentos do princípio socialista de raiz colectivista-marxista". É assim que a Constituição não se limita aos aspectos fundamentais de um estado democrático e de direito, como também aparecem ínsitos nela, designadamente, o princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios, a planificação democrática da economia no sentido que tinha no texto da Constituição de 1976, que foi apenas ligeiramente podado na revisão de 1982. E também surge como afloramento, que espanta um pouco que tenha sido considerado como tão importante para justificar a sua inclusão numa das alíneas do artigo 290.°, o que respeita à participação das organizações populares de base no exercício do poder local.
O princípio socialista-colectivista só existe se for animado por uma vontade democrática que permanentemente incentive ao progresso, à manutenção das situações já adquiridas. Ele caducou porque essa vontade desapareceu, na medida em que isso se evidenciou claramente através de sucessivas eleições onde a maioria dos eleitores de uma maneira inequívoca sufragaram programas de Governo que eram contrários àqueles que estavam implícitos nas disposições que estamos agora a analisar. E igualmente pela prática dos órgãos políticos representativos, de que é exemplo mais visível a circunstância de Portugal ter aderido às Comunidades Económicas Europeias, onde evidentemente o modelo de sociedade e de Estado que se pressupõe está nos antípodas do modelo que, de algum modo, era almejado por estes preceitos e por aquele princípio socialista-colectivista-marxista.
É evidente que estamos perante um problema técnico-jurídico importante, mas que não nos deve fazer esquecer de que esses problemas são, apesar de tudo, relativamente instrumentais, face a questões bem mais importantes, ainda, de carácter político e filosófico.
É óbvio que podemos escolher, como parece que fez o PS, e não o levamos a mal por isso, uma técnica de dupla revisão instantânea da Constituição, que assente também, do ponto de vista jurídico, em pressupostos largamente discutíveis e discutidos. Poderíamos até pensar que as coisas são irremediáveis, que estávamos encerrados num casulo, que a única solução técnica é semantizar a Constituição e manter todos os preceitos para, de uma maneira hipócrita, não terem na prática qualquer aplicação. Porém, assim desvalorizamos irremediavelmente a Constituição e pomos em perigo o valor fundamental da democracia. Há muito de fundamental e aproveitável neste Estado de direito criado após o 25 de Abril e consagrado na Constituição. Aliás, o mais importante está salvaguardado na lei fundamental, ou seja, o princípio do carácter democrático e pluralista do Estado.
Há, entretanto, uma outra via que, como é conhecido, adoptámos de uma maneira inequívoca e que se consubstancia no entendimento de que, mesmo do
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ponto de vista técnico-jurídico, é possível considerar algumas alíneas do artigo 290.° como preceito caducados - as explicações técnicas podem ser várias - e que, nessas circunstâncias, estas normas podem ver declarada a sua caducidade, não pelo legislador ordinário, não pelos tribunais comuns, mas antes pelo legislador constituinte, e, por consequência, serem retiradas desta disposição. Foi o que fizemos no nosso projecto de revisão constitucional.
Penso que é importante dize-lo com toda a clareza e abertura, porque esta matéria é, infelizmente, uma das que tem registado um divórcio importante entre aquilo que é o sentir e o agir não só do eleitorado quando vota e quando aprecia os actos quotidianos da vida política, mas também dos órgãos do Poder político e, por outro lado, o sentir dos juristas. Estes clamam, numa certa orientação que não sufragamos, que a única via positivista é a da dupla revisão, pressupondo algo que não subscrevemos, ou seja, a identidade entre o poder de revisão e o constituinte. Porém, a verdade é que, na prática, as coisas vão seguindo um caminho diferente e, de uma maneira certamente involuntária, acaba-se por ter uma Constituição nominal que as pessoas não respeitam naquilo que já caducou mas também têm, eventualmente, a tentação de não respeitar noutras zonas bastante mais importantes. Não nos parece, de facto, que essa seja a via mais adequada para termos uma Constituição que desempenhe o papel que lhe cabe de lei fundamental numa democracia pluralista e numa sociedade aberta como vai sendo a pouco e pouco a nossa.
Compreendemos que o PCP esteja naturalmente arreigado àquilo que foi o sonho de 1975 e veja dorido que as coisas tomem este caminho. Já percebemos menos bem que o PS tenha tantas dificuldades em se orientar por um caminho que de uma maneira mais clara conduza aos mesmos resultados. No entanto, não estamos nesta sede para fazer uma discussão de carácter jurídico-constitucional, nem para confrontar teses em matéria de poder constituinte, nomeadamente sobre os limites materiais implícitos e explícitos de revisão da Constituição. Chega-nos que convenhamos naquilo que são os resultados essenciais, sem prescindir, porém, daquilo que é a nossa filosofia política e a nossa orientação jurídico-política fundamental em matéria constitucional, a qual, aliás, enformou todo o nosso projecto de revisão.
Comecei por dizer a VV. Exas. que este artigo reflecte e consubstancia naturalmente a visão que da Constituição e da sua revisão têm os diversos partidos e, por isso mesmo, resume o essencial dos respectivos projectos.
Nestes termos, propusemos um artigo sobre os limites materiais de revisão em que se salvaguarda, urna vez que já se seguiu a técnica de explicitar os limites materiais, aquilo que nos parece verdadeiramente essencial e sem o que esta Constituição e o Estado democrático e pluralista, e a sociedade que lhe subjaz, sairiam desfigurados. Portanto, é aquilo que reputamos verdadeiramente essencial e que deve ser objecto do consenso de todos os portugueses. Foi nesse sentido que redigimos a proposta, tal como ela se apresenta, e que deixa cair, como ramos que já estão caducados ou apodrecidos, aqueles aspectos ligados ao princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção, solos, bem como os recursos naturais e a eliminação dos monopólios e latifúndios, a reforma agrária e a planificação democrática da economia e ainda os aspectos ligados à participação das organizações populares de base no exercício do poder local.
Entretanto, se me permitem, devo dizer que não temos nenhuma sanha em relação às organizações populares de base se elas significarem organizações reais e espontâneas que, de algum modo, sejam descentralizações das freguesias, se e quando existirem. No entanto, sentimos desagrado quando são uma explicitação de um plano de organização de raiz marxista ou constituem uma célula de uma certa democracia de base, proposta num célebre plano apresentado em 1975 em Portugal, até aos órgãos de cúpula numa espécie de Constituição convencional similar a um modelo adoptado em tempos na União Soviética, e que está evidentemente nos antípodas daquilo que pensamos ser adequado para a lei fundamental portuguesa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, já sabia que V. Exa. defendia a tese de que é possível invocar a caducidade de algumas das alíneas do artigo 290.° Isso faz-me muita confusão e mais ainda do que aquela que lhe faz a circunstância de termos tido algumas dificuldades em ir além do que fomos.
Perguntaria o seguinte: se a caducidade se aplica a estes preceitos, por que é que não acontece o mesmo em relação a qualquer outro artigo da Constituição? De facto, este artigo 290.° foi aprovado com os mesmos dois terços que qualquer outro preceito. Repito, pois, a questão: por que vão invocar a mesma caducidade em relação a qualquer outro artigo?
Imagine V. Exa. amanhã um ditador a fazer esta interpretação: "O Dr. Rui Machete, ilustre professor e jurista da Universidade, defendeu que os artigos que não têm uso há um certo tempo caducam. Embora ele não tenha dito quanto tempo era necessário, julgo que três meses é suficiente." Entretanto, o ditador dirá também que não é ele que defende essa tese, mas, sim, um democrata com o prestígio do Prof. Rui Machete, para além de outros ilustres autores. Isto é perigosíssimo!
Julgo, pois, que a forma nas constituições merece algum respeito. Aliás, todo!... Assim, por que é que temos de respeitar todos os artigos da Constituição menos este? Se admitirmos que ele está errado, consideraremos que merece ser corrigido. Porém, por que é que isolamos este preceito de todos os outros, no sentido de estes merecerem todo o respeito e aquele não? Isto é, o artigo 290.° nasceu com defeito e, portanto, isolamo-lo? Que defeito?
A nossa posição é que aquilo que entendemos essencial deve manter-se; o que, ao invés, não entendermos fulcral não deve constar do articulado. No fundo, só o essencial nos vincula, o resto não. Portanto, qual o critério para distinguir o que é essencial do que não é essencial? E qual é o critério formal com o mínimo de rigor para saber que tempo de desuso é preciso para um dado preceito cair em caducidade? Julgo, pois, que essa é uma tese arrojada, que poderia introduzir na interpretação e aplicação da Constituição uma margem de arbítrio para lá de tudo o que é consentível. Perguntaria ainda ao Sr. Presidente o seguinte: quem julga em primeiro lugar da caducidade? Será cada um de nós ad libitum? Qual a autoridade? Qual o tribunal? Qual a pessoa? Qual o político? Quem interpreta a Consti-
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tuição no sentido de saber se um determinado preceito caducou ou não? E ao fim de quanto tempo é que se pode considerar que caducou uma certa norma constitucional? Por que é que todas elas estão sujeitas à regra dos cinco anos e esta deixaria de estar? Ela poderia já ter caducado há uns meses ou anos atrás, pois com certeza que não caducou agora só porque há revisão.
Isto faz-me muita confusão. Aliás, não se julgue que entre a nossa e a vossa proposta há, assim, uma diferença abissal. Daqui a pouco está o Dr. José Magalhães a dizer isso!... Isso não nos perdoa ele, com certeza! De facto, questiono V. Exa. no seguinte: o que é que está na vossa proposta que não está na nossa?
Devo, pois, dizer ao PSD que na vossa proposta não está ínsita a expressão "independência dos tribunais" - e VV. Exas. dirão por que é que a tiraram desse normativo. Será que não é essencial no Estado de direito a independência dos tribunais? Ou consideram-na incluída nos princípios essenciais da democracia e do Estado de direito? É isso, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Está na divisão e equilíbrio dos poderes, Sr. Deputado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Porém, uma coisa é a divisão, outra a autonomia e a independência dos tribunais. De facto, eles podem ser separados e não ser inteiramente independentes. Os juristas começariam a dizer que os tribunais já não são tão independentes como eram, uma vez que a independência deles deixou de ser um princípio constitucional. Mais: será que a expressão "fiscalização da constitucionalidade" lhes faz tanta comichão pelo facto de estar considerada como um princípio? Já sei que VV. Exas. dirão que ela também é um princípio do Estado de direito. Porém, por que é que há-de deixar de constar do artigo 290.°? A formulação "coexistência de sector público com o sector privado" também consta da nossa proposta, mas não da vossa. Contudo, compreendo que VV. Exas. não estejam de acordo connosco, mas esta é a nossa visão da economia. O PS é a favor de uma economia mista com a coexistência de um sector público, cuja dimensão será aquela que for justificada pelo interesse público. Não queremos ficar amarrados a uma dimensão como a hoje existente, que, de algum, modo, estava regulada pelo artigo 83.° Ó PS corrigiu o estatuído no artigo 83.°, mas, depois disso, pensamos que deve existir um sector público com alguma dimensão. De facto, sabemos que ele sempre existirá tal como os pobres nas escrituras. Assim, por que é que VV. Exas. consideram isto tão errado, tão inaceitável e tão pouco essencial? Entretanto, o Sr. Deputado José Magalhães dirá que a formulação proposta pelo PSD para o artigo 290.° e a do PS são a mesma coisa, não existindo, por isso, grande distinção.
Porquê essa vossa sanha contra a nossa formulação? Devo dizer que se tivesse estado na Assembleia Constituinte teria achado excessivo este artigo 290.° Aliás, teria achado errados muitos outros artigos que fomos corrigindo com o tempo. Depois de as coisas cá terem estado, tirá-las tem significado autónomo. Depois os Srs. Deputados dizem: "O que é que quiseram significar quando o retiraram?" E começam a argumentar e a tirar dessa manga coelhos.
Parece-nos que o essencial do expurgo necessário é o que nós fizemos. Por outro lado, a tese da caducidade é perigosa e só com muita inteligência é possível argumentar a seu favor. Respeitamos a vossa filosofia, mas pensamos que, no fundo, a diferença não é tão básica que justifique neste caso a evocação de diferenciais filosóficos.
Quanto às "organizações populares de base" gostaria de dizer o seguinte: na origem desta figura talvez houvesse alguma raiz mental marxista, mas na formulação não há. As organizações de moradores têm por competência assistir às reuniões das autarquias locais sem direito a voto, como tem qualquer cidadão, fazer petições, que é um direito que tem qualquer cidadão, exercer as tarefas que neles deleguem as autarquias locais. Isto é assim tão marxista, é assim tão basista? O problema está no nome. Se elas tivessem logo surgido como nome de "comissões de moradores" ninguém hoje estaria a implicar com estas organizações. Aqui as palavras chave são "popular-populismo", "base-basismo". Elas são organizações de base territorial. Ninguém diz "de base territorial", mas apenas "de base", ponto final. É aqui que nasce o basismo. Sinceramente, isso não merece a nossa indignação. Merece, sim, correcção para futuro. Penso que não podemos partir do princípio de que este artigo da Constituição é o único que merece o nosso desprezo, o nosso não respeito. Desconhecer um determinado princípio que não tem aplicação na prática, como se não existisse, é ir longe de mais e criar um princípio de desrespeito por uma regra constitucional. Portanto, do nosso ponto de vista, mude-se para futuro, mas respeite-se enquanto não se mudar.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Almeida Santos, penso que não se justifica estarmos a fazer uma discussão teórica muito prolongada. Em todo o caso, para mostrar que talvez não seja necessária uma dose de inteligência tão grande, como V. Exa. sugere, para defender a minha tese gostaria de dizer o seguinte: em primeiro lugar, repare V. Exa. que dizer "mas isso é um pouco arbitrário porque quem julga da caducidade, quem aprecia se certos preceitos caducaram e outros não e sobre que tempo [...]" não é muito diferente do problema que se coloca de quem julga se certos preceitos devem ou não mudar. Só que num caso, voluntaristamente, rejeita-se que a indicação ao longo de vários actos eleitorais, rejeita-se que a indicação da prática política pelos órgãos de soberania tenha algum significado e tudo se faz concentrar nas entidades que vão promover a revisão da Constituição. A verdade é que a natureza do poder do órgão de revisão é amplamente discricionária e nessa matéria não vejo que a sua óptica, a tese que defende, ofereça garantias muito significativas. Repare o Sr. Deputado Almeida Santos que tive oportunidade de explicitar que quem tira a ilação acerca da caducidade não é qualquer tribunal, não é qualquer cidadão, não é eventualmente qualquer candidato a ditador, mas é a Assembleia da República no processo de revisão constitucional. Foi por isso mesmo que tive a precaução de o sublinhar! Suponho que algumas das críticas que faz em relação ao risco são idênticas àquelas que existem quando a Assembleia está a exercer poderes constituintes. Provavelmente, foi por isso mesmo que o Sr. Deputado Almeida Santos, ao fazer as suas críticas, não atentou que as observações
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que irá fazer o Sr. Deputado José Magalhães serão no sentido de identificar, assemelhar os dois processos, já que lhes irá atribuir o mesmo grau de discricionariedade, esquecendo que alguma discricionariedade houve quando uma maioria eleita na Assembleia Constituinte impôs, pretensamente ad aeternum, determinadas baias. Poderia ter imposto outras. Colocou aqui 10 ou 12, mas poderia ter posto 20 ou 30 e estaríamos com esse tipo de dificuldades ainda um pouco mais acrescido. Quem julga da suficiência de uma prática contrária para daí concluir ter havido desuso ou a formação de um costume contra constitutionem é a Assembleia Constituinte e só ela. Só que tem um critério vinculativo a que se submeter que resultou do comportamento e da vontade do próprio povo, o titular último da soberania, do poder político.
O Sr. Deputado Almeida Santos pergunta-me também: "Porquê esta sanha contra este artigo e não quanto a outros?" Sr. Deputado Almeida Santos, não há sanha nenhuma contra este artigo. O problema da caducidade aplica-se a muitos outros artigos da Constituição. De resto, tive oportunidade de dizer que isso vinha a propósito dos afloramentos nos preceitos que concretizavam o princípio socialista-marxista. É o caso, por exemplo, da apropriação colectiva dos principais meios de produção, solos e recursos naturais, de diversos preceitos da Constituição relativos à reforma agrária e em matéria de planificação da economia. Ora, esses preceitos também caducam. O problema assume maior gravidade porque há um artigo que se arroga o direito de explicitar quais são os limites materiais da Constituição e vai para além daqueles que normalmente existem numa sociedade pluralista e democrática. Portanto, utilizando essa técnica, procurou garantir aquilo que em determinada conjuntura política considerou as conquistas da revolução. Isso não significa que não haja razão para não considerar outros artigos dentro da mesma óptica. Isto não é um problema de sanha. Nesta matéria de revisão, porém, é este artigo que representa o ponto fundamental. Se este artigo não existisse muitas das questões que temos vindo a tratar assumiriam um cariz diferente. Portanto, não é por minha vontade que ataco o artigo 290.°, mas, sim, pela própria natureza das coisas.
Em todo o caso, há uma outra questão que gostaria de referir: já vimos que na minha tese a discricionariedade não é necessariamente maior. Pelo contrário, ela é, de algum modo, teoricamente menor, na medida em que aqui a assembleia constituinte limita-se a declarar e nos outros casos é ela que livremente escolhe. Mas é sempre, repito, a assembleia constituinte quem escolhe.
Agora aqui agita-se o espantalho do ditador. Se o ditador dominar uma assembleia constituinte, teremos o mesmo tipo de problema. Há coisas que são insolúveis. Se não houver quem defenda a democracia, a sua estabilidade, a sua manutenção, será um problema insolúvel. A democracia tem de viver das pessoas que a animam em cada dia. Há, porém, uma coisa que, do ponto de vista técnico-jurídico e do ponto de vista da teoria do Estado, V. Exa. terá de compreender: existe a dificuldade de explicar como é que os Estados, os sistemas estaduais e os ordenamentos jurídicos subsistem apesar de algumas mutações revolucionárias que, entretanto, ocorrem. Se não for pela via do tão denegrido costume, será difícil explicar o problema da continuidade, apesar da mutação revolucionária. V. Exa. pode negar o costume, pode dizer que não acredita. No fundo, isto é a repetição, ao invés constitucional, de uma matéria que já na altura das codificações do direito civil se abordou exaltando o voluntarismo da lei e que não penso que tenha tido êxito. Essa discussão levar-nos-ia muito longe. Não penso que o costume seja uma fonte proscrita, nem sequer no nível constitucional. Vale a pena meditar no exemplo da Constituição britânica, onde a democracia parlamentar nasceu. Nos países da Europa continental o costume encontra naturalmente maiores limitações e está condicionado pela abundância da lei escrita ou da norma constitucional escrita. Não é fácil formar-se um comportamento contra legem acompanhado da opinio júris da sua necessidade. Mas por vezes acontece. E o caso do princípio da construção de uma sociedade colectivista que foi maioritariamente recusado.
V. Exa. tem razão quanto a um ponto: estamos aqui a fazer não uma discussão da teoria geral do Estado, não uma discussão da teoria geral do direito constitucional ou mesmo uma discussão académica acerca da melhor maneira de interpretar o artigo 290.°, mas, sim, a tentar encontrar consensos que permitam ultrapassar as dificuldades. Interessa mais conseguir obter, pragamaticamente, resultados que permitam ultrapassar as dificuldades de que nos convencermos necessariamente acerca da bondade das teses que defendemos. Por isso não irei impugnar a posição do Partido Socialista, dizendo que, do meu ponto de vista, a tese da dupla revisão constitucional tem tantas ou, senão, maiores fraquezas do que aquela que defendo. Elas, no fundo, acabam por conduzir a resultados similares. Como é natural não vou enveredar por uma discussão teórica, já que isso não os interessa e é descabido neste contexto. Queria apenas dizer o seguinte: há um propósito extremamente sério, porventura não conseguido, de tentar fazer uma explicação, que parece razoável, que entre em linha de conta com um conjunto de factores vários e que não é usual dentro do conjunto dos constitucionalistas que habitualmente escrevem sobre estas matérias. Isso não significa que necessariamente a communis opinio tenha razão. A communis opinio é muito importante do ponto de vista da hermenêutica jurídica, mas nem sempre resolve todos os problemas, nem sempre acerta...
Para mim o que é efectivamente importante é que se consiga ultrapassar dificuldades, que parecem só ter duas soluções alternativas, qualquer delas muito má: uma solução de tipo revolucionária revogando a Constituição, que todos nós excluímos, e uma solução mais simples, mas certamente hipócrita, que é a de semantizar a Constituição e deixá-la esquecida.
VV. Exas. seguiram o caminho da dupla revisão mitigada, ligeiramente tímida. Nós seguimos um outro caminho, que nos parece mais consentâneo com a envergadura dos problemas a enfrentar. Isto não obsta a que possamos, efectivamente, estar de acordo quanto aos resultados práticos. Há uma concordância prática não da interpretação da Constituição, mas, sim, dos resultados da revisão constitucional, o que me parece ser de sublinhar.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, o que lhe falta não é nem a inteligência nem a capacidade de argumentação. O que lhe falta é razão. De resto, estamos de acordo.
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Gostei de o ouvir dizer que não está e causa a hipótese do ditador. V. Exa. disse que é sempre a assembleia constituinte que vai alterar a Constituição, Se o ditador dominar a assembleia constituinte, que fazer?
O perigo da segunda parte da sua tese é que o ditador não precisa de dominar a assembleia constituinte. Se ele dominar a assembleia constituinte não precisa de invocar a caducidade. Ele altera a Constituição como quiser, dentro do ponto de vista de que o pode fazer, sem desrespeito por nenhuma norma. O problema é quando ele não domina a assembleia constituinte e diz: "Não preciso de alterar isso pelos métodos formais da revisão constitucional porque isso caducou. Há duas semanas que já ninguém fala dele, que não se faz uso dele, portanto por mim está caducado." Por outro lado, fico feliz por ver que, de algum modo, corrigiu o seu ponto de vista originário. Tenho aqui presente uma fotocópia do seu brilhante ensaio sobre o artigo, onde diz: "A circunstância de haver um processo expresso de revisão constitucional não exclui só por si que não possa haver um processo implícito de revisão constitucional pela via do costume." Portanto, na altura era mais que a assembleia constituinte. Quer dizer, o problema coloca-se apenas pelo facto de estarmos agora a fazer a revisão. Pela sua tese poderia ter-se posto há um, dois meses, há um, dois anos, etc..
Por outro lado, diz que o costume constitucional tanto pode ser secundum legem - o que aceito - como contra legem. Neste caso o costume poderia revogar a lei sem prazo, sem definição da autoridade, etc.. É isto que tenho por perigoso!
Qual é a vossa interpretação do artigo 290.°? Se fosse o constituinte originário - e eu nunca me esqueço de distinguir o originário do derivado, já que o poder constituinte derivado não é igual ao poder constituinte originário - seria possível instituir hoje a monarquia pela via de uma revisão constitucional? Não penso que isso fosse possível. Não é possível violar a independência nacional, a unidade do Estado, a separação do Estado da Igreja, etc.. O que é que significa para mim este artigo 290.°? É que só se pode fazer a revisão destas matérias consideradas estruturantes e essenciais ao fim de dez anos ou ao fim de duas revisões. Isso não significa que estes pontos sejam eternos. Para mim, uma constituição não pode nem deve ser eterna. A vida muda, portanto a Constituição também tem de mudar. Penso que em relação a estes pontos há aqui uma rigidez acrescida. Estas matérias ou princípios não são como os outros. Os outros podem, s todo o tempo por quatro quintos ou de cinco em cinco anos por dois terços, ser alterados. Estes, se não houver quatro quintos, só ao fim de dez anos podem ser alterados. É um acréscimo de rigidez relativamente a problemas que o legislador constituinte originário considerou mais importantes do que os outros. Não há aqui qualquer hipocrisia. Há apenas uma valorização especial de alguns aspectos fundamentais e estruturantes. O legislador constituinte originário disse: "Esta matéria só pode ser revista após uma segunda reflexão. Primeiro vocês alteram o limite, depois alteram a Constituição." Se houver uma maioria de quatro quintos poderão fazê-lo imediatamente. Se não houver só o poderão fazer ao fim de dez anos. Se aqui estivesse fixada a regra de que a Constituição só seria revisível de dez em dez anos o Sr. Presidente deixava de a respeitar? Claro que não! Então, por que é que a não respeita pela circunstância de em vez de se aplicar ao todo da Constituição se aplicar apenas a 5 % ou 10 % dela, no fundo ao essencial? No fundo, é só isto que está e causa! Se estivesse aqui dez anos para a revisão da Constituição estaríamos aqui a discutir este problema ou o da caducidade ou do costume? Não estaríamos! Nesse caso, entendia-se que eram dez anos para se poder rever a Constituição e ou teríamos uma maioria de quatro quintos ou não a poderíamos fazer.
Defender uma dupla revisão simultânea continua, a meu ver, a ser errado. Mas tem lógica. Revia-se em dois momentos sucessivos ou em dois momentos sucessivos pelos quatro quintos ou, então, dava-se alguma cobertura formal à alteração. Num primeiro momento alterava-se o artigo 290.° e dentro do mesmo processo alterava-se, sem isso, o inalterável. Isso não tem, em meu entender, lógica nenhuma. A Constituição exige que só se pode fazer uma lei de revisão para todas as alterações. Portanto, neste caso haveria, no mínimo, uma violação desse artigo. Suponhamos que se esquecia essa regra formal, que para mim não é tão sagrada como esta. Neste caso, ainda teria alguma cobertura lógica. Assim é que não tem nenhuma!
Não me leve a mal por estar a defender esta tese com muita veemência. Argumentação não lhe faltou, Sr. Presidente. Apenas lhe faltou aquela coisa que é necessária em todas as circunstâncias da vida, que é ter razão.
Pausa.
Se conseguíssemos fazer uma revisão de três em três meses, ao fim de algum tempo o costume teria derrogado a regra de cinco anos e não precisaríamos dela para nada.
O Sr. Presidente: - Então, o Sr. Deputado também não aceita o costume...
(Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras intermédias do orador.)
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a única caducidade que poderia apaixonar a bancada em que me sento seria a do acordo de revisão constitucional celebrado entre o PS e o PSD.
Risos.
O primeiro aspecto a sublinhar, Sr. Presidente, Srs. Deputados, é que este é um aspecto não contemplado no acordo político de revisão constitucional celebrado entre o PS e o PSD.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Já começa a acreditar em nós!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, é um facto objectivo! Verifica-se, analisando o acordo, que nenhuma disposição específica, explícita, existe sobre esta matéria. No entanto, tal como os próprios limites materiais de revisão se limitam a explicitar coisas que fazem parte da fisionomia da Constituição, também o
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acordo político de revisão constitucional entre o PS e o PSD tem implicações em matérias de limites materiais de revisão. E era sobre isso que seria interessante, porventura, ter ouvido sobretudo a bancada do PS, uma vez que a bancada do PSD aqui se declarou para todos os efeitos puramente pragmatista: não lhe interessa nulamente a teoria jurídica, não lhe interessa minimamente a fundamentação, não lhe interessa coisíssima nenhuma. Se atinge resultados por aquela ou outra via não preocupa o PSD: a única coisa que verdadeiramente lhe interessa é o resultado em si mesmo, o meio é inteiramente indiferente.
Só assim se compreende que o Sr. Deputado Rui Machete se tenha dispensado de argumentações mais esforçadas que de alguma forma solidificassem aquilo que era flébil nas teorias que publicamente subscreveu e que já aqui, por mais de uma vez, discutimos, e tenha por último renunciado (coisa que me parece, de resto, precoce e ainda susceptível de alguma revisão) a terçar armas em defesa dos princípios últimos em que o PSD procurou escorar as suas posições. Diga-se que essas posições nesta matéria são simples: o PSD dinamita os limites materiais de revisão e vira a página. Que justifique isso em nome de uma "sociedade pluralista e aberta", de um "Estado democrático tal qual deve ser" (desde que se aceite que seja reduzido de qualquer dimensão económica avançada e de qualquer ideia de transformação social e económica!), é uma questão perfeitamente periférica, secundária, não desempenha nenhum papel importante no dispositivo argumentativo do PSD. Esse dispositivo argumentativo, aliás, resume-se a uma ideia: "que o PS aceite!" Tudo o mais é secundário, o PSD está neste debate na seguinte postura: "aceitamos o que queiram, façam lá isso pelo resultado mais destrutivo." E mais não diz.
O PS, por sua vez, não decifra a famosa incógnita macaense. Refiro-me à incógnita respeitante à revisão constitucional, como é evidente!
Risos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Qual é a incógnita?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pergunta perturbadora!
O Sr. Almeida Santos (PS): - É bom lembrar outra vez que tenho isso fresco, não é incógnita nenhuma.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Lá chegaremos, Sr. Deputado Almeida Santos.
É preciso demonstrar, quando se propõe o que PS propõe, não uma mas duas coisas. Primeiro, que aquilo que se muda do articulado da Constituição é conforme às prescrições e às decorrências do artigo 290.° tal qual ele está gizado; e em segundo lugar que a operação de alteração do próprio artigo 290.° se contém dentro dos limites da possibilidade constitucional de tal revisão. Em relação às duas coisas o PS, por razões de resolução parcimoniosa do debate e de sumária exposição, dispensa-se de considerações mais adiantadas.
O Sr. Almeida Santos (PS): - O Sr. Deputado, e muito bem, a propósito de cada uma destas alíneas, lembrou, quando passámos pelos artigos correspondentes, os limites materiais. E nós dissemos o que pensamos, por que é que entendíamos que não violava os limites de revisão à nova formulação que dávamos ao artigo 290.° Portanto, isso foi discutido na altura, razão por que agora não estive a reeditar toda essa argumentação. Em relação ao proposto para a alínea f), perdemos dias, não horas, a discutir isso. Está discutidíssimo. Por que é que entendemos que o limite foi respeitado? Dissemo-lo com toda a franqueza, segundo uma interpretação actualizante, dissemo-lo, assumimos isso, mas não vamos agora reeditar o que dissemos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Tinha a esperança, Sr. Deputado Almeida Santos, de que fosse cumprida hoje a promessa sempre anunciada de que o PS não deixaria de fazer uma leitura global do conjunto de alterações que anunciou e, mais ainda, que no dia 14 de Outubro até pactuou (o que quer que isso signifique). Julguei que essa promessa não era para meter na gaveta mas para meter no debate. Mas V. Exa. entendeu não adiantar essa leitura global...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Se quiser que voltemos a discutir isso, voltamos. Sabe bem qual é o meu ponto de vista sobre a interpretação da alínea f), quer no que se refere à apropriação colectiva, quer no respeitante à eliminação dos monopólios e latifúndios. Transferimos esta referência à eliminação dos monopólios e latifúndios para as obrigações fundamentais do Estado. Sabe como interpreto o princípio e a eliminação, sabe isso muito bem. Mas se quiser voltar a discuti-lo não vou fugir à discussão, só que não vejo necessidade de tal retorno.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, creio que, tendo sido a promessa feita e não tendo o PS ainda revisto essa promessa (coisa que é sempre possível, não interpretando eu a intervenção de V. Exa. como significando a revisão implícita dessa promessa), teremos de continuar a debater a matéria. Penso mesmo que é para isso que este debate poderá servir, e será essa a sua única utilidade - lançar alguma luz sobre os fundamentos, as leituras e as razões de cada um nesta matéria.
Pela nossa parte não temos obviamente as constituições por eternas, sabemos que nenhuma alteração pode ser feita senão por dois terços e sabemos que os artigos das constituições sobre limites materiais de revisão são apenas aquilo que são: nenhuma constituição sobrevive se não tiver por si forças políticas, sociais num determinado tecido e quadro económico, social e político. Sabemos também que nenhum pelotão de juristas salvará uma constituição que esteja condenada pela própria ordem dos factos, pela própria vontade popular. Veja-se o que sucedeu à Constituição de 1933...
Não entendemos que estas prevenções se apliquem à Constituição da República Portuguesa. Certa direita que sempre se bateu assanhadamente contra a Constituição do Estado de direito democrático português (por rejeitar os seus traços mais avançados) leva, coerente e consequentemente, essa sua rejeição constitucional até ao fim. Pretende ontem como hoje, e amanhã provavelmente como hoje, que a Constituição não seja o que é em diversos aspectos. Rejeita a identidade constitucional, não se identifica com a definição da Constituição tal qual ela é, e tal qual resultou do nosso processo histórico. Não de um consenso mas de uma ruptura e de uma ruptura contra uma ordem parti-
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cularmente violenta que assentava numa determinada realidade económica. A Constituição considerou isto tudo e aquilo que construiu, construiu contra o passado, em nome de um determinado projecto político de futuro.
O PS entende dissociar-se de uma componente fundamental desse projecto, esse é o facto. Quanto ao PSD a sua posição é clara, tornou-se particularmente clara a partir de poucos meses após a aprovação e entrada em vigor da Constituição da República. As teses do PSD hoje não têm absolutamente nada a ver com a posição do PSD na Constituinte. O Sr. Deputado Rui Machete descobriu na sua própria estrada de Damasco muitas coisas que nunca verberou nos tempos da Constituinte e veio a descobrir que os limites materiais de revisão eram uma coisa horrenda...
O Sr. Presidente: - Não estive presente na Constituinte, Sr. Deputado José Magalhães!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Nos tempos da Constituinte!
Veio a descobrir que os limites materiais da revisão são uma coisa absolutamente horrenda.
A génese, a história dos limites materiais de revisão da Constituição da República Portuguesa é claramente reveladora sobre quem apostou e quem se empenhou na edificação e na erecção dos limites materiais de revisão. Nunca serão esquecidas, não o podem, nem podem ser apagadas as intervenções, as reclamações, as exigências de sectores dos quais o PSD fazia parte, no sentido de existirem limites materiais de revisão que impedissem, que tornassem irreversíveis determinados valores eminentes insusceptíveis de serem tangidos por qualquer forma. Essa preocupação histórica, histórica é. Esta é a verdadeira história e a verdadeira crónica dos limites materiais de revisão em Portugal! É lamentável que se converta em elemento horripilante, "fenómeno do Entroncamento" jurídico, elemento de constricção, elemento "limitador e enganador das futuras gerações", esses limites de revisão em 1976 considerados libertadores, emancipadores e garantidores da felicidade de todos. Essa operação terá a ver com o ajuste de contas interno de coerência que a direita portuguesa tem de fazer consigo própria. Mas por mais que procure rescrever o passado e transformar o preto em branco e o azul em verde, etc.....
O Sr. Presidente: - Nessa Perestroika ainda não estamos!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como disse?
O Sr. Presidente: - A admitir que nos incluímos na direita, nessa Perestroika ainda não estamos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, que estranha "russificação" literalista! Que tem essa vossa zurrapa a ver com o conceito de Perestroika? Nada, como é óbvio...
Risos.
Que o PSD deseja que se vá o mais longe possível, também não me sobram dúvidas. Os argumentos são inopinadamente magros. O Sr. Deputado Rui Machete neste debate entra e sai ou com demasiada força ou com demasiada fraqueza, o certo é que falha a manobra.
O Sr. Presidente: - Prefiro a primeira alternativa!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Claro! É que o Sr. Deputado Rui Machete sustenta o que sustenta do ponto de vista dogmático, do ponto de vista teorético em matéria de limites materiais de revisão, então o que sustenta é que este debate é inútil, o que acontece quando se escreve qualquer coisa como "os preceitos do artigo 290.° da Constituição não valem por si isoladamente, mas apenas em conexão com os princípios que garantem e concretizam, não justificando por si mesmos a caducidade do princípio socialista-marxista-colectivista [brrr!], torna inúteis e portanto susceptíveis de serem declaradas como revogadas as alíneas f) e g) do artigo 290.° da Constituição, referentes à apropriação colectiva dos principais meios de produção, solos e recursos naturais e à eliminação dos monopólios e latifúndios, bem como à planificação da economia"? Dito isto, está tudo dito! A discussão sobre os limites materiais de revisão é um mais, quase que diria uma "excrescência". É, apesar de tudo, notável que nas alegações a favor desta tese se sustente, entre outras coisas, que "o costume derrogatório, por ser previsto ou consentido como modo de evolução da própria estrutura constitucional, não poderá ser considerada como uma fraude em .sentido técnico à Constituição" (nota 33 da p. 369 do citado artigo do Sr. Deputado Rui Machete, noutra qualidade).
Eis portanto o fundamento basilar que é ou excessivamente fraco ou excessivamente forte. Quanto a mim é excessivamente fraco, porque, como é óbvio, alteração nenhuma da Constituição pode ser aprovada sem ser por dois terços! E, portanto, o PSD não verá declarada caducidade nenhuma de coisa nenhuma sem o voto concretante e consoante do PS. Isto mesmo acabou, no fim de um longo labirinto teórico, por ser reconhecido pelo Sr. Deputado Rui Machete.
Então vejamos agora como é que o PS relê a Constituição. O PS fez duas coisas. Não se limitou a propor a revisão das cláusulas que estamos agora a apreciar do artigo 290.° Alterou o próprio conteúdo dos articulados protegidos. O PS não fez senão uma tentativa económica, quanto a mim excessivamente económica, de demonstrar que as cláusulas através das quais o PS elimina em dois casos os conteúdos actuais do artigo 290.° respeitam minimamente a regras previstas na própria Constituição. Pode sustentar-se (e isso é que eu gostava de ver debatido e não desespero de o ver) que há uma relação de identidade entre uma cláusula que reza "a coexistência dos sectores público, privado e social da propriedade dos meios de produção" e uma que hoje preceitua "o princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e latifúndios"?! Não há! Há uma eliminação total, com colocação na mesma alínea (por acaso) de conteúdo totalmente distinto.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Quanto a essa identidade, não estamos vinculados a ela. Porque esta substituição é para a próxima revisão. Entendemos que é
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na actual revisão que respeitamos o presente limite. É essa a identidade que nos interessa, não somos responsáveis pela outra. A outra nós assumimos que deixará de ser assim.
Não é a identidade entre isso e aquilo, é a identidade entre o que lá está hoje e aquilo que nós deixamos no texto constitucional. Essa é que o Sr. Deputado pode discutir com inteira legitimidade, porque nós assumimos que o fizemos de acordo com uma interpretação actualizante. Dissemo-lo claramente e assumimo-lo e ninguém nos vai encontrar com complexo de culpa. Penso é que é quase um fenómeno do Entroncamento, para repetir a sua afirmação, que o Sr. Deputado, em 1988, mantenha qua tale a defesa da obrigatoriedade da colectivização de todos os principais meios de produção, quando há catorze anos que não se colectiviza nenhum. Nem há hoje minimamente condições para colectivizar nenhum e cada vez há menos condições para colectivizar seja qual for. Estamos na CEE, etc.. Que o Sr. Deputado se mantenha nessa imutabilidade ao fim destes anos todos e dessa experiência toda, é - repito - um fenómeno mais do Entroncamento do que a nossa interpretação actualizante.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Almeida Santos nitidamente pretende esta tarde iniciar um verdadeiro concurso nacional de fenómenos do Entroncamento jurídico!
Risos.
Mas não contará com a nossa participação...
O Sr. Almeida Santos (PS): - O Sr. Deputado é que invoca sempre essa imagem das abóboras e dos pimentos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - E das beterrabas! Sr. Deputado Almeida Santos, não me reclamo de nenhum copyright em relação a essa matéria - considero que é um "baldio jurídico" pura e simplesmente.
Só que o que nós estávamos a debater era outra coisa, era a Constituição da República. Procurávamos saber se a fixação de limites materiais de revisão tem algum sentido.
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - Permita-me que discorde do argumento utilizado. Se se entende que o alcance basilar da fixação do limite material de revisão é ocupar com letras um espaço de papel que em sede de revisão constitucional pode ser pura e simplesmente substituído por um conteúdo normativamente distinto, para não dizer sem nenhum traço de semelhança com o conteúdo originário, postergando-se nessa própria revisão as implicações da protecção propiciada por esse artigo em relação a outras...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Desculpe, é outra!
O Sr. José Magalhães (PCP): -... normas protegidas por esse limite...
O Sr. Almeida Santos (PS): - É outra. Nós entendemos que devíamos substituir aquele por este. É outro completamente diferente, não têm nada a ver um com o outro. Num caso está a apropriação colectiva de todos os principais meios de produção: não havia aí nenhum principal meio de produção que não estivesse colectivizado. Outro é a coexistência de uma economia mista com três sectores de propriedade. Entendemos que isto é que deve ser o novo limite material. É fundamental e deve estar previsto na Constituição. Não tem nada a ver com o actual limite.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, mas é precisamente esse o problema. V. Exa. limitou-se a enunciar: eu tinha a esperança de uma demonstração. O que pedimos é alguns argumentos demonstrativos da legitimidade constitucional de um tal procedimento. Porque repare: se a Constituição tem enunciados que são vinculativos (nos artigos que V. Exa. citou esparsos pelo próprio texto, designadamente nos artigos 80.°, 82.°, 83.° e outros) e V. Exa. entende que a garantia decorrente da cláusula prevista na alínea f) do artigo 290.° se traduz na autorização de fazer aquilo que o PS propõe em relação a esses normativos, e, mais ainda, que o artigo 290.° é susceptível ele próprio de ser substituído, de ser revisto, em termos de substituir a alínea f) por uma, que V. Exa. confessa, para todos efeitos, que não tem senão uma remota semelhança com o artigo actual, que não tem nada a ver com a identidade do normativo actual, e, mais ainda, que só por mera casualidade é que V. Exa. não colocou esse normativo na alínea b) [só por uma questão de comodidade e de economia, tendo-a mantido na alínea f)], então a boa questão que se coloca é a de saber qual é o sentido dos limites materiais de revisão. Se é que, nessa óptica, têm algum sentido...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, é só esse. Entendemos que o limite material aqui previsto não deve ser mantido como limite material para a próxima revisão. Deixou de ter para nós o significado estruturante que teve para os constituintes de 1976. Admito que na altura tenha havido uma grande dose de sinceridade na aprovação deste artigo, já que todos estiveram de acordo. Muito me impressiona, mas estiveram todos de acordo sobre isso.
Todos votaram, espero que sem reserva mental. O que entendo é que não faz sentido, num país da CEE, o princípio da obrigatoriedade da apropriação colectiva. Não faz sentido hoje.
O Sr. Presidente:- É a tese da dupla revisão, Sr. Deputado. V. Exa. conhece-a, por que é que está a insistir nisso?!
Vozes.
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Este é o primeiro aspecto em relação ao qual o PS tem realmente esse dever de explicação. Por todas as razões e por mais uma. Quanto a mim a maior razão está no próprio conteúdo e nas próprias implicações nesta própria revisão constitucional, mas tem seguramente o dever de fazer uma fundamentação pelo precedente que abre.
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12 DE DEZEMBRO DE 1988 1945
Todas as interrogações que o Sr. Deputado Almeida Santos fez a propósito do projecto de revisão constitucional do PSD podem ser feitas a propósito do projecto de revisão constitucional do PS!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Um dever de fundamentação, igual ao vosso, de fundamentar por que é que ao fim de catorze anos, sem nenhuma apropriação colectiva de nenhum principal meio de produção, com Portugal na CEE, com uma economia de mercado, V. Exa. pensa que deve cá continuar este princípio estruturante. É a mesma e também lhe peço uma demonstração. Demonstre-me porquê! A mesma pergunta feita com o mesmo à vontade e a mesma sinceridade. Demonstre-me, se é capaz, que este princípio estruturante tem actualidade hoje e deve manter-se na Constituição como obrigação de colectivizar todos os principais meios de produção quaisquer que sejam. Se for capaz de justificar isto, justifico o outro.
O Sr. Presidente: - É que a estrutura constitucional mudou, mas isso não tem importância nenhuma! A estrutura constitucional, a realidade da Constituição material, mas isso não tem importância nenhuma, é evidente!
Vozes.
O Sr. Presidente: - Isto é um aparte para ajudar o Sr. Deputado José Magalhães a desenvolver o seu raciocínio!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, apenas tinha desenvolvido o primeiro patamar. Simplesmente a responsabilidade da resposta não é minha mas, sim, de quem tem o ónus de demonstração, neste caso do PS.
No caso da alínea y), torna-se necessário justificar a eliminação pura e simples, tal como na alínea f)...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Eu justifiquei. Disse que este texto nunca teve dignidade para figurar na Constituição, e se alguma vez porventura a teve deixou de tê-la ao fim de doze anos. Que eu saiba não há, nem houve nenhuma organização de moradores que desempenhasse papel relevante. Portanto, merece isto figurar entre os valores estruturantes da Constituição, quando nunca o mereceu? Hoje não merece, com certeza. É necessário justificar isto ainda mais?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O segundo aspecto é o que decorre da adesão do PS a algumas das teorias, ou pelo menos a concepções próximas daquelas que se julgaria que o PS criticava ao ouvir a polémica acesa entre os Srs. Deputados Almeida Santos e Rui Machete no início deste debate.
As rajadas de interrogações formuladas pelo Sr. Deputado Almeida Santos face à abstrusa tese da caducidade são aplicáveis ao próprio Sr. Deputado do PS face à seguinte tese que lhe ouvi: "O quê? Catorze anos depopis? Na CEE, com Bruxelas a dizer bom dia Portugal? O quê? OPVs? Isso é uma aberração, é um ornitorrinco! Não faz sentido nenhum! A apropriação dos principais meios de produção e solos? Mas isso é uma coisa totalmente disparatada, não faz sentido nenhum! Como é que foi possível que se tivesse feito uma coisa dessas? Se eu estivesse na Constituinte isto nunca teria acontecido. Arre! Não pode ser, foi um equívoco!" Dizer isto transforma os últimos catorze anos da vida política portuguesa verdadeiramente num equívoco monstruoso. Estivera alguém "lúcido" na Constituinte...
O Sr. Almeida Santos (PS): - O Sr. Deputado está a equiparar factos positivos a omissões. De um lado está a evocação do desuso, do outro lado o Sr. Deputado está a evocar factos que respeitam à introdução no discurso político do seu partido... Já o ouvi respeitar a CEE e o facto de lá estarmos. Isso é um facto novo, existe. Outra coisa é uma omissão. O Sr. Deputado não compare uma omissão a um facto.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, o problema é que, a certa altura, nesse balde comum de argumentação encontramos juntos o PS e o PSD na constatação de várias coisas. Isso é que me parece sobremaneira preocupante. Parece-me pouco importante saber se se teoriza a destruição invocando um costume contra constitutionem. A isso o Sr. Deputado Almeida Santos diz: "Costume contra constitutionem! De maneira nenhuma! Isso nunca! No Código Civil sim, mas na Constituição jamais. Terão em nós ferozes opositores do costume contra constitutionem." "Só que", acrescenta, "aceitamos em relação à alínea j) do artigo 290.° a posição do não, não pode ser. Relativamente à alínea f) do mesmo artigo, aceitamos também a posição do não, de maneira nenhuma, em nome do futuro de Portugal e da CEE". E chegam assim ao melhor resultado!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas o Sr. Deputado defende que, mudando a vida todos os dias, deva a Constituição, pelo menos no limite do artigo 290.°, permanecer imutável qua tale? Admite isso?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, não confunda o que afirmamos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Então vê, Sr. Deputado! Se a vida muda, como se sabe, as constituições também têm que mudar. Mudam mais depressa ou mais devagar, mas têm que mudar.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em primeiro lugar, Sr. Deputado, o artigo não proíbe a revisão de artigos, desde logo os que não tenham a ver com o seu conteúdo explicitado. Por outro lado, não proíbe a própria revisão de artigos que tenham a ver com os conteúdos que explicita. Também se sabe que tem que haver algum limite para essa susceptibilidade de revisão...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Comecei por dizer isso!
O Sr. José Magalhães (PCP): -... sob pena de não haver limite nenhum, e logo não haver limites materiais de revisão nem garantia da Constituição.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Há sempre!
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O Sr. José Magalhães (PCP): - É a busca desse limite que é suposto que seja feita e acatada. É isso que me preocupa, e de resto com isso concluiria esta primeira reflexão.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Coitadinhas das constituições que não têm nenhum artigo correspondente ao artigo 290.°! Nessa altura não valeriam nada.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Coitadas das constituições que não tenham por si uma maioria que as defenda!
O Sr. Presidente: - Coitadinha da Constituição britânica que não vale nada! Não tem limites materiais, e é flexível!
O Sr. Almeida Santos (PS): - A Constituição britânica tem mais do que os nossos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, a pergunta à qual o PS respondeu, et pour cause, (além daquelas que enunciei atrás com a esperança de receber uma resposta), é esta: qual é a consequência suprema da operação tal qual ela está ensejada? Desde logo, o PS não responde ao argumento do precedente que assim abre. De facto, a chave argumentativa, para além de ter consequências e semelhanças, que pessoalmente me parecem indesejabilíssimas, com a utilizada pelo PSD, tem o impacte de um precedente. Era sobre este último aspecto que gostaria de ouvir os Srs. Deputados do PS. Se se aplica isto às alíneas f) e j), por que não aplicá-lo às outras alíneas?
O tal ditador de que falava o Sr. Deputado Almeida Santos, o ditador democrático, naturalmente que consiga, por exemplo, reduzir o número de deputados da Assembleia da República e facilitar assim as regras acerca da revisão constitucional - sabe-se que com menos deputados é mais fácil obter dois terços - que adite a isto alguns pós...
O Sr. António Vitorino (PS): - Dois terços de deputados em efectividade de funções!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como se sabe, 230 deputados em efectividade de funções são em menor número, apesar de tudo, do que 250.
O Sr. Almeida Santos (PS): - O número de deputados não tem nada a ver com o princípio da representação proporcional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pois não Sr. Deputado, pode haver representação proporcional com mais ou menos deputados, isso é evidente! Mas há um limite a partir do qual deixa de haver representação proporcional!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Claro que pode!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Só por absurdo argumentativo!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não há nada que impeça hoje, exceptuando o voto contrário do PS, que a Assembleia da República passe a ter 100 deputados. No meu entender isso seria constitucionalíssimo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, não me surpreende nada que V. Exa. entenda isso. O senhor entende o que entende em relação à alínea f), por que é que não o entenderia relativamente a outras alíneas? Aliás, está provado aceleradamente que V. Exa. entende isso em relação a praticamente tudo, e é isso que nos inquieta profundamente.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Faço a mesma proposta de há pouco. Demonstre que é inconstitucional a fixação hoje, pelo legislador constituinte, do número de 100 deputados. Explique-me onde está a inconstitucionalidade. Isso pode não se concretizar apenas porque o PS ou o PSD não estão de acordo, ou porque o PCP não está de acordo, visto que também faz dois terços juntamente com o PSD. De modo que, desde que haja um acordo de dois terços dos deputados para reduzir para 100 o seu número, onde é que está a inconstitucionalidade?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, se V. Exa. entende que é possível em Portugal, nas condições portuguesas, uma representação digna da noção de proporcionalidade que não se aproxime obscenamente de um maioritarismo mal assumido, reduzindo o número de deputados para 100, abro a boca de espanto!
O Sr. Presidente: - Houve aí um lapso matemático!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Isso é outra coisa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Que se some a isso a multiplicação ou a alteração da lei eleitoral, e que se mova nesses caminhos alguém tranquilo é de estranhar!
O Sr. Almeida Santos (PS): - O número de deputados passa a limite material de revisão? É fácil!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, a representação proporcional já consiste num limite material de revisão constitucional. A não ser que o PS interprete isso como tendo um significado absolutamente ínfimo, ténue, nulo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, é uma questão de fazer contas. Essas contas estão feitas abundantemente até no seu partido. Eu julgava que isso tinha algum significado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Uma coisa é dizer-se que politicamente esse número é o que melhor serve a democracia. Digo-lhe já que não é assim, e por isso não estivemos de acordo. Outra coisa é vermos onde é que está o obstáculo formal para isso se concretizar, e que nós hoje, se quiséssemos, obviamente com um acordo de dois terços dos deputados, reduziríamos para 100 o número de lugares no Parlamento.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado entende que o artigo 290.°, na parte que respeita ao sistema dá representação proporcional, não tem a mínima implicação nessa esfera?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas não relativamente ao número 100, desculpe que lhe diga. Poderia tê-la em relação ao número 3, ou 4, ou 5 ou 10, mas não ao número 100. Não há nada, nenhuma garantia constitucional ligada, por exemplo, ao número 200, ou aos números 150 ou 140. Evidentemente que considero o número 100 politicamente errado. No entanto, ele não é formalmente inconstitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Almeida Santos apenas acaba de fazer acrescer o conjunto de preocupações que temos em relação à atitude do PS quanto a esta matéria!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não faço, Sr. Deputado, ainda estamos na teoria. Não importa qual é o meu voto, mas, como o Sr. Deputado sabe, o PS não foi além de uma redução para 230 do número de deputados. Portanto, como o Sr. Deputado pode verificar, não concordo com o número 100, nem com 150, nem 200, nem com 225. Esse é um problema. Outro e saber se existiria um limite material para que nós consignássemos o número 100. Não há nenhum.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Concluiria a minha intervenção formulando uma pergunta. Será que além destas considerações o Sr. Deputado Almeida Santos, ou o Sr. Deputado António Vitorino, ou alguém do PS está disponível para decifrar a famosa incógnita? O Sr. Deputado disse em determinado momento isto: "Onde o constituinte originário quis que a Constituição fosse rígida não é em princípio lícito que tudo se passe como se o tivesse querido flexível." Pelos vistos, V. Exa. faz da noção de flexibilidade uma interpretação perfeitamente elástica. Uma elasticidade infinita!
O Sr. Presidente: - Uma noção flexível!
O Sr. Almeida Santos (PS): - O Sr. Deputado, que tem uma memória tão boa, esquece-se por vezes de afirmações que fiz há menos de dez minutos. O que eu disse é que o que está aqui tem uma rigidez de dez anos e o resto uma rigidez de cinco. É só isso. São graus de rigidez diferentes. O legislador constituinte originário quis que este texto tivesse uma rigidez de dez anos, ou de menos tempo caso haja quatro quintos. O resto da Constituição tem uma rigidez de cinco anos. Referi isto há cerca de um quarto de hora. A sua memória é boa, e, portanto, é uma questão de só não querer esquecer aquilo que lhe convém.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado, apenas gostaria de não esquecer aquilo que não convém neste momento ao Sr. Deputado Almeida Santos. O que não convém, e passo a citar, e o seguinte: "Mas em casos extremos [...]" (pelos vistos, já não se trata de casos extremos, são estes dez em dez anos, é uma questão de decénio, de decénio a decénio a realidade se muda e logo a Constituição se deve mudar). De qualquer modo, retomemos a afirmação original: "Mas em casos extremos, ou o respeito pelo limite ou o risco de uma revolução, por exemplo, seria estúpido deixar que se mobilize um batalhão de soldados quando basta a mobilização de um pelotão de juristas."
Risos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Outra vez?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, é que é esta a questão essencial. V. Exa. ainda não esclareceu o que é que neste momento, nomeadamente o pelotão de soldados, o batalhão de soldados, o risco de revolução ou o respeito pelo limite, leva o PS a fazer esta mutação fundamental.
O Sr. Almeida Santos (PS): - É óbvio que me reporto a uma iminência de ruptura constitucional. O Sr. Deputado sabe isso tão bem como o aluno menos qualificado do 1.° ano de Direito. Sabe isso e é inteligente demais para o saber por excesso. Estou nessa intervenção a referir-me a um eventual caso de ruptura constitucional. Evidentemente que perante a iminência de uma ruptura constitucional é preferível um batalhão de juristas a um batalhão de soldados. Claro que sim. Nessa hipótese extrema tem razão o Sr. Deputado. No entanto, não estamos nessa hipótese extrema. Estamos em normalidade constitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Então V. Exa. entende que esta solução proposta pelo PS é compatível com uma situação de normalidade constitucional? Entende que ela é desejável e que os caminhos que escancara são compatíveis com uma normalidade constitucional?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, estamos a exercer um poder legítimo e normal de revisão de uma constituição dentro das regras que ela implica. Tudo normal. Não precisamos cá do pelotão de soldados para nada, basta o de juristas. É o que nós estamos a ser.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Certamente, Sr. Deputado, com tal pelotão de juristas será desnecessário um pelotão de soldados!
O Sr. Almeida Santos (PS): - O Sr. Deputado conhece as contingências das imagens literárias, e para a imagem existir tinham que os dois ser pelotões. Não poderia um ser e o outro não o ser. Não poderia um ser pelotão e o outro ser companhia.
Risos.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, devo dizer que pelo menos uma conclusão se deve tirar desde já deste início de discussão. É que nós temos de avisar os nossos amigos britânicos que correm um fortíssimo risco de aparecer um ditador qualquer, e, como eles não têm um artigo 290.° nem têm essas prevenções quanto às normas costumeiras, ele dar-lhes-á cabo da democracia. Parece-me que cautelarmente temos esse dever de solidariedade para com um país da CEE, devemos avisá-los disso.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Não temos, Sua Majestade!
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Gostaria de fazer uma intervenção rápida, baseada em dois pressupostos. Em primeiro lugar, relativamente àquele convite que o Sr. Deputado José Magalhães nos endereçou sobre o significado político do debate do artigo 290.°, tantas vezes prometido e adiado, dir-lhe-ia que ele está prometido e garantido - não vamos meter essa promessa na gaveta. Mas, como estamos neste momento apenas na primeira leitura, seria prematuro gastar cartuchos neste debate e neste momento. Nós saberemos aguardar com uma grande paciência que o Sr. Deputado José Magalhães formule as considerações que acabou de fazer em relação ao projecto do PS no que se refere ao resultado global da revisão da Constituição, e sobre o juízo que irá fazer da conformidade à Constituição da revisão no seu conjunto; e não apenas face aos projectos iniciais.
Assim, pensamos que o debate em causa terá melhor ocasião de ser travado nesse momento final, porque nessa altura os juízos a fazer serão mais responsabilizantes e mais definitivos do que aqueles que forem feitos neste momento.
A segunda observação é a de que o Sr. Deputado José Magalhães sabe perfeitamente que o projecto do PS adopta a tese da dupla revisão, e, como disse o Sr. Deputado Almeida Santos, a par e passo fomos invocando o critério a aplicar a cada um dos artigos que alterámos.
O que gostaria de ver esclarecido pela parte do Sr. Deputado José Magalhães - e não vi isso totalmente na sua intervenção e é interessante e revelador que o não tenha feito - é o facto de que, tendo o Sr. Deputado José Magalhães acusado o Sr. Presidente de fazer uma intervenção pragmática e fora do seu contexto e implicações filosóficas e jurídicas, o Sr. Deputado também não nos tenha trazido uma posição clara sobre o ponto de vista jurídico acerca do significado dos limites materiais para o PCP.
Penso que a tese do Sr. Presidente Rui Machete é aquilo que já uma vez tive ocasião de chamar o "triplo salto em frente", ou seja, o costume como fonte de direito constitucional, o costume contra constitutionem como fonte de direito constitucional e um costume derrogatório de alguns limites materiais - não todos -, sem que se percebesse qual era o critério onde se punha a fasquia entre os caducos e os não caducos.
De qualquer modo, reconheço que em termos de resultados práticos a questão não é relevante. Reconheço que o debate sobre a tese do Sr. Deputado Rui Machete nem sequer tem neste momento grande incidência prática.
Já quanto ao Sr. Deputado José Magalhães, devo dizer-lhe que presumo que fez a intervenção que fez partindo do princípio da defesa da tese da relevância jurídica absoluta dos limites materiais. É precisamente esse aspecto que à cabeça gostaria de ver explicitado, porque este é um ponto importante, e é esse exactamente o ponto que faz passar o acusador à situação de acusado, e vice-versa.
Que o Sr. Deputado José Magalhães não vista apenas as vestes alvas do Catão, mas também tenha que vestir algumas vestes mais andrajosas mas ainda decentes, que são aquelas com que o Sr. Deputado, em regra geral, cobre a nudez do projecto do Partido Socialista.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Socialista?
O Sr. António Vitorino (PS): - Sim, socialista, A nudez do nosso próprio projecto. Temos sempre umas posições que para o PCP são algo miseráveis...
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado está a ver a completa incapacidade do PSD de perceber essa qualificação?
O Sr. António Vitorino (PS): - É que se calhar foi demasiado esfíngico.
O Sr. José Magalhães (PCP): -- De tal forma é apetecível essa nudez.
O Sr. António Vitorino (PS): - Portanto, a primeira questão já está explicitada. Em nome da teoria da relevância absoluta dos limites de que o Sr. Deputado José Magalhães fala . ..
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, digo-lhe já que não, e um "não" com três pontos de exclamação. Procurei sinalizar isso durante a minha intervenção, pelos vistos sem êxito.
O Sr. António Vitorino (PS): - Devo confessar que isso não ficou totalmente claro. Mas decerto vai agora em seguida esclarecê-lo melhor.
Segunda questão: o Sr. Deputado José Magalhães coloca-nos o problema da revisibilidade do artigo 290.° e dos limites dessa revisibilidade. No entanto, ao colocá-lo não deixou claro qual é o seu posicionamento sobre essa mesma questão. Será que o artigo 290.° só é revisível, na óptica do Sr. Deputado, mediante uma operação ampliativa e nunca redutora? Por outras palavras, o legislador constituinte derivado só poderia acrescentar novos limites ao texto mas nunca poderia retirar nenhum dos limites já hoje contidos nele? É essa a concepção do Sr. Deputado José Magalhães? Seria bom explicitá-lo.
Por outro lado, há uma terceira questão quanto ao significado do artigo 290.° Neste caso o Sr. Deputado não nos deixou na dúvida mas contradisse-se. Esta questão prende-se com o facto de saber o que é que o artigo 290.° protege, se protege princípios ou se protege normas. O Sr. Deputado José Magalhães, em resposta ao Sr. Deputado Almeida Santos, diz: "não proíbe a revisão de artigos que o artigo 290.° protege". Portanto, pareceu-me que estava a acolher a tese de que só protegia princípios e não protegia as normas propriamente ditas. Mas, como a propósito do artigo 83.° o Sr. Deputado José Magalhães disse "postergando-se normas protegidas", aqui já parece que defende a tese de que são as normas qua tale que estão protegidas e não apenas os princípios referentes às normas. Daí que esta me parecesse ser a terceira questão
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que o Sr. Deputado José Magalhães deveria esclarecer para nós próprios sabermos em que terreno de debate é que nos estamos a colocar.
Um último apontamento refere-se ao problema da garantia da identidade da Constituição. É evidente que o problema que colocamos não é de relação de identidade entre os actuais limites materiais do artigo 290.° e aqueles que nós colocamos para substituir os limites materiais actuais. Não é aí que se coloca a questão da identidade, porque se se tratasse apenas de dizer o que já está lá expresso de outra maneira não fazia sentido alterar o artigo 290.° da Constituição. O problema que o Sr. Deputado José Magalhães quer colocar, penso eu, é o problema da relação da identidade da própria Constituição no seu conjunto, ou seja, em que medida é que a alteração do artigo 290.° proposta pelo Partido Socialista altera ou não a identidade da Constituição.
De facto, é sobre esse aspecto que nos vamos ter que entender, sobre o que é essa identidade da Constituição. No plano político sabemos que os limites explícitos, que são os limites constantes do artigo 290.°, são a manifestação assumida pelo legislador constituinte de uma certa forma, de compromisso do ordenamento constitucional com determinados pressupostos de ordem política e de ordem social que o legislador constituinte considerou fundamentais no plano da legitimidade para a sobrevivência do próprio texto constitucional. Isto é claro. O artigo 290.° acolhe pressupostos ideológicos e valorativos nos quais se funda o sistema político e nos quais vamos encontrar as bases da legalidade constitucional, a qual, ao ser observada, é o mais importante instrumento de legitimação do exercício do poder constituído. O que é que se exige pois à revisão da Constituição? Exige-se que seja solidária com o fundamento político e filosófico do texto originário da Constituição. A não ser assim, estaríamos, no mínimo, perante uma situação de transição constitucional, de transição de uma norma básica para outra norma - e cito Alf Ross, neste ponto, embora não goste muito de fazer citações: "a transição de uma norma básica para outra, de um sistema para outro, não pode resultar de um acto de criação, no sentido de criação do Direito dentro do sistema mas tem de ser um acto extra-sistémico que conduz à fundação de um novo sistema que substitui o anterior". Ora, tendo em linha de conta este quadro de análise (que é totalmente insuspeito face ao posicionamento do PS, pois nem o Alf Ross, que mereceu os "Muito bem" do Dr. Machete, é suspeito de ser um perigoso socialista, nem, naturalmente, as frases que citei, retiradas da "Constituição Anotada" dos Drs. Vital Moreira e Gomes Canotilho, são suspeitas de ter qualquer acto de adesão ao PS ou ao projecto de revisão constitucional do PS), o que está aqui em causa - e se alguém tem algum ónus neste debate é o Sr. Deputado José Magalhães - é dizer em que é que as alterações introduzidas pelo PS ao artigo 290.° modificam a identidade da Constituição, em termos que impliquem uma ruptura com os fundamentos políticos e filosóficos da Constituição, em termos susceptíveis de pôr em causa a legitimação da operação da revisão constitucional. A isto respondemos pela nossa parte, inequivocamente, que não há subversão da identidade da Constituição e que o facto de alguns dos limites materiais por nós substituídos deixarem de constar dos limites materiais, continuando porém a ser observados pelo texto da Constituição, significa que a esses princípios não conferimos uma valia protegida em termos da dignidade dos limites materiais - a tal valia dos dez anos de que falava o Sr. Deputado Almeida Santos - mas, sim, que são princípios que se mantêm na Constituição, e que consagram instrumentos de actuação susceptíveis de serem accionados independentemente de constarem ou não do artigo 290.° da Constituição.
E se me perguntar a mim - pessoalmente, sublinho - qual o significado desta operação, responder-lhe-ei que, para mim, significa, por exemplo, o seguinte: a eliminação do limite das organizações populares de base e a sua transformação em comissões de moradores poderá daqui a cinco anos, permitir a redução do excesso com que a Constituição se refere às referidas organizações - em meu entender pessoal, sublinho. Quanto aos outros dois aspectos que o PS elimina, ou seja, a questão dos monopólios e dos latifúndios e a questão da apropriação colectiva e do sistema de planeamento, em meu entender, o facto de serem retirados do artigo 290.° mas mantidos no texto da Constituição não implica nem impõe que em próxima revisão eles sejam, pura e simplesmente, extirpados de todo do texto da Constituição.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pudera!
O Sr. António Vitorino (PS): - Não implica, não impõe e creio que não é desejável, em nome da pluralização do programa económico da Constituição. Mas aí o Sr. Deputado José Magalhães, não pode admitir só essa parte das minhas conclusões tem de admitir igualmente a outra, isto é, o deixar-se na livre disponibilidade do poder constituído a utilização, ou não, dos instrumentos de concretização do programa político que foi legitimado pelo sufrágio directo e universal e por isso tem que recalibrar o tem das suas críticas. A faculdade da apropriação dos principais meios de produção continua a constar da Constituição e um governo do PCP, legitimado pelo sufrágio popular, poderá continuar a apropriar os principais meios de produção, ainda que tal não conste do artigo 290.°, como limite material do poder de revisão.
Concluindo: em meu entender, isto significa que a posição do PS é clara sobre esta matéria, e, para que o diálogo fosse frutuoso, gostaria que o Sr. Deputado José Magalhães clarificasse a sua posição sobre aquelas três questões que coloquei, na medida em que sem elas não podemos saber bem mais as regras deste debate que estamos a travar sobre o artigo 290.°
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, recomeçaremos os nossos trabalhos amanhã, pelas 15 horas e 30 minutos.
Está encerrada a reunião.
Eram 19 horas e 35 minutos.
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Reunião do dia 8 de Novembro de 1988
Relação das presenças dos Srs. Deputados:
Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete (PS).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
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José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva (PSD).
Pedro Manuel da Cruz Roseta (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
ANEXO
Proposta de regulamentação da segunda leitura e da votação a fazer na CERC
Com vista a evitar a repetição dos argumentos já produzidos e da discussão longamente realizada durante a primeira leitura dos diversos projectos de revisão constitucional, proponho:
1.° Que, para cada reunião da CERC na segunda leitura, seja fixada, o mais tardar na sessão anterior, uma agenda da qual constem os projectos e propostas a serem discutidos e votados,
sempre que possível referenciados aos artigos da redacção actual da Constituição a que dizem respeito;
2.° Que, para os efeitos do número anterior, as propostas de alteração que nesta segunda leitura os deputados membros da Comissão queiram apresentar sejam presentes até ao fim da sessão anterior àquela em que serão discutidas;
3.° Que na apreciação dos projectos e propostas na segunda leitura sejam, em princípio, apenas discutidas as propostas de alteração apresentadas após a primeira leitura e os restantes artigos dos projectos que ainda não foram objecto de discussão;
4.° Seja fixado para cada reunião o tempo máximo de discussão a atribuir a cada artigo objecto de alteração, repartindo igualmente por todos os grupos parlamentares e pelos deputados independentes que tiverem apresentado propostas o respectivo tempo de debate;
5.° Que, finda a votação de todos os projectos e propostas de alteração, se faça uma segunda votação que fixará o sentido das deliberações finais da Comissão nesta fase final dos trabalhos e com base em cujos resultados se elaborará o relatório a apresentar a Plenário.
Lisboa, 8 de Novembro de 1988. - Rui Chancerelle de Machete.