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Sexta-feira, 13 de Setembro de 1996 II Série - RC - Número 22

VII LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1996-1997)

IV REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

Reunião de 12 de Setembro de 1996

S U M Á R I O


O Sr. Presidente (Vital Moreira) deu início à reunião às 15 horas e 30 minutos.
Procedeu-se à audição dos autores de petições que integram propostas ou sugestões de revisão constitucional: Dr. João Nabais (Associação Cívica Política XXI); Prof. Dr. João Joanaz de Melo e Dr. José Cunhal Sendim (Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente - GEOTA); Dr. Luís Costa (Confederação Portuguesa do Ensino não Estatal); Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Associação Portuguesa de Mulheres Juristas); Joaquim Resende Nunes da Silva; Manuel Jorge Caramelo; Dr. João Armando Soares Pereira de Aragão e Rio; Dr. Isaías Araújo de Sousa; Dr. Henrique Medina Carreira; Dr. José Maria de Jesus Martins; José Manuel Ferreira da Silva Pereira; José de Sousa Esteves; Hilário Pereira de Carvalho; Armando da Silva Saturnino Monteiro e José Gerardo Barbosa Pereira.
Durante o debate, usaram da palavra, a diverso título, além do Sr. Presidente (Vital Moreira), os Srs. Deputados Francisco José Martins e Miguel Macedo (PSD), Luís Sá (PCP), José Magalhães e Medeiros Ferreira (PS), Odete Santos (PCP), Isabel Castro (Os Verdes), Cláudio Monteiro e Alberto Martins (PS), Barbosa de Melo (PSD), Elisa Damião (PS), José Gama e Luís Marques Guedes (PSD), Osvaldo Castro (PS) e Pedro Passos Coelho (PSD).
O Sr. Presidente encerrou a reunião eram 21 horas.

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O Sr. Presidente (Vital Moreira): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 15 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados, Caros Convidados, esta audição pública foi decidida para dar aos autores de petições, com sugestões mais ou menos amplas em matéria de revisão constitucional, a possibilidade de as expor e justificar e, se for caso disso, de defender as suas propostas. A Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, a que presido, pôs o maior empenho na realização desta reunião. Alguns dos autores não puderam vir - dois ou três, por impossibilidade, como é o caso do Sr. Prof. Jorge Miranda, que está ausente do País, mas a quem a Comissão já garantiu uma reunião específica.
Como vêem pela folha que vos foi distribuída, foram apresentadas 17 petições à Assembleia da República, nesta matéria. O esquema que adoptei para esta reunião é o seguinte: os peticionários foram ordenados em duas categorias, em primeiro lugar, as organizações e as associações e, em segundo lugar, os peticionários individuais. Dentro de cada grupo, estão ordenados por ordem cronológica de apresentação dos respectivos projectos, sendo a cada um atribuído um tempo inicial para a apresentação das suas petições, cujo critério é o âmbito e a extensão delas. Chamarei, por ordem, os autores das petições. No caso das organizações, quem tem aqui o primeiro nome indicado para as representar virá aqui, sentar-se-á à minha direita e terá o tempo que aí está indicado para apresentar a sua petição.
Seguir-se-á um período aberto a perguntas, dúvidas ou comentários dos membros da Comissão ou, se for caso disso, dos outros peticionários, e, no caso de haver perguntas ou comentários, arbitrarei um tempo suplementar aos autores para poderem comentar ou responder, tempo que obviamente não poderá exceder o tempo inicial e que poderá ser menor, se as perguntas obviamente forem sumárias ou em pequeno número.
Nestes termos, chamo para a primeira apresentação a Associação Cívica Política XXI, na pessoa do Dr. João Nabais, a quem peço que se dirija a esta mesa e se sente à minha direita.
Gostaria apenas de acrescentar uma nota. Todas as petições foram distribuídas em volumes e estão coligidas neste volume, de que os membros da Comissão têm conhecimento. Ousaria sugerir aos autores de petições que, mais do que dar conta das suas próprias propostas, que são conhecidas da Comissão, se preocupassem sobretudo em justificar a filosofia que lhes presidiu e em seleccionar os princípios fundamentais a que elas obedecem.
Sr. Dr. João Nabais, bem-vindo. Tem a palavra, por 15 minutos, para a apresentação.

O Sr. Dr. João Nabais (Associação Cívica Política XXI): - Muito obrigado, Sr. Presidente.
Permita-me que lhe apresente os meus cumprimentos, assim como os das pessoas que comigo subscreveram este projecto, todos membros da Associação Cívica Política XXI, e que naturalmente enderece também os nossos cumprimentos aos Srs. Deputados aqui presentes e a todos aqueles que participaram num acto colectivo que, tanto quanto sabemos, é inédito, de apresentação de propostas como cidadãos para participarem na revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. João Nabais, não é inédita a apresentação de petições. São, sim, inéditas duas coisas: o número e, já agora, se me permitirem, a qualidade das petições que foram apresentadas e é inédita também a valorização que lhes é dada, portanto, é inédita esta reunião.

O Sr. Dr. João Nabais: - Muito obrigado pela rectificação.

O Sr. Presidente: - Não é rectificação…

O Sr. Dr. João Nabais: - É rectificação, porque eu tinha afirmado uma coisa que não era correcta. De qualquer maneira, quero saudar o empenho que, desta vez, pelo menos, os Deputados desta Comissão Eventual, concretamente na pessoa do seu Presidente, mostraram. Do nosso ponto de vista, este acto, por si só, é extremamente significativo e pode ser um primeiro passo, muito interessante e muito importante, para um maior envolvimento dos cidadãos em geral nas discussões de coisas tão importantes como seja a reapreciação das traves mestras da sua Lei Fundamental. Portanto, por essa razão, estamos muitíssimo orgulhosos pelo facto de participarmos neste acto, ele sim - e foi-o agora confirmado por V. Ex.ª -, inédito.
Relativamente às questões que apresentámos, as nossas preocupações centraram-se em quatro áreas fundamentais. Em primeiro lugar, a área que podemos designar, genericamente, de direitos, liberdades e garantias; uma segunda área, que podemos, também genericamente, qualificar como de questões eleitorais; uma outra área relativa à organização do poder político, onde a nossa atenção se centrou, no essencial, no domínio do chamado poder judicial; e, por último, preocuparam-nos também questões a que, genericamente, podemos chamar questões da cidadania, o que não é de estranhar, porque a Associação Cívica Política XXI tem justamente como pedra-de-toque fundamental de funcionamento este tipo de preocupação, isto é, a afirmação da vitalidade da participação dos cidadãos na vida pública, na vida política.
Tal como foi sugerido pelo Sr. Presidente, não irei passar em revista ponto por ponto, dando, antes, por conhecidos, pelo menos dos Srs. Deputados, os aspectos fundamentais da nossa proposta. Não deixarei, contudo, de fazer referência a três ou quatro aspectos fundamentais, porque me parece que a respectiva redacção pode suscitar, desde logo, dúvidas e, portanto, por essa via, prejudicar um melhor contacto com a proposta.
Como se vê, esta parte inicial lida com questões atinentes aos direitos, liberdades e garantias e, aí, como traços interessantes, do nosso ponto de vista fundamentais, permito-me sublinhar os seguintes: desde logo, no âmbito do princípio da igualdade, entendemos que a formulação actualmente existente do artigo 13.º da Constituição levanta algumas dúvidas, ao falar, por exemplo, em distinções baseadas na raça. Sabe-se como este tipo de conceito é de difícil apreensão, pelo que propomos algumas alternativas, que têm a ver com uma melhor formulação dos conceitos. Assim, em vez de "raça", "identidade étnica" parece-nos um pouco mais consonante com aquilo que, de certo modo, também corresponde a uma crescente miscigenação, etc., sendo esse conceito, porventura, mais localizável do que o de raça.

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Introduzimos também referências a outros aspectos que, do nosso ponto de vista, devem ser considerados, no texto constitucional, como impeditivos de discriminação, como seja o género, a orientação sexual e a deficiência. Poderão levantar-se dúvidas quanto ao género, mas a nossa ideia, no fundo, é esta: o género não corresponde necessariamente ao sexo. Isto é, podíamos dizer que o género de cada um de nós é a forma como cada um de nós assume, se quisermos do ponto de vista externo, a sua relação com o próprio sexo. Assim sendo, por hipótese, uma mulher pode vestir-se de homem, como um homem se pode vestir de mulher. Ou seja, é importante, num quadro em que as escolhas e as afirmações da liberdade pessoal e as afirmações da diferença vão induzindo e introduzindo elementos distintivos mesmo a este nível, que o jovem que tem cabelos compridos, apanhados num rabo-de-cavalo, com brincos e com um "modo estranho" de vestir, não seja discriminado em função do modo como se apresenta externamente e como assume, digamos, a sua pertença a um determinado sexo. Daí a introdução desta palavra "género", que tem justamente esta ideia, a de abranger este tipo de situações.
A orientação sexual resulta com clareza. É evidente que não se deve ser discriminado em função de se ser, ou não, homossexual, heterossexual, ou de se ter outra qualquer característica.
No domínio dos direitos, liberdades e garantias, também nos preocuparam alguns aspectos, que começam, do nosso ponto de vista, a ser consensuais na sociedade portuguesa e que dizem respeito a uma melhor definição e a uma melhor defesa das pessoas envolvidas em processos penais. Desde logo, é absurdo que, em Portugal, não haja ainda um princípio, definido na Constituição, de obrigatoriedade de assistência de advogado a qualquer acto processual a que seja presente o arguido (e, daí, a introdução desse elemento). Por outro lado, vivemos num país em que uma relativa indefinição do artigo 31.º da Constituição tem permitido que o Supremo Tribunal de Justiça, pura e simplesmente, nunca, mas nunca, defira um pedido de habeas corpus. É uma situação verdadeiramente escandalosa aquela que se vive no nosso país, à luz, de acordo e ao abrigo de um texto constitucional e a coberto de um texto legal, que é o Código de Processo Penal, que, aparentemente, permite o recurso ao habeas corpus. Vivem-se situações dramáticas de ilegalidade e, através de recursos e minudências processuais, o Supremo Tribunal de Justiça - e não vou agora explicar como é que costuma funcionar, mas poderei, numa situação de discussão mais aberta, fazê-lo - evita e impede, na prática, o uso deste instrumento. Ora, Srs. Deputados, a questão é, do nosso ponto de vista, muito simples: ou se elimina o habeas corpus da Constituição da República Portuguesa ou mantém-se este instituto, que tem fundadíssima tradição no nosso ordenamento jurídico, mas, então, dota-se o habeas corpus de um conteúdo real, permitindo-se efectivamente que os cidadãos, quando vítimas de violência processual - permitam-me a expressão -, possam recorrer a este instrumento. Daí que nos pareça extremamente importante a abordagem deste tema, na Constituição, de forma diversa.
Por outro lado, ainda no campo do processo penal, preocupa-nos uma situação que se vive todos os dias e que tem a ver com a situação das pessoas que ficam detidas - e chamo a atenção dos Srs. Deputados para este aspecto - para apresentação, por exemplo, ao juiz de instrução criminal pela prática em flagrante delito de crimes a que corresponde uma pena inferior a três anos.
O que é que se verifica na nossa ordem jurídica? A lei constitucional e a lei ordinária proíbem a prisão nestes casos. Contudo, a partir do momento em que o Código de Processo Penal prevê que aquele que é detido, em flagrante delito, pela prática de um crime a que corresponde uma pena - atenção! - inferior a três anos seja presente ao Ministério Público de imediato e que o Ministério Público é que vai decidir se o põe em liberdade ou não, ou se o manda ouvir ao juiz, verifica-se esta anomalia: o novo Código de Processo Penal, o de 1988, introduz uma situação pior do que o Código velho. Ou seja, no Código de 1929, este cidadão era devolvido à liberdade, pura e simplesmente, e era intimado para comparecer, por exemplo, no dia seguinte, para julgamento sumário no Tribunal de Polícia; hoje, não é isso o que acontece, na medida em que são 4, 5 horas da manhã, hora a que, evidentemente, o magistrado do Ministério Público está pacatissimamente a repousar na sua casa e à qual não é contactado, situação que, se calhar, pode, e deve, ser alterada, mas a verdade é que esta pessoa fica detida para ser presente ao tribunal, hoje de pequena instância criminal, concretamente em Lisboa, para ser julgado.
Relativamente às questões eleitorais, muito rapidamente, sugerimos três alterações fundamentais. Primeiro, uma alteração ao nível da capacidade eleitoral, de modo a permitir o sufrágio a partir dos 16 anos. Depois, a possibilidade de se ser eleito para Presidente da República aos 18 anos. É que não nos parece que faça muito sentido que se possa ser Presidente da República com 120 anos e não se possa ser Presidente da República com 19 anos, argumento este que é, desde logo, suficientemente eloquente para permitir uma alteração neste domínio. Finalmente, entendemos que, na Constituição, deve constar uma referência clara ao facto de os Deputados, para além de representarem todo o território nacional, representarem especialmente o círculo pelo qual foram eleitos. Parece-nos que isto trará vantagens claríssimas, no domínio, chamemos-lhe assim, da vinculação do Deputado ao círculo pelo qual foi eleito, com vantagens claras.
No âmbito da organização do poder judicial, propomos três alterações fundamentais, Srs. Deputados. A primeira é a pura e simples eliminação dos tribunais militares, que é uma questão que, gritantemente, a democracia reclama e que, do nosso ponto de vista, torna relativamente estranha a aberração que ainda se vive, em Portugal. Em segundo lugar, uma situação que permitisse, no campo do Tribunal Constitucional, uma situação diferente. Temos alguma sensibilidade para aquilo que pode, a prazo, vir a transformar-se no descrédito do Tribunal Constitucional. Preocupam-nos as discussões com que, muitas vezes, nos deparamos na comunicação social, na medida em que a composição do Tribunal Constitucional naturalmente reflecte uma determinada maioria conjuntural. Significa isto que, tendencialmente, é muito fácil identificar no Tribunal Constitucional alinhamentos político-partidários, o que significa que a credibilidade dos juízes sai posta em causa. Daí que a nossa proposta de composição do Tribunal Constitucional (artigo 224.º), sendo radicalmente diferente, permitiria manter viva, na Constituição, uma ligação dos Deputados à manifestação, ainda que indirecta, da vontade popular, ou seja, haveria uma repercussão ainda da vontade popular, mas não sujeita às oscilações das maiorias

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conjunturais que, a nosso ver, vão muitas vezes pôr em causa a credibilidade desse tribunal.
Terminaria com uma referência à composição do Conselho Superior da Magistratura. É, a nosso ver, incorrecto que do Conselho Superior da Magistratura faça sempre parte, obrigatoriamente, uma maioria de juízes. E é isso que decorre, hoje, da nossa Constituição, na medida em que basta que o presidente seja, automaticamente e por inerência, o Presidente Supremo do Tribunal de Justiça para que haja uma maioria obrigatória de juízes, uma vez que, dos outros 16, oito são obrigatoriamente juízes. Pensamos que pode ser uma maioria de juízes, ou não. Mas por que não dar ao Presidente da República a faculdade de escolher duas pessoas, sem que uma delas seja obrigatoriamente juiz? Parece-nos que teríamos a ganhar com isto, que o Presidente da República teria uma maior latitude e que, assim, não se abria obrigatoriamente a porta a uma situação que é, indiscutivelmente, a antecâmara do autogoverno dos juízes, que, por vezes, pode trazer alguns problemas no sistema verdadeiramente democrático.
Terminaria, agora sim, com uma referência ao fim do serviço militar obrigatório, agora proposto. Temos consciência de que a afirmação crescente de alguns valores de natureza excessivamente individualista pode suscitar problemas, isto é, pode aconselhar uma qualquer solução que faça com que, ainda enquanto jovens, as pessoas sejam levadas a comparticipar com um trabalho para a comunidade, uma situação, enfim, a ver. Contudo, não temos solução para isso e pensamos que é uma questão que deve merecer debate. Entendemos, porém, que o serviço militar obrigatório deve, pura e simplesmente, desaparecer.
Por fim, faria apenas uma curta referência à nossa proposta quanto ao referendo. Na nossa proposta de referendo, surgem duas questões, digamos assim, que são dois traços distintivos: por um lado, propomos o referendo local - não apenas nacional mas também local; por outro lado, ao nível da organização do próprio referendo, propomos que ele não se limite a uma só pergunta, podendo cada referendo ter várias perguntas - o texto actual da Constituição, como sabem, apenas prevê uma pergunta para cada referendo, o que nos parece uma situação quanto mais não seja de algum desperdício, que pode eventualmente existir; por outro lado ainda, propomos que exista uma situação de alternativa, ou seja, as perguntas não devem ser perguntas de "sim" ou "não", mas podem também funcionar com alternativas. Isto é, parece-nos que faz sentido que os referendos coloquem à consideração dos cidadãos situações em alternativa.
Por último, o traço distintivo, no fundo, da nossa intervenção cívica, que é a afirmação da possibilidade de uma maior intervenção dos cidadãos na vida política e, por essa via, a possibilidade da participação dos cidadãos, com listas de cidadãos, em todos os actos eleitorais, mesmo ao nível das legislativas.
Peço desculpa, Sr. Presidente, por me ter alongado um pouco mais. Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. João Nabais, muito obrigado pela contribuição da Associação Cívica Política XXI e, em particular, pela sua intervenção. A Associação é representada aqui, para além do nosso apresentante, pelos Srs. Drs. Ivan Nunes e Rogério Moreira, que se encontram na bancada.
Vou abrir, agora, um período de perguntas, de comentários ou de críticas, pedindo que elas sejam feitas do modo mais contido possível, económico, em termos de palavras.
Tem a palavra o Sr. Deputado Francisco José Martins.

O Sr. Francisco José Martins (PSD): - Sr. Presidente, serei muito breve, pois o tempo assim o exige.
Ouvi atentamente a exposição do Dr. João Nabais e fui particularmente sensível a uma questão que se prende com o capítulo dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, mais concretamente o artigo 32.º, que penso ser um dos pontos mais importantes desta revisão constitucional. Estou a referir-me às garantias de processo criminal e à necessidade de, de uma vez por todas, a defesa de qualquer cidadão, enquanto sujeito de um qualquer processo - e, neste caso, de um processo criminal -, ser sempre, mas sempre, feita por um advogado ou, porventura, por um advogado estagiário que tenha habilitações para o fazer.
O Partido Social Democrata é naturalmente defensor desse princípio e até vai mais longe - a saber, no artigo 20.º, matéria em relação à qual lhe coloco esta questão -, no sentido de que o cidadão deveria, se calhar, ter direito a escolher um defensor e a fazer-se acompanhar dele perante qualquer autoridade e quando tem de prestar quaisquer declarações.
A minha pergunta é esta: qual é, neste contexto, a sua opinião sobre este princípio que, de resto, o PSD defende no seu projecto de revisão constitucional?

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vou dar a palavra a todos os inscritos para colocarem as suas questões, de modo a haver uma resposta global por parte do Sr. Dr. João Nabais. Peço a todos os Srs. Deputados que sejam breves na formulação das perguntas.
Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo.

O Sr. Miguel Macedo (PSD): - Sr. Presidente, começo por saudar o apresentante desta proposta.
Quero apenas colocar duas questões. A primeira destina-se a fazer uma correcção a algo afirmado em relação ao referendo. No meu entendimento, a Constituição, neste momento, não limita a uma pergunta o referendo.

O Sr. Presidente: - Tem razão Sr. Deputado.

O Sr. Miguel Macedo (PSD): - Efectivamente, o n.º 4 do artigo 118.º, a meu ver, limita a uma matéria, mas não forçosamente a uma só pergunta. Esta é a primeira questão.
A minha segunda questão, muito directa, tem a ver com o seguinte: percebeu-se da apresentação do projecto - e da sua leitura, para quem teve o cuidado de o ler - que um dos traços fundamentais da proposta aqui trazida é o do reforço da componente da participação dos cidadãos, quer em termos eleitorais, quer em termos até legislativos. Acho isso, em geral, positivo, assim como também simpatizo, particularmente, com a proposta feita em relação à forma de eleição da câmara municipal (mas isso já é outra matéria). Porém, aquilo que estranho nesta proposta é que, sendo esse o traço característico e mais marcante, ou um dos mais marcantes da proposta que aqui nos trazem, ao mesmo tempo, quando no artigo 118.º propõem diversas alterações em relação ao referendo, continuam a

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excluir os cidadãos portugueses não recenseados em território nacional de se pronunciar em referendo nacional sobre matérias de âmbito nacional.
A pergunta muito concreta que quero fazer é esta: não acha que há alguma incongruência entre essa posição tão marcante a favor da participação dos cidadãos e, depois, na matéria do referendo nacional, a exclusão de todos os cidadãos nacionais não residentes em território nacional?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá, a quem peço igualmente que seja breve na formulação das perguntas.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, quero saudar esta iniciativa, na qual encontro uma margem de coincidência de pontos de vista importante: questões como garantias de processo criminal, eliminação dos tribunais militares, clarificação e enriquecimento da democracia participativa, entre outras.
Entretanto, há duas questões concretas em relação às quais tenho divergências e que gostava de colocar. Uma delas diz respeito à proposta de eleição da câmara municipal, que, contrariamente ao referido pelo Deputado Miguel Macedo, não me parece feliz. O presidente da câmara municipal é directamente eleito e os restantes membros são eleitos pela assembleia municipal, sem ser sob proposta do presidente da câmara municipal - aliás, é o sistema das juntas de freguesia, que, muito frequentemente, tem dado em situações de maioria relativa, que há muitas no País em que o presidente da junta tem ficado isolado no conjunto da junta de freguesia, criando-se, portanto, uma coligação contra ele, contra o partido que tem a maioria relativa e que garante esse isolamento -, ao mesmo tempo que, para além de ser posto termo à eleição directa, é posto termo também à representação proporcional que assegura uma composição pluralista, ulteriormente com acordos entre o presidente da câmara e outras forças políticas, na perspectiva de distribuir pelouros e criar uma coligação dentro da estrutura mais vasta. É um esquema original, naturalmente com defeitos. Não conheço, entretanto, outras possibilidades e, designadamente, outras propostas que sejam mais felizes, inclusive mais pluralistas, que esta e, nesse sentido, gostaria de ouvi-lo.
Uma outra proposta em relação à qual também tenho divergências diz respeito aos grupos de cidadãos eleitores na Assembleia da República. E isto porquê? Porque, havendo uma função muito importante da Assembleia da República, que é exactamente a de garantir a formação do Governo, estes grupos de cidadãos eleitores - que aliás, nas propostas que são conhecidas teriam, alguns deles, mais eleitores do que aqueles que são necessários para criar um partido político -, por um lado, duvido que garantissem maior participação e, por outro, poderiam eventualmente garantir dificuldades a este nível.
Para além disso, gostaria de lembrar que, nas contas apresentadas pelos partidos políticos nas últimas eleições para a Assembleia da República, o PSD, por exemplo, declarou que gastou 800 000 contos, enquanto outros partidos gastaram 500 000 contos, o que torna naturalmente relativa a contribuição que grupos de cidadãos eleitores deste tipo poderiam dar para o enriquecimento da democracia participativa.
Em todo o caso, em termos gerais, quero felicitá-los pelo projecto de revisão constitucional e pela contribuição que podem dar para os trabalhos de revisão que temos em curso.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, gostaria de começar por sublinhar que as preocupações principais enunciadas pelos proponentes são preocupações que não apenas nos são simpáticas mas que co-assumimos em muitos aspectos no nosso projecto de revisão constitucional, designadamente quanto à participação ou ao acentuar da vertente de participação dos cidadãos em todos os aspectos da vida política. Propostas como as respeitantes ao habeas corpus e à supressão dos abusos que tem havido nessa matéria ou à melhoria do quadro constitucional em matéria de processo criminal são-nos simpáticas. Entretanto, uma dessas propostas motiva-nos interrogação: aquela em que os proponentes procuram assegurar garantias de defesa, estando garantida a reapreciação da matéria de facto por instância de recurso. Receamos que essa precisão tolha a percepção, que, aliás, é necessário consagrar e garantir, de que o direito de recurso, designadamente um duplo grau de jurisdição, deve ser assegurado em condições que procurámos discutir na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, ao longo dos últimos dias. Portanto, esta precisão poderia resultar numa restrição de um direito de recurso, que deve ser provavelmente consagrado em termos mais amplos. Gostaria, no entanto, que o Sr. Dr. João Nabais pudesse eventualmente prestar algum esclarecimento sobre essa matéria.
Em relação ao processo de institucionalização de regiões administrativas, não consegui perceber se os proponentes admitem a interposição de um referendo de carácter nacional, com o sentido que, aliás, resultou dos trabalhos da revisão constitucional na fase um, ou, se não, se acham que, pura e simplesmente, tal como parece decorrer do texto, tal qual está redigido, se deveria manter, sem qualquer alteração, o que decorre do modelo originário da Constituição, ainda em vigor neste momento.
Finalmente, propõem aquilo a que chamam o referendo popular, no artigo 118.º, mas a verdade é que, no artigo 241.º, ele está, hoje, proposto e pode ser alargado. E, tanto quanto percebo, a vossa proposta conduzia à subida de patamares, do género mínimo de 5% ou obrigação de deliberação por maioria absoluta, o que poderia redundar no contrário.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Medeiros Ferreira.

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, quero saudar a iniciativa da Associação Cívica Política XXI, na pessoa do Sr. Dr. João Nabais, e dizer-lhe que apreciei muito do que foi dito. O meu camarada, Deputado José Magalhães, já referiu o principal, em termos gerais, mas gostaria de dizer algo sobre um aspecto que me perturba nesta proposta agora apresentada pelo Dr. João Nabais e que diz respeito ao artigo 152.º da Constituição, no tocante à representação dos Deputados.
O actual articulado da nossa Constituição diz, de uma forma muito clara, no n.º 3 do artigo 152.º, que "Os

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Deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos", enquanto que, na proposta apresentada pelo Dr. João Nabais, se diz exactamente que "Os deputados representam todo o país e em especial os círculos por que são eleitos". Ora, creio sinceramente que, aqui, a nossa Constituição - aliás, numa tradição que deriva obviamente da representação do interesse geral, a partir dos princípios do liberalismo e da Revolução Francesa, depois compendiados entre nós na Constituição de 1822 - trata da defesa do interesse geral, da defesa do todo nacional, não sendo por acaso que os diferentes constituintes, e foram muitos, acentuaram esse aspecto. De facto, o Deputado, embora eleito por um círculo eleitoral, deve representar no Parlamento os interesses gerais.
Compreendo a preocupação do Dr. João Nabais, mas essa preocupação também já está, de certa maneira, contemplada, uma vez que temos em curso um processo de regionalização e, nesse processo de regionalização, então, sim, os interesses regionais devem ter a expressão que merecem, de uma maneira enfática, concreta e específica, e tão-só, mas não em sede de um mandato que é dado ao Deputado para representar os interesses gerais da Nação, para não se embaraçar o Estado com os interesses particulares que, necessariamente, tem uma representatividade de um círculo eleitoral, que é assim que se chamam hoje em dia.
Gostava, pois, de dizer ao Sr. Dr. João Nabais que entendo que a sua preocupação já está compendiada no processo de regionalização proposto pelo Partido Socialista, o qual se encontra ainda em fase de audição.
Muito obrigado, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Por último, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.
Como vem sendo hábito, peço-lhe também que seja breve.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, era escusado V. Ex.ª pedir-me isso. Já sei que faz sempre essa chamada de atenção. Vou ser muito breve.
A pergunta concreta que quero fazer é esta: por que razão dividem o actual n.º 1 do artigo 36.º em dois números e quais os verdadeiros motivos que estão subjacentes a essa proposta?

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, antes de dar a palavra ao Sr. Dr. João Nabais, quero agradecer as perguntas que lhe foram colocadas.
O Sr. Dr. João Nabais, membro da Associação Cívica Política XXI, vai ter oportunidade de responder, mas, como há pouco excedeu o tempo, vou dar-lhe 10 minutos, e peço que não os exceda. Sei que as perguntas foram muitas, por isso terá de fazer um esforço de brevidade muito grande, mas peço-lhe que o faça, não por mim e pela Comissão, mas, sobretudo, pelos restantes peticionários, que terão de ter também o tempo necessário para expor e defender as suas propostas.
Tem a palavra, Sr. Dr. João Nabais.

O Sr. Dr. João Nabais: Muito obrigado, Sr. Presidente. Vou procurar ser muito breve.
Em primeiro lugar, quero agradecer, em meu nome e no dos restantes proponentes, o interesse com que os Srs. Deputados acompanharam e analisaram a nossa proposta, interesse esse revelado pelo conjunto de perguntas que foi feito.
Porque tenho de ser rápido, vou entrar directamente nas matérias suscitadas.
Relativamente à questão levantada pelo Sr. Deputado Francisco José Martins, quero dizer que não poderia estar mais de acordo com a proposta que V. Ex.ª teve ocasião de referir e lamento não termos nós próprios proposto esse alargamento da intervenção do advogado. Estou inteiramente de acordo. O advogado deve, de facto, estar presente em todos os actos processuais em que o arguido intervenha, mas também deve poder acompanhá-lo a qualquer acto, quando ele se dirige a uma esquadra de polícia, etc., justamente para evitar situações que são de todos conhecidas, o que só melhoraria o nosso sistema.
Sr. Deputado Miguel Macedo, de facto, é verdade que não interpretei o artigo 118.º da Constituição devidamente. Podem fazer-se várias perguntas, mas apenas quanto a uma única matéria, e, portanto, agradeço a precisão.
Relativamente ao problema que é suscitado por V. Ex.ª, isto é, porque é que, estando nós preocupados com um acréscimo da participação dos cidadãos na vida política, não propomos a intervenção dos cidadãos residentes no estrangeiro nos referendos, eu responderia ao Sr. Deputado no seguinte sentido: a nossa ideia de participação e de afirmação da cidadania não é uma ideia que se vincule necessariamente à noção de nacionalidade. Ou seja, cidadão, de certo modo - e permita-me um pouco a divagação -, é aquele que participa nos destinos e no governo da cidade, isto é, daquele espaço em que está efectivamente inserido.
Parece-nos que um emigrante português, por exemplo, que reside em Paris há 30 anos tem muito mais a ver com questões atinentes e relativas a aspectos fundamentais da vida em França do que, necessariamente, a aspectos fundamentais da vida em Portugal, país de que ele está distante e onde só, por vezes muito remotamente, pode ter interesse em determinado tipo de participações, porque há questões a nível de referendo que podem directamente ou sobretudo interessar a quem aqui vive, mas poderá haver outras, se quiser, de regime em que, eventualmente, todos os cidadãos nacionais poderão intervir.
Aceito que é uma questão que devíamos discutir, mas, do meu ponto de vista e do ponto de vista das pessoas, enfim, do nosso ponto de vista colectivo, a perspectiva da afirmação da cidadania passa muito por aqui, pela afirmação da participação das pessoas que estão envolvidas, se quiser, localmente, geograficamente, no espaço onde, depois, as soluções vão ter consequências. Portanto, a afirmação da cidadania é multinacional. Um cidadão cabo-verdiano ou um cidadão guineense que está em Portugal há 30 anos tem muito mais interesse na participação de decisões que têm a ver com a sua vida aqui do que, por exemplo, um cidadão português que está há 30, 40 ou 50 anos na Califórnia e nem sequer tem intenção de regressar.
Reconheço que é um problema quente, é um tema complicado, mas, do nosso ponto de vista, a afirmação da cidadania passa mais por uma situação de pertença. O cidadão é aquele que está na cidade, na cidade no sentido amplo, evidentemente.
As questões suscitadas pelo Sr. Deputado Luís Sá são, evidentemente, muito pertinentes, como é óbvio. É sempre bom discutir com especialistas, como é evidente. E ainda bem que temos esta possibilidade porque temos este privilégio extraordinário de discutir com pessoas que, sobre estas matérias, porventura, sabem bem mais do que nós e, sobretudo, têm um grau de reflexão, de apuramento e de amadurecimento que nos auxilia a reflectir e a amadurecer.

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A ideia, ao nível do artigo 252.º da Constituição, da eleição directa do presidente de câmara tem a ver com um acréscimo de responsabilidade do próprio presidente de câmara. Isto é, do nosso ponto de vista, o exercício dos cargos políticos só ganha com o acréscimo de responsabilização dos respectivos titulares. Portanto, se houver uma eleição directa do presidente de câmara, ele está mais directamente responsabilizado perante os cidadãos eleitores.
Por outro lado, essa eleição directa não é conflituante com a representação da generalidade das forças políticas ao nível da vereação, na medida em que, na redacção proposta para o artigo 252.º, se prevê que, depois, a vereação seja eleita por listas daqueles que foram eleitos para a assembleia municipal. Isso assegurará até, porventura, do nosso ponto de vista - e podemos, obviamente, estar errados, mas é esta a nossa ideia -, uma melhor governabilidade de algumas câmaras, na medida em que possibilita, ao nível da composição da vereação, arranjos, que, em articulação com a pessoa do presidente de câmara, permitirão, eventualmente, uma maior governabilidade. Portanto, o critério que nos norteou foi, de certa maneira, de melhoria da performance, digamos assim, administrativa da própria câmara a este nível. Pensamos que desta articulação pode sair um benefício.
Sr. Deputado José Magalhães, a dúvida que coloca relativamente à nossa formulação para o artigo 32.º quanto ao problema da reapreciação da matéria de facto prende-se um pouco com isto: a nossa vida prática ensina-nos que há um conjunto de coisas que acabam por resultar da lei, mas que acabam por ser sistematicamente, mediante determinado tipo de mecanismos, escamoteadas. Ora, não ficará mal que um princípio tão importante como este, nomeadamente um princípio que até já está inscrito em lei constitucional, porque, de certa maneira, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 6.º, é, grosso modo, ou, se quiser, lato sensu, lei constitucional e lá já está a garantia do duplo grau de apreciação da matéria de facto, fique na Constituição.
O Sr. Deputado sabe bem os problemas com que as pessoas se confrontam hoje, por exemplo, ao nível processual penal, porque, pura e simplesmente, não há no nosso sistema reapreciação da matéria de facto. Existirá, de uma forma longínqua, em situações de renovação de prova ao nível do tribunal da relação, mas, por exemplo, para o Supremo Tribunal de Justiça já não há a possibilidade de renovação de prova, como VV. Ex.as sabem.
Mais: é apenas o artigo 410.º do Código de Processo Penal que define o catálogo das situações que podem dar origem e fundamentar um recurso em processo penal, o que significa que um, dois, três juízes, que podem ter tido mais ou menos atenção àquilo que se passou perante eles, definem para sempre a matéria de facto, e essa matéria de facto é intocada. Este sistema não serve, este sistema é injusto. Pensamos que a Constituição deve reflectir uma alteração significativa neste domínio. Daí a nossa preocupação.
No que se refere às questões que colocou relativas ao referendo, não percebi a sua primeira questão. Portanto, não vou responder, porque não apanhei a dúvida que colocou. Se quiser ter a gentileza de a repetir e se o Sr. Presidente o permitir…

O Sr. José Magalhães (PS): - A pergunta tem a ver com o processo de institucionalização das regiões administrativas e é no sentido de saber se os subscritores admitem como virtuosa e positiva a ideia de que deva haver um referendo nacional, e de que tipo, quanto ao processo de instituição das regiões administrativas.

O Sr. Dr. João Nabais: Sim, sim! Aceitamos, claramente. Mas penso que isto não é contraditório com a proposta que fazemos quanto ao referendo!

O Sr. José Magalhães (PS): - Contraditório não é, mas é omisso! Como mantém a norma sobre as regiões administrativas exactamente como está e ela não comporta o referendo…

O Sr. Dr. João Nabais: Tem razão! Pode suscitar-se essa dúvida!
Ainda bem que faz esse reparo, porque, enfim, aí tem mais um aspecto importante. Não nos pareceu que fosse conflituante, mas agora que chamou a atenção percebo essa dúvida. Mas nada temos contra, pelo contrário. Pensamos que é uma questão capital e deve haver, de facto, referendo nessa matéria.
Quanto à questão que o Sr. Deputado Medeiros Ferreira colocou, devo dizer que a compreendo. Mas é evidente, Srs. Deputados, que não podemos ser insensíveis a um conjunto de críticas que se vêm fazendo ao nosso sistema. Isto é, do nosso ponto de vista, devemos estar alertados e ouvir as vozes que se vão avolumando e que vão introduzindo elementos de desconfiança face ao sistema político. Por isso, quando propomos, a nível do artigo 152.º da Constituição, uma alteração radical na sua redacção, dizendo que os Deputados representam o País e, em especial, os círculos, queremos dar, se quiser, uma tónica de ligação, de vinculação e de uma maior proximidade do Deputado ao cidadão eleitor.
Penso que é por estes pequenos sinais, que por vezes apenas têm de utilidade o seu aspecto formal, que muitas vezes se vai fazendo a pedagogia do sistema e se vão induzindo maiores responsabilizações. E, nessa medida, pensamos que esta alteração também podia trazer algo mais na responsabilização do Deputado perante o círculo que o elegeu.
Por último, quanto à questão que a Sr.ª Deputada Odete Santos levantou, ou seja, porquê seccionar o actual n.º 1 do artigo 36.º da Constituição em dois números, os n.os 1 e 2, respondo-lhe muito rapidamente: entendemos que este artigo 36.º e as propostas que fazemos são capitais. Como não terá escapado aos mais atentos, consideramos que a noção de família abrange hoje, obviamente, famílias homossexuais, por exemplo, e consideramos que a protecção da família, no mais amplo esquema que pode ser admissível, nomeadamente com a redacção deste novo n.º 5,…

O Sr. Presidente: - Sr. Dr., peço-lhe que seja mais conciso.

O Sr. Dr. João Nabais: Tem toda a razão. Peço desculpa.
Porquê o seccionamento? Porque, apesar de os desenvolvimentos jurisprudenciais terem, há muito, consolidado a ideia de que a protecção da família em Portugal, de acordo com a Constituição, não decorre necessariamente de uma relação de conjugalidade firmada

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no contrato de casamento (e isso é indiscutível), pensamos que isso deve ser afirmado com clareza na Constituição. Ou seja, os intérpretes descobrem na Constituição essa situação, mas, se afirmarmos isso com vigor e isto não vir separado do resto… É que o resto, depois, introduz um conjunto de alterações que têm lógica e coerência e, de certa maneira, são decorrência desse princípio. Se quiser, a separação constitui uma afirmação emblemática, mas tem valor quando articulada com o resto, e, do nosso ponto de vista, vai trazer benefícios fundamentais ao nível do reconhecimento dos novos modelos familiares.
Neste caso, pensamos que a Constituição Portuguesa não acompanha claramente as alterações que se verificaram no modelo familiar em Portugal. É urgente que o faça, sob pena de induzir situações de injustiça grave. Por isso, a nossa preocupação.
Muito obrigado, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Dr. João Nabais. Quero estender este agradecimento aos restantes membros da Associação Cívica Política XXI presentes.
Convido-o a continuar a assistir connosco ao resto da reunião, no caso de o poder fazer, pedindo-lhe que tome o seu lugar na bancada.

O Sr. Dr. João Nabais: Muito obrigado, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos ouvir agora os representantes do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA). Estão connosco o Sr. Prof. Dr. João Joanaz de Melo e os Srs. Drs. José Cunhal Sendim e José Luís da Cunha.
Suponho que é o Sr. Prof. Dr. João Joanaz de Melo que vem falar-nos…

O Sr. Prof. Dr. João Joanaz de Melo (GEOTA): - O Sr. Dr. José Cunhal Sendim fará a intervenção inicial, o que não invalida que os restantes membros possam responder depois.

O Sr. Presidente: - Claro! São livres de escolher quem responderá depois.
Sr. Dr. José Cunhal Sendim, dispõe de 10 minutos para fazer a sua apresentação inicial, em nome do GEOTA. Peço-lhe que não os exceda.

O Sr. Dr. José Cunhal Sendim (GEOTA): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A Constituição Portuguesa representou, na sua versão inicial, um texto inovador no que respeita à protecção do ambiente. Verifica-se, contudo, que, decorridos mais de 20 anos sem que as disposições da Constituição do ambiente tenham sofrido alterações profundas, o actual texto tornou-se, em alguns pontos, desligado dos princípios e valores ambientais fundamentais, actualmente consagrados no direito interno e em textos de direito internacional, como, por exemplo, os adoptados na Conferência do Rio, no Tratado de Roma e nos programas mais recentes da União Europeia.
Parece, por outro lado, evidente que o actual modelo constitucional se revelou insusceptível de permitir a superação dos problemas ecológicos e ambientais, essenciais na sociedade portuguesa.
O projecto de revisão constitucional apresentado, apesar de ter sido formalmente apresentado pelo GEOTA, foi subscrito pela Confederação das Associações de Defesa do Ambiente e pelas outras duas associações nacionais de defesa do ambiente, para além de ter sido também subscrito por várias dezenas de associações locais e regionais e por outros cidadãos.
Pode, por isso, dizer-se que o projecto representa o contributo cívico do movimento associativo ambiental para o actual processo de revisão constitucional e não se trata, neste momento, exclusivamente do projecto do GEOTA.
Este projecto visa, essencialmente, quatro objectivos, quatro vectores fundamentais: o primeiro é explicitar o princípio do desenvolvimento sustentável como objectivo fundamental do Estado; o segundo é assegurar a protecção do ambiente com base numa teleologia ecocêntrica, democrática e socialmente responsável; o terceiro é garantir a tutela efectiva e ambientalmente adequada do direito fundamental ao ambiente; o quarto é aprofundar e reforçar o direito de participação dos cidadãos nas decisões ambientalmente relevantes.
O primeiro objectivo, ou seja, a explicitação do princípio do desenvolvimento sustentável como tarefa fundamental do Estado, é actualmente largamente consensual e está consagrado no direito interno, no Tratado de Roma e na Agenda XXI. Propomos, por isso, ao contrário do previsto em alguns projectos de revisão constitucional, em que a referência ao desenvolvimento sustentável é feita a propósito do artigo 66.º, que se altere a alínea d) do artigo 9.º, por forma a explicitar que a promoção do bem-estar e a qualidade de vida do povo português só se deve realizar através de um desenvolvimento económico e social equilibrado e sustentável. Em consequência, propomos também a alteração dos artigos relativos à organização económica e aos objectivos das políticas agrícola e industrial.
O segundo vector fundamental do presente projecto justifica-se, porque a visão subjacente à actual Constituição é marcadamente antropocêntrica, associando-se quase exclusivamente a protecção do ambiente à tutela da qualidade de vida. Parece-nos, contudo, que os fundamentos naturais da vida na Terra devem ser protegidos pelo seu valor, independentemente da utilidade imediata que tenham para a humanidade. Sustenta-se, todavia, que a protecção do ambiente não deve ser desligada da tutela de outros direitos sociais e culturais, pelo que não se defendem concepções ecocêntricas radicais que possam justificar a lesão desproporcionada de tais bens.
Propõe-se, em síntese, a passagem de uma visão antropocêntrica utilitarista para uma visão ecocêntrica, mas socialmente responsável. Importa, por isso, sublinhar que esta proposta, que também está consagrada numa alteração do artigo 9.º, não se trata de uma visão radical mas, sim, de uma proposta moderada, que se filia directamente no texto adoptado na recente revisão constitucional alemã em 1994.
A par destes dois vectores, que são essencialmente programáticos e visam modernizar o actual texto da Constituição e exprimir princípios quer do direito interno quer do direito internacional, propomos um terceiro objectivo que nos parece essencial. Trata-se, como já referi, de garantir a aplicação efectiva do direito fundamental ao ambiente.
O principal problema ambiental português, quanto a nós, é que o país real não tem nada a ver com o país legal.

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A legislação ambiental não é, em grande medida, cumprida e o Estado não assume na prática o seu papel fiscalizador. Há, assim, uma espécie de esquizofrenia, um abismo, entre os princípios teóricos e a prática. O direito do ambiente é, em grande medida, um direito virtual, que não existe na prática.
A ideia essencial que nos parece importante sublinhar é a de que a protecção ambiental efectiva não representa um travão ao crescimento económico. Na verdade, a experiência de países como os Estados Unidos da América, o Brasil, a Alemanha e o Japão demonstra que a protecção do ambiente é verdadeira raiz de desenvolvimento e não o seu travão.
Assim, por exemplo, nos Estados Unidos da América, a legislação ambiental conduziu à reformulação do processo produtivo e à adopção de ganhos de produtividade substanciais e criou, por outro lado, uma indústria do ambiente responsável pela criação de cerca de um milhão de empregos nos últimos anos e por cerca de um bilião de dólares em receitas.
Como forma de garantir a aplicação efectiva do direito do ambiente, propõe-se, por um lado, a alteração da alínea i) do n.º 3 do artigo 109.º, no sentido de que as contas públicas passem a reflectir a depreciação do património natural, o que, de resto, é uma exigência prevista na Agenda XXI, documento a que Portugal está vinculado, e, por outro, à semelhança do previsto no Tratado de Roma - essencialmente com a formação do Tratado de Roma, mas com uma pequena alteração -, propõe-se que se explicitem no artigo 66.º os princípios fundamentais do direito do ambiente.
Propõe-se também: que se explicite no artigo 66.º o princípio, defendido por parte da doutrina portuguesa, da obrigatoriedade da ponderação dos bens ambientais nas decisões administrativas, o que, de resto, é uma clara consequência dos princípios da legalidade e da proporcionalidade; que se possibilite aos cidadãos representados pelas associações de defesa do ambiente requererem a declaração de inconstitucionalidade das normas que violam princípios ambientais, ou seja, propõe-se um corte com o actual sistema de fiscalização institucional da constitucionalidade, o que, de resto, também é previsto noutros projectos.
Por último, propõe-se que, no artigo 62.º, se explicite o princípio da tutela jurisdicional plena.
O último vector do presente projecto é o de aprofundar e reforçar o direito de participação dos cidadãos nas decisões ambientalmente relevantes. Sabe-se que o direito de participação traduz uma concretização do princípio da democracia participativa e exprime uma condição do exercício de uma cidadania ambiental plena. Sucede, contudo, que, no actual sistema jurídico, a generalidade dos mecanismos de participação são essencialmente formais e contribuem, na prática, essencialmente para legitimar relações de domínio previamente estabelecidas. Importa, contudo, que os cidadãos sintam que têm uma possibilidade efectiva de corrigir os erros e as disfunções do sistema, pois só assim se reforça, por um lado, a sua legitimidade e potencialidade comunicativa e, por outro, a confiança que nela é depositada.
Propõe-se, por isso, em síntese, o direito de participação das associações de defesa do ambiente na elaboração da legislação ambiental, à semelhança do que acontece com os sindicatos; a consagração constitucional do direito de participação das associações de defesa do ambiente no Conselho Económico Social; e, por fim, a alteração do n.º 3 do artigo 268.º, por forma a explicitar que a participação nos procedimentos administrativos deve ser útil e efectiva.
O projecto constitucional do movimento associativo ambiental português, assenta, assim, nestas quatro ideias fundamentais, que nos parecem ser tendencialmente consensuais na actual sociedade portuguesa. Trata-se, por outro lado, de propostas que, mais do que inovações, traduzem, em grande medida, a explicitação sistematizada e coerente das opções jurídico-políticas já assumidas no actual ordenamento jurídico português.
Resta-nos, assim, ter esperança - afinal, o verde é a cor da esperança! - de que as ideias propostas possam contribuir para aprofundar e concretizar o Estado de direito ambiental, que se quer democrático, politicamente participado, economicamente livre, socialmente justo e ambientalmente sustentável.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. José Cunhal Sendim, obrigado pela sua exposição.
Tem a palavra a Sr.ª Deputada Isabel Castro. Peço-lhe que seja breve.

A Sr.ª Isabel Castro (Os Verdes): - Com certeza, Sr. Presidente.
Em primeiro lugar, penso que este contributo é extremamente importante, além do mais porque o contributo das associações para uma visão mais fortemente vincada dos direitos ambientais, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, me parece importante e, entre nós, não encontra ainda o eco que deveria merecer.
A pergunta que quero fazer - não em relação a alguns destes pontos, porque muitos deles já tivemos a oportunidade de os discutir e de partilhar as propostas - tem a ver com o facto de o direito do ambiente ser uma disciplina jurídica incipiente entre nós e haver toda a vantagem em que o texto constitucional seja o mais claro possível. Não vos parece que substituir a actual alínea a) do n.º 2 do artigo 66.º, que tem a ver com o direito do ambiente, pela vossa formulação pode dificultar a compreensão, independentemente daquilo que se propõe ser um alargamento da amplitude do que se quer?
Segundo aspecto: é essencial para o êxito e para uma visão diferente da importância das políticas ambientais a participação dos cidadãos e o direito à informação e à participação. De qualquer modo, há um aspecto na vossa proposta que, penso, pode ser limitativo e pode ter um resultado perverso, que é, de algum modo, situar o direito de participação em termos de elaboração da legislação. Penso que a importância da participação existe em todas as políticas do ambiente e, de algum modo, é assim que a lei de bases do ambiente a prevê. Portanto, julgo que explicitar essa participação apenas em termos de legislação pode reduzir, ao contrário daquilo que se propõe, o universo das várias etapas em que as associações e os cidadãos devem ser parceiros na definição das políticas.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr.ª Deputada Isabel Castro.
Tem a palavra o Sr. Deputado Cláudio Monteiro.

O Sr. Cláudio Monteiro (PS): - Sr. Presidente, quero suscitar uma questão pontual, na medida em que a

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interpretação que faço da vossa proposta para o artigo 66.º, n.º 4, parece-me um pouco moderada ou, pelo menos, permite uma interpretação um pouco moderada, porque estabelece uma exigência de que "As decisões públicas devem ponderar de modo justificado a afectação de meios ambientais ecológicos", sem fazer qualquer espécie de limitação quanto à natureza ou à forma da decisão pública ou, sequer, quanto à matéria da decisão pública. Isto parece introduzir uma obrigação de fundamentação ambiental, misturando um conceito, que é formal, o de fundamentação de actos legislativos ou administrativos, com a matéria sobre a qual essa fundamentação deve incidir e que, interpretada de forma irrestrita, pode criar situações muito complexas, em prejuízo dos cidadãos e dos interessados nos procedimentos administrativos, sobretudo na medida em que introduzam alguma burocracia. Numa leitura ousada, daqui permitia, por exemplo, retirar uma obrigação de avaliação de impacto ambiental em toda e qualquer decisão administrativa, incluindo a de nomeação de um funcionário, dado que ela é formulada de maneira muito abrangente.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Deputado Cláudio Monteiro.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, creio que estamos face a uma contribuição útil para a melhoria da Constituição Ambiental. Há matérias noutros planos com a qual nos congratulamos, como, por exemplo, a proibição do financiamento dos partidos por empresas.
Em todo o caso, a questão que quero colocar diz respeito ao direito, conferido pelo artigo 281.º da Constituição, de as associações e fundações defensoras dos interesses e direitos previstos no n.º 3 do artigo 52.º poderem requerer a fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade.
A pergunta concreta é a de saber se, por acaso, não teme que o grande elenco de associações e fundações deste tipo possam vir a afogar o Tribunal Constitucional sem qualquer crivo e, portanto, sem sequer uma selecção adequada das questões que deveriam merecer uma consideração. É uma pergunta para reflexão. Naturalmente que esta proposta deve ser objecto de reflexão, mas não deixa de colocar esta inquietação.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Deputado Luís Sá.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Sr. Dr. José Cunhal Sendim, a sua intervenção vai, em grande medida, ao encontro das preocupações do Partido Socialista sobre esta matéria. Nós partilhamo-las em grande medida, estamos consonantes com ela. Temos a ideia de que a nossa Constituição, em termos proclamatórios enunciativos, é suficientemente rica, mas estamos também de acordo que poderá haver um deficit de execução e garantístico nalguns dos domínios que estão salientados. Pensamos que este deficit garantístico terá que ser suprido com medidas adequadas que têm de vir a ser sustentadas e praticadas, uma vez que não há, como sabe, a varinha mágica para resolver alguns problemas que são de difícil execução e controlo.
Sendo certo que, em termos das tarefas fundamentais do Estado, que referiu, alude expressamente ao conceito, que é um conceito nuclear da vossa proposta, do desenvolvimento sustentável, a dúvida que coloco é a de saber se essa preocupação, que é uma preocupação nuclear e estratégica da proposta do GEOTA, não estará em grande medida (e nós gostaríamos que estivesse) resolvida numa proposta similar (daí a minha dúvida e gostaria de identificar as suas preocupações e a sua leitura quanto a isto), ou seja, na proposta que o Partido Socialista faz quando alude, no artigo 66.º, como incumbência do Estado, por meio dos organismos próprios e, até, por iniciativas populares, à promoção de um desenvolvimento sustentável que previna e controle a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão. Pergunto se esta fórmula é coincidente e vai ao encontro da sua preocupação nuclear.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Deputado Alberto Martins.
Tem a palavra o Sr. Dr. José Cunhal Sendim para responder. Peço-lhe que tente comprimir a sua resposta em 5 minutos.

O Sr. Dr. José Cunhal Sendim: - Agradeço a atenção dada ao projecto e passo imediatamente a responder.
Quanto à questão suscitada pela Sr.ª Deputada Isabel Castro, é possível que esta versão proposta da alínea a), n.º 1, do artigo 66.º seja menos perceptível mas filia-se no projecto de Código do Ambiente feito na Alemanha pelo Ministério do Ambiente alemão, e nós entendemos que é tecnicamente mais correcto, é mais sustentado do que a actual versão da Constituição.
Quanto à referência ao facto de se prever eventuais efeitos negativos do direito de participação na legislação ambiental, não compreendo porque me parece que é um acréscimo e, portanto, não percebo como é que isso possa ser negativo. Para nós, isso é um dado positivo, é um direito acrescido e, se for bem exercido, não terá efeitos negativos.
Quanto à questão suscitada pelo Sr. Deputado Cláudio Monteiro, é possível que, no n.º 4 do artigo 66.º, na versão que formulámos, a referência a decisões públicas seja excessiva, admito que sim. Essencialmente, como referi, o que se visa é explicitar um princípio que tem sido defendido por parte da doutrina portuguesa, que é o princípio da necessidade de ponderação dos bens ecológicos, princípio, esse, que parte da doutrina portuguesa entende que já está consagrado no actual ordenamento jurídico português, porque é uma consequência da protecção de bens ecológicos no actual ordenamento jurídico. Portanto, é uma directa consequência do princípio da legalidade e da proporcionalidade. Se há decisões que afectem bens ambientais, obviamente que as decisões administrativas devem ponderar, à luz do princípio da proporcionalidade e nos termos do princípio da legalidade, as consequências dessas mesmas decisões.
Quanto à questão suscitada pelo Sr. Deputado Luís Sá, como o Sr. Deputado referiu, a objecção que levantou é puramente conjuntural, tem a ver com o actual funcionamento do Tribunal Constitucional e só por isso parece-me que não tem fundamento, por ser conjuntural e por não ter a ver com nenhuma razão de fundo. Quanto a nós, as decisões fundamentais não devem ser tomadas com base em razões de funcionamento interno do Tribunal Constitucional; para

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nós, por força do princípio da cidadania - aliás, isso consta noutros projectos de revisão constitucional - claramente se justifica a quebra do modelo de fiscalização da constitucionalidade institucional que está consagrada.
Quanto à questão suscitada pelo Sr. Deputado Alberto Martins, no sentido de consagrar, ou não, o princípio do desenvolvimento sustentável ou no artigo 66.º ou artigo 9.º, é certo que, no projecto do Partido Socialista, a concepção de desenvolvimento sustentável aparece no artigo 66.º; mas, a nós, pareceu-nos mais correcto consagrar isso directamente na norma que explicita as tarefas fundamentais do Estado, que é o artigo 9.º, porque o artigo 66.º consagra um direito fundamental. Nessa base, não é uma norma-fim, é uma norma-tarefa, e, quanto a nós, é mais correcto que a prossecução do desenvolvimento sustentável esteja sistematicamente reflectida no artigo 9.º e, depois, em todas as normas que eu referi e que estabelecem a organização económica, artigo 81.º e seguintes, e os fins e objectivos da política agrícola e industrial.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Isabel Castro.

A Sr.ª Isabel de Castro (Os Verdes): - Sr. Presidente é só para um esclarecimento telegráfico.
Porventura, a minha segunda pergunta foi mal formulada e daí a resposta. Eu não contesto a participação das associações na elaboração da legislação; agora, assumo-a como parte integrante de uma participação mais ampla a que entendo que as associações têm direito e de que não devem abdicar, como parceiros sociais que até devem estar representados no Conselho Económico e Social.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. José Cunhal Sendim.

O Sr. Dr. José Cunhal Sendim: - Sr.ª Deputada, é evidente que o que eu quis sublinhar é que, pelo facto de as associações poderem intervir na legislação ambiental, não vão ficar sem trabalho, não vão ficar paralisadas, como é óbvio. Portanto, é positivo que se acrescente um direito, direito esse que entendemos que é justificado e não vemos que seja negativo só por causa disso. Aliás, não é a única - isso é um dos aspectos; trata-se de reforçar a participação das associações, que já está prevista na lei das associações de defesa do ambiente e noutras alterações que propomos no nosso projecto.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. José Cunhal Sendim, agradeço a sua colaboração. Peço que ocupe o seu lugar e que permaneça connosco, se o poder fazer.
Sr. Prof. Dr. Joanaz de Melo pretende usar da palavra?

O Sr. Prof. Dr. João Joanaz de Melo: - Sim, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Peço-lhe que seja muito breve, porque esgotámos o tempo que estava previsto.

O Sr. Prof. Dr. João Joanaz de Melo: - Queria apenas fazer dois comentários…

O Sr. Presidente: - Já agora, permita-me dizer-lhe que não esgotou tempo porque o Dr. Cunhal Sendim foi suficientemente económico para lhe deixar margem para intervir dentro do tempo que lhe estava atribuído.
Tem a palavra.

O Sr. Prof. Dr. João Joanaz de Melo: - Sr. Presidente, gostaria de comentar duas questões, complementando a intervenção do Dr. Cunhal Sendim.
Primeiro, em relação à questão da ponderação dos valores ambientais que nós propomos no n.º 4 do artigo 66.º, de facto, conforme o tipo de acção ou de decisão que está em causa, naturalmente que, quer a avaliação em genérico por uma autoridade pública, quer a avaliação ambiental, deverá ser proporcionada, e o mecanismo democrático que citou, a avaliação de impactos ambientais, é um mecanismo pesado que só se justifica em empreendimentos pesados, como, aliás, a lei o consagra. Faz sentido que qualquer decisão que afecte meios ambientais tenha esses valores ambientais ponderados, mas não necessariamente - aliás, seria muito incorrecto que isso fosse feito de forma sistemática - através desse procedimento específico da avaliação de impactos ambientais tal como ela é entendida hoje em dia. No nosso entender, uma coisa não implica a outra - aliás, temos propostas nessa matéria, como é público e notório.
Ainda um comentário sobre um outro aspecto: o da proibição do financiamento dos partidos políticos por empresas, que eu faço notar que faz parte de um projecto separado, esse da exclusiva responsabilidade do GEOTA, enquanto que o projecto para uma Constituição Ambiental é assumido por um colectivo de organizações de ambiente. Pensamos que a transparência do poder político é importante porque entendemos que a independência do poder político face ao poder económico é absolutamente fundamental. Daí nós defendermos esta norma, que, pensamos, contribuiria substancialmente para a transparência dos processos decisórios em matérias que afectam em muito não só o ambiente como, de forma genérica, o modelo de desenvolvimento do País.

O Sr. Presidente: - Agradeço a colaboração dos representantes do GEOTA.
Em representação da Confederação Portuguesa do Ensino não Estatal, temos connosco o Dr. Luís Costa. Dado o carácter monotemático da sua sugestão, que, aliás, se limita apenas a um ponto, tem 5 minutos para fazer a apresentação do projecto.

O Sr. Dr. Luís Costa (Confederação Portuguesa do Ensino não Estatal): - Sr. Presidente, aquilo que nos traz aqui é uma questão relativamente simples, mas também algo complicada no seu conteúdo, e tem a ver com a análise que a Confederação fez do texto constitucional e daquilo que consideramos serem as nossas expectativas relativamente ao texto constitucional da República Portuguesa.
Nós consideramos que, no nosso campo particular de actuação, que é a área do ensino e da educação, a Constituição Portuguesa deve garantir, enquanto direitos fundamentais dos cidadãos, a liberdade de aprender e de ensinar enquanto tradução do direito à educação e à cultura, o direito de criar escolas particulares e cooperativas, o direito à igualdade de oportunidades de acesso ao ensino e êxito escolar.
Paralelamente, os deveres fundamentais do Estado nesta área devem consagrar que ao Estado não se pode atribuir

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o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas e que ao Estado cabe promover a democratização da educação, da cultura e do ensino, criar e garantir para todos os cidadãos igualdade de oportunidades de acesso à educação, à cultura e ao ensino e promover uma rede de escolas que cubra as necessidades de toda a população.
A Constituição Portuguesa, de facto, consagra quase todos estes pontos, exceptuando, em termos de formulação precisa, este último. Entendemos que o ensino, estatal ou não, é um bem público. Entendemos também que é o ensino não estatal que possibilita a pluralidade de oferta de projectos educativos constituindo garante das liberdades de educar, aprender e ensinar, tanto mais que, reafirma-se, ao Estado é vedado o direito de programar a educação, isto é, de, por exemplo, promover uma educação confessional. E se a Constituição garante, em termos de liberdades de aprender e de educar, o direito a haver uma educação confessional mas que não promovida pelo Estado, temos que garantir que essas necessidades da população sejam de facto consagradas por uma rede, que eu direi nacional, de educação.
Daí que entendemos que o n.º 1 do artigo 75.º, que diz que "O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população", é por isso mesmo limitativo e deveria ser alterado para "O Estado promoverá a criação de uma rede de estabelecimentos de ensino que cubra as necessidades de toda a população". Aliás, no campo da lei-quadro do ensino pré-escolar, neste momento em elaboração pelo Governo, este princípio é consagrado pelo próprio Governo ao abrir a rede pré-escolar à iniciativa privada.
Parece-nos, por isso, importante que, no campo constitucional, também este princípio seja consagrado, isto é, que não seja redutora a questão da rede pública.

O Sr. Presidente: - Darei agora a palavra aos Srs. Deputados ou aos peticionários para pedidos de esclarecimento ou comentário que queiram fazer a esta proposta concreta, limitada, de alteração da redacção do n.º 1 do artigo 75.º da Constituição da República.
Sr. Deputado Barbosa de Melo, tem a palavra.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): Sr. Presidente, Sr. Dr. Luís Costa, gostei de ouvir a sua intervenção e vou fazer um pedido de esclarecimento que tem a ver com esta ideia: o Sr. Doutor acentuou que a nossa Constituição enuncia com toda a clareza a liberdade de ensinar e de aprender. Disse, por outro lado, que o Estado não pode fazer ensinos que condicionem ideológica e, diria, até eticamente a comunidade - o Estado não é professor de ética, nem de política, nem de coisas que condicionem o desenvolvimento normal da personalidade. Pareceu-me que foi aqui - na conjugação destes dois princípios e no direito fundamental de todos ao ensino - que justificou, primeiro, o dever do Estado de garantir a existência de uma rede de ensino mas, por outro lado, de permitir ao ensino privado que exista, que faça parte dessa rede nacional de ensino. Pergunto-lhe: é esta a sua tese?

O Sr. Dr. Luís Costa: - É exactamente essa a filosofia.
De facto, o Estado deverá ter uma rede aberta aos vários agentes educativos - o próprio Estado, os particulares, o sector cooperativo, os municípios - e não conceber como uma rede meramente pública a rede escolar nacional.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): A vossa proposta está, de algum modo (não sei se teve em conta isso), coberta pela proposta que faz o Partido Social Democrata nesta matéria, visto que propomos a eliminação da palavra "público" no artigo 75.º, n.º 1. No fundo, aquilo que propõe a Associação está garantido já por uma proposta institucional, feita dentro da própria Assembleia. Não sei se leu esse texto?

O Sr. Dr. Luís Costa: - Sr. Deputado, por um lado, quando este documento foi elaborado, ainda não havia o projecto de revisão constitucional do Partido Social Democrata; por outro lado, há uma pequena questão de pormenor, que é a diferença entre o criar e promover. A criação implica um esforço do Estado de edificação da rede; a promoção abre a possibilidade de desenvolvimento da rede do Estado através de contratos-programa com particulares.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): Muito obrigado. Estou esclarecido, Sr. Dr. Luís Costa.

O Sr. Presidente: -Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, devo dizer que foi com grande interesse que acompanhámos esta exposição e que lemos o documento fornecido à Comissão, porquanto ele corrobora cabalmente a ideia de que o Cabo Bojador foi ultrapassado, felizmente, na primeira revisão constitucional - e, portanto, não estamos, hoje, obrigados a reabrir ou a repetir as discussões do passado sobre as relações e o Estatuto do Ensino Privado e Cooperativo -, que podemos fazer este debate de olhos postos naquilo que entretanto fomos construindo, com razoável consenso e sem especiais polémicas, e que se trata agora de, no plano da lei ordinária, garantir aquilo que, infelizmente, não pode ser garantido na letra da lei constitucional e que exige mais financiamentos, coordenações etc., etc.
A proposta apresentada como sugestão legislativa constitucional pode colocar alguns problemas. Isto porque o actual n.º 1 do artigo 75.º da Constituição tem uma virtude: apontando para deveres do Estado no que diz respeito àquilo a que chamaria rede pública, admite, desde a primeira revisão constitucional, a rede privada e cooperativa e pressupõe, da parte do Estado, sem dirigismo, sem directivismo e sem substituição das iniciativas privada e cooperativa, capacidade de articulação - não de substituição, não de remar, mas de orientar o leme dentro de limites e garantir que as duas coisas, ensino privado e cooperativo e ensino público, se articulem e, designadamente, até, que sejam possíveis fluxos entre um e outro e um funcionamento globalmente satisfatório, a que eu chamaria rede nacional. Se substituirmos este conceito - rede pública e rede privada e cooperativa - por um conceito único de rede nacional, deixando indelimitado qual é o papel da rede pública e da rede privada, não sei se não resultaria daqui a ideia de que o Estado devia dirigir todas as componentes da rede, inclusivamente a privada, o que está, obviamente, fora da vossa proposta e do vosso espírito, e do nosso, seguramente. Mas a letra da Constituição é crucial e o que não diz, não diz; e o que

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autoriza passa a autorizar. É o que, creio, resulta da vossa leitura. Porque não se percebe qual é a diferença de papel do Estado, neste cenário, em relação ao ensino público e em relação ao ensino privado.
Ora, a verdade é que essa diferença tem que existir sempre, a bem da autonomia do ensino privado.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Luís Costa, tem a palavra.

O Sr. Dr. Luís Costa: - Sr. Presidente, a questão tem um pouco a ver com a terminologia enquadrante do sistema de ensino e esta nossa questão de pormenor em relação à rede pública tem a ver, fundamentalmente, com alguns entendimentos que existem relativamente a esse conceito de rede pública. Aliás, o actual Ministro da Educação, numa primeira fase, admitiu a rede pública como uma rede que competiria a um sector estatal e a um sector não estatal. Entretanto, numa segunda fase, já se distinguiu entre rede pública e rede não estatal, digamos assim. Isso tem-se prestado a algumas confusões, em termos práticos, no campo da política educativa, do acesso a alguns apoios comunitários. Daí que, em nosso entender, também haja uma questão prática de alterar esta questão da rede pública.
De facto, o termo rede, per si, pode ser ambíguo; contudo, existem outras questões do quadro constitucional, em termos das liberdades e garantias, que condicionarão o Estado em termos dessa participação, porque a Constituição e o próprio quadro legal português já possibilita o direito de criação de escolas particulares e cooperativas, bem como garante o direito à liberdade de ensinar e de aprender.
Portanto, se está garantido o direito à liberdade de ensinar e de aprender, a rede tem de estar enquadrada por esse direito constitucional. É, de facto, uma questão de pormenor, é uma questão técnica com que há que ter algum cuidado, mas foi a melhor solução que encontrámos.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Luís Costa, obrigado pela sua cooperação, não só por nos ter apresentado o projecto mas também por ter respondido às perguntas que lhe foram colocadas. Permaneça connosco, se o poder fazer.
Temos agora a audição da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas.
Tem a palavra a Presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida. Tratando-se de um projecto de relativa dimensão, tem 10 minutos para fazer a respectiva apresentação.

A Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Associação Portuguesa de Mulheres Juristas): - Quero começar por saudar, em nome da direcção da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e em meu nome pessoal, a Comissão Eventual e, em especial, a pessoa do Sr. Presidente e agradecer a oportunidade desta apresentação pública da proposta por nós aqui enviada.
A proposta de alteração constitucional que entendemos dever apresentar assenta fundamentalmente em dois eixos.
O primeiro respeita à consagração de uma diferente natureza jurídica do conceito de igualdade. Pretendemos que a igualdade passe a ser configurada não como um princípio geral mas como um direito fundamental dos cidadãos. Pensamos que esta é uma alteração que vai ter consequências determinantes na organização política do Estado e do sistema jurídico; logo, na própria ciência da democracia.
O outro eixo fundamental diz respeito à menção, na Constituição, de protecção dos interesses das crianças. Entendemos que esta matéria deve ser chamada à Constituição em sede de tarefa fundamental do Estado.
Passarei a explicar em detalhe, em função destes dois eixos, as alterações que propomos serem introduzidas.
No que respeita à defesa dos superiores interesses da criança, propomos que o artigo 9.º tenha uma nova alínea, a que demos a indicação de alínea d), no sentido de chamar como uma das tarefas fundamentais do Estado, a defesa dos interesses das crianças. E porquê? Porque o saudável desenvolvimento das crianças integra um conceito de democracia, é condição do bem-estar do povo, e não há qualquer razão para que a Constituição ignore a criança como destinatário autónomo de um dever de protecção e cuidado e na prossecução dos seus interesses. Esta preocupação quer parecer-nos que deveria ser assumida pelo Estado com toda a dignidade constitucional, e daí que a chamemos para o artigo 9.º.
No que respeita à alteração do conceito de igualdade, propomos, para além da menção que se faz no artigo 9.º, que o artigo 13.º, sob a epígrafe "Princípio da igualdade", tenha uma nova redacção. Aqui, queríamos fazer uma breve observação: temos consciência de que a alteração que propomos que seja feita do conteúdo destas normas não coincide com a epígrafe nem coincide com a sua colocação sistemática actual. No entanto, entendemos, como proponentes, que não nos era lícito alterar a sistemática da Constituição e daí que entendêssemos dever cometer este pequeno erro formal de, sob a epígrafe de um princípio, falar de um direito.
Entendemos que a consagração constitucional da igualdade como direito fundamental tem como consequência, designadamente, a imposição ao Estado de uma obrigação de resultado: a obtenção da igualdade de estatuto entre os homens e as mulheres, sendo o controlo desse objectivo para o Estado uma das garantias da efectividade do Direito Fundamental.
Por outro lado, essa consagração conferirá a todos o direito de, sendo caso, se queixarem de uma concreta violação de um direito fundamental, bem como permite a introdução de um mecanismo jurídico, a participação paritária de homens e mulheres em todas as instituições e órgãos dependentes do Estado, como garantia de efectivação desse direito.
Daí que, mantendo embora a actual redacção do n.º 2 do artigo 13.º, que consagra o princípio geral da não discriminação, entendemos que a igualdade deveria passar a constar de um n.º 1 afirmado como direito fundamental e, logo, como uma formulação positiva e não apenas negativa, como consta do actual n.º 2.
Por outro lado, propomos, ainda, a introdução de um n.º 3 ao artigo 13.º, que respeita à consagração da ideia de que "Não ofendem o princípio da igualdade as normas destinadas a promover a efectiva igualdade de oportunidades entre mulheres e homens."
Esta formulação permitirá, do nosso ponto de vista, que a legislação ordinária venha a prever, de uma forma clara e esclarecedora, programas e políticas que estabeleçam acções positivas, com vista à promoção da efectiva igualdade de oportunidades.
As alterações que propomos em seguida são corolários destas duas ideias fundamentais.
Assim, e sem prejuízo de, nos artigos 40.º e 95.º, referirmos as organizações não-governamentais como

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entidades que deveriam ter uma menção no texto constitucional, entendemos que o artigo 59.º, que se refere aos direitos dos trabalhadores, deveria consagrar como um dos seus direitos, o da conciliação da vida profissional com a vida familiar, uma vez que é sabido pela prática da vida que tem cabido, de facto, às mulheres os cuidados dispensados às crianças, aos adultos idosos e às pessoas com necessidades especiais em casa e fora de casa e que estas práticas têm contribuído, e contribuem, para obstar quer à sua realização profissional quer a uma mais ampla participação na vida pública.
Ao conferir dignidade constitucional à matéria da conciliação da vida profissional e da vida familiar pretende-se, simultaneamente, conferir aos trabalhadores e trabalhadoras o direito ao seu efectivo exercício e ao Estado a obrigação de o garantir.
Por outro lado, entendemos que deveria ser formalmente alterado o princípio de "a trabalho igual, salário igual", porque tem tido uma interpretação perversa em muitas empresas, que continuam a atribuir às mulheres remunerações mais baixas, repartindo o trabalho de forma desigual e impedindo-as de desempenhar determinadas tarefas, sendo certo que as desempenhadas pelos homens não têm valor superior. Daí que proponhamos uma redacção em que se refere "igualdade de remuneração para trabalho de valor igual".
No artigo 64.º, que se reporta à saúde, entendemos dever incluir, de uma forma expressa, a saúde sexual e a saúde em matéria de procriação no chamado direito à saúde. Fizemo-lo para dar voz a uma das conclusões da 4.ª Conferência Mundial da ONU sobre as Mulheres, a chamada Conferência de Pequim, que consta dos seus documentos finais subscritos pelo Estado português.
No que respeita à família, procurámos, no artigo 67.º, dar a correspondência ao artigo 59.º, no que se reporta à conciliação da vida familiar com a vida profissional, e, na alínea e), corrigir aquilo que nos parece ser um lapso de escrita da Constituição quando omite a palavra "maternidade" e refere apenas "paternidade".
No que se reporta ao ensino, entendemos que, no artigo 74.º, deveria constar como um dos seus objectivos o veicular uma imagem de igual participação de homens e mulheres na vida pública profissional e familiar. Parece-me ser inútil explicar a razão de ser desta alteração.
Finalmente, no que diz respeito à matéria de Direito Eleitoral, entendemos que deveriam estar consagrados os princípios respeitantes à chamada democracia paritária, ou seja, à de uma representação proporcional e equilibrada de homens e mulheres em todos os órgãos electivos do Estado.
Estas são, no fundamental, as alterações por nós propostas.
Muito obrigada.

O Sr. Presidente: - Obrigado, Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.
Inscreveram-se, para usar da palavra, as Sr.as Deputadas Odete Santos e Elisa Damião. A Sr.ª Deputada Elisa Damião é Secretária da Mesa, mas, obviamente, também tem direito a intervir na discussão.
Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Muito obrigada, Sr. Presidente.
De facto, não dispomos de muito tempo, por isso não posso fazer considerações gerais sobre o interesse das propostas que nos são apresentadas pela Associação, que, penso, foi evidente na exposição que foi feita, e tenho de restringir a minha intervenção a alguns pontos concretos, dado que há mais peticionários que querem intervir, e, de facto, estender muito a intervenção seria estar a prejudicar outros peticionários.
Em relação à vossa proposta para o artigo 13.º, gostaria de dizer que encaro com algum interesse o que propõem no sentido de, para além do princípio da igualdade, considerar aqui existente um direito fundamental à igualdade, embora pense que algumas consequências dessa consagração já estão conseguidas na Constituição, uma vez que a Constituição contém já a consagração de alguns direitos fundamentais à igualdade. Salvo erro, no artigo 48.º - Participação na vida pública - já está consagrada a igualdade política, embora, neste caso, não referida especificamente às mulheres.
Daí não tem decorrido, como é um facto, que se tenha conseguido, a nível de composição de órgãos de poder político, aquilo que a Sr.ª Dr.ª chamou a representação paritária, mas, em minha opinião, esse direito já está consagrado na Constituição, embora essa representação paritária não seja automática por força da consagração.
Gostaria de frisar que experiências conhecidas de países nórdicos demonstram que a questão das quotas, que já lá está introduzida, não tem tradução a nível de igualdade social das mulheres, porque os dados e as estatísticas conhecidas desses países nórdicos demonstram que, no que se refere ao acesso das mulheres a cargos dirigentes na função pública, a taxa é reduzidíssima. Portanto, não resolverá o verdadeiro problema da discriminação das mulheres, o que só será feito com a introdução de um princípio de representação paritária.
Não acha que a alteração que fazem ao n.º 1 do artigo 13.º - e essa critico-a, porque não estou de acordo -, suprimindo, quando falam na dignidade, a palavra "social", que para mim tem um significado muito importante porque acentua a obtenção de uma igualdade real e não apenas formal, não tem razão de ser, devendo manter-se na Constituição a referência à dignidade social?

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr.ª Deputada Odete Santos.
Tem a palavra a Sr.ª Deputada Elisa Damião.

A Sr.ª Elisa Damião (PS):- Sr. Presidente, já tive ocasião de, em sede da Comissão, manifestar a simpatia do Partido Socialista pela globalidade destes contributos, pese, embora, algumas formulações careçam de ser revistas, designadamente no que se refere ao artigo 9.º, reconhecendo que isso é extremamente difícil, sem entrarmos na velha polémica das quotas e, enfim, dos mecanismos de justiça e de equilíbrio em termos da representação entre os sexos. Mas o princípio global tem acolhimento no Partido Socialista.
Também no que se refere ao artigo 13.º, o n.º 3 é realmente uma aspiração sobretudo das mulheres socialistas, que, manifestamente, apoiam esta precisão, para que não haja dúvidas, muito embora o nosso ilustre Presidente diga que elas não subsistem e que, portanto, a Constituição já garante, actualmente, o direito à discriminação positiva. Mas a verdade é que somos sempre confrontados com essa dúvida e até com argumentos de inconstitucionalidade quando se introduzem as quotas.

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Consideramos muito importante a chamada de atenção para os direitos das crianças, tal como dos idosos e de outros grupos que, pela sua fragilidade, estão expostos a negligência ou a outro tipo de situações, que a actualidade revela deverem ser enfatizados.
Quero chamar também particular atenção para o artigo 59.º da vossa proposta. Gostaria que explicitassem um pouco mais como pensam defender os interesses das mulheres nesta formulação da alínea b), que defende a conciliação da vida profissional com a vida familiar, mas que me parece vem a recair de novo numa obrigação exclusivamente feminina, uma vez que não está suficientemente clarificada que esta conciliação deve ser equitativamente distribuída.
Muito obrigada.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr.ª Deputada Elisa Damião.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Gama.

O Sr. José Gama (PSD): - Sr. Presidente, quero também saudar a intervenção da Sr.ª Representante da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, e recordei-me daquela frase de Herculano, quando dizia: "Tirai a mulher do mundo e o mundo será um ermo triste e melancólico". A sua intervenção também sacudiu e trouxe vitalidade a uma discussão onde os homens são maioritários aqui, nesta sala.
Talvez por economia de palavras, a sua exposição não foi tão longa quanto eu desejava, nomeadamente para me explicitar melhor aquilo que entende - e repito a sua expressão - por "representação equilibrada", e refiro-me ao n.º 2 do artigo 116.º. Na prática, como é que traduz isso e qual é o seu significado concreto? Isto para eu compreender melhor aquilo que a Associação pretende.
Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Obrigado, Sr. Deputado José Gama.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): Sr. Presidente, Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida, como resulta das palavras da nossa colega Deputada Elisa Damião, acolhemos com muito interesse - e merecer-nos-ão profunda reflexão, como já tem acontecido - as propostas apresentadas pela Associação Portuguesa das Mulheres Juristas. De qualquer forma, em relação a um ou outro ponto, iremos pedir a sua clarificação.
A vossa proposta alude, no artigo 13.º, ao princípio da igualdade distintamente do texto constitucional. O texto constitucional, como se recorda, consagra o princípio da igualdade basicamente em dois pontos: o princípio da igualdade perante a lei e a não discriminação das diferenças. A nossa dúvida, para a qual pedíamos a sua clarificação, é basicamente esta: o princípio da igualdade, como já foi dito, aliás, pela minha colega, permite as discriminações positivas, isto é, tratar de forma desigual os desiguais, para garantir a igualdade de oportunidades. Penso que este é o objectivo da vossa proposta, mas tememos que ela possa ter, no seu limite último, uma solução que pensamos inaceitável, que é a igualdade de resultados, que, aliás, é responsável, como sabe, por soluções históricas inaceitáveis. Por isso esta ponderação, que gostava de pôr à sua consideração.
Uma outra clarificação tem a ver com a proposta que apresentam para o artigo 112.º, que nos merece um acolhimento total. Gostaria que confrontasse o artigo 112.º da vossa proposta com o artigo 48.º do projecto do Partido Socialista, para ver se a nossa proposta - e daí estarmos disponíveis para um aprofundamento do seu conteúdo - corresponde e responde às preocupações essenciais que estão na proposta apresentada pela Associação Portuguesa das Mulheres Juristas para o artigo 112.º, sendo que a nossa proposta, indo ao encontro das preocupações de participação política muito vincadas que salientou, diz que "A lei assegurará a não discriminação em função do sexo no acesso aos cargos políticos, visando um equilíbrio justo de participação entre homens e mulheres". Gostava que pudesse confrontar, para nossa utilidade e interesse, estas duas propostas.
Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Alberto Martins, muito obrigado.
Antes de dar a palavra à Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida, também eu gostaria de fazer uma observação: em duas ocasiões, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, onde a Constituição fala em cidadãos, substitui esta palavra pela expressão "cidadãos e cidadãs".
A minha dúvida é esta: primeiro, isto não implicaria a rescrita total da Constituição, sobretudo em matéria de Direitos Fundamentais? Segundo, isto não é, francamente, um preciosismo?
Tem a palavra, Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida. Se puder comprimir as suas respostas em 5 minutos, agradecia.

A Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida: - Sr. Presidente, começando pelo fim, pela pergunta que agora me colocou, obviamente que é um preciosismo, que, a ser levado a cabo, levar-nos-ia a rescrever a Constituição. Mas não é exactamente esse o nosso objectivo. O objectivo de propormos essa expressão na nossa proposta de alteração - e isto é apenas e tão-só uma proposta de alteração - foi o de chamar a vossa atenção para a circunstância de a Constituição estar escrita no masculino e de a Humanidade não ser composta, graças a Deus, apenas por homens.

O Sr. Presidente: - Sr.ª Dr.ª, a palavra "Humanidade" vem de Homem!

A Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida: - Como!?

O Sr. Presidente: - A palavra "Humanidade" também é masculina! Isto é, é feminina no género, mas vem de Homem!

A Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida: - Certo! Mas é exactamente isso que estou a dizer!
Pelos vistos, esse objectivo foi atingido.
No que diz respeito às outras perguntas, eu agruparia as questões colocadas pela Sr.ª Deputada Odete Santos e pelo Sr. Deputado Alberto Martins respeitantes ao artigo 13.º. Creio que não terei explicitado exactamente a ideia; de qualquer forma, a razão de ser da alteração que propomos diz respeito à alteração da natureza jurídica do conceito de igualdade e quer parecer-nos - e não apenas

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a nós - que a igualdade, tal como está juridicamente concebida no sistema jurídico vigente, é uma igualdade funcional, instrumental e acessória.
"A instrumentalização da igualdade opera-se pela comparação entre um homem e uma mulher e pela interdição de fazer discriminações entre eles em razão do sexo.
Esta comparação permite, todavia, admitir a licitude de práticas diferenciadas segundo o sexo se a finalidade fixada é conforme ao interesse geral ou ao interesse legítimo de particulares (…) e se estas práticas têm em vista prosseguir a realização de tais interesses de uma forma proporcionalmente razoável.
No segundo sistema,…" - que é aquele sistema que gostaríamos que viesse a ser consagrado - "… a igualdade é central, ela é um fim em si e constitui o núcleo duro do direito fundamental. Não se trata já de assegurar de uma forma abstracta direitos teoricamente iguais, mas de garantir que a sociedade humana será organizada pela regra fundamental da igualdade da mulher e do homem, que passa a ser o principal motor de todas as regras de organização política e social".
Isto que acabei de dizer é lido de um texto de uma professora da Universidade Livre de Bruxelas, a Professora Éliane Vogel-Polsky, que tem vindo a tratar esta matéria. Aliás, esta é, obviamente, uma matéria nova, é um desenvolvimento das ideias no campo da ciência jurídica, e justamente porque não é pacífica e porque se trata de algo novo, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas convidou a Professora Éliane Vogel-Polsky para vir a Lisboa fazer uma conferência sobre esta matéria.
Aproveito esta oportunidade para vos convidar a todos vós, sem prejuízo, obviamente, de virmos a enviar os convites próprios, a estarem presentes na Faculdade de Direito de Lisboa, no dia 18 de Outubro, pelas 18 horas, onde não apenas a Professora Éliane Vogel-Posky fará uma conferência mas também o Professor Jorge Miranda fará uma outra, relacionada com a mesma matéria, sobre o tema geral A igualdade e a Constituição. O Professor Jorge Miranda irá referir-se à igualdade de direitos entre homens e mulheres na história do Direito Constitucional Português. Penso que eles, melhor do que eu, vos poderão dissipar quaisquer dúvidas ou responder a questões respeitantes a esta matéria.
No que respeita às questões colocadas pela Sr.ª Deputada Elisa Damião, devo dizer, em primeiro lugar, que, em relação ao artigo 9.º, não me foi colocada qualquer pergunta e, em segundo lugar que, em relação ao artigo 59.º, a explicitação respeitante à conciliação da vida profissional com a vida familiar, a meu ver, tem de fazer-se em sede de legislação ordinária. Do nosso ponto de vista, a Constituição da República não deve descer a esses pormenores; deve remeter para a legislação ordinária a forma de organização da conciliação da vida profissional com a vida familiar.
Esta conciliação tem estado a ser feita nos outros países da União Europeia através de legislação ligada fundamentalmente às licenças de maternidade e paternidade e em outros domínios. Penso que é nessa sede que estas questões devem ser discutidas e resolvidas.
No que se reporta à questão colocada pelo Deputado José Gama, referente ao n.º 2 do artigo 116.º, uma vez quer se trata de princípios gerais de Direito Eleitoral, ela deve ser tratada em sede de legislação eleitoral. Num eventual futuro código eleitoral, penso que esta norma poderá ter o seu cabal cumprimento.

O Sr. Presidente: - Sr.ª Dr.ª, já agora, uma precisão: qual consideraria ser o cumprimento mínimo de uma norma constitucional dessa natureza, se ela fosse consagrada?

A Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida: - De uma representação equilibrada?

O Sr. Presidente: - Exacto!

A Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida: - Não posso responder a essa questão, porque não quero responder que seja um terço, dois terços ou três quartos. Penso que a questão não pode ser analisada desse ponto de vista quantitativo ou estritamente quantitativo.
Finalmente, a última questão, posta pelo Deputado Alberto Martins, diz respeito ao confronto entre o artigo 48.º da proposta apresentada pelo Partido Socialista e o artigo 112.º da nossa proposta. À partida, não haverá qualquer confronto; no entanto, pessoalmente, gostaria que a formulação da norma por vós proposta visasse, numa primeira parte, a afirmação pela positiva daquilo que se pretende, isto é, que o equilíbrio seja justo, equilibrado e proporcional, e, numa segunda fase, a afirmação pela negativa. Mas, em princípio, penso que as ideias são essencialmente as mesmas.

O Sr. Presidente: - Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida, obrigado pela contribuição que nos trouxe em nome da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas. Se puder, continue connosco.

A Sr.ª Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida: - Obrigada.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, esgotámos a discussão das contribuições das associações.
Vamos dar início à discussão das contribuições dos peticionários individuais.
O primeiro peticionário, por ordem cronológica de apresentação, é o Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva, que vem de Viana do Castelo, a quem dou 5 minutos, dado o número relativamente reduzido de propostas que nos traz, para fazer a respectiva apresentação.
Tem a palavra, Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Sr. Presidente e Srs. Deputados, no que se refere ao artigo 28.º, n.º 1, sugiro a alteração da redacção actual para "A prisão sem culpa formada será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, se possível, ou no primeiro dia útil imediato, a decisão judicial de validação ou manutenção (…)", no convencimento de que se prestaria a melhor defesa dos interesses perturbados. Devo, porém, salientar uma redacção mais proteccionista e que vai ao encontro de possíveis disponibilidades ocasionais: "(…) no prazo de vinte e quatro horas ou, no máximo, três dias por absoluta necessidade (…)".
Quanto ao artigo 276.º, referenciado no artigo A Nova Fé, cabe-me desejar a alteração, por dever de solidariedade para com os que sofrem em corporações forçadas e indisponíveis. Assim: "7. O cumprimento do serviço militar ou do serviço cívico obrigatório obriga o Estado a reparar, com oportunidade, os prejuízos sofridos pelos incorporados resultantes de diferenças de vencimentos." Permito-me recordar aqui algumas posições que tomei sobre tal matéria

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e que mereceram publicação, seguindo, para o efeito, fotocópias das mesmas sob os n.os 17, 18 e 19.
No que diz respeito ao artigo 154.º, n.º 1, por condicionar a apresentação de candidaturas para a Assembleia da República, a Deputados, aos partidos políticos isoladamente ou em coligação, permito-me esperar a coragem da sua alteração, para possibilitar a liberdade individual, no seguinte sentido: "1. As candidaturas a Deputados para a Assembleia da República são apresentadas pelos próprios candidatos ou pelos partidos políticos por que estejam inscritos e com a anuência esclarecida deles", presentes as disposições dos artigos 10.º, 13.º, 37.º, 48.º, 51.º, 111.º, 150.º e 152.º e o convencimento de que há que inovar para encontrar uma maior concorrência, pela felicidade das eleições e evitar incontroláveis abstenções por falta de fé saudável.
Recordo aqui algumas das minhas indignações, como as sentidas por outros, por só poder votar num dado Deputado, que sabia de qualidade, com a aceitação dos restantes pela respectiva lista partidária, que tinha sem merecimento, ia prejudicar outros em que poderia votar confiadamente. Já em 19 de Agosto de 1996, num artigo de opinião do Primeiro de Janeiro, dei conta do meu desgosto, se bem que por forma pouco inspirada, conforme documento n.º 17.
Penso que a concorrência dos candidatos a Deputados, por si ou até através de partidos políticos por que evidenciassem as respectivas inscrições ao acto eleitoral, por chamamento ou convite edital, como o exemplificado em D) do artigo Provocações, que fazia com que concorresse o melhor, animaria extraordinariamente os votantes por uma nova esperança de se encontrarem os melhores.
No que se refere ao artigo 136.º, desço ao atrevimento de pretender prestigiar Sua Excelência o Sr. Presidente da República, sem prejuízo da Assembleia da República, e também para a felicidade do povo, com as seguintes funções: "(…) e) Convocar a Assembleia da República a aceitar a sua dissolução ou a sujeitar-se à votação dos eleitores para a sua manutenção por uma maioria de dois terços, através de referendo; f) Empossar o Primeiro-Ministro; g) Confirmar a demissão do Governo na pessoa do Primeiro-Ministro; (…); m) Confirmar, sob proposta da Assembleia da República, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Presidente do Tribunal Constitucional, o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, o Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República."
O artigo 155.º passaria a ter a seguinte redacção: "Os Deputados são eleitos pelos círculos eleitorais a que tenham concorrido, por ordem decrescente de votações até ao número fixado, sendo substituídos pelos excedentes e, segundo o referido princípio, por renúncia, impedimento ou motivos de força maior."
O artigo 164.º seria do seguinte teor: "e) Eleger o Governo, na pessoa do Primeiro-Ministro, para que o constitua segundo o seu superior entendimento, e conferir-lhe autorizações legislativas; g) Eleger o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo e o Procurador-Geral da República, entre os magistrados informados pelo Conselho Superior Judiciário,…" - peço perdão, porque, presentemente, é o Conselho Superior da Magistratura e não o Conselho Superior Judiciário - "… e o do Ministério Público e eleger também o Presidente do Tribunal Constitucional e o do Tribunal de Contas; h) Eleger os necessários juízes para o Tribunal Constitucional, o Provedor de Justiça, os precisos membros do Conselho de Estado e para a Alta Autoridade para a Comunicação Social ou outro órgão imprescindível."
O artigo 190.º deveria passar a ter a seguinte redacção: "1 - O Primeiro-Ministro é eleito pelo maior número de votos da Assembleia da República e entre os seus Deputados. 2 - Os restantes membros do Governo são da nomeação do Primeiro-Ministro encontrado e perante ele tomarão posse."
O artigo 194.º passaria a ter a seguinte formulação: "1 - O Primeiro-Ministro é responsável perante a Assembleia da República, que o pode demitir."
O artigo 246.º deveria também sofrer alterações no seguinte sentido: "1 - A assembleia de freguesia e o plenário de cidadãos eleitores, por diminuta população, forma-se por eleição dos votos individuais sufragados pelo respectivo território…" - o da freguesia, naturalmente - "… e por ordem decrescente dos maiores cargos estabelecidos, ficando os excedentes para substituições e segundo o mesmo princípio."
O artigo 247.º deveria passar a ser do seguinte teor: "1 - O órgão executivo da freguesia é a respectiva junta, eleita por escrutínio secreto pela assembleia de freguesia e entre os próprios membros, cabendo os cargos principais aos sucessivamente mais votados."

O Sr. Presidente: - Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva, devo informá-lo que já esgotou o tempo de que dispunha.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Vou já terminar, Sr. Presidente.
O artigo 251.º passaria a ter a seguinte redacção: "A assembleia municipal é constituída pelos presidentes das assembleias de freguesia e por membros em número não inferior ao deles e também não inferior ao do seu corpo."
O artigo 252.º passaria a ser o seguinte: "A câmara municipal é o órgão executivo do município, eleito por escrutínio secreto por todos os cidadãos das assembleias de freguesia respectivas e entre eles, cabendo os primeiros lugares aos mais votados, e sem prejuízo das substituições que possam acontecer em conformidade com o disposto no artigo 155.º"
Atrevo-me a sugerir, pela preocupação de poder concorrer para a felicidade nacional dos Srs. Deputados sobre a reforma constitucional por que muito se espera, que:
A - O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça faça parte do Conselho de Estado, considerando que o Supremo Tribunal de Justiça está em primeiro lugar (artigo 133.º) para julgar o Presidente da República e a utilidade que por ele possa ter, sem prejuízo de, pelo mesmo conselho, se manter o Presidente do Tribunal Constitucional (artigo 148.º);
B - Subsista a disposição do artigo 187.º por forma nova;
C - O referendo esteja limitado à decisão da Assembleia da República (n.º 2 do artigo 118.º);
D - Se fixe a idade para elegibilidade dos cidadãos eleitores à Presidência da República entre os 25 e os 60 anos de idade, para aproveitamento cautelar das suas melhores faculdades mentais;

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E - Se aproveite o disposto no artigo 153.º para estabelecer a elegibilidade dos Deputados pela idade entre os 18 anos, face ao disposto no artigo 130.º do Código Civil, embora com apreensões pela importância de consciência e ciência da responsabilidade de legislar e fazer triunfar a felicidade nacional, e os 60 anos, porque ainda não estarão em evolução degradante e pelo mais a que estão obrigados os funcionários do Estado;
F - A assembleia de freguesia e a assembleia municipal estejam graficamente diminuídas em relação à Assembleia da República (artigos 150.º, 246.º e 251.º) e a contrariar os princípios da igualdade de tratamento;
G - Igual ofensa se mantenha a presidentes e juízes (artigos 103.º, 155.º, 157.º e outros);
J - E ao povo pertence o poder político e é em nome dele que se administra a justiça (artigos 111.º e 205.º), sem considerações bastantes.
Se me dá licença, Sr. Presidente, antes de mais, agradeço a atenção que V. Ex.ª teve em, pela primeira vez, escutar o povo e também a paciência de VV. Ex.as, Srs. Deputados.
Tive muitas dúvidas em vir aqui e, à cautela, escrevi este texto, que está dirigido a V. Ex.ª, para a hipótese de não conseguir cá vir. Como consegui vir, aproveitei para lê-lo, embora seja um pouco extenso.
Por outro lado, também apresento aqui trabalhos, que são algumas reflexões para que VV. Ex.as façam as construções que entenderem.
De maneira que, Sr. Presidente, talvez fosse melhor oferecer uma fotocópia de tudo isto, se V. Ex.ª… Pretendo deixar aqui este documento, mas, se V. Ex.ª assim o entender, dar-se-á uma fotocópia aos Srs. Deputados.
Perdoem-me por eu sugerir as próprias redacções, sabendo muito bem que é uma contribuição tacanha mas que é também, digamos, uma provocação.
Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva, pela sua contribuição e por se ter disponibilizado a vir de Viana do Castelo para apresentar aqui as suas propostas e responder às eventuais perguntas ou comentários que lhe sejam feitos.
Naturalmente, o documento que nos leu será acolhido pela Comissão e distribuído aos seus membros.
Peço aos Srs. Deputados que queiram fazer perguntas ou comentários em relação às propostas do Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva o favor de se inscrever.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - V. Ex.ª dá-me licença, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Faça favor.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Sr. Presidente, se V. Ex.ª, depois, me consentir, responderei caso a caso, imediatamente, e sem perturbar nada, porque já me falha um pouquinho a memória. Enfim, já tenho a minha idade.

O Sr. Presidente: - Enquanto aguardo as inscrições dos Srs. Deputados, eu próprio tenho uma pergunta a fazer.
Uma coisa comum às propostas do Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva é, em geral, diminuir os poderes do Presidente da República e aumentar os da Assembleia da República, ou seja, em geral, pretende "assembleiarizar" o regime político. Pergunto se não lhe parece que o actual sistema, que temos desde 1976, é um sistema - aquilo a que nós chamamos misto, um sistema semipresidencialista segundo uns, um sistema misto, segundo outros - que tem provado bem e, portanto, não carece de alterações tão grandes como aquelas que propõe.
Em segundo lugar - e esta é uma segunda observação -, pergunto se não lhe parece que, sendo a nossa cultura baseada na ideia de que a senioridade dá virtude e saber, as suas propostas de limitação da titularidade de cargos políticos a pessoas que ultrapassem os 60 anos nuns casos ou os 70 anos noutros vai contra essa nossa tradição cultural de que senioridade é igual a virtude e saber.
Eis as perguntas a que gostaria de o ouvir responder.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Sr. Presidente, para essa pergunta só tenho presente uma coisa: o tempo é outro! Não podemos agora pensar na tradição! Estamos noutro tempo! Os meninos, hoje, têm logo, muito cedo, pela frente a televisão, têm pela frente os computadores. Peço desculpa e, se bastar, não digo mais nada.

O Sr. Presidente: - Mas o que acontece é que, hoje, a evolução vai no sentido do aumento progressivo da esperança de vida e, portanto, o período de manutenção activa das pessoas prolonga-se para além de idades que, antigamente, não eram possíveis, desde logo porque as pessoas não atingiam essa idade.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Sr. Presidente, a ideia da imprescindibilidade parece-me muito falível. É pensar num dado menor contra um muito maior que fica.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, quero apenas não deixar de registar que, além da atenção que a exposição merece, ela comporta tais alterações à arquitectura constitucional, designadamente a esses equilíbrios bastante subtis e que são o resultado de uma luta histórica e de polémicas que fomos resolvendo num sentido que permitiu equilíbrios, que não podemos reconhecer-nos em tão funda alteração, designadamente parlamentarizadora, como, de resto, avultava da pergunta que o Sr. Presidente fez.
Por outro lado, algumas das limitações introduzidas ou propostas ou aventadas quanto, por exemplo, a condições de exercício de cargos, conduziriam a que, por exemplo, o Presidente Soares não tivesse podido exercer o seu segundo mandato, por exceder manifestamente a idade.
Por outro lado, no limite superior, tanto quanto percebi, propõe-se que, por exemplo, os candidatos a Deputados tenham de ter mais de 25 anos…

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Não, não! Perdão! Mais de 18 anos!

O Sr. José Magalhães (PS): - Ah! 18 anos…

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Não devem é exceder os 60 anos. E porquê os 60 anos?

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O Sr. José Magalhães (PS): - É que, num dos documentos que nos foi mandado, consta, sob o título de "Provocações", o seguinte: "1.ª-Edital:…

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Ah! Mas eu, aqui, ao apresentar este trabalho, faço a rectificação e corrijo algumas situações.

O Sr. José Magalhães (PS): - Muito bem!
Em relação à proposta atinente…

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Aliás, peço perdão, Sr. Deputado, eu, aqui, ao ler isto, e não sei se V. Ex.ª entendeu, se V. Ex.ª, realmente, esteve atento a isso, mas talvez lhe tenha escapado, digo que, embora entenda que os 18 anos talvez seja pouco, a verdade é que está no Código Civil que, aos 18 anos, as pessoas são plenamente maiores.

O Sr. Presidente: - Mas a questão que foi colocada foi a de que, com as limitações de idade que o Sr. Joaquim Nunes da Silva nos propõe, o segundo mandato do Presidente Soares, por exemplo, não teria sido possível e alguns dos nossos mais brilhantes e sabedores Deputados não poderiam, actualmente, exercer o mandato.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Mas alguns dos nossos mais brilhantes… E quantos são os outros que ficam? Quantos são os outros que estão lá fora? Quantos? São imensos! Perdoe-me, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Portanto, é um privilégio à juventude aquele que o Sr. Joaquim Nunes da Silva nos propõe.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - É um privilégio relativamente à juventude. A juventude é muito maior!
Peço desculpa, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Por favor, Sr. Nunes da Silva. Está à vontade.
Não tenho mais inscrições, pelo que me resta agradecer, mais uma vez, ao Sr. Joaquim Nunes da Silva pela sua contribuição. Peço-lhe que permaneça connosco, se o puder fazer.
Vamos agora ouvir o Sr. Manuel Jorge Caramelo, a quem informo que tem 5 minutos para fazer a apresentação das suas propostas.
Tem a palavra, Sr. Manuel Jorge Caramelo.

O Sr. Manuel Jorge Caramelo: - Sr. Presidente da Comissão, Sr.as e Srs. Deputados Membros da Comissão, Senhoras e Senhores: A apresentação do modesto contributo que entendi por bem apresentar nesta Assembleia da República, no passado dia 8 de Fevereiro, no que concerne à modificação do Título X da Constituição, consagrado à Defesa Nacional, não resultou de um impulso momentâneo ou de uma qualquer vaidade despropositada. Tomei a iniciativa no sentido de condensar um pensamento que já vinha expressando e divulgando em diversos órgãos da comunicação social. Os estudos sobre a reestruturação e redimensionamento das Forças Armadas continuam em marcha lenta e submetidos a visões megalómanas, carentes de decisões políticas corajosas. Não podemos é passar a vida a fazer estudos, seminários ou a criar centros de reflexão. Sejamos humildes e reconheçamos que tudo está estudado, reflectido e testado, para seguirmos decididamente em frente.
Certamente que a Assembleia da República irá reavaliar o exagero das medidas estruturais orgânicas programadas para os três ramos das Forças Armadas. Parece imperativo reduzi-las, adaptá-las e modernizá-las, à medida de um país territorialmente pequeno, financeiramente débil, com grandes carências de outra ordem a exigirem maior prioridade de resolução.
Somos pioneiros da Aliança Atlântica e integramos a União da Europa Ocidental, como pilar da política de defesa e segurança comum europeia, onde Portugal tem pleno direito de negociar projectos bilaterais. Como é sabido, a UEO irá ter os meios para exercer um controlo político e militar em operações decididas apenas pelos aliados europeus para resolver eventuais crises regionais.
O objectivo-farol que deve presidir à reestruturação das Forças Armadas pode resumir-se a dois aspectos fulcrais: conseguir uma defesa militar mais eficaz e menos dispendiosa.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: As Forças Armadas, como qualquer grande empresa do sector produtivo, só são viáveis e só se justificam se garantirem limites rentáveis de produtividade. Ora, o produto final das Forças Armadas é fundamentalmente a feitura da guerra, que ninguém deseja, ou a manutenção da paz por meios de actuação dissuasora. Num e noutro casos, e nos tempos actuais, os trabalhadores, ou seja, os potenciais combatentes têm de ser competentes e eficazes no seu mister, proporcionando ao material moderno o rendimento que ele produz se bem operacionalizado. Os militares só poderão corresponder a esse desiderato se possuírem craveira intelectual, competência técnica e destreza psicofísica. Destas capacidades, umas são inatas e outras só se adquirem com elevado, cuidadoso e persistente treino, com instrutores e monitores de elevado gabarito. Não são 12 meses nem 8 e muito menos 4 de instrução militar que habilitam qualquer mancebo a ficar minimamente apto a participar em acções no campo de batalha do século XXI.
Por isto e por muito mais, que não há tempo para desenvolver, o Estado português não deverá continuar a alimentar um sistema de serviço militar obrigatório baseado em mancebos conscritos, retirados abruptamente e contra a sua vontade ao tecido social civil. Entendo que a defesa nacional constitui um vector de cidadania mas o serviço militar obrigatório não!
Também não podemos pensar nas Forças Armadas como uma agência de empregos ou como animação das localidades onde há aquartelamentos. Há também quem defenda a ideia de que, para se ser bom patriota e não pôr em risco a coesão nacional, tem de se passar pelas fileiras militares. Por considerar que assim não é, dei relevância, na minha proposta, ao papel da escola. Está provado que a eficácia militar só se pode atingir com um sistema militar profissional. E não venham, alguns, agitar os medos de uma força pretoriana, revelando desconfiança pela força legítima do poder civil democrático. Temos, contudo, que assegurar àquele sistema uma feição humanística, de intercâmbio e estreita ligação à sociedade civil, com especial abertura às escolas. Os jovens poderão não escolher o ofício das armas, mas devem conhecer o que são e para que servem os quartéis. As tropas profissionais estarão aptas a enquadrar as populações numa

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eventual necessidade de passagem à situação de resistência activa ou passiva. A filosofia de captação de voluntários para a profissão militar, em função dos perfis adequados às diversas especialidades, deve assentar directamente no mercado de trabalho em regime de alistamento contínuo, como acontece já em vários países europeus da nossa dimensão.
A outra vertente do objectivo a alcançar, a redução das despesas, implica várias acções: no campo dos efectivos, não ultrapassar os 15 000 homens, atento o facto de o Exército actual, com cerca de 40 000 homens, suportar um escasso efectivo operacional, que fica aquém dos 2000; reduzir proporcionalmente o quantitativo de oficiais generais, pois só no Exército há 76 - mais do que no tempo da Guerra Colonial - e, legalmente, deveria haver apenas 37, e dos oficiais superiores, sendo que, durante a Guerra Colonial, o número de coronéis atingiu os 231, hoje são 438 e o quadro aprovado autoriza 175; fundir os Estados-Maiores dos ramos e o Estado-Maior-General das Forças Armadas num Estado-Maior conjunto, por forma a criar uma estrutura única de comando, direcção e planeamento, menos pesada e mais eficiente; disponibilizar o pessoal civil supérfluo em certos sectores para a redistribuição por outros organismos do Estado dele carente; acabar com a figura da discórdia que é o objector de consciência, sendo que o meu projecto o elimina graças ao novo conceito de serviço cívico e à extinção do serviço militar obrigatório.
No campo das despesas, poupar-se-á, com essa extinção do serviço militar obrigatório, que não detalho por falta de tempo, com a redução de efectivos nos vários escalões da hierarquia, com a dispensa do serviço activo do pessoal na situação de reserva, com o abaixamento orgânico dos postos dos chefes e directores de muitos departamentos e repartições, etc.
Uma coisa é certa, Sr. Presidente e Srs. Deputados, o texto constitucional não poderá alimentar um sistema militar que não garanta a existência de soldados de qualidade, se quisermos ter umas Forças Armadas para se confrontarem com as tecnologias do século XXI.
Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Coronel Manuel Jorge Caramelo. Peço-lhe desculpa pelo facto de, inicialmente, não ter feito referência à sua qualificação profissional, mas não tinha aqui, à minha frente, essa indicação…

O Sr. Manuel Jorge Caramelo: - Sou um cidadão comum, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Por favor, Sr. Coronel, esta qualidade dá-lhe particular qualificação, dado o texto da sua petição se referir exactamente às Forças Armadas. Foi por isso que fiz questão de mencionar a sua qualificação profissional.
Estão inscritos, para formular perguntas, os Srs. Deputados Alberto Martins e Luís Marques Guedes.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Sr. Coronel Jorge Caramelo, da sua exposição, que é uma exposição na qual estão implícitas opções importantes, retemos, basicamente, duas questões, uma das quais respeita à ideia da opção constitucional quanto à defesa nacional, à organização das Forças Armadas e à prestação do serviço militar.
Temos para nós que há questões constitucionais, na sua intervenção, e questões de opção política das Forças Armadas. E temos também para nós, naturalmente, que as questões constitucionais respeitantes à defesa nacional e à defesa militar devem ser relativamente económicas. Aliás, nesse sentido, o Partido Socialista, como proposta nuclear, para além do que já está no texto constitucional, apenas pretende desconstitucionalizar ou tirar da Constituição a ideia do serviço militar obrigatório como serviço básico na organização das Forças Armadas.
Sr. Coronel, julgo que a sua proposta encerra a ideia de que a defesa da pátria ou a defesa militar da República, como se queira, cabe a todos os portugueses e a sua execução às Forças Armadas e parece estabelecer uma destrinça entre serviço militar, que até pode ter uma componente básica de natureza profissional - como central -, e defesa da pátria, enfim, como serviço cívico. Aliás, creio que a sua proposta se aproxima, em grande medida, de uma proposta similar que já ouvi, e creio que o autor está aqui presente, do Professor Jorge Miranda.
A minha dúvida é esta: a parte inicial, a participação de todos os portugueses na defesa da pátria e na defesa nacional, bem como as suas linhas gerais, parece-me ser um valor que deve estar inscrito na Constituição; já quanto à questão das políticas, nomeadamente se o serviço deve ser basicamente profissional, voluntário, conscrito, creio que se trata de uma opção política relativamente à qual não temos ainda ideias muito precisas, sendo certo que o que temos agora é uma solução que é repudiada genericamente, porque os quatro meses acabam por ser uma espécie de curso acelerado ou de aulas cívicas e nem sequer treino militar adequado acabam por conferir.
Eram estas as questões que queria pôr à sua consideração.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Coronel, muito rapidamente, quero só pedir a opinião do Sr. Coronel, em face de duas questões concretas, uma das quais não consta do seu projecto e a outra, enfim, não fica clara para nós, pela leitura que nos apresentou.
Quanto à primeira, que não consta do seu projecto e relativamente à qual gostava de ouvir a sua opinião, no contexto do artigo que tem a ver com as Forças Armadas - e, na economia da sua proposta, penso que a epígrafe que utiliza é "Defesa militar" - e naquelas que são, habitualmente, as incumbências das Forças Armadas, o Sr. Coronel não toca naquilo que vem sendo crescentemente uma actuação das Forças Armadas e que tem a ver com missões ligadas à protecção civil. Gostava de saber qual a opinião que tem sobre essa necessidade ou, se a sua opinião for contrária, o porquê de entender não ser adequado alterar-se o texto constitucional no sentido de, expressamente, se colocarem as missões de protecção civil como uma das incumbências das Forças Armadas.
A segunda questão em relação à qual peço uma clarificação do seu projecto tem a ver com o serviço cívico. É que fico sem entender muito bem se o projecto do Sr. Coronel vai no sentido de o serviço cívico continuar a ser sempre substitutivo do serviço militar, porque, da redacção que decorre do artigo que nos formula,

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desaparece aquilo que a Constituição, actualmente, estabelece, quando trata do serviço cívico, que é exactamente o facto de o colocar como uma prestação substitutiva do serviço militar.
Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Sr. Coronel, vou dar-lhe a palavra para responder a estas perguntas e peço-lhe que, desta vez, comprima a sua resposta em 5 minutos.

O Sr. Manuel Jorge Caramelo: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, relativamente às questões apresentadas pelo Sr. Deputado Alberto Martins, se bem entendi, a defesa nacional - e isto levaria algum tempo a explanar - tem uma abrangência tão vasta que a componente "defesa militar" é ou podemos considerá-la relativamente restrita. A defesa da pátria é um conceito que se pretendeu salientar na minha proposta, individualizando-a num artigo, porque ela se encontra baralhada no artigo da Constituição em que, efectivamente, se refere a defesa da pátria, o serviço militar e o serviço cívico. Tenho a sensação de que, com a individualização da noção de defesa da pátria, dá-se-lhe um papel de relevância e é aí que se salienta o papel importante da escola perante as novas gerações no que respeita ao entendimento dos valores relacionados com a unidade nacional, a solidariedade entre os cidadãos e os povos, no âmbito do pensamento democrático e da vontade colectiva de defesa nacional. Penso que é na escola, até à universidade, evidentemente, que o cidadão português tem de começar a ser alimentado e imbuído de noções, de discussões sobre o que é a pátria. Não podemos impingir-lhe à pressão uma ideia patriótica ou de patriotismo que, inclusive, muitos defendem que se vai "beber" às fileiras das Forças Armadas. Portanto, esta individualização parece-me razoável.
Na questão da defesa militar, anulei o aspecto das Forças Armadas, visto que as Forças Armadas são já uma componente da defesa militar e vão estar integradas e orientadas por normas de lei ordinária. Aliás, veja-se que existe Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas. Portanto, também aí, na parte da defesa militar, entendo que o serviço militar obrigatório tem de ser substituído pelo sistema profissional militar, porque considero que tem de haver um corpo permanente de quadros e tropas profissionais, de efectivos em número muito limitado mas rigorosamente seleccionados e preparados para a guerra.
Portanto, quanto à opção política e às ideias que ainda têm como imprecisas e que ainda não decidiram, é razoável que se coloquem dúvidas, mas penso que temos, neste momento, uma série de vectores que nos empurram para aquilo que se passa nos países europeus, nos nossos vizinhos, etc., no que respeita à tomada de decisão.
Por outro lado, temos de pensar no seguinte: Portugal é pobrezinho, pelo que temos de ser poucos e bons. Portanto, temos de ter um Exército pequenino e umas Forças Armadas pequenas, capacitados de que amanhã o nosso maior inimigo será a tecnologia. E não pode ser com mancebos que vêm aprender a fazer continência e a marcar passo nas Forças Armadas que vamos fazer frente a isso.
Quanto ao que disse o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, penso que a minha proposta, na definição de objectivos gerais da defesa nacional acrescentou alguns, não com o efeito de encher mais papel mas de - lá está! - salvaguardar, individual e colectivamente, os valores morais e materiais da comunidade, nomeadamente a preservação da liberdade e da segurança das populações, que já estava na anterior Constituição, a protecção dos seus bens, do património público e a defesa do meio ambiente. Ora, como a defesa militar é uma componente da defesa nacional, implicitamente, estes, por arrastamento, podem vir a ser, e devem ser, missões atribuídas às forças militares.
A questão do serviço cívico nada tem a ver com o serviço militar, porque deixa de haver indivíduos aptos ou inaptos; há, sim, indivíduos voluntários para seguir a profissão. De maneira que a parte do serviço cívico é apenas uma questão voluntária, em que um departamento interministerial deverá admitir que os jovens, com a escolaridade obrigatória completada e à procura do primeiro emprego, possam, como voluntários e enquanto esperam a sua entrada no mercado de trabalho, ser admitidos em instituições de solidariedade social, em instituições humanitárias, de protecção do ambiente, hospitais, bombeiros, protecção civil, etc. Portanto, é uma ocupação do tempo, para, em vez de termos os jovens aí pelas ruas, lhes podermos dizer: "Alto! Venham cá, ganham o ordenado mínimo nacional, ou o que se entender, e não andam por aí, estão a fazer alguma coisa de útil à nação".
Peço desculpa por ter ultrapassado o tempo, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Sr. Coronel, obrigado pela sua disponibilidade para se deslocar à Comissão para apresentar as suas propostas e responder aos comentários que foram feitos.
Peço, agora, ao Dr. João Rio que apresente as suas propostas. Dr. João Rio, dado não ter feito muitas propostas, tem 5 minutos para as apresentar e, se poder reduzi-los, melhor.

O Sr. Dr. João Armando Soares Pereira de Aragão e Rio - Sr. Presidente e Srs. Deputados, tenho de ser breve. Gostaria de ter a capacidade de síntese de Cristo no Padre Nosso, mas espero que o meu colega António José de Almeida, com a sua eloquência, paire sobre mim e me ajude a expor brevemente.
Vou começar pelo segundo pedido, que é a abstenção. Sempre me revoltou que, no apuramento dos votos de quem vai votar e se quer abster, esses votos sejam considerados nulos ou em branco. No entanto, os votos daqueles que, na comodidade da casa, por preguiça ou indiferença, não vão lá são chamados de abstenção.
A minha proposta é a de que, no boletim de voto, passe a constar um quadradinho com a palavra "abstenção", dando às pessoas que se querem abster um direito igual ao que os Srs. Deputados têm na Assembleia da República quando se abstêm, e que se diferencie a abstenção dos que não vão lá, chamando-lhe abstenção passiva, da abstenção daqueles que vão lá e manifestam o seu desejo político, designando-a de abstenção activa.
Passo, agora, ao primeiro pedido, a respeito do referendo. Sobre ele, referi na minha petição o seguinte: "Seja qual for a forma final, porque melhor ou pior apoiarei sempre esta forma de expressão, que será democrática,…" - isto é que quis salientar - "… se o povo for bem e convenientemente esclarecido, ou resultará (…)" demagógica, se isso não acontecer. E dei como exemplos a maioria "democrática" do Hitler, que o levou ao poder, e a maioria do CIS, que não chegou a levar o CIS ao poder - são maiorias demagógicas.

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O meu pedido básico é o de que a contagem de votos, no referendo, não seja topográfica, porque, como referi na minha petição, nas presidenciais, houve um homem que, no fim das eleições, disse: "Eu agora sou presidente de todos os portugueses". Ora, o referendo não pode falar, não pode dizer que é o referendo de todos os portugueses e não gostaria de ver dividido o meu país em zonas de "sim" e "não"; gostaria que a contagem do referendo fosse global e não se pudesse inferir de que região é que a opinião veio.
Um outro pedido é mais uma preocupação, é a regionalização. Administrativamente, é bonito, é correcto, mas, politicamente, tenho dúvidas. Além disso, vejo a nação susceptível de ser dividida em outras tantas nações por demagogos, que podem surgir - escrevi-o -, se os dirigentes regionalistas não se chamarem Alberto João Jardim ou João Bosco de Mota Amaral.
Restar-nos-ia - permito-me fazer este comentário -, como último recurso, a realeza, para manter a união, como acontece nas três nações britânicas, Escócia, Inglaterra e País de Gales, que têm um rei, como acontece nas nações hispânicas, que têm um rei, e como aconteceu nas nações jugoslavas, que tiveram um rei até ao falecimento do Tito, porque o Tito, além de rei, foi também monarca.
E quem me garantirá que o referendo não vai dividir? Quero citar um exemplo concreto da regionalização, que é este: alguém disse que Trás-os-Montes e Alto Douro não têm direito a ser região e que se devem juntar com o resto. Porém, se assim for, pedia que a capital administrativa dessa região não fosse no Porto, nem em Bragança, mas algures a meio, que a capital das Beiras fosse algures como, por exemplo, em Oliveira do Hospital, e que a capital regional do Algarve não fosse em Faro, mas algures, como, por exemplo, a norte de Albufeira.
No que diz respeito ao referendo, não gostaria de ver referendos com uma pergunta do género "concorda com o Tratado de Maastricht?". Em meu entendimento, uma pergunta assim seria uma pergunta idiota, porque o Tratado de Maastricht é altamente complexo, tem coisas boas e coisas más, e esta formulação estaria errada. Assim como gostaria que se rectificasse o erro constitucional de fazer um referendo sobre o aborto, porque, salvo a segunda condição em que é legítima defesa, a razão de matar instituiu o direito de matar, que a nossa Constituição não permite. Nós temos a pena de morte em dois casos, portanto devia fazer-se um referendo sobre o aborto para legalizar essa pena de morte nesses dois casos.
Por último, agradeço à mesa e aos Srs. Deputados a paciência que tiveram para me ouvir.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Dr. João Rio.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD) - Agradeço o cumprimento, Sr. Dr. João Rio.
Quero pedir-lhe uma explicitação relativamente à primeira das propostas que aqui formulou, quanto à possibilidade de, nos actos eleitorais, os boletins de voto poderem ter um quadradinho para a abstenção. Compreendo a sua preocupação e, no plano dos princípios, penso que é perfeitamente justificável. Porém, a questão que quero colocar-lhe é uma questão de resultado prático e tem a ver com o seguinte: como sabe, o voto é secreto, pelo que o resultado prático da possibilidade de um cidadão poder expressar a sua vontade através de um voto válido de abstenção não teria nenhum efeito subjectivo, no sentido de se poder daí retirar qualquer indicação pessoal do cidadão neste ou naquele sentido. Portanto, o problema coloca-se sempre: o que fazer depois? Qual o impacto que esses votos teriam no cômputo geral? É que, como sabe, o problema está em que ao apuramento geral, depois, é preciso aplicar um método matemático para permitir uma proporcionalidade na eleição de determinados candidatos. O que fazer, então? Se o voto de abstenção passasse a ser um voto que era contabilizado necessariamente, será que essa sua proposta viria pôr em causa que as maiorias pudessem ser obtidas apenas pelo confronto entre os votos nos candidatos A, B ou C e tivessem necessariamente sempre de contabilizar também, em termos do universo de 100%, os votos da abstenção, ou não? Não sei se está a entender bem a minha pergunta, mas, no fundo, é isto: compreendo a lógica de se permitir isso num princípio de liberdade à livre expressão de voto da parte dos cidadãos. Mas, depois, o que fazer com esses votos?

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não havendo outras dúvidas ou questões, permito-me, ainda nesta área, fazer a seguinte observação: aqui, na Assembleia da República, quando procedemos a eleições, também não há direito à abstenção. Quer dizer, votamos nos candidatos ou não votamos. Portanto, só contam os votos expressos. E a abstenção também é contada como ou voto em branco ou não comparência à votação. Portanto, não há abstenções nas votações que fazemos aqui na Assembleia da República. Assim, a ideia da abstenção numa eleição é, de facto, uma ideia que me parece ser original e não ter precedentes.
Quanto à origem não topográfica dos referendos, de facto, não a tem! Nem a Constituição, nem a lei, estabelecem qualquer relevância da origem das votações, locais ou regionais, em referendo; o apuramento do referendo é nacional, isto é, aprova-se ou não se aprova o referendo conforme, a nível nacional, tenha mais votos o "sim" ou o "não". A indicação topográfica resultará nos jornais, sabendo-se o apuramento que se fez no Porto, em Lisboa ou em Braga. Portanto, não vejo, por um lado, como é que se poderia evitar esta informação e, por outro, que relevância teria a afirmação expressa da não contagem topográfica dos votos.
Sr. Dr. João Rio, são estas as perguntas, a acrescentar às que o Sr. Deputado Luís Marques Guedes colocou, a que gostaria que respondesse.

O Sr. Dr. João Armando Soares Pereira de Aragão e Rio - Sr. Presidente, começaria pela última para dizer que, se o pedido fosse aceite, não poderia ser permitido à imprensa, por prejuízo nacional, que divulgasse a regionalização dos votos. É que se, de facto, a contagem que o Estado faz do "sim" e do "não" é global e não, como para as presidenciais ou para as outras eleições, regional, é porque entende que interessa o "sim" ou o "não" global. Quando se corta esta ideia do global, está a prejudicar-se a eficiência do referendo e a criar divisões.
Quanto à questão colocada pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes, em parte, ela foi respondida pelo Presidente da Mesa, mas queria dar uma opinião pessoal sobre isso. Quando as abstenções são passivas - as, agora, só chamadas de abstenções - e elas são muito grandes, dá-se muito valor a isso. Mas agora vamos pôr a hipótese

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de, numa determinada votação - e é feita por distritos -, haver 60% de abstenções expressas. Isto tem um significado político manifesto!

O Sr. Presidente: - Mas essas pessoas, Sr. Dr. João Rio, consideravam-se ou não eleitas? No fundo, a pergunta é esta: qual era a relevância do facto de haver 60% de abstenções expressas? As pessoas não se consideravam eleitas?

O Sr. Dr. João Armando Soares Pereira de Aragão e Rio - A questão que assinalei acerca da abstenção pode ser solucionada, como o Sr. Presidente referiu, do mesmo modo que se faz na Assembleia da República: os votos de quem se abstém não contam. E foi só isso o que pedi, mais nada. De facto, a ideia era a de que fosse dignificado quem vai votar, pois, assim, amanhã, quem fosse votar, já sabia que tinha uma abstenção activa, que o facto de sair de casa e de se deslocar à mesa de voto era considerado, e que o outro que ficasse comodamente em casa seria o indivíduo da abstenção passiva.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Peço a palavra, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Luís Marques Guedes, peço-lhe que não prolonguemos a discussão.
Tem a palavra.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Não prolongarei, Sr. Presidente.
Sr. Dr. João Rio, agradeço a sua explicação e percebi-a. Gostaria somente de fazer uma pequena chamada de atenção. O exemplo que o Sr. Presidente, há pouco, deu é válido para a Assembleia, mas não é válido para todos os sufrágios. Relembro que a Constituição diz expressamente, no caso de eleição do Presidente da República, que o candidato só é eleito quando tem mais de metade dos votos validamente expressos - é isso que a Constituição diz. Portanto, na sua hipótese, se o voto da abstenção era um voto validamente expresso, isso poderia pôr em causa a eleição, por exemplo, do Presidente da República.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Dr. João Rio.

O Sr. Dr. João Armando Soares Pereira de Aragão e Rio: - Em relação a esse aspecto, que não previ e que é da responsabilidade dos Srs. Juristas e, sobretudo, dos Srs. Deputados, poderia dizer que se, de facto, nos votos expressos para a Presidência da República não houvesse maioria por a maioria estar na abstenção, essa seria uma maneira de dizer que os eleitores queriam outro candidato.

O Sr. Presidente: - Está esclarecido, daria relevância expressa à abstenção.
Sr. Dr. João Rio, obrigado pela sua disponibilidade para apresentar as suas ideias e vir aqui defendê-las.
Vou, agora, dar a palavra ao Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa, que vem de Braga para nos fazer a apresentação de um vasto conjunto de alterações. Tem, para o efeito, 10 minutos, mas, se puder reduzir, agradeço-lhe porque estamos em atraso em relação ao schedule que tinha programado.
Tem a palavra.

O Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Ao elaborar este contributo, parti de uma presunção: os partidos políticos fariam propostas mais ou menos globais e iríamos assistir a contributos de associações cívicas - aliás, como já se verificou - muito determinadas, nomeadamente a do ambiente, pelo que dei como marcadamente importante conceber um critério coerente e centrado na organização do poder político, a Parte III, mas deixando de fora alguns dos órgãos, nomeadamente os tribunais, porque seriam incluídos nas tais propostas amplas, embora tivesse algumas questões aí, mas, como disse, isso poderia quebrar a coerência interna.
Dando um relevo histórico à evolução constitucional, como refiro logo no primeiro parágrafo da "Exposição dos motivos", direi que a revisão de 1982 retira preceitos constitucionais marcadamente socializantes, a de 1989 faz uma adaptação do papel do Estado a uma economia que já tem de se confrontar como o espaço integrado e comunitário, e a de 1992, uma revisão extraordinária, apenas mexe nalguns "artiguinhos", nomeadamente de grande relevância no artigo 105.º, para permitir a quebra do monopólio na emissão da moeda.
Centrei-me, então, no acesso dos cidadãos ao poder político e na manifestação dessa vontade popular e fundamentei-me em três pilares essenciais: a coexistência de partidos políticos e de cidadãos eleitores independentes, nessa expressão popular, com a abertura do sistema político aos cidadãos, de forma a estabelecer novos equilíbrios entre a democracia representativa e as formas de participação directa; a abertura aos cidadãos da iniciativa legislativa do referendo, permitindo, assim, que eles não sejam eventualmente manipulados e tenham um mecanismo propício; e, fundamentalmente, um terceiro ponto que seria uma limitação do exercício do poder político sucessivo, considerando assim aquilo que chamo a assunção plena do princípio da renovação, que considero, neste momento, apenas formalmente concretizado na repetição periódica do sufrágio.
Para isto, ao longo do texto, começando neste último ponto, situei-me na norma jurídica que limita a reelegibilidade do órgão de soberania Presidente da República a dois mandatos, com a impossibilidade de um terceiro seguido, podendo retornar depois, e estendi-o a todos os cargos, a todas as assembleias de eleição política; quanto à coexistência dos cidadãos e dos partidos, para acabar com o monopólio partidário, entendo que deve ser dada a possibilidade de candidatura a cidadãos independentes em todos os órgãos de assembleia, regionais, locais e a assembleia legislativa. E, quando me refiro a estas formas, dou como possível, nos preceitos relativos a princípios eleitorais, aliás, em sede de princípios gerais, no artigo 116.º, a consagração da apresentação de candidaturas por cidadãos, individualmente, em círculos uninominais, por exemplo, ou por grupos de cidadãos, quando não for um círculo uninominal. E faço isto com um propósito: não quero que a Constituição limite de forma rígida, ou não deveria limitar de forma rígida, uma escolha do legislador ordinário. Defendi, por isso, na eleição da Assembleia da República, a consagração de um sistema misto. A saber: um círculo nacional e círculos vários, os quais podem ou não ser, de acordo com a tal estrutura que escolheria o legislador ordinário, uninominais ou, se o entendesse, com outro número.
Quanto ao referendo e à iniciativa legislativa, proponho um número reduzido de cidadãos no referendo,

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principalmente, de 25 000, porque temos de tomar o assunto com cautela, é certo. Mas também limitar demasiado a iniciativa popular com um número elevadíssimo será quase dar com uma mão aquilo que, depois, se pretende tirar com a outra. É que se 25 000 poderá ser um número exageradamente curto, no entanto, creio haver propostas, se não me engano até a nível partidário, do Partido Comunista com um número parecido, ou perto disso, pelo que não será tão exageradamente curto como isso.
Em suma, são estas as linhas gerais que traço neste projecto. Agora, poderei responder a eventuais questões que os Srs. Deputados queiram colocar.

O Sr. Presidente: - O projecto em causa está distribuído aos Srs. Deputados, que, por isso, podem bem questioná-lo sobre propostas, mesmo as que não foram referidas pelo Dr. Isaías de Sousa. Portanto, está aberto à consideração dos Srs. Deputados.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, como é público e notório, algumas das preocupações de abertura do nosso sistema político e de reforço dos vectores de participação cívica, constantes deste projecto de lei, correspondem a preocupações que, pela parte do PS, são partilhadas, que foram e são importantes, que desempenharam um grande papel no quadro da preparação dos Estados Gerais para uma Nova Maioria e desempenham, hoje, o papel que é conhecido.
Não nos reconhecemos em todas as propostas. Uma das propostas que é apresentada e que não consta do nosso projecto de revisão constitucional, nem consta das propostas a que estamos vinculados perante o eleitorado, diz respeito à proibição de reeleição, constante de um artigo 246.º-A. Notamos que não foi especialmente aludido…

O Sr. Presidente: - Não só, Sr. Deputado. A ideia do nosso peticionário, de proibir a reeleição, é para todos os órgãos, a começar pela Assembleia da República.

O Sr. José Magalhães (PS): - Certo! Mas, curiosamente, Sr. Presidente - e era exactamente esse ponto que gostava de suscitar -, o Sr. Dr. Isaías de Sousa tem o cuidado de, no n.º 2 do artigo 246.º-A, propor isto: "Porém, pode a lei determinar, em função do número de eleitores recenseados, a elegibilidade sucessiva e sem limite de mandatos, para a assembleia de freguesia."

O Sr. Presidente: - É a única excepção.

O Sr. José Magalhães (PS): - É, de facto, a única excepção. Só que a ratio dessa excepção, tanto quanto percebo, aplicar-se-ia a outras situações em que ele não a admite.
Isto é a introdução do debate, que existe noutros países, sobre term limits, limites de mandatos, etc., mas talvez fosse interessante ver, da parte do signatário, aprofundado este ponto e, designadamente, esta excepção.

O Sr. Presidente: - Continua aberta a possibilidade de fazer perguntas ou comentários às propostas constantes da petição em discussão.
Pela minha parte, entre outras propostas, além dessa, que também a tinha aqui anotada, sobre o princípio da limitação geral dos mandatos representativos, a começar pela Assembleia da República, ideia que suponho ser relativamente pouco comum, há outra que também me suscita alguma perplexidade.
Nos propostos círculos uninominais para a Assembleia da República, esta petição sustenta que as candidaturas podem ser apresentadas pelos próprios candidatos, não havendo, portanto, proponentes e podendo todo e qualquer cidadão candidatar-se por si mesmo nos círculos uninominais. Não lhe parece que o resultado disto seria, no mínimo, impraticável?
Creio que não há mais observações, pelo menos, nesta fase.
Sr. Dr. Isaías de Sousa, tem a palavra para responder a estas observações.

O Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa: - Sr. Presidente, começando por responder ao Sr. Deputado José Magalhães, digo-lhe que não há aí uma contradição. Esse artigo 246.º-A, que introduzo no projecto, como forma de não ser admitido nenhum mandato consecutivo, tem a ver com o número escasso de eleitores, como dizia, nas assembleias de freguesia de reduzida dimensão, que seriam aquelas que o legislador ordinário iria escolher entre o actual número, ao qual já faz uma excepção - não consta, aliás, é um plenário, nem tem uma assembleia de freguesia, creio que são 200 os eleitores nesta altura e a partir daí é que há eleição de assembleia de freguesia. Seria de ordem pragmática, porque, quando se sustenta a não reeleição de um candidato, estamos a referir-nos a todos os que são eleitos, o presidente da assembleia de freguesia, o presidente da junta, os secretários, os vogais, etc., todos membros da assembleia. E é de ordem pragmática, como dizia, porque, em freguesias pequeníssimas, se tivéssemos de retirar nove membros - vamos imaginar freguesias com 300 ou 450 eleitores, nomeadamente, muitas freguesias de concelhos pequenos, como os do distrito de Braga, que conheço de perto -, teríamos quase um vazio para o cargo e aí é que devia haver uma certa cautela nessa sustentação. Daí eu excepcionar precisamente as freguesias cujas assembleias tenham sido substituídas pelo plenário. De facto, no n.º 3 do artigo 246.º-A, digo: "As normas constantes deste artigo não são aplicáveis às freguesias, cujas assembleias tenham sido substituídas pelo plenário de cidadãos eleitores". Portanto, essas estavam de fora. Seria, sim, aplicável àquele número a determinar pela lei ordinária. Não sei se está esclarecido.
Quanto à pergunta do Sr. Dr. Vital Moreira, Presidente desta Comissão Eventual, devo dizer que é muito curiosa. Na exposição que fiz, disse que dava uma certa abertura ao legislador constitucional, no que respeitava à Assembleia da República, na criação de um círculo nacional e, depois, círculos que poderiam ser, eventualmente, uninominais, dependeria. Podiam constituir-se círculos de dois elementos aqui, de três elementos ali, de quatro além, mas, eventualmente, poderiam constituir-se também alguns círculos uninominais, até porque, depois, no sistema eleitoral - e tinha de propor essa adaptação -, mantinha o método proporcional pela média mais alta de Hondt para os círculos nacionais e plurinominais e os uninominais seriam eleitos em representação maioritária a uma volta.
Quanto à candidatura, como se abre a possibilidade a grupos de cidadãos em círculos plurinominais, teria de pressupor-se a vontade política de um só cidadão no círculo uninominal. O problema que aqui surgia era o do

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posicionamento futuro desses Deputados na Assembleia, que poderia originar um mau funcionamento. Vamos imaginar que se consagrava uma solução destas e se elegiam muitos Deputados independentes. Como situá-los nos grupos parlamentares? Esse foi um dos problemas com os quais me debati quando estive a fazer estas propostas e tentei arranjar uma fórmula um pouco adaptável para não tornar o Deputado muito dependente dos outros grupos mas também para não criar uma atomicidade tal que o funcionamento da Assembleia da República se tornasse impraticável, é este o termo. Aí, sim, o Dr. Vital Moreira teria razão, não a nível da eleição, porventura, mas a nível do próprio funcionamento, mas tudo teria ligação.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr., mas, desde logo, na candidatura podemos correr o risco de ter 1000, 2000 ou 10 000 candidatos!

O Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa: - Exacto! Mas dependeria do número de círculos uninominais que se consagrassem!

O Sr. Presidente: - Não! Num círculo uninominal, num único, podia ter 10 000 candidatos!

O Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa: - Com certeza! Como não vincula o legislador ordinário, poderia a lei ordinária definir em que condições se poderia fazer uma apresentação. Penso que não seria inconstitucional do ponto de vista material a lei ordinária definir qual seria o procedimento para a apresentação de uma candidatura uninominal. Assim talvez se resolvesse o problema.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Dá-me licença, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Se é para, ainda nesta sede, fazer alguma observação, faça favor. Chamo, no entanto, a sua atenção para o facto de já termos ultrapassado o tempo e estamos, às 18 horas e 30 minutos, com menos de uma hora e meia útil para ouvir os restantes peticionários. Portando, devemos começar a comprimir o nosso tempo.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Vou ser breve, Sr. Presidente.
Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa, a sua proposta, naquilo que diz respeito à eleição do Presidente da República, formula - do nosso ponto de vista, muito bem e com todo o mérito - o alargamento do sufrágio universal aos cidadãos emigrantes. Gostava de saber porque é que não o faz também no artigo relativo ao referendo de âmbito nacional, onde mantém de fora cidadãos, que são cidadãos nacionais, uma vez que nos parece que as matérias do referendo, quando ele tem âmbito nacional, podem ter uma relevância extraordinária também para esses cidadãos, que, tal como nós, também são portugueses.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa, antes de lhe dar a palavra, recordo que já ultrapassámos o tempo.

O Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa: - Serei muito breve, Sr. Presidente.
Sr. Deputado Luís Marques Guedes, ao consagrar a extensão aos cidadãos eleitores não residentes para a eleição do Presidente da República tive em atenção que se tratava de uma questão em relação à qual se vinha centrando o debate há bastante tempo. Talvez por isso a terei tratado.
Há dias, quando estava a ler o referendo, notei que, nesta matéria, terei cometido algumas lacunas. Para mostrar que a sua pergunta talvez estivesse consagrada, porque, como até a nível sistemático, apresentei as incisões dos cidadãos independentes naqueles lugares, como o direito de antena, etc., reparei que, no artigo 118.º, para provar a lacuna, o n.º 6, que não tem nada expresso, diz o seguinte: "O Presidente submete a fiscalização preventiva obrigatória da constitucionalidade e da legalidade as propostas de referendo que lhe tenham sido remetidas pela Assembleia da República ou pelo Governo". Ora, não faz, pois, sentido que estas propostas fossem submetidas obrigatoriamente à fiscalidade preventiva e as dos cidadãos não. Portanto, estaria aqui uma lacuna, talvez resolvida em sede de interpretação extensiva. De qualquer forma, há uma lacuna e talvez aí eu não tenha consagrado a solução que diz que está muito bem consagrada a nível do artigo 124.º, porque cidadãos são todos, evidentemente com algumas cautelas.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa, muito obrigado pela sua colaboração. Se puder continuar connosco, pode fazê-lo.
Tem a palavra o Sr. Dr. Henrique Medina Carreira, para apresentar a sua proposta, que incide, quase toda ela, sobre matéria fiscal, como era bem de esperar. Dispõe, para o efeito, de 10 minutos.

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quero, antes de mais, agradecer o vosso convite para vir à Assembleia, pois há 11 anos que não vinha a esta Casa para fazer alguma coisa supostamente útil.
Peço-vos desculpa por vos apresentar um conjunto de propostas de carácter rasteiro - a vossos olhos, seguramente, rasteiro! -, depois de questões de alta indagação como aquelas que nos têm preocupado. Mas destas também se vive; eu diria mesmo, destas vive-se mais.
A primeira alteração que proponho (artigo 29.º-A) tem a ver com o facto de eu ser contra a retroactividade da lei fiscal. Como sabem, em 1983, houve um quiproquó a respeito desta matéria, que, na minha opinião, foi mal julgado…

O Sr. Presidente: - Com votos de vencido!

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - O Prof. Vital Moreira teve voto vencido.
Tratava-se de um acórdão em que o tribunal fazia juízos de oportunidade sobre o dinheiro que havia, o que me parece manifestamente fora da capacidade dos tribunais. Mas o Prof. Vital Moreira votou contra.
A segunda alteração que proponho refere-se ao actual artigo 63.º da Constituição e visa ajudar a acabar com uma confusão que há na segurança social, que é a de haver uma unidade institucional que encobre uma pluralidade extremamente complexa de regimes e de realidades.
O nosso sistema, como, aliás, outros, abrange seguros sociais obrigatórios e, a par disso, há uma componente assistencial que baralha tudo, porque, depois, os Srs. Deputados, quando votam os Orçamentos, não

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consignam os meios necessários para esta faceta assistencial, e, portanto, é motivo de uma querela constante entre quem trata dessas coisas o dizer-se que o Orçamento de Estado já deve 1200 milhões de contos, 1600 milhões de contos e outras coisas que tais… Bom, simplesmente, o problema era saber onde é que havia dinheiro para se ter evitado isto.
Separando institucionalmente essas duas realidades, porque elas são profundamente diferentes, penso que se contribuiria para um rápido saneamento ou, pelo menos, para a eliminação desta discussão, que não tem fim.
No que se refere ao artigo 76.º, o sistema que existe, ou, melhor, o sistema que não existe, sobre o que é que os estudantes pagam no ensino superior público - creio que agora não se paga nada e também não se sabe se se vai pagar -, penso que não tem solução pelas vias que têm sido abordadas. Pagar em função dos rendimentos dos pais, já se sabe… Em Coimbra, creio que vocês fizeram uma estatística que mostra a perversão das conclusões. Graduar em função de quê? Não há nada de objectivo no nosso país que permita esta graduação.
Creio que a única solução objectiva, rectilínea e limpa é deste estilo: os grandes alunos, em quem o País tem grandes interesses, não devem pagar coisa nenhuma; os alunos restantes não devem ser impedidos de estudar por falta de meios. Portanto, a todos deve ser facultada a possibilidade de estudar no ensino superior, mas responsabilizando-se pelo reembolso ao Estado daquilo que o Estado lhes facultou para estudar. Os muito bons acho que a comunidade tem interesse em estimulá-los e em tê-los e os assim-assim ou os medíocres, que são quase todos, acho que devem sacrificar-se e pagar aquilo que devem pagar.
O que se passa, hoje, é uma coisa completamente inadmissível: normalmente, são os filhos de pais que não pagam impostos que frequentam um curso superior, onde não pagam nada, e, depois, estes, como médicos ou advogados, acabam por também não pagar nada. Quer dizer, é uma multiplicação de gerações em fuga. Isto é uma imoralidade, na minha opinião! Agora, politicamente, os senhores é que sabem qual é a moralidade com que podem.
O artigo 107.º tem algumas coisas, embora poucas, que vale a pena sublinhar.
No n.º 2 pretende acabar-se com o sistema da obrigatoriedade da tributação conjunta dos cônjuges, como existe hoje, e facultar a quem o queira a tributação separada. A tributação separada - nós, que costumamos andar a reboque do que se passa lá fora - é o que começa a fazer-se nos países mais evoluídos nesta matéria. Não vou para aí, porque é demasiado radical, mas creio que é conveniente dar, pelo menos, a opção para a tributação separada, até porque, na vida profissional, aparecem-nos casos em que os nubentes revelam reticências em relação ao casamento por causa do englobamento, fazendo-nos a seguinte observação: "Mas, então, agora tenho de pôr em comum o que ganho ou o que tenho com aquilo que o meu marido ou o meu futuro marido diz que ganha ou que tem?" Há, de facto, situações de pessoas que se prolongam nesta indecisão - conheço até algumas situações de pessoas com notoriedade - e há outras que se ficam pela união de facto, porque não querem aceitar este regime.
No que se refere ao n.º 3 - ouvi dizer que o "Secretário de Estado dos Impostos" tinha adiantado isto -, penso que é uma perversão do sistema abater as despesas ao rendimento, o que dá como resultado que quem tem mais rendimentos é tributado a taxas mais altas e, por conseguinte, deduz mais do que quem é tributado a taxas mais baixas. Isto foi uma loucura da lei. Mas, enfim, há loucuras que passam… Acho, no entanto, que é sempre tempo de as rever.
No n.º 4 sugere-se a constitucionalização da tributação dos métodos indiciários para quem não tenha dimensão ou para quem, pela natureza da sua actividade ou pelo que quer que seja, de facto, não tenha registos suficientemente fiáveis para se andar a procurar do rendimento real.
O n.º 5 do mesmo artigo é importante, do meu ponto de vista - e do vosso também, se quiserem dar-lhe alguma importância -, porque vem acabar com alguns instrumentos de museu que ainda circulam na nossa vida tributária. Vem acabar com o imposto sucessório, com o imposto de sisa e com coisas deste género, que tinham razão de ser quando a riqueza era predominantemente imobiliária, quando estávamos habituados, nas nossas soluções, a responder com o tipo de riqueza imobiliária.
Era o que existia no tempo da primeira revolução industrial e no tempo da segunda revolução industrial, até aos anos 50, mas hoje nenhuma pessoa rica tem riqueza imobiliária em percentagem significativa do seu património.
Por conseguinte, manter o imposto sucessório é tributar a baixa burguesia, porque a média e a média/alta já sabem descartar-se do problema e não pagam. Este imposto sucessório é uma verdadeira imoralidade, que continua a existir na nossa vida tributária. Não dá dinheiro, faz pagar os que têm pouco, permite que não paguem os que têm muito, é de uma grande complexidade técnica. Por isso, os funcionários - passe a expressão - mais cabeçudos, os mais competentes, são, em geral, endossados para tratar deste imposto, porque ele é realmente complicado e dá 10 milhões de contos numa arrecadação do sector público administrativo que deve andar, hoje, por mais de 5000 milhões de contos - 10 milhões de contos são zero vírgula zero zero não sei quê.
Portanto, por razões financeiras, pode sair rapidamente; por razões de decência, deve sair imediatamente; e, por razões de resultados financeiros, já não devia existir há muito tempo.
E com a sisa passa-se a mesma coisa: é uma grande complicação.
Em suma, o que aqui está é um imposto que substituiria isto, com vantagem financeira, com simplicidade e fazendo com que todos, efectivamente, pagassem, tanto os que têm riqueza mobiliária como os que têm riqueza imobiliária.
O artigo 107.º-A diz respeito ao Conselho Nacional dos Impostos, em relação ao qual o Partido Socialista, no tempo em que me pedia projectos, apresentou um projecto de lei, em 1989. Ele fazia parte de um projecto de lei, que vocês podem encontrar em 1989, projecto esse que, nessa época, era chumbado liminarmente pelo PSD. Por isso, está aí arquivado, sem conhecimento de ninguém.
A criação do Conselho Nacional dos Impostos não é invenção minha, pois já existe em França. Porquê a sua criação? Porque, hoje, os regimes duram cada vez menos: o regime de 1929, do Dr. Salazar, durou razoavelmente 20 anos; o regime de 1962-1963, novamente do Dr. Salazar, durou 6 ou 7 anos; e o regime do Dr. Cavaco vai com 5 anos e já está completamente esgotado e a caminho do naufrágio.
Portanto, é preciso que haja quem saiba não apenas de técnica mas também de política fiscal, para todos os anos

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se debruçar sobre o estado da nação fiscal, se quiserem, e dar conselhos aos órgãos de soberania para que não continuem neste doce andar para diante, andando, realmente, para trás.
O mesmo acontece com o selo de estampilha. O selo de estampilha é uma coisa completamente tresloucada, que dá 5 milhões de contos, mas são 5 milhões de contos em 5000 milhões de contos, portanto não é dinheiro, e que obriga a gente a andar à procura da capelista ou da pastelaria onde vendem estampilhas fiscais, o que é uma maçada. Como agora vocês dizem, actualiza-se em 8%. Um selo que estava em 148$ passa para 193$2, e é assim que sai na tabela. Já não há dois tostões, mas é assim que está na tabela! Os Srs. Deputados são responsáveis por isso!
Portanto, um Conselho Nacional dos Impostos acabaria rapidamente com estes absurdos.
Um outro problema - este muito controverso - tem a ver com o acesso, ou não, às contas bancárias. Eu, por razões que não têm a ver com a lógica mas, sim, com a eficácia e com as consequências, não sou partidário deste sistema. Há dois casos que conheço, porque me passaram pela mão, em que o acesso às contas bancárias foi motivado por perseguição política. E, como nós nunca nos livramos, desde a Inquisição, de maus gostos deste tipo, entendo que isto deve ser decidido por um juiz e não por directores-gerais, nem por ministros, nem por secretários de Estado.
Portanto, faço uma proposta no sentido de que o contribuinte seja sempre ouvido pelo juiz, desde que a sua audiência não prejudique a eficácia da diligência. Entendo que é um ponto sobre o qual vale a pena os senhores perderem algum tempo, se o quiserem fazer, porque é um ponto sério na nossa vida, nos tempos mais próximos.
No artigo 107.º-C, proponho a criação de um registo. Trata-se de uma questão programática, porque as nossas políticas sociais ou vão reduzir-se substancialmente num futuro de 10 ou 15 anos ou vão ter de ser selectivas e, para serem selectivas, não há, neste momento, nenhum instrumento de selectividade. Portanto, parece-me que era bom ir tentando saber aos poucos o que é que cada um tem e não tem.
Um outro ponto, que, se calhar, vos faz alguma impressão - e já aqui foi discutido para os políticos, mas que defendo para todos, políticos e não políticos -, é o de se afixar nas repartições de Finanças aquilo que cada um declara como rendimento. Estou convencido de que só com esta medida as receitas do IRS sobem 5% a 10% logo no primeiro ano. E, além disso, todos nós temos legitimidade para saber o que é que pagamos. É que o Estado fixa a sua bitola para um certo nível de arrecadação e, quando o A não paga, o B paga, porque o Estado precisa de dinheiro. Ora, o B tem legitimidade para saber que o A paga pouco. É nesta legitimidade do conhecimento social sobre o que cada um paga que eu entendo que seria adequado introduzir um preceito desta natureza.
Por outro lado, como se sabe, o Estado é o mais difícil e o mais volumoso dos devedores do País. Isto já vinha do governo anterior e, há dias, com surpresa minha, ouvi um senhor da área da saúde dizer que deviam umas dezenas de milhões de contos - parece que é realmente uma pecha que passa de governo para governo, não sei bem porquê! -, mas só com oito meses de atraso. Bom, é um homem que nunca saiu do Estado para não fazer ideia do que são oito meses de atraso no pagamento aos credores!
Em relação a esta matéria, proponho duas coisas: primeiro, que o Estado pague os juros que exigiria se a pessoa não pagasse os impostos a tempo e horas - penso que isto é o mínimo das decências nas relações entre o Estado e o cidadão; segundo, que o cidadão possa operar uma compensação. Se ele é credor do Estado por x e o Estado é devedor por y e verificando-se os requisitos do Código Civil - a liquidez, a certeza e a exigibilidade -, o credor particular opera uma compensação. Com isto, penso que o Estado, rapidamente, passaria a trabalhar de outra forma nesta matéria.
Posto isto, Sr. Presidente, estou à vossa disposição.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Medina Carreira e, se me permite, meu caro amigo, agradeço por ser ter disposto a apresentar este conjunto de iniciativas e vir apresentá-las à Comissão.
Recordo, para informação, que este conjunto de propostas é acompanhado por um conjunto de estudos bastante volumoso que fundamentam estas opções e, ainda no uso desta liberalidade que atribuí a mim mesmo, penso que o mínimo que se pode dizer deste conjunto de propostas é que elas se dirigem a um conjunto incontornável de problemas que o nosso iníquo sistema fiscal coloca hoje a todo o homem público, em Portugal.
Inscreveram-se os Srs. Deputados Alberto Martins, José Magalhães, Elisa Damião, Barbosa de Melo e Odete Santos, a quem darei a palavra por esta ordem, assim como aos demais interessados que se vierem a inscrever.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Muito obrigado, Sr. Presidente.
Permita-me que saúde o Sr. Dr. Henrique Medina Carreira, meu querido amigo. As suas contribuições são sempre muito úteis para todos nós.
V. Ex.ª colocou, desde logo, esta questão do Estado como pessoa de bem, menos pela definição legal de algumas normas do texto constitucional mas por uma leitura enviesada que é feita, muitas vezes, na legislação ordinária, que, com a sua proposta, procura corrigir.
Das considerações que fez e que merecem, certamente, a nossa profunda reflexão, gostaria de lhe pedir a clarificação relativamente a dois ou três pontos.
Quanto à aplicação da lei fiscal, creio que, felizmente, já no projecto do Partido Socialista, e também noutros, consagramos de forma muito nítida e em sede constitucional, para que não restem dúvidas, a sua não retroactividade, sem prejuízo - dizemos nós - de as normas respeitantes a impostos directos poderem incidir sobre os rendimentos do ano anterior, que é a única reserva que, segundo penso, não põe em causa os seus propósitos quando alude a essa questão.
Relativamente à fundamentação, às regras de tributação e às reflexões que nos propõe, que são suficientemente importantes, em alguns momentos, para merecerem, de novo, o nosso aprofundamento e, em alguns casos, a nossa resposta positiva, prender-me-ia, agora e sobretudo, à ideia do Conselho Nacional dos Impostos, colocando-lhe a questão em dois planos. Um, é no sentido de saber se esta ideia de um Conselho Nacional dos Impostos não poderá ser recuperada, em termos constitucionais e com os objectivos que propõe, pelo Conselho Económico e Social, em termos de alargamento do seu objectivo. Em qualquer

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circunstância, tenho as minhas dúvidas e gostaria de o ouvir.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Alberto Martins, dado o número de inscritos, peço-lhe que abrevie.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Com certeza, Sr. Presidente.
Concluiria com o seguinte: tenho as minhas dúvidas sobre se o bom sentido desta proposta, com a qual alguns de nós já se identificaram e identificam, não mereceria, na lógica do nosso ordenamento jurídico e institucional em geral, que ela fosse consagrada na lei ordinária e não, à partida, na Constituição, como, aliás, acontece na prática com algumas entidades públicas independentes, que têm tradução na lei e não têm tradução constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, como já foi sublinhado, as propostas apresentadas e os estudos fundamentadores são uma verdadeira radiografia de iniquidades, algumas das quais são, aliás, uma bomba de relógio, às quais não nos poderemos furtar, portanto, as contribuições são de importância vital.
Como foi sublinhado, algumas das iniquidades resultam de défices de aplicação ou, mesmo, de violações da Constituição, outras não, outras supõem alterações e não poderemos fugir a elas.
Como sabe, o PS, nesta revisão constitucional, não adiantou reformas de fundo em relação à arquitectura do sistema, mas a verdade é que algumas estão em preparação no terreno na lei ordinária.
A minha dúvida, confesso - e é isto que me leva à pergunta -, em relação a algumas das propostas adiantadas pelo Sr. Dr. Medina Carreira situa-se nisto: algumas das propostas, provavelmente, são densificações de um tal nível de pormenor que terão cabimento pleno na legislação ordinária e colocariam dificuldades, porque transformariam a Constituição em código fiscal muito denso e muito pormenorizado.
Dou-lhe o exemplo de uma que é melindrosa: a norma que propõe de transparência, cuja discussão tem, de resto, um rasto histórico e uma tradição muito interessante. O Dr. Francisco Salgado Zenha adiantou uma proposta de carácter similar num determinado momento da nossa vida histórica. A proposta tem entrado e saído, e é natural que algum dia seja consagrada. Mas em sede constitucional, obrigatoriamente? Este um aspecto.
O outro aspecto foi colocado pelo Sr. Deputado Alberto Martins. Em relação à questão do controlo do acesso às informações para fins fiscais, a questão que se me coloca é de um outro tipo. A Constituição não pode ser lida por metade nem sectorialmente e, assim como tem disposições sobre o sistema económico, tem outras disposições. Pergunto se das disposições sobre os direitos, liberdades e garantias, que limitam os poderes da Administração Pública e dão aos tribunais, nesta área, um papel crucial, não resulta já a solução que pormenorizaria na redacção que propõe para o seu artigo 107.º-B, porque não concebo uma devassa indiscriminada da vida e do património dos cidadãos sem habilitação judicial prévia e sem garantias num Estado de direito democrático.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Elisa Damião.

A Sr.ª Elisa Damião (PS): - Sr. Presidente, a questão que eu queria colocar foi já posta pelo Sr. Deputado José Magalhães e tem a ver com o facto de o cruzamento da informação que possibilita uma maior justiça fiscal colidir com outros processos constitucionais. Como resolver esse problema?
Enquanto socialista, continuo a subscrever as propostas de reforma fiscal do meu querido camarada Medina Carreira, mas estou preocupada com as propostas relativas à segurança social. E estou preocupada pelo seguinte: percebo o n.º 2 do artigo 63.º por si proposto, que limita as responsabilidades do Estado à organização, mas eu não sei o que é isso, e transfere para um organismo bipartido a gestão das contribuições. Portanto, como não incumbe ao Estado fiscalizar e garantir este sistema, tenho fortes receios de que isto seja pior do que aconteceu a alguns sistemas privados, nomeadamente, ingleses, até a mutualidades francesas e, mais recentemente, em países da América Latina.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, as minhas primeiras palavras são, naturalmente, para saudar o Sr. Dr. Medina Carreira e agradecer a clareza e a frontalidade com que encara as coisas e as sabe dizer e escrever, assim como o contributo riquíssimo que deu para a reflexão que os representantes do povo português estão a fazer sobre a nossa Constituição. Os meus parabéns e os parabéns da minha bancada pela sua participação, Sr. Dr. Medina Carreira.
Um aspecto particular - que já foi aqui salientado mas não deixaria de o salientar também - deste seu valiosíssimo trabalho tem a ver com o seu cabimento em sede de Constituição. Há aqui muitas questões que, sendo desejáveis, em meu juízo, não podem ser constitucionalizadas, porque até a prática pode revelar que é preciso reacertos das coisas.
Dou-lhe apenas um exemplo, e era também sobre ele que o queria ouvir. O Sr. Dr. Medina Carreira sugere um certo modo de financiamento do ensino superior e eu fiquei um tanto apreensivo com o sistema que propõe. Diz que aqueles que são capazes e aplicados, esses, têm direito à frequência gratuita do ensino superior quer em estabelecimentos públicos quer em estabelecimentos privados. É a lógica do seu sistema, com a qual, aliás, concordo, isto é, a equiparação, para todos os efeitos, entre ensino público e ensino privado. Mas, depois, diz: "Os demais, a turba multa, os pobres e desamparados do ensino superior, esses, o Estado financia-os, adiantando-lhes dinheiro, que eles terão que restituir depois".
Antes de mais, arrepia-me esta solução, uma solução de algum modo maniqueia. Ele há os bons, os inteligentes, os excelentes, os tais (como é que se diz agora?) superdotados e há os pobres de Cristo, e para esses, enfim, já se arranjará uma solução secundária para tratar deles. Isto tem esta lógica de base.
Mas há um outro aspecto, ainda: nós somos o povo que somos, temos as nossas habilidades ancestrais, aliás, bem inseridas no nosso código genético colectivo. Uma solução destas não permitirá, não facilitará o acréscimo da

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falsidade nas declarações, nas notas, para que alguém, um colégio, uma universidade privada, assim consiga que os seus alunos sejam todos eles custeados pelos contribuintes e aquela Universidade que for mais exigente, a Universidade que cumpra melhor a sua função e não distinga tão facilmente os melhores, essa, custa menos aos cidadãos? Há aqui qualquer coisa, Sr. Dr. Medina Carreira, que precisa de ser muito meditado, mas os meus cumprimentos pelo rasgo que revelou no seu trabalho.

O Sr. Presidente: -Tem a palavra o Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, queria destacar que, de facto, se trata de um importante trabalho feito pelo Sr. Dr. Medina Carreira, que contém o desenvolvimento de alguns princípios que afirma, e que, pensamos, em termos de princípios, poderiam ser acolhidos na revisão constitucional para, depois, serem desenvolvidos em legislação ordinária.
Por exemplo: a não retroactividade da lei fiscal, que propõe; o princípio da transparência; a obrigação do Estado de compensar os contribuintes pelo tempo de retenção de quantias que deve aos mesmos… Aliás, devo dizer que estes princípios que acabei de enunciar constam de uma proposta feita pelo PCP de um artigo 107.º-A. Penso que V. Ex.ª deu, de facto, um contributo importante em matéria tão difícil como é a da matéria fiscal.
No entanto, queria colocar duas questões.
Uma vai no sentido da questão suscitada pelo Sr. Deputado Barbosa de Melo. No artigo 76.º da proposta do Dr. Medina Carreira, diz-se que "O Estado assegura a frequência gratuita do ensino superior nacional, público ou privado, dos cidadãos que revelem, nos estudos, elevada capacidade e aplicação". Em termos práticos, como se avaliaria esta "elevada capacidade"? Creio que isto não é líquido. A prática tem demonstrado que nem todos os alunos do ensino secundário que têm elevadas notas continuam, a nível de ensino superior, a revelar essa capacidade.
Porque o Sr. Presidente está a solicitar-me que acelere, a pergunta concreta que queria fazer diz respeito ao artigo 63.º, sobre a segurança social, a questão que mais me preocupa neste momento. Segundo creio, na sua proposta, haveria uma segurança social para os regimes parcial ou totalmente não contributivos, e essa continuaria a ser financiado pelo Estado. No entanto, penso que, na sua proposta, abre as portas à segurança social privada. Pergunto se abre, ou não, essa porta, porque financiamento do Estado não há, pelo que vi, mas há financiamento das entidades patronais, há financiamento dos trabalhadores. Quem é que gere isto? Pareceu-me que esta proposta de n.º 2 do artigo 63.º poderia abrir a porta à segurança social privada. Mesmo que não seja isto, entendo que talvez não seja a maneira correcta de fazer o equilíbrio financeiro da segurança social garantindo os direitos sociais dos trabalhadores, porque penso que os ónus sobre os trabalhadores seriam acrescidos. Pergunto, pois, se isto representa a garantia do cumprimento desses direitos sociais.

O Sr. Presidente: - Também um dos nossos peticionários se inscreveu para pedir esclarecimentos.
Sr. José de Sousa Esteves, tem a palavra, mas peço-lhe que seja muito breve.

O Sr. José de Sousa Esteves: - Uma curta pergunta em homenagem ao desassombro do Dr. Medina Carreira quanto à possibilidade de qualquer cidadão deste país ter acesso às declarações de impostos de todos os outros seus concidadãos, à semelhança do que sucede nos países nórdicos.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Medina Carreira, tem um bom conjunto de perguntas para responder. Dispõe de 10 minutos, para o efeito.
Tem a palavra.

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - Sr. Presidente, vamos deitando abaixo coisas marginais.
Como sabem, vivo pouco nos arredores de São Bento, de resto, nunca vivi; portanto, não ando a par nem dos projectos do PS nem dos projectos do PCP, e por isso peço desculpa por não saber. Mas posso garantir-vos que as propostas que vos apresento não foram copiadas nem de uns nem de outros. Estas propostas foram feitas no meu escritório, no remanso, e não tenho por hábito copiar. De qualquer jeito, felicito-os porque efectivamente estamos todos em boa companhia, penso.
Sr. Deputado Alberto Martins, ainda bem que esta questão da retroactividade está resolvida e que vão legislar nesse sentido.

O Sr. José Magalhães (PS): - Vamos ver se é consagrada!

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - Com certeza! Com a boa vontade que o Sr. Deputado Barbosa de Melo demonstrou em relação a mim, seguramente que sim!

Risos.

O Sr. Presidente: - Vamos ver se essa boa vontade é extensível às propostas do PS!

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - O Sr. Deputado Alberto Martins perguntou-me uma coisa que, honestamente, não me tinha passado pela cabeça, que era a de saber se esta ideia de um Conselho Nacional dos Impostos não poderia ser recuperada pelo Conselho Económico e Social.
Repare: em França (e, como disse, isto foi copiado do sistema francês), este Conselho existe desde 1954, se não estou em erro, portanto, há quarenta e dois anos - isto é gente de primeira água. Não estou a dizer que os membros do Conselho Económico e Social não o são - são-no é no seu métier. Só que para isto é preciso gente que saiba não só técnica fiscal… Em Portugal, um dos grandes problemas da fiscalidade é que confundem os técnicos com os políticos. Os técnicos sabem muito bem que o prazo são 15 dias e que se paga na 6.ª Repartição, etc., mas, depois, quando se diz "agora articule isso num projecto coerente", baralham-se.
Portanto, haveria necessidade de ter esses técnicos, teria de ter gente que saiba de política fiscal, e gente de grande qualidade, a escolher pelo Presidente da República, pela Assembleia, pelo Governo, e que, anualmente, como em França, teria de fazer um relatório ordinário dando conta da situação e que, sempre que pedido por qualquer órgão, se pronunciaria. Penso que este instrumento é de uma grande importância, do ponto de vista preventivo.

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Nesse projecto que o PS apresentou em 1989 e que o PSD deitou fora, eu chamava-lhe a defesa institucional do contribuinte. Isto é, o contribuinte tem uma defesa directa: ia ao tribunal e resolvia os problemas. O que proponho é um órgão altamente competente que, por impulso dos órgãos de soberania ou por dever próprio, fosse advertindo dos maus caminhos que o sistema fosse levando. Isto porque a mutação das circunstâncias e da vida é de tal maneira veloz que é perfeitamente natural que os Deputados e os governantes se distraiam e não se apercebam das coisas que estão a passar por baixo dos seus pés - e elas, às vezes, são muito importantes. Esta é razão do Conselho Nacional dos Impostos, e não vejo no Conselho Económico e Social virtualidades para substituir esta ideia.
O Deputado José Magalhães - aliás, não foi só ele que o disse, eu próprio senti isso - referiu que há aqui matéria que, pressinto, com legislação ordinária, também vai lá. Aliás, sou contra a definição do sistema fiscal constitucional. Penso que os constituintes de 1975 deram um mau passo - e não vai nenhuma crítica para o nosso querido Constituinte; se calhar, haverá mais…

O Sr. Presidente: - Há também o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - Exacto, mas não haverá muito mais.

O Sr. Presidente: - Mas aceitamos a crítica. Não é, Sr. Deputado Barbosa de Melo?

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - Eu nem isso poria na Constituição. Mas, já que a consagraram na Constituição, entendo que temos que prestar ao sistema fiscal e às zonas adjacentes ao sistema uma atenção muito grande, assim como ao sistema financeiro. É só por isso, porque há coisas que, penso, na legislação ordinária, cabem perfeitamente.
Agora - e não vou passar rasteiras nem fazer perguntas a ninguém, que não me competem, como está bem de ver -, não sei se querem fazer a revisão constitucional ou se não querem, mas dá-me a sensação de que, se quiserem, assim é muito mais rápido do que se fosse consagrado na lei ordinária. Pondo isto na Constituição, o Ministério das Finanças regulamenta e ele põe isto em ordem. Não pondo na Constituição, fica-se à espera da iniciativa de não sei quantos Deputados, nunca mais aparece, nunca mais se faz, nunca mais ata nem desata! É essa a razão maior da constitucionalização, porque reconheço que há aqui matérias que não têm nenhuma justificação forte para serem constitucionalizadas.
A minha querida amiga Elisa Damião e a Dr.ª Odete Santos atribuem-me em geral ideias que eu não tenho, propósitos que não me passam pela cabeça, maus hábitos que nunca vivi, imodéstias que não são a minha característica, como dizia há pouco a Sr.ª Deputada Elisa Damião. Mas eu não quero privatizar nada! Estão completamente enganados. Aqui não há nada a privatizar; o que há (e, como sabem, faço, incidentalmente, parte de uma coisa chamada a Comissão do Livro Branco, e não chegámos ainda a esta fase da discussão) aqui, nesta tentativa de separação, é tornar muito claro o que é que o Estado cobre - e que os senhores terão que votar aqui, na Assembleia, nos Orçamentos - e o que é que a segurança social gere.
É que a segurança social é um regime geral, mas também não é bem um regime geral. Durante as minhas férias - e não quero maçá-los com isto -, estive a escrever um trabalho, que será publicado no final de Outubro, que analisa com algum cuidado a situação financeira da segurança social e creio que é o primeiro trabalho feito com cuidado e com menos palpites do que os habituais sobre a segurança social.
Bom, o que é que se verifica? É que o regime geral é equilibrado. O regime geral o que é? É quase tudo que é seguro social. Digo que ainda é relativamente equilibrado, porque ele vai desequilibrar-se. No ano 2000, ele entra em desequilíbrio. Ora, eu defendo uma gestão tripartida: Estado, entidades patronais e entidades sindicais, porque entendo que é uma área de co-responsabilização natural e desejável, porque todos os que pagam, mais o Estado, que tem de tomar cuidado com essas coisas, estariam integrados num órgão de gestão. Essa segurança social actual, que é mantida pelas quotizações dos empregados e das empresas, essa, seria gerida trilateralmente, enfim, com o Estado em posição de predomínio, como não pode deixar de ser. Mas co-responsabilizava os outros.
Agora, o que é que eu destacaria disto? Destacaria tudo aquilo que - segundo a Lei n.º 28/84 e, mais, segundo a opinião de todos nós - deve ser o orçamento a cobrir. Simplesmente, enquanto isto tudo está junto, acontece que o Estado transfere aquilo que está de acordo com as suas possibilidades orçamentais (como vão ver, se lerem esse trabalho) e, quando não há possibilidades orçamentais, não transfere. Depois, ao fim de 10 anos, aparecem uns senhores a dizer: "O Estado deve à segurança social 1600 milhões de contos". Onde é que está o dinheiro para o Estado pagar à segurança social os 1600 contos? Não há, como é evidente!
Portanto, para evitar isso, o Estado tomava conta, sozinho, daquilo que é efectivamente protecção de carácter assistencial; tripartidamente, Estado, sindicatos e patronato tomavam conta da sua segurança social, que é esta que existe - limpa disto! Não sei se fui claro? Isto não tem nada que ver com privados nem com públicos - isso é uma discussão a ter numa segunda sede.
Creio ter tranquilizado. Curiosamente, estas dúvidas e estes receios vieram de duas senhoras! Não sei se isto é coincidência, se é combinação ou se é dúvida só para pessoas mais inteligentes, passe a expressão! Têm um sexto sentido, eu sei!

O Sr. Presidente: - Sr. Prof. Medina Carreira, acontece que as Sr.asDeputadas são, ambas, membros da Comissão de Trabalho e Segurança Social e, portanto, é uma questão de especialização.

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - É essa a explicação, muito obrigado. Pensei que fosse por serem senhoras!

(Por não ter falado ao microfone, não foi possível identificar o Deputado nem registar o aparte que proferiu.)

Não, não! Mas eu reconheço. Não tenho medo da intuição de um homem, mas tenho um medo pavoroso da intuição de uma mulher! Portanto, estou inteiramente de acordo convosco.
Sr. Deputado Barbosa de Melo, muito obrigado pelos imerecidos elogios que me fez. Levanta aqui problemas

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muitíssimos sérios. Esta ideia de "como é que se sabe quem é capaz? Então, deitamos para o caixote de lixo todos os outros pobrezinhos?", não passou, seguramente, pela cabeça do Sr. Deputado Barbosa de Melo que essa fosse a minha intenção! Penso que é possível saber quem é mais capaz, no sentido das provas prestadas. O Prof. Barbosa de Melo, em Coimbra, chumba uns e passa outros, e passa uns com 10, outros com 11, outros com 15, outros com 17 (provavelmente, não mais que isso!). Mas há uns que põe de um lado e há outros que põe de outro - e penso que não o faz por cunhas nem por arbitrariedade, mas em consciência. Está aqui o Prof. Vital Moreira, que, de certeza, faz a mesma coisa!
Quando digo "os mais capazes e os mais dedicados" (não sei se é isso que aí está escrito, mas os Srs. Deputados poderão corrigir, se estiverem de acordo com a ideia), é exactamente isto. Não são estes exames de brincadeira que agora temos - são exames nacionais, iguais para toda a gente, a toda a hora e com a extensão que se entender necessário para saber quem sabe e quem não sabe, porque o nosso ensino caminha para o naufrágio, não tenhamos dúvida nenhuma! Não é só não se saber o Português; agora sabe-se que não se sabe Matemática! Quer dizer, ter 1,5 a Matemática é, praticamente, a classificação por assinar.
Como sabem, sou de engenharia, pelo que sei bem o que é Matemática e sei bem o que é Direito. Sei o que são estas coisas menos exactas. Mas se não deitamos a mão a quem presta, através de provas honestas, é evidente que estamos a estimular o abandalhamento completo do ensino, e o nosso ensino é realmente uma coisa que nos indignifica a todos! Mas, pior do que indignificar-nos a todos…

O Sr. Presidente: - Há excepções, meu caro amigo.

O Sr. Dr. Henrique Medina Carreira: - Claro, com certeza! Indignifica como observadores, não como praticantes. Como praticantes, há bons alunos ainda e há bons professores, honra lhes seja feita!
Mas a verdade é que, na globalidade, o nosso ensino nos indignifica. Mas, pior do que isso (porque isso é algo de muito subjectivo), a continuar assim, vai ser um problema gravíssimo, porque aqui não temos emprego para 200 000 ou 250 000 senhores que frequentam o ensino superior e andamos a encartar pessoas que não podem ir concorrer a Espanha, a França, a Itália ou à Alemanha. São centenas de milhar de desiludidos que estamos a pôr cá fora. Até os pais (acho que isto dá que pensar!) já reivindicam exigência! E a RTP1, contra a minha opinião, ontem, fazia uma blague em que aparecia um pai a dizer "Você dê-lhe mas é pancada"! Quer dizer, se os Srs. Deputados e o Srs. governantes não se antecipam, são os pais e são os alunos que vão exigir qualidade. Quando digo que o ensino superior deve ser de graça para aqueles que são bons, é neste sentido: os que prestaram provas e que os Srs. Professores do ensino superior consideram efectivamente assim.
A Sr.ª Deputada Odete Santos levantou um problema que, suponho, está ultrapassado.
Creio que não deixei nada por responder.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Medina Carreira, agradeço a sua presença e a vivacidade que emprestou a esta sessão. Continue connosco, se o poder fazer. Muito obrigado em meu nome pessoal e no da Comissão.
Temos agora o Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins, a quem peço que se dirija à mesa. Dada a extensão das suas propostas, também lhe atribuo 10 minutos, mas peço a sua compreensão para o facto de termos pouco tempo, pelo que, se puder prescindir de alguns destes minutos, ficaria muito agradecido.
Quero dizer que o nosso peticionário é advogado e as suas propostas reflectem claramente esse saber profissional, como vamos ver.
Tem a palavra.

O Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, serei muito breve.
A "Exposição de motivos" que acompanha a proposta plasma o meu pensamento sobre a matéria, mas iria debruçar-me um pouco sobre dois grandes temas da proposta.
Em primeiro lugar, a questão do habeas corpus, que já foi aqui colocada hoje. Não há dúvida nenhuma de que quem tem prática dos tribunais, quem tem que defender os cidadãos, como nós, advogados, sabe perfeitamente que a providência de habeas corpus não funciona, sobretudo por prisão ilegal. E não funciona porquanto, cada vez que o Supremo Tribunal de Justiça julgar que houve prisão ilegal, há lugar a processo-crime contra o juiz. E, então, o Supremo Tribunal de Justiça diz esta coisa fantástica: "se a decisão é do juiz e se cabe recurso ordinário, não há lugar a providência de habeas corpus"! Ou seja, desde logo, torna sem sentido, sem conteúdo útil, sem operatividade prática, a providência de habeas corpus.
Por isso, a proposta que apresento, sobretudo para o n.º 5 do artigo 31.º, tem esta vertente: independentemente de haver ou não haver recurso, de ser passível a decisão de recurso ordinário, há sempre lugar à providência de habeas corpus. Naturalmente que não haverá lugar a recurso para evitar que tribunais decidam em contrário, sobretudo tribunais diferentes, como é, nomeadamente, o Tribunal da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça.
Por outro lado, quanto às garantias do processo criminal, penso que é fundamental rever o disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, dando-lhe uma outra letra. Isto sem embargo de considerar que a letra actual do artigo 32.º, n.º 4, é por demais clara no sentido de que toda a investigação criminal - chame-se o que se quiser, inquérito, instrução preparatória, instrução contraditória, toda a investigação criminal - é da competência do juiz. É esse o pensamento que resulta inequivocamente da letra de lei, é isso que resulta de uma análise histórica do diploma.
Ora, acontece que, neste momento, é o Ministério Público que dirige a investigação, o inquérito nada mais é do que a instrução preparatória anterior. Mudou-se o nome e deu-se, pomposamente, aos magistrados do Ministério Público o nome de autoridades judiciárias, equiparando-os ao juiz, ou seja, equiparam-se cargos diferentes para permitir, ao fim e ao cabo, violar a letra de lei. Isto não se trata de uma questão meramente conceptual ou de não se gostar do Ministério Público. A questão que se coloca é esta: é que, perante o juiz de instrução criminal, o cidadão tem as garantias da imparcialidade, da isenção e da objectividade, mas perante o Ministério Público não as tem.
Aliás, um dos grandes motivos que determinaram a mudança da direcção da investigação criminal prendia-se com a aceleração processual, com o facto de os tribunais

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de instrução criminal estarem parados, como se dizia. Quem, hoje, tem conhecimentos práticos - e nós temos, nós trabalhamos todos os dias no DIAP e na Boa-Hora - sabe que, neste momento, está pior.
Só para dar um exemplo: a investigação criminal dirigida pelo Ministério Público pode conduzir a que, num processo, nomeadamente no processo n.º 24/90, da 4.ª Secção do Tribunal de Círculo de Portimão, foi aumentado o prazo de investigação de oito para doze meses, quando o processo, em oito meses de investigação, tinha setenta e sete páginas - ou seja, duzentos e dez dias, setenta e sete páginas! E algumas eram da lavra do advogado, nomeadamente procuração, requerimentos a pedir liberdade. E há outros casos gritantes que, enfim, neste momento, não se podem exemplificar dada a escassez de tempo.
Por outro lado, parece-me que é fundamental, para bem da administração da justiça e, naturalmente, para bem dos cidadãos, que todo o sistema dos tribunais - ou do poder judicial, como lhe chamei - seja modificado. É necessário que, em relação aos juízes, quando vão julgar, quando ascendem à magistratura, o seu ingresso na carreira seja precedido de um conhecimento prático da vida, que tenham passado já pela magistratura do Ministério Público ou pela advocacia, para que nós não vejamos indivíduos que andaram sempre com as fraldas até acabarem a faculdade, que nunca entraram numa prisão, nunca souberam o que era falar com alguém que não fosse do seu círculo de amigos da faculdade. Ao fim e ao cabo, não têm experiência nenhuma e, depois, vão decidir em concreto a liberdade dos cidadãos.
É necessário fazer a comunicação de carreiras, ou seja, fazer com que, quer no Tribunal da Relação - onde, hoje, não existe a possibilidade de os agentes do Ministério Público poderem concorrer e ser providos em lugares de juízes desembargadores -, quer no Supremo Tribunal de Justiça, possa funcionar o princípio do mérito; mas do mérito não avaliado em abstracto, mediante a antiguidade, mediante inspecções feitas por outros juízes, que, ao fim e ao cabo, não traduzem, muitas vezes, a realidade, o real mérito dos magistrados.
Por outro lado ainda, considerei que era fundamental que o ingresso no Supremo Tribunal de Justiça fosse precedido de provas públicas, a efectuar perante professores, por júris constituídos por professores e por professores das Faculdades de Direito e por juízes do Supremo Tribunal de Justiça, mas provas públicas de conhecimentos, e fixar um limite máximo para que um juiz possa concorrer ao Supremo Tribunal de Justiça. Isto porquê? Nós, que vamos lá amiúde, estamos sempre a ver as caras dos juízes a mudar, porque cada vez chegam lá mais próximos da idade de jubilação e o que acontece é que, muitas vezes, os processos emperram porque houve jubilação e ainda não foram redistribuídos os processos, valendo, ao fim e ao cabo, o Supremo Tribunal de Justiça como fim de carreira para conseguir mais algum dinheiro por consequência da jubilação.
Por outro lado, considerámos fundamental que se constitucionalizasse o Estatuto dos Advogados e da Ordem dos Advogados. E isto porquê? Não há dúvida alguma de que somos nós, advogados, que temos de, no dia-a-dia, perante tudo e contra tudo e todos, defender os cidadãos em concreto, em situações muitas vezes terríveis, muitas vezes sujeitos a agressões, como recentemente tem acontecido em esquadras policiais e como, aliás, a comunicação social tem revelado. Portanto, penso que, dada a função extraordinariamente importante do advogado na sociedade portuguesa, a Constituição deve prever um título onde se defina as funções e o estatuto do advogado, para bem dos cidadãos e para bem da advocacia.
São estes, em síntese, os aspectos que julguei mais importantes. Todos os outros estão com eles relacionados, nomeadamente quanto à composição do Conselho Superior do Poder Judicial, como lhe chamo, ou da Magistratura, como agora se chama, porque entendo que deve haver uma maioria de não juízes no Conselho Superior do Poder Judicial, como se propõe, ou no Conselho Superior da Magistratura.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está à consideração este conjunto de propostas, de uma notável coerência, devo dizê-lo, se me é permitida a observação, do Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins.
Tem a palavra o Sr. Deputado Osvaldo Castro.

O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Sr. Presidente, Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins, caro colega, pois também sou advogado: Também penso que as propostas que aqui nos traz têm uma notável coerência, mas permita-me dizer-lhe que não tenho, de modo algum e, no geral, o conjunto de ideias - e algumas delas bem negras - que tem sobre a situação, no plano da justiça. Desde logo, pelo seguinte: não percebo porquê constitucionalizar a figura da Ordem dos Advogados… E isto, apesar da função dos advogados - e, sendo advogado, estou à vontade para dizê-lo. É que, então, por que não os médicos, que defendem a saúde? Creio que é nitidamente um exagero. O papel do advogado na Constituição é, em minha opinião, determinante na assistência que faz ao arguido.
Depois, penso que a sua ideia, de pretender consagrar como órgãos de soberania não os tribunais mas, sim, os juízes, leva à impossibilidade da organização sindical de magistrados do Ministério Público ou de magistrados judiciais. Ora, essa não é sequer a nossa história actual. Assim sendo, julgo que a proposta que faz, no n.º 6 do artigo 218.º, ao declarar os juízes como órgão de soberania, salvo melhor opinião, releva de um lapso, pois os órgãos de soberania são os tribunais e não os seus integrantes, os juízes.
Por outro lado, em relação ao ingresso nas magistraturas, penso que, até agora, no essencial, as coisas não estão tão incorrectas e que mesmo essa integração dos advogados é possível. Os advogados podem concorrer ao CEJ, se tiverem uns tantos anos de exercício da profissão. Agora, concorrem em igualdade com as outras pessoas, prestam provas. Não me parece que se deva entrar por caminhos, digamos, tão largos. Creio que o colega…

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Osvaldo Castro peço-lhe que termine.

O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Vou terminar, Sr. Presidente.
Apesar de eu bem compreender as dificuldades que sentimos na profissão - e eu sou um advogado de barra, não sou um advogado de negócios -, penso que tem uma concepção que excede, em muito, aquilo que entendo que é viável e desejável, neste momento, para a justiça, mesmo na óptica dos advogados.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins, quero colocar-lhe uma ou duas questões.
Há assuntos, como este da proibição de os juízes pertencerem a associações sindicais, o que, aliás, me choca bastante, que já foram focados pelo Sr. Deputado Osvaldo Castro. De qualquer forma, V. Ex.ª referiu alguns aspectos com algum interesse para a revisão constitucional. E como propõe a constitucionalização da figura da Ordem dos Advogados - aliás, as associações como a Ordem dos Advogados ou a Ordem dos Médicos já estão previstas, na Constituição, com outro nome, o de associações públicas -, perguntar-lhe-ia se as suas preocupações em relação à função do advogado, conciliadas com a preocupação que, penso, deve estar subjacente à função do advogado, que é a das garantias de direitos dos cidadãos, nomeadamente na relação arguido/defensor oficioso, não poderiam ser traduzidas na consagração de um inciso de acordo com o qual o arguido tivesse direito "a escolher advogado seu defensor" e não, como diz a Constituição, "a escolher defensor".
A outra questão que gostava de lhe colocar - e não vou pronunciar-me sobre outras questões que suscitou, que, penso, serão melhor analisadas em sede de legislação ordinária e não cabem no texto constitucional, como a dos concursos para o Supremo Tribunal de Justiça, etc. - tem a ver com uma matéria que abordou e sobre a qual tenho a sua opinião, que é a de a direcção do inquérito ser do juiz, propondo para tal uma formulação. A pergunta que lhe faço é no sentido de saber se não entende que o actual texto da Constituição, tal como está - e é claro que isto implica considerar outras questões, como teses originalistas e não originalistas da aplicação da Constituição -, já exige, com a formulação que tem, que o inquérito (o que chamaram de inquérito para tentar fugir a alguns problemas constitucionais), aliás, que a direcção desse inquérito (que é, como referiu, a instrução preparatória, a instrução antiga) seja de um juiz.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Passos Coelho.

O Sr. Pedro Passos Coelho (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Dr. José Martins, esta reunião tem o grande mérito, como sabe, de não apenas dar a dignidade que a Assembleia quer emprestar ao direito de petição em matéria constitucional, mas também de dar a mesma oportunidade a todos os autores dessas propostas de as fundamentarem, como os partidos e os Deputados têm. Portanto, nessa medida, e, sobretudo, atendendo ao adiantado da hora, ficaram para mim claras as motivações de parte importante da proposta que apresenta, pelo que iria apenas fazer-lhe uma pergunta sobre uma matéria que não vi fundamentada e que tem a ver justamente com a limitação temporal do mandato do Sr. Procurador-Geral da República.
Essa é uma matéria que também está sobre a mesa da revisão constitucional, pelo que, se fosse possível, gostava de conhecer a razão política que o leva a defender esta limitação e, portanto, de saber qual é a fundamentação desta proposta e, já agora, o que o levou a fazer uma proposta que limita o mandato do Procurador e não limita, por exemplo, os mandatos de outras entidades do Estado, como, por exemplo, o do Ministro da República para os Açores e para a Madeira.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva, um dos nossos peticionários, a quem peço igualmente que seja breve.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Sr. Presidente, quero fazer uma observação relativamente à intervenção da Sr.ª Deputada Odete Santos, quanto a consagrar-se na Constituição o princípio de que o defensor seja sempre um advogado.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Com a sua licença, Sr. Presidente, gostaria de referir o seguinte: eu não disse que o defensor tinha de ser sempre advogado; disse que o arguido é que tem o direito de escolher um advogado. Quer dizer, se não escolher um advogado, depois o juiz nomeará, por exemplo, um solicitador.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - V. Ex.ª desculpe, mas, na Constituição, diz-se: "O arguido tem direito a escolher defensor". Ora, está em sentido lato e, sendo assim, ele escolhe logo um advogado, querendo.
Agora, a minha intervenção deveu-se ao seguinte: fui funcionário de justiça durante muito tempo e, muitas vezes, era-se nomeado defensor ad hoc, porque, naquele momento, não havia advogados. Ora, se se consagrasse aqui o princípio, que, pelos vistos, V. Ex.ª não quer, de que o defensor fosse sempre um advogado, corria-se o risco de se entravar a justiça.
Já agora, aproveitava esta disposição para dizer o seguinte: nos processos de contra-ordenação, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa. Desculpem-me, só queria referir isto e também…

O Sr. Presidente: - Peço-lhe que termine a sua intervenção, por favor. Estamos com um tempo muito limitado.

O Sr. Joaquim Resende Nunes da Silva: - Sr. Presidente, era só para dar um exemplo prático. É que, por exemplo, nos processos de transgressões, sistematicamente são nomeados defensores aos transgressores (hoje, são contra-ordenações). Mas para quê? Para eles oferecerem o merecimento dos autos e sem o arguido o desejar.

O Sr. Presidente: - Antes de dar a palavra, para responder às observações que foram feitas, ao Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins, gostaria de dizer algo sobre um ponto que foi focado, o da constitucionalização da figura do advogado e, se calhar, da Ordem dos Advogados.
Pese embora as observações do meu colega e amigo Osvaldo Castro, sou bastante menos crítico em relação a este tipo de propostas. Para já, o projecto do Partido Socialista, de que nós somos co-autores, constitucionaliza a figura do advogado. Em segundo lugar, defendi, noutra ocasião - e mantenho essa proposta -, a possibilidade da constitucionalização da figura da Ordem dos Advogados, o que não me parece que seja equiparável às outras ordens, no que tem a ver com a matéria jurídica e constitucional. Defendi, noutra altura - e é público -, que, por exemplo, o Bastonário da Ordem dos Advogados tivesse a possibilidade de requer a fiscalização da constitucionalidade,

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que era um meio indirecto de constitucionalizar a Ordem dos Advogados.
Porém, nesta área, penso que este projecto vai demasiado longe. Por exemplo, julgo que carece de justificação a ideia de fazer nomear para o Conselho Geral da Ordem dos Advogados cinco elementos por parte da Assembleia da República, pois, a meu ver, isso traduzir-se-ia numa "estatização" (entenda-se, nos devidos termos) da Ordem dos Advogados, com prejuízo da auto-administração, que deve continuar a pautar as corporações profissionais, com, obviamente, a devida fiscalização e tutela do Estado.
Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins, tem a palavra - e apesar dos 10 minutos que lhe concedo, mais uma vez lhe peço que, se puder prescindir de alguns, muito contribui para o trabalho desta Comissão.

O Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins: - Sr. Presidente, Sr. Deputado Osvaldo Castro, não tenho uma ideia negra sobre o plano da justiça. Agora, temos de ser realistas e também devemos ver o que está mal. Quando, por exemplo, se constata que há decisões judiciais em que um juiz submeteu a regime de prisão preventiva uma cidadã, que foi julgada, à revelia, por crime de emissão de cheque sem provisão (no caso, um cheque de 5 000$), que pediu novo julgamento e, à cautela, recorreu e provou que pagou com juros, que depositou na Caixa Geral de Depósitos, e, mesmo assim, um juiz da Boa-Hora submete a prisão preventiva uma pessoa que não tem antecedentes criminais, é de ficar muito, muito, decepcionado com algumas coisas que vão na nossa justiça e, nomeadamente, com a qualidade dos nossos magistrados - e temos legitimidade para o discutir. Eles não têm representatividade directa, a representatividade ou a legitimidade deles advém da Constituição de forma indirecta, e o que vemos hoje é que cada vez vai mais para a magistratura quem não consegue ir para a advocacia. A verdade é esta. É que, graças a Deus, nós ganhamos muito mais e "cavalgamos em toda a sela", como sói dizer.
Por outro lado, quando propus o título "Do Poder Judicial", não estava, de maneira alguma, subjacente à minha proposta que quem passaria a ser órgão de soberania eram os juízes e não os tribunais. Só que não é necessário voltar a acentuar, de forma expressa, no título relativo ao poder judicial, que quem é o órgão de soberania são os tribunais, na medida em que há outra norma constitucional que já o refere. E lembro que, nomeadamente na Constituição Espanhola, o título respectivo também não é os tribunais mas, sim, o poder judicial.
Quanto ao papel dos advogados - e o Sr. Presidente, Dr. Vital Moreira, já o referiu -, há uma proposta, que vem no Boletim da Ordem dos Advogados, feita pelo Sr. Bastonário à Assembleia da República, no sentido de constitucionalizar a advocacia. Portanto, não me parece que se possa pôr no mesmo prato a saúde e a justiça, pois a justiça mexe com a saúde, mexe com tudo, é completamente diferente. Isto para responder ao Sr. Deputado Osvaldo Castro.
Sr.ª Deputada Odete Santos, quanto à questão das associações sindicais, entendo que, tal como na Constituição Espanhola - e estou a lembrar-me desta -, em Portugal, os juízes e os agentes do Ministério Público não devem poder fazer parte de associações sindicais ou de sindicatos. Por um lado, não faz sentido que titulares de órgãos de soberania - e estou a referir-me aos juízes - possam ter uma associação sindical, o que pressupõe o exercício do direito à greve. Voltaríamos ao tempo, já distante, em que um órgão de soberania fez greve - todos sabemos isso. Assim sendo, não me parece que o munus da judicatura comporte o exercício do direito de liberdade sindical ou de associação. Mais uma vez, lembrando-me da Constituição Espanhola, a Constituição Espanhola proíbe o exercício de actividades sindicais por parte dos juízes e remete as modalidades de associação profissional dos juízes para a lei ordinária.
Quanto à escolha do defensor, essa é uma das garantias fundamentais do processo penal. Mas temos de ver como é que isso funciona na prática. Actualmente, a Ordem dos Advogados indica vários advogados estagiários para o TIC, para assistir aos primeiros interrogatórios, e a verdade é que vemos sempre que, perante a posição do Ministério Público a pedir a prisão preventiva ou qualquer outra coisa, os advogados estagiários que lá estão, sem direcção de um patrono, dizem sempre a mesma coisa: "Nada a requerer ou a opor" - é isto! É isto que funciona. E porquê? Porque não têm ninguém lá à frente que diga: "não é assim, fala com o arguido primeiro, pergunta-lhe o que é que se passa, vê qual é a posição dele e defende-o dignamente".
Relativamente à direcção da investigação, Sr.ª Deputada Odete Santos, é óbvio que resulta claramente do artigo 32.º, n.º 4, da Constituição que a investigação de um crime, dos seus agentes e da sua responsabilidade é da competência de um juiz. Quer dizer, se me chamarem mulher, eu não sou, continuo a ser homem, não podem mudar-me o sexo, só porque me chamam outra coisa! O que a Constituição diz é claro!
E há uma outra coisa que é fundamental na análise constitucional - e perdoe-me o Sr. Dr. Vital Moreira, que é especialista na matéria, mas devo dizê-lo -, que tem a ver com o seguinte: na redacção originária da Constituição de 1976, dizia-se que "Toda a instrução será da competência do juiz (…)". E, "será", porquê? Porque não era! A instrução preparatória era da competência do Ministério Público. Já na redacção actual da Constituição, diz-se que "Toda a instrução é da competência de um juiz (…)". Portanto, não é preciso mudar nada, o legislador constituinte já mudou; em nome de uma nova ideia de direito, já modificou o sistema (e modificou por aquilo que todos nós, que somos juristas, sabemos). Portanto, não é necessário.
Agora, a questão que se coloca é esta: quem lê os acórdãos do Tribunal Constitucional chega à conclusão de que ali está outra coisa - afinal, é menina, não é menino, mas não é! E equiparar o inquérito actual ao inquérito preliminar anterior é esquecer que, a partir do momento em que o inquérito preliminar do Decreto-Lei n.º 605/75 passava a correr contra a pessoa presa, passava a ser da competência do juiz, pelo que não é necessário modificar isso, a lei constitucional é suficientemente clara.
Sr. Deputado Pedro Passos Coelho, devo dizer-lhe o seguinte: quanto ao Ministro da República, enfim, essa figura não fazia parte das minhas preocupações, pois não sou político, e tudo o que escrevi na minha proposta de revisão constitucional tem a ver com a minha profissão, com o exercício, no dia-a-dia, dessa profissão e com as questões que se me vão colocando e os problemas que vou sentindo. Relativamente à figura do Ministro da República, é óbvio que tenho a minha posição, mas não a verti na proposta, porque entendi que não fazia sentido, tendo em atenção aquilo que eu queria - foi só por essa razão.

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Quanto ao mandato do Sr. Procurador-Geral da República, é por demais evidente que o Sr. Procurador-Geral da República está lá há tempo demais. Lembro-me que, quando era finalista da Faculdade de Direito, em 1985, ele já era Procurador-Geral da República. Depois disso, passaram-se n coisas e ninguém tem a coragem de dizer que o Procurador-Geral da República deve sair. Tenho toda a consideração pelo Sr. Procurador-Geral da República, mas devemos ter em consideração que muitos anos no mesmo cargo vicia. Tendo o poder enorme que ele tem, em que pode governar toda a magistratura, pode definir tudo aquilo que os magistrados farão em cada processo, por circular, não faz sentido que continue eternamente, devendo ser substituído, em honra do princípio da temporalidade dos cargos e porque me parece que cinco anos são suficientes, como propus, para que um homem, na posição do Procurador-Geral da República, cumpra o seu dever.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. José Maria de Jesus Martins, obrigado pela sua disponibilidade e pela colaboração que nos deu.
Agora, vou dar a palavra ao peticionário seguinte, Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira, que é defensor de uma ideia com poucos defensores entre nós - e um dos grandes defensores dele, o Professor Barbosa de Melo, não está aqui -, a da erecção de um Senado.
Tem a palavra, por 5 minutos (se puder utilizar apenas 3, agradeço), o peticionário Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira.

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: - Primeiro, quero agradecer ao Sr. Presidente e, na sua pessoa, à Assembleia da República e às Sr.as e Srs. Deputados aqui presentes esta ideia, que considero muito feliz.
Na verdade, o artigo 2.º da Constituição da República fala claramente no "aprofundamento da democracia participativa" e isto, agora, começa realmente a ser democracia participativa. É que somos nós, cidadãos eleitores, que elegemos os políticos, pelo que tem de haver uma ligação completa entre nós e os políticos, senão não vamos a lado nenhum. Este é o primeiro ponto que quero focar.
O segundo ponto é este: por que é que estou aqui e levantei o problema do Senado? Vejamos: o que se passa na democracia do mundo? Todos certamente conhecem o livro Les Vrais Penseurs de Notre Temps, que consta de uma entrevista dada por Hayek a Guy Sorman. Ora, Hayek dizia claramente que a democracia se tinha degradado, porque, como já temia Tocqueville, se confundiu o ideal democrático com a tirania da maioria. Por outro lado, Jacques Delors diz, neste seu último livro, o seguinte: "Apesar de diversidades de culturas e dos sistemas na organização social, existe o desafio universal de reinventar o ideal democrático". E não vale a pena referir o que disse Alvin Toffler, mas ele também diz mal deste sistema. Porém, é o único sistema que se conhece e é por isso que vamos entrar exactamente no caso concreto do Senado.
Como sabem, existe Senado em nove países da União Europeia: na Alemanha, na Áustria, na Bélgica, na Espanha, na França, na Holanda, na Inglaterra, na Irlanda e na Itália. E, aqui, esta sala é chamada a Sala do Senado. Porém, o Senado que defendo é um Senado diferente. Vamos reinventar o Senado.
E no que é que "agarrei"? "Agarrei" exactamente no que tem o Comité Económico e Social (CES) da União Europeia. Nesse Comité, estão representadas as "forças vivas nacionais". Ora, a primeira força viva nacional do Senado é a família, seguida das outras, que passo a enumerar: a juventude, os trabalhadores, o patronato, as profissões liberais, os intelectuais, as forças espirituais, as forças armadas, as forças de segurança, os ecologistas, que também já estiveram aqui a levantar problemas, e bem, os emigrantes (não se esqueçam de que temos 4,5 milhões de emigrantes), os espoliados e expulsos do ex-ultramar (1 milhão), os desportistas, a banca e os seguros (se não houver dinheiro e se não houver segurança para o dinheiro, também não há nada para ninguém), os reformados e pensionistas (cerca de 2 milhões), os consumidores, que somos todos nós, os contribuintes, que somos todos nós (e é por isso que estamos aqui, pagámos impostos para estarmos aqui), e as autarquias locais, onde nós nascemos, vivemos e morremos.
Depois, darei este meu trabalho, que é mais exaustivo, ao Sr. Presidente, porque realmente 5 minutos é muito pouco tempo.
Para terminar, digo o seguinte: que melhor local podia ter sido escolhido na Assembleia da República para a apresentação pública da proposta de criação de um Senado do que a própria Sala do Senado, onde nos encontramos?! Portanto, sala já temos, aliás, foi onde o Senado sempre funcionou, resta apenas que a proposta seja aprovada, como é da mais elementar justiça.
La Cordaire afirmou: "A Verdade é o primeiro nome de Deus e a Justiça o segundo". Confiante em Deus, na Verdade e na Justiça, concluo com uma citação de Platão: "A palavra escrita é letra morta enquanto não houver uma inteligência desperta que a compreenda". Espero confiadamente que as inteligências despertem. Cumpram o vosso dever, pois, cumprindo-o, estão cumprindo Portugal.
Muito obrigado, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: Muito obrigado ao nosso peticionário pela vivacidade que emprestou à apresentação da sua proposta de criação de um Senado de representação orgânica de sectores e grupos de profissionais e outros.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): Sr. Presidente, é para, muito rapidamente, como as circunstâncias exigem, dizer que não podemos prever a nossa evolução constitucional, sendo certo que, neste momento, não há qualquer proposta apresentada pelos diversos grupos parlamentares ou Deputados para a criação de uma segunda câmara, embora, no passado, já tenha havido, penso que na última ou na penúltima legislatura. Pelo menos em termos de lei ordinária não sei se essa questão foi colocada, mas julgo que sim.
No entanto, há duas questões que temos de afastar em definitivo: uma segunda câmara como câmara corporativa nunca mais, naturalmente, e também nunca mais como câmara vitalícia.
A questão que se pode colocar, que tem sido colocada no debate político e que foi agora também colocada através da intervenção, muito interessante, do nosso peticionário, é se, na sequência do aprofundamento da arquitectura constitucional e uma vez criadas as regiões, a questão do fechamento da arquitectura regional com as regiões não

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poderá vir levantar, de forma aguda, esse problema em termos de arquitectura. Isto é: os senados modernos são hoje não câmaras vitalícias, câmaras aristocráticas ou câmaras de interesses, mas sobretudo câmaras regionais, podendo até ter uma componente de senadores, como grandes figuras da República, como existe em alguns países.
Essa é uma ideia que, provavelmente, será levedada num órgão legislativo, porventura com duas câmaras ou não - a República já teve essa experiência -, sendo certo que a legitimidade primeira é daqueles que são directamente eleitos e que a ideia de uma articulação regional tem tradução democrática, é uma solução democrática em vários países. Não se coloca, mas não é uma ideia constitucional ou política que se possa afastar com facilidade e com duas ou três palavras.
Muito obrigado, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: Pergunto ao nosso peticionário se a configuração que ele dá a esta proposta de Senado não se obteria, no essencial, com uma evolução do actual Conselho Económico e Social e se uma parte importante das suas preocupações não se encontram exactamente no actual Conselho Económico e Social?
Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira, tem a palavra para responder às questões que lhe foram colocadas, pedindo-lhe, mais uma vez, que seja breve, sem perder, no entanto, a vivacidade.

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Sr. Presidente, serei rápido e directo.
O Sr. Dr. Alberto Martins disse, realmente, aqui que "Câmara Corporativa nunca mais!". Estamos completamente de acordo, porque, na verdade, a Câmara Corporativa, segundo o que sabemos da própria Constituição de 1933, era uma câmara que servia apenas e só para dar pareceres. Dava pareceres à própria Assembleia Nacional, como se chamava naquela altura, e ao governo. Não é isso que me interessa! Não me interessam os pareceres! O CES na União Europeia também dá pareceres à Comissão! Não é isso que me interessa! Interessa-me um Senado que tenha acções e que, inclusivamente, tenha também o direito de veto. Porque aqui passa-se uma coisa muito engraçada: os senhores, que são Deputados, é que fixam os vossos vencimentos e as vossas reformas. E quem é que vos veta? É apenas o Sr. Presidente da República, que está também interessado nos vossos vencimentos e no vencimento dele. Onde é que está o controlo? Quem controla?

O Sr. Presidente: Quem é que controlaria o Senado?

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Passava a ser, exactamente, a segunda câmara!

O Sr. Presidente: Mas quem controlaria esse Senado?

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: A segunda câmara!

O Sr. Presidente: Uma controla a outra?

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Com certeza, como é evidente!
Em relação àquilo que disse, repare que o problema não é estarmos a meter isto, aquilo e aqueloutro, o problema é que vemos concretamente, e não sou eu que estou a dizer, porque citei-lhe casos do Hayek, citei-lhe casos do Jacques Delors e citei-lhe, nomeadamente, o caso concreto do americano Toffler. É que, tal e qual como existe no mundo, a democracia representativa não está funcionando. É a Constituição da República, logo no artigo 2.º, que diz claramente "aprofundamento da democracia participativa". Eu pergunto: aonde?
É isso que eu quero, quero um Senado para ter realmente a democracia participativa, onde as pessoas são eleitas a partir das bases, porque aqui não são eleitas a partir das bases. Em qualquer partido político - e os senhores corrijam-me, se não for verdade - são as cúpulas em Lisboa que dizem à província como é. Mais ou menos, more or less!

O Sr. Presidente: Estaria longe de poder subscrever a sua afirmação. Não sendo membro do partido, faço-o com alguma legitimidade.

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: De acordo, está certo. Esse é que e o ponto!
Por outro lado, como é que os senhores podem admitir que o n.º 3 do artigo 152.º da Constituição da República diga claramente que "Os Deputados representam todo o país e não os círculos por que foram eleitos"? Então, como é que um tipo é eleito por Braga e não representa Braga? É eleito por Beja e não representa Beja? Como é? Como é? Como é? Mas em que país é que estou vivendo? Por amor de Deus!

O Sr. Presidente: Isso é uma regra geral das democracias representativas.

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Não! Não é uma regra geral, não! O Sr. Presidente sabe perfeitamente! Vá ver a Constituição alemã, em que qualquer pessoa para ser eleita tem de viver cinco anos no local, tem de participar na vida local, tem de fazer tudo isso, e vá ver a Constituição inglesa, em que…

O Sr. Presidente: Isso é nos círculos uninominais, não no círculo nacional!

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Com certeza que sim! Mas veja na Inglaterra, em que há um controlo. Nós fazemos um pacto com os Deputados e, se o Deputado cumprir, muito bem, mas, se não cumprir, vai-se embora. Agora como é?

O Sr. Presidente: Vai-se embora, isto é, não será eleito na seguinte!

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Não, não!…

O Sr. Presidente: Obrigado pela sua…

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Vou pôr esta coisa no jornal para ver tudo, como dizemos na tropa, "clarinho, clarinho, que é para militares".
Muito obrigado.

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O Sr. Presidente: Mais claro não podia ser. Obrigado pela sua colaboração.
De seguida, irá usar da palavra o Sr. Victor Manuel da Silva Garcia, que não sei se veio, porque tenho aqui uma nota a dizer que não confirmou a sua presença.

Pausa.

Dado que não se encontra presente, tem a palavra o Sr. José de Sousa Esteves. Como nos traz uma única questão, dispõe de 5 minutos, mas penso que pode limitar algum tempo a esta alocação de tempo.
Faça favor.

O Sr. José de Sousa Esteves: Muito obrigado, Sr. Presidente, pela oportunidade que a sua Comissão nos proporciona.
Porque disponho apenas de 5 minutos, ou menos, leio forçosa e rapidamente a minha sugestão para uma, desde sempre, oportuna - julgo - alteração ao artigo 1.º do texto constitucional em vigor. Faço-o concretamente com as palavras já utilizadas no final de uma das minhas comunicações apresentadas no Congresso "Portugal que Futuro", em Maio de 1994.
Mas relembremos que o referido artigo tem hoje a seguinte redacção:"Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária".
As palavras que acrescento, num esforço novo - creio - e meramente pessoal ou exemplificativo, rumo à democracia cultural, a mesma que pode ou há-de facilitar, depois, a democracia económica, a democracia social, a democracia toda e a democracia das pessoas humanas, num desenvolvimento natural e dinâmico, que pode até levar, cultural e democraticamente, à sociedade sem classes, são as seguintes: "(…) e na progressiva eliminação das diferenças culturais e profissionais dos diversos extractos ou classes sociais que dividem e diferenciam, sem qualquer democraticidade, a população portuguesa, através de uma preparação democrática, educativa e socioprofissional dos 3 aos 23 anos de idade".
Atenção: há países na União Europeia, e cito dois dos mais pequenos, a Bélgica e a Holanda, onde a escolaridade obrigatória vai até aos 18 anos, embora durante os 17 e os 18 anos seja uma frequência parcial, mas, depois, aos 19, 20 e 21 anos cerca de metade desses jovens continuam a estudar. Vejam o nosso grave atraso.
Na minha sugestão, adianto, pois, uma escolaridade obrigatória em Portugal de 20 anos, que é o tempo habitual da frequência escolar dos culturalmente privilegiados neste país, onde a Constituição fala da igualdade dos direitos de todos os cidadãos, de direitos - sublinho - e não de oportunidades, como alguns agora dizem. Um país - insisto - onde os privilegiados ganham uma valorização cultural desde a pré-primária ao final do ensino superior, que aos outros portugueses é denegada, factual e estruturalmente, por injustiças de carácter social, fundamentalmente, embora sem esquecer também, é verdade, outras circunstâncias de carácter pessoal, mas que nem por isso justificam tais discriminações democráticas, autênticas violações, que realmente são, dos direitos correspondentes à dignidade e às necessidades todas da pessoa humana.
São, pois, 20 anos de escolaridade obrigatória, numa escola que há-de ser muito diferente da actual, cujas estruturas particulares servem nos seus pressupostos e preconceitos a manutenção das injustiças correspondentes às estruturas mais amplas que sabemos, e são as nossas. Tem de ser também, julgo, uma escola do saber multiprofissional, a exercer e renovar ao longo da vida, e da sabedoria do estar com os outros em solidariedade.
Ficar como estamos na democracia só política, a de um voto por cabeça, é acentuar, cada vez mais e sem paradoxo, todas as injustiças discriminatórias que fazemos, por um lado, e que suportamos, por outro. É, aliás, o que verificamos todos os dias no fenómeno dos democraticamente discriminados ou marginalizados. Primeiro, na educação e, depois, muito consequentemente, no resto da vida e para sempre.
É a democracia do desemprego, dos subsidiodependentes; a democracia do pior Estado de providência; a democracia das drogas duras e também dessa outra droga que todas as horas nos entra em casa, a da pior televisão, a televisão que os senhores do dinheiro, que impedem a evolução cultural e democrática, promovem e financiam, através da publicidade, com programas de baixo nível, cada vez mais baixo e a não parar inexoravelmente; a democracia congelada no seu dinamismo natural; a democracia dos cada vez mais ricos, a descobrirem, verdadeiramente encantados, que esta coisa democrática lhes permite, como nunca sucedeu na História, uma situação imparável de privilégios.
Acabei, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: Muito obrigado.
Está à vossa consideração esta proposta relativamente ao artigo 1.º, cujas implicações foram desenvolvidas pelo nosso peticionário.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): Sr. Presidente, era tão-só para deixar registado, e com manifestação de apreço pelas preocupações que nos foram transmitidas, que uma das razões do projecto de revisão constitucional que apresentámos é precisamente a de combater ou ajudar a combater algumas das distorções que foram diagnosticadas e identificadas. Fazemo-lo de forma comedida, porque, por um lado, entendemos que o projecto constitucional em muitos dos aspectos que referiu, designadamente quanto à parte da educação, teve um défice de execução, embora tenhamos propostas concretas para o aperfeiçoar, e, por outro, em matéria de comunicação social, também temos algumas propostas.
Uma norma como aquela que propõe, ou seja, uma norma que, de forma global, estabelecesse um comando no sentido da "progressiva eliminação das diferenças culturais e profissionais dos diversos estratos", teria, provavelmente, alguns problemas. É que o seu conteúdo útil já consta e está esparso em diversas normas constitucionais. Portanto, esta norma, provavelmente, sobre-abundaria, repetindo aquilo que consta da Constituição cultural, da Constituição educacional e da Constituição política estritamente dita, sendo certo que do que precisaremos é de correctivos pontuais e não gerais e, sobretudo, de uma acção que cumpra a Constituição. Foi isso que faltou em outros círculos políticos. Esperemos que não falte neste círculo político.

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Era esta mensagem que não gostaria de deixar de transmitir, ouvida a sua exposição.

O Sr. Presidente: Tem a palavra o Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira.

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Sr. José de Sousa Esteves, quero felicitá-lo pela maneira clara, concisa e precisa como falou, porque o problema n.º 1 deste país é realmente a falta de educação, instrução, formação profissional e cultura. É essa a razão. De acordo com o último relatório do PENUD, na parte que se refere à saúde, à educação e ao PIB, enquanto a Espanha tem um índice de desenvolvimento humano que está em 10.º lugar, nós estamos em 35.º lugar. Ainda bem que o senhor falou nisso.
E parabéns por ter falado também no caso concreto da televisão, porque a televisão serve os interesses deles, mas não os deste povo.
Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado.
O Sr. José de Sousa Esteves trouxe-nos aqui uma parte das reflexões que, de resto, tem feito publicar. Tenho na minha frente uma, publicada em Maio 1996, cujo título, a meu ver, é elucidativo, que é A democracia cultural como a segunda fase da utopia democrática é já possível?
Penso que esta é uma sensível reflexão de uma utopia democrática, com que muitos de nós concordamos, que está no horizonte de toda a democracia.
Tem a palavra para responder.

O Sr. José de Sousa Esteves: Sr. Presidente, vou responder agradecendo, porque, realmente, parece que estamos em empatia, em consonância.
O nosso problema da educação é gravíssimo. Um país que ainda hoje tem 11% de analfabetos e um défice de literacia em todos aqueles que, pretensamente, sabem ler e escrever. E é um problema que não preocupa ninguém, pelos vistos, a não ser este velho cidadão de 77 anos de idade, antigo professor de Educação Física em vários liceus e em duas escolas preparatórias! É um problema terrível que não comove as pessoas.
Com muita veleidade, devo dizer que o Sr. Primeiro-Ministro só descobriu, ou publicamente só afirmou, que a sua paixão era a educação depois de um artigo que consegui publicar num semanário… Uma coisa extraordinária, porque sou censurado sistematicamente por todos os órgãos da comunicação social. Esta é a primeira, a única e última oportunidade que tenho de falar em público e oficialmente ou oficiosamente.
Nesse artigo, dei-me ao cuidado - e não estou a falar contra as pessoas da instituição mas, sim, da própria instituição - de compilar elementos, que me foram dificultados por todos os ministérios, onde, ano a ano, desde a nossa entrada na CEE, em Janeiro de 1986, até finais de 1994, refiro a contribuição líquida da CEE para a nossa recuperação europeia e o dinheiro que gastámos com as inúteis e onerosas Forças Armadas - não sou, repito, contra as pessoas mas, sim, contra a instituição. Pois gastámos quase tanto com as inúteis e onerosas Forças Armadas, aquelas que tristemente herdámos da ditadura, como o que recebemos da contribuição líquida da CEE para a nossa recuperação europeia.
Sr. Presidente, muito boa tarde e muito obrigado.

O Sr. Presidente: Muito obrigado, Sr. José de Sousa Esteves.
Tem a palavra, agora, o Sr. Hilário Pereira de Carvalho, uma vez que o Sr. Alberto Maria Fernandes não está presente.
Tem os tabliónicos 5 minutos para apresentar a sua proposta, que, mais do que uma proposta, é uma reclamação pessoal.

O Sr. Hilário Pereira de Carvalho: Sr. Presidente, de acordo com o ofício que me foi enviado, apresento a seguinte proposta: a de que, no texto da Constituição, cuja revisão está em curso, conste a obrigatoriedade de o Estado pagar, no prazo máximo de dois anos, com juros e tendo em conta a inflação, as indemnizações devidas pelos haveres de todos os cidadãos portugueses que tinham os seus bens no ultramar português e que, com a descolonização, foram espoliados e também determinar o modo de avaliação de todos eles, aceitando, à partida e desde já, toda a documentação comprovativa da posse de tais bens que já tenha sido entregue.
No meu caso particular, os bens a indemnizar foram devidamente documentados por certidões emitidas e autenticadas pelo Estado português, justificando-se, desse modo, a sua posse plena e de direito, documentação essa entregue em 13 de Fevereiro de 1976, na Secretaria de Estado da Descolonização, tendo, posteriormente, feito cerca de 20 requerimentos a Suas Excelências os Presidentes da República, Primeiros-Ministros, Ministros dos Negócios Estrangeiros, da Cooperação, etc., sem que, durante este longo lapso de tempo, mais de 20 anos, nada de concreto se tenha resolvido, o que, num Estado de direito, é confrangedoramente inadmissível.
Pede-se, por fim, que as perguntas que, eventualmente, me forem feitas sobre o assunto e as resposta que darei sejam gravadas, porque, depois, gostaria de as ter.

O Sr. Presidente: Esse pedido está garantido à partida, uma vez que a reunião está a ser gravada e será publicada como trabalho da Comissão. Faz parte, obviamente, do próprio conceito de audiência pública que definimos.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): Sr. Presidente, não é propriamente um pedido de clarificação, mas, depois de ouvir aquilo que o Sr. Peticionário aqui nos trouxe, em consciência, sinto-me obrigado a dizer qualquer coisa sobre o assunto, quanto mais não seja, num sentido, por um lado, de solidariedade, tomando como verdadeiro aquilo que diz nessa sua exposição, ou seja, que há 20 anos se dirige a instâncias do Estado de direito, que somos, para tentar ver resolvido o seu caso, eventualmente em vão, e, por outro, de explicação, no sentido de dizer que, por mais meritório que seja - e é com certeza - o problema que traz consigo, ele, de facto, extravasa totalmente as possibilidades e as competências desta Comissão.
Como compreenderá, com franqueza - e o Sr. Presidente poderá acrescentar qualquer coisa a isto -, não é matéria que possa ou deva constar de um texto constitucional. O problema que coloca, quanto muito, é um problema de direito, é um problema de justiça acima de tudo, que, de facto, extravasa completamente o âmbito dos trabalhos da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.

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Em qualquer circunstância, pedi a palavra porque não queria que o nosso silêncio pudesse ser interpretado como um menor interesse e um menor apreço pelo problema que nos trouxe.

O Sr. Presidente: Uma coisa óbvia nesta audiência é a de que todas as propostas têm igual dignidade e, portanto, não há aqui qualquer menos consideração, menos apreço, devido ao seu conteúdo.
Em todo o caso, devo dizer - e é pena isto que vou dizer - que há, de facto, uma proposta de revisão constitucional que tem a ver com esta matéria, que é a do PP, e é pena que não tenha estado ninguém do PP na reunião de hoje. Na verdade, o PP propõe pôr na Constituição uma norma segundo a qual "A lei definirá os termos, condições e prazos em que o Estado Português, por si ou em colaboração com outros Estados ou organizações internacionais, indemnizará os espoliados do ex-ultramar português em consequência da descolonização."
Teria sido conveniente que os autores desta proposta pudessem comentar esta petição individual que nos é trazida, mas não é possível fazê-lo.
Sr. Peticionário, fica feita a sua petição e explicado e fundamentado o seu sentido. Se quiser aditar mais algum comentário, pode fazê-lo.

O Sr. Hilário Pereira de Carvalho: Sr. Presidente, acho que…

O Sr. Presidente: Peço desculpa, mais temos ainda inscritos os Srs. Deputados José Magalhães e Odete Santos.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): Sr. Presidente, não gostaríamos de guardar silêncio nesta matéria. O Sr. Presidente prestou já a informação que nos aprestávamos a colocar perante os olhos do peticionário, porque, de facto, a proposta existe.
É verdade, e estamos cientes disso, que, no passado, em outros ciclos históricos e políticos, falharam esforços tendentes a proteger interesses legítimos de portugueses residentes em territórios de ex-colónias e também é verdade que o processo de descolonização é irreversível e se completou. No entanto, há, neste momento, diligências em curso a nível do Governo, no quadro da nossa diplomacia e de um bom relacionamento com os novos países africanos de expressão portuguesa tendentes a obter providências e medidas que vão ao encontro de preocupações que foram expressas.
Temos dúvidas de que seja possível e vantajoso consagrar em norma constitucional, com o conteúdo que o PP propõe ou outro similar, uma directriz deste tipo que vem proposta, mas estamos, obviamente, no terreno apropriado, da forma apropriada e no novo quadro histórico, a agir com aquilo que entendemos ser uma diligência razoável em defesa de interesses legítimos.

O Sr. Presidente: Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, também tenho algumas dúvidas sobre a constitucionalização do problema, nomeadamente com a latitude apresentada pelo Partido Popular. No entanto, creio que, relativamente a uma parte, que não foi a que hoje apresentou, que tem a ver com depósitos feitos no consulado das ex-colónias, o problema está resolvido. Creio até que, em consequência, houve uma petição que apresentaram à Assembleia da República e que foi discutida, tendo nós tomado posição no sentido de que, de facto, tinham razão.
A pergunta que lhe quero fazer é no sentido de saber se esse problema que agora apresentou, que tem a ver com os haveres, também já foi objecto de uma outra petição, sem ser esta que aqui foi apresentada para a revisão constitucional.

O Sr. Hilário Pereira de Carvalho: Não, não foi! Apenas tenho feito requerimentos, cerca de 20, a Suas Excelências os Presidentes da República, Primeiros-Ministros, Ministros dos Negócios Estrangeiros e Secretários de Estado, etc. Foram cerca de 20. Todos me responderam, mas todos, até hoje, nada fizeram. Isto é uma situação…

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Mas o outro problema dos depósitos em dinheiro que lá ficaram foi resolvido?

O Sr. Hilário Pereira de Carvalho: Não! Em relação a mim, não! É que, quando entreguei…

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Mas eu tenho a informação de algumas pessoas que…

O Sr. Hilário Pereira de Carvalho: São outras….

O Sr. Presidente: - Sr.ª Deputada, creio que não vale a pena avançarmos muito.
Vou dar a palavra ao Sr. Dr. João Rio, que também queria dizer alguma coisa sobre isto, mas peço-lhe que seja muito breve.

O Sr. Dr. João Armando Soares Pereira de Aragão e Rio: - É só uma contribuição de natureza histórica, Sr. Presidente.
Fui para África em 1952 e vim de lá em 1979. Falou-se agora em indemnizações e quero referir que, numa conversa informal, pós-consulta, pelo que não estou a quebrar qualquer segredo profissional, o então Ministro dos Negócios Estrangeiros e hoje Presidente de Moçambique disse-nos a nós, a mim e ao meu outro colega, em conversa informal, repito, que o Estado português tinha dado 500 000 contos para distribuir pelos colonos que iam saindo e que o Estado moçambicano tinha começado por dar 100 contos a cada um mas, depois, como o dinheiro foi acabando, rateou e passou a dar 50 contos. Portanto, do que conheço, o que existe de indemnizações directas é isto. E, para mim, foi uma surpresa, porque estava convencido de que estes 100 contos eram atribuídos pelo Estado de Moçambique.
Foi apenas uma contribuição histórica e mais nada.

O Sr. Presidente: - Claramente este é um tema que excede as funções e o âmbito da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
Sr. Hilário Pereira de Carvalho, não sei se quer acrescentar mais algum ponto…

Pausa.

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Creio que a questão está esclarecida, pelo que me resta agradecer a sua presença e a explicação que nos deu.
Vou agora dar a palavra ao Sr. Coronel Saturnino Monteiro, que nos vem trazer uma proposta relativa, sobretudo, ao estatuto do Presidente da República.
Tem a palavra, Sr. Coronel.

O Sr. Armando da Silva Saturnino Monteiro: - Sr. Presidente, em primeiro lugar, cumpre-me agradecer a oportunidade que me é dada para apresentar directamente algumas sugestões à Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
Tenho 73 anos de idade, sou oficial da Armada, reformado, portanto, não sou Coronel.
Desde muito novo que me tenho interessado pela organização, especialmente pela organização política, e fui, durante alguns anos, professor da cadeira de Organização, da Escola Naval, mas devo frisar que nem por isso me considero um especialista na matéria.
As sugestões que me atrevo a apresentar, em termos de revisão constitucional, não derivam de qualquer posicionamento ideológico ou partidário mas somente de alguns princípios da ciência de organização e de alguns conceitos básicos da democracia.
A minha primeira sugestão é a de que o Presidente da República passe a ser eleito pela Assembleia da República.
Como se sabe, em qualquer grupo social organizado, apenas deve existir um único órgão superior de direcção. Num regime de ditadura, esse órgão é o chefe do Estado, que vai buscar a sua legitimidade ao voto directo, embora condicionado, da massa eleitoral. Assim acontecia no quadro da Constituição de 1933. Num regime democrático, esse órgão é o Parlamento, legitimado pelo voto popular exercido em liberdade. Assim acontecia no quadro da Constituição de 1911.
No quadro da actual Constituição, parece-me que a eleição directa do Presidente da República desvaloriza o papel que, julgo, devia caber à Assembleia da República e, em certas circunstâncias, pode contribuir para dificultar a acção do Governo, mesmo que este disponha do apoio da Assembleia.
A minha segunda sugestão é a de que o Presidente da República possa ser demitido a qualquer momento por uma maioria de dois terços da Assembleia da República. A exigência de uma maioria de dois terços para depor o Presidente da República garantiria a necessária estabilidade do cargo mas, ao mesmo tempo, tornaria possível a sua rápida deposição em circunstâncias anormais, como foram aquelas que, por exemplo, levaram à impugnação do Presidente Nixon, dos Estados Unidos da América, ou do Presidente Color de Melo, do Brasil.
A minha terceira e, talvez, mais polémica sugestão é a de que o Presidente da República apenas possa ser escolhido entre os Deputados à Assembleia da República. Julgo que seria de toda a vantagem criar mecanismos que impedissem que uma pessoa com um carisma excepcional mas com desvios graves de personalidade, como foi o caso de Hitler, pudesse vir a ser Presidente da República. Julgo que só a militância prévia, durante alguns anos, num partido político poderá permitir avaliar não só da capacidade do indivíduo para o exercício de altos cargos públicos como também conhecer minimamente o seu temperamento e o seu carácter.
A minha quarta sugestão é a de que a eleição ou deposição do Presidente da República seja feita por voto secreto. Penso que, em democracia, o voto só é válido quando exercido sem qualquer espécie de coacção, o que é o mesmo que dizer que só o voto secreto é válido.
Se me fosse dado escolher uma única alteração a fazer à actual Constituição, escolheria, sem hesitar, a obrigatoriedade do voto secreto para todas as tomadas de decisão da Assembleia da República. Tal medida penso que seria suficiente só por si para alterar profundamente, no bom sentido, o actual clima político, uma vez que conduziria a um muito melhor aproveitamento das capacidades individuais dos Deputados, libertaria, em certa medida, os governos minoritários da chantagem dos pequenos partidos, tornaria mais difícil aos governos maioritários adoptar atitudes arrogantes e autoritárias, daria lugar a que mais vezes as decisões fossem tomadas com vista ao interesse nacional e não aos interesses partidários.
A minha quinta sugestão é a de que a eleição do Presidente da República seja feita através de votações sucessivas, eliminando, em cada uma delas, o proposto menos votado até ser conseguida uma maioria absoluta. É fácil demonstrar que o sistema de duas voltas pode não conduzir à eleição do candidato que reúne maior consenso, embora seja indiscutivelmente bastante prático no caso de uma eleição geral. No entanto, desde que a eleição do Presidente da República passasse a ser feita pela Assembleia da República, o sistema de votações sucessivas, muito mais perfeito, deixaria, obviamente, de oferecer qualquer dificuldade de ordem prática.
A minha sexta e última sugestão é a de que o Presidente da República passe a ter na sua dependência directa os Ministérios dos Negócios Estrangeiros, da Defesa e da Justiça. Como se sabe, nenhum dirigente deve ter na sua dependência directa mais de sete órgãos principais. Actualmente, o Primeiro-Ministro tem na sua dependência cerca de quinze ministérios, pelo que a transferência de três deles para a dependência directa do Presidente da República, além de valorizar e rentabilizar a função presidencial, seria um primeiro passo para aliviar a carga excessiva do Primeiro-Ministro, com o que só lucraria o bom funcionamento do Governo.
A passagem do Ministério dos Negócios Estrangeiros para a dependência do Presidente da República permitiria que, nas relações internacionais de alto nível, o País passasse a ser representado por uma só entidade, em vez de duas, como, actualmente, acontece.
A passagem do Ministério da Defesa para a dependência do Presidente permitiria que, efectivamente, este passasse a ser o Comandante Supremo das Forças Armadas.
A passagem do Ministério da Justiça para a dependência do Presidente da República contribuiria para reforçar a ideia de que a justiça deve ter um lugar preponderante num Estado democrático.
Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado.
Eis aqui um conjunto coerente de propostas sobre um tema que, todavia, não está claramente na agenda desta revisão constitucional nem das alterações institucionais…

O Sr. Armando da Silva Saturnino Monteiro: - Isto é quase uma proposta de revolução, Sr. Presidente.

Risos.

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O Sr. Presidente: - Não! Diria, em inglês, que é uma provocative proposal, é uma proposta capaz de, de facto, levantar problemas que não estão levantados e que, na opinião pública, são, hoje, na realidade, dados por adquiridos. Mas isto não retira mérito nem sentido à sua intervenção.

O Sr. Armando da Silva Saturnino Monteiro: - Mas, se V. Ex.ª me permite, dado o adiantado do tempo, já fico satisfeito apenas por ter apresentado esta sugestão e compreendo perfeitamente que está, neste momento, fora do alcance da revisão que está em curso.

O Sr. Presidente: - Não só no sentido em que ninguém, nenhum partido propôs alterações desta natureza mas também - e era esse o ponto que estava a referir - que, na própria opinião pública, na nossa comunidade, hoje, pelo menos neste momento, estes problemas são claramente dados por não polémicos.
Em todo o caso, recordo que há cinco anos, na reeleição do Presidente Mário Soares, houve eminentes comentadores políticos portugueses que defenderam a alteração do sistema de eleição do Presidente da República e o estabelecimento da eleição parlamentar do Presidente da República. Cito, nomeadamente, o Dr. José Miguel Júdice e o Dr. Villaverde Cabral, como dois nomes que, publicamente, defenderam esta proposta.
Portanto, a sua proposta é tudo menos insólita, é tudo menos herética, é óbvio, ou seja, herética é-o, em termos, digamos, das posições estabelecidas mas, obviamente, o que é próprio da democracia é exactamente que todas as ideias possam ser defendidas seriamente em qualquer momento.
Aguardo as inscrições dos Srs. Deputados, para o caso de quererem formular perguntas.
Para já, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, aderimos em absoluto às considerações que acaba de fazer mas, no entanto, alguns temas, mesmo deste tipo, que constituem um alicerce do funcionamento do nosso regime democrático, e a necessidade de refundamentação até pedagógica das razões das opções, das razões empíricas e teóricas das opções que tomamos, ganham sempre com um debate deste género.
Esta proposta, como o Sr. Presidente disse, é, de facto, uma proposta radical de regresso a soluções parlamentaristas da I República, com uma componente que, no entanto, no final, é algo contraditória, quando se faz depender o Presidente não do voto popular mas do voto indirecto e parlamentar e se lhe dá mais competências próprias, quase de Primeiro-Ministro ou de Governo, o que, a meu ver, é até um pouco paradoxal.
Mas, tal como disse o Sr. Presidente, esta matéria não está hoje em debate, enquanto necessidade para os trabalhos imediatos de revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem agora a palavra o Sr. Dr. Isaías de Sousa.

O Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa: - Sr. Presidente, quero fazer uma pequena intervenção e, já agora, aproveito, por extensão, para comentar, a propósito da eleição do Sr. Presidente da República, uma proposta sobre a qual recusei fazer intervenção no primeiro debate.
Quando se debate a eleição do Sr. Presidente da República, por uma forma parlamentar ou por sufrágio directo, assumo claramente a posição do sufrágio directo, porque este equilíbrio que temos, basicamente, tem funcionado bem.
Agora, o que me parece mais assustador, na proposta deste Sr. Peticionário, é fazer quase uma contra-rota em relação ao que se tem tentado neste debate de revisão, que é dar maior participação aos cidadãos, quando faz depender a eleição de um órgão tão importante como o Presidente da República - é a eleição suprema deste nosso sistema democrático - de uma militância prévia. Isso é que é assustador! Aliás, duvido muito que ela pudesse, sequer, ser acolhida, desde logo porque choca com duas normas fundamentais: o artigo 48.º, n.º 1, relativo à participação na vida pública, onde se estabelece que "Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente (…)" e, ainda, o n.º 2 do artigo 49.º, onde se estabelece que "O exercício do direito de sufrágio é pessoal e constitui um dever cívico".
Portanto, esta proposta, atendendo aos limites materiais de revisão, nem sequer poderia ser acolhida, mas, de qualquer forma, é assustadora, pelo que pergunto ao Sr. Peticionário como é que concilia isto.

O Sr. Presidente: - Sr. Comandante, tem de responder, pelo menos, a duas questões, isto é, à coerência entre a solução parlamentar da eleição do Presidente da República, por um lado, e a concessão de poderes executivos, por outro - a sua proposta número seis -, e a esta observação que foi feita agora relativa à ideia de limitação das candidaturas presidenciais a quem tenha militância política prévia.
Sr. Comandante, tem a palavra, mas peço-lhe que seja breve.

O Sr. Armando da Silva Saturnino Monteiro: - Sr. Presidente, no aspecto da organização, não estou a ver que haja incoerência, ou seja, num organismo há, geralmente, uma assembleia geral, um conselho de gerência e um executivo. Ora, entendo que a organização do Estado deve ser eficiente para funcionar, porque todos aqui já concluímos que as leis são muito boas mas que, na prática, as coisas correm mal.

O Sr. Presidente: - De vez em quando! Nem sempre! Felizmente!

O Sr. Armando da Silva Saturnino Monteiro: - Nem sempre, mas o cidadão comum, normalmente, queixa-se. O seu principal direito é queixar-se sempre.
Mas, realmente, pretende-se que o Estado seja eficiente no seu funcionamento.
Portanto, em termos de Assembleia, penso o seguinte: todos os cidadãos eleitores delegam num conselho de administração, que é o Parlamento, e o Parlamento tem um executivo, que é, para mim, o Presidente da República. E aqui vou um pouco mais para o sistema americano ou francês, em que o Presidente da República é, no primeiro plano, o responsável pelo poder executivo.

O Sr. Presidente: - Sr. Comandante, mas aí, justamente, ele é eleito directamente.

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O Sr. Armando da Silva Saturnino Monteiro: - Bom! Mas vejamos: poria o Presidente da República não apenas como uma figura simbólica do Estado e com uns certos poderes limitativos dos outros órgãos de soberania mas, sim, como um indivíduo que efectivamente tem certos sectores que, por sua natureza, estão mais afastados da política e onde deve haver unanimidade partidária, como sejam a política externa, as Forças Armadas, a justiça, etc., os quais separava, digamos, do trivial do Governo que seria entregue ao Primeiro-Ministro.
Portanto, vejo aqui uma hierarquia de órgãos do Governo, de órgãos de direcção e não me parece que haja incompatibilidade.
Respondendo agora à outra pergunta, e para não perder muito tempo, vejo que, na prática, um indivíduo só tem possibilidade de ascender aos altos cargos públicos através dos partidos políticos, ao contrário da opinião geral que tem sido aqui expressa da participação directa do cidadão na vida pública. Para mim, isso não é possível, em razão de um aspecto prático: a democracia directa só é viável até 15 pessoas e com mais de 15 pessoas já não é possível, porque leva imenso tempo; a partir de 15 pessoas temos de ter democracia representativa e o indivíduo que quer participar na política - penso eu, é uma opinião pessoal mas creio que bastante de acordo com a prática - deve fazê-lo através dos partidos políticos.
Hoje, pretendemos a participação directa dos cidadãos, porque os partidos políticos, perdoem-me o comentário, estão a funcionar mal. Ou seja, os partidos políticos é que deviam ser, por si, o instrumento que estabelece a ligação directa com os cidadãos. Penso que isto que estamos aqui a fazer, por exemplo, deveria ter sido feito pelos partidos políticos nas várias localidades, nas várias cidades e depois carreado para os representantes na Assembleia.
Além do mais, o cidadão isolado nunca pode ser responsável politicamente. Reparem: o cidadão independente não pode ser responsabilizado politicamente! Pode ser responsabilizado criminalmente, mas politicamente não! E se ele fizer asneira o que é que lhe acontece? Vai-se embora! Não adianta nada! Agora, um partido político pode ser responsabilizado! O partido político é responsabilizado politicamente, porque, se fizer tolices, nas próximas eleições é castigado.
Ora bem, o partido político, quanto a mim, avaliza o cidadão, o partido político deve criar mecanismos para que todo o cidadão que tem vontade de participar na vida política possa, através dele, manifestar as suas opiniões.
Eu, em determinada altura, pretendi participar na vida política e filiei-me no PRD. Foi um partido novo, que apareceu com ideias novas, e muita gente fez como eu. Ora, eu julgava que ia poder discutir problemas políticos, apresentar novas ideias, como estas que estou a apresentar aqui, mas não! O que me pediram foi que colasse cartazes e que distribuísse panfletos. Eu fi-lo! Fi-lo! Com toda a humildade, fiz tudo quanto foi necessário. Agora, passados uns meses, desiludi-me e pedi a minha demissão. Mas isto diz respeito ao funcionamento dos partidos políticos.
O cidadão isolado nunca consegue ser Presidente da República. O Sr. Deputado sabe perfeitamente e não é capaz de me apresentar um exemplo de um cidadão que tenha acordado e tenha dito: "Vou concorrer a Presidente da República". É que não tem possibilidades. O Presidente da República tem que aparecer avalizado por um grupo político. O Presidente da República, os Deputados e tudo.
Portanto, resumindo, sou partidário de que a política deve ser feita através dos partidos políticos mas reconheço que, hoje, os partidos políticos não estão a funcionar, e isso já foi dito aqui, com a natureza democrática que eu gostaria. Quer dizer, os partidos políticos são demasiadamente hipotecados às cúpulas, não têm mecanismos que permitam não só renovar as cúpulas como, sobretudo, aliciar e formar indivíduos que aparecem de novo.
Peço desculpa por ter tomado tanto tempo.

O Sr. Presidente: - Sr. Comandante, obrigado pela sua contribuição e pelas opiniões que nos trouxe.
Tem a palavra, em último lugar,…

O Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa: - Sr. Presidente, peço desculpa pela interrupção, mas quero saber se posso só explicar a tal proposta que escapou na apresentação…

O Sr. Presidente: - Se entender que é imprescindível… Mas, note, Sr. Doutor que são 20 horas e 30 minutos, pelo que se puder prescindir, agradeço.

O Sr. Dr. Isaías Araújo de Sousa: - É só para informação, Sr. Presidente. Não vou questionar nada, quero apenas fazer um reparo a respeito da diminuição da capacidade de gozo apresentada aos 18 anos, a qual também é praticamente hilariante. Um Presidente da República com 18 anos de idade seria, quanto muito, um rapazinho, para escândalo da população. Era este o reparo.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos agora ouvir o último dos nossos peticionários, o último, porque foi também o último a apresentar a sua petição e estamos a respeitar a ordem por que foram apresentadas.
Sr. José Pereira, dispõe de 5 minutos para apresentar as suas propostas, que não são muitas e, por isso, penso que podem ser justificadas dentro deste curto espaço de tempo.
Tem a palavra.

O Sr. José Gerardo Barbosa Pereira: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Em primeiro lugar, agradeço a oportunidade que me é dada de vir apresentar esta comunicação que abrange três pontos e que foi motivada, por um lado, por uma preocupação com a coesão nacional, dados os futuros desenvolvimentos que se podem considerar próximos, dado o abaixamento educativo, com atenção também a questões de uma comunicação social muitas vezes atrabiliária e que chega a ter aspectos que são profundamente chocantes com o sistema educativo do nosso país e, também disso resultante, dada uma sensação de agravamento da desigualdade de oportunidades que pode, de certa forma, pôr em causa o futuro e o papel de Portugal num mundo cada vez mais competitivo e com aspectos que conhecemos, por vezes, também contraditórios de integração, mas de uma integração profundamente competitiva de que há afloramentos que posso até citar daqui a pouco, e, por outro, motivada, especialmente, pela preocupação com a forma como Portugal poderá ter um papel no revigoramento do mundo lusófono cuja comunidade foi, recentemente, constituída.
O meu primeiro ponto é, então, sobre a regionalização.

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Muito rapidamente, tendo em conta a coesão nacional e o facto de a regionalização estar em marcha, proponho dois dispositivos que tenham um efeito, de certa forma, compensador, que sejam válvulas de escape que permitam que o sistema se aperfeiçoe, um dos quais tem a ver com a possibilidade de a Assembleia da República, por uma maioria qualificada, demitir ou suspender os órgãos eleitos regionais ao fim de um determinado tempo de vigência, como, por exemplo, dois anos.
O segundo dispositivo tem a ver com a possibilidade de o eleitorado poder, de 10 em 10 anos ou de 12 em 12 anos, coincidindo com legislaturas, pronunciar-se em referendos confirmativos da regionalização.
O segundo ponto que suscito tem a ver com a comunicação social.
A comunicação social, designadamente a televisão, já não é o quarto poder que durante muitas décadas constituiu a imprensa, não é verdade?! Devemos reconhecer que a televisão é, actualmente, um primeiro poder. A comunicação social tornou-se, de facto, de tal maneira quase absoluta que pode muito mais do que determinados poderes instituídos.
Ora, um dos aspectos que venho aqui citar tem a ver com a falta, na Constituição, de alguma forma de enquadrar os aspectos deste poder da comunicação social - e não é propriamente a comunicação social que está em causa, mas o poder que dela transparece, que transpira e que exerce -, visto que a nossa Constituição tem a regulação do poder económico, tem a regulação do poder político mas não tem a regulação deste poder.
Assim, proponho que seja criado um "Capítulo" sobre este novo poder ou até uma "Parte", onde sejam fixados princípios, incumbências e direitos relativamente ao Estado, aos órgãos de comunicação social e aos públicos utentes, de uma forma considerada correcta e geral. Não esquecer, em relação aos órgãos de comunicação do Estado, a contrapartida necessária, em face do pagamento necessário que o Estado faz, com aspectos educativos, designadamente para as crianças e também para adultos com carências, com a divulgação e promoção de valores da História e da Língua Portuguesa, na sua contribuição que sabemos memorável e que é muito mais do que podemos talvez, por vezes, oficialmente supor, visto que existe alguma falta de memória colectiva nestes últimos tempos, e que é o contributo português para a abertura da Europa aos outros continentes e ao intercâmbio entre várias civilizações, constituindo um património cultural partilhado por vários povos e países, o qual é geralmente reconhecido com admiração, aumentada pelo facto de parecer que não temos disso a devida consciência.
Cresce a impressão ou a consciência de que a maravilha que é a televisão não está a corresponder, no plano humano e social, às expectativas criadas como meio poderoso de comunicação. A realidade, de facto, tem-se revelado diferente.
Ultimamente, Karl Popper, e outros, que escreveu A sociedade aberta e os seus inimigos e que publicou, recentemente, a obra Televisão: Um perigo para a democracia, referiu que a violência deslocou-se e apoderou-se dos écrans da televisão, ou seja, a televisão produz violência e introduz essa violência nos meios onde ela não existia.
Refere, ainda, que, se as crianças de hoje são cruéis umas com as outras, se são desprovidas de compaixão, se troçam dos fracos e desprezam quem precisa de ajuda, isso, a que se deve? Não é verdade que, em muitas televisões, a chave da felicidade é a riqueza e o domínio dos bens materiais? Quando assistem a cenas de violência, por exemplo, é provável que concluam à sua maneira que "é o mais forte quem tem razão" e, em contrapartida, têm dificuldade em compreender as mensagens mais subtis e em perceber que certas acções são mais justificadas do que outras.
É também fácil de constatar que raramente são mostradas pessoas a trabalhar, nem se estabelece a relação entre a posse de bens e o trabalho para os obter. Para a televisão, quando uma pessoa começa a interessar-se por um assunto, numa mesa redonda, num programa, geralmente, é interrompida por falta de tempo, para cumprir um horário, etc.
Em suma, tinha aqui várias considerações sobre a parte da televisão como campo de acção de algumas entidades, alguns comunicadores ou entertainers, que acabam por aproveitar alguma propensão para a teledependência de um espectador, mas não as referirei por falta de tempo.
Peço desculpa, Sr. Presidente, mas preciso ainda de falar sobre outro ponto, que é o da incapacidade, do desinteresse de responsáveis de várias televisões por obterem e por organizarem grelhas que correspondam às reais necessidades e até a algumas expectativas, no caso concreto da televisão do Estado, e o do poder concentrado numa só pessoa, o director de programas ou o director de informação, o que é perfeitamente excessivo.
O terceiro ponto que queria referir era sobre o serviço militar.
Quanto ao serviço militar, penso que é importante dizer o seguinte: concordo com a posição tomada pelo Sr. Coronel Caramelo, há pouco, em relação a um aspecto apenas das Forças Armadas, mas as Forças Armadas são uma instituição fundamentalmente da Nação e não do Estado. Penso que retirar às Forças Armadas a sua natureza fundamental de instituição da Nação é grave e é defeituoso.
Por outro lado, desde os exércitos liberais do século passado que há uma determinada tradição, no sentido de as Forças Armadas serem também escola, e uma escola que tem sido supletiva da escola curricular.

O Sr. Presidente: - Tem de concluir, Sr. José Pereira.

O Sr. José Gerardo Barbosa Pereira: - Desculpe, Sr. Presidente, mas é tão pouco tempo para o tanto que tinha aqui para expor!

O Sr. Presidente: - Compreendo, Sr. José Pereira, mas não posso privilegiá-lo, uma vez que todos usaram apenas os 5 minutos.

O Sr. José Gerardo Barbosa Pereira: Penso que seria muito importante que o serviço cívico fosse generalizado e que pudesse ser cumprido não só no território nacional mas também noutros países, designadamente países do campo da lusofonia com quem Portugal tivesse acordos.
Recordo que a França tem vários licenciados que, por troca com o seu serviço militar, cumprem um serviço em países francófonos, desenvolvendo a língua francesa e outras especialidades da sua competência.

O Sr. Presidente: Srs. Deputados, estão à consideração estas ideias aqui expendidas em matéria de regionalização, comunicação social e serviço militar.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

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O Sr. José Magalhães (PS): Sr. Presidente, não gostaríamos de deixar de manifestar o seguinte: foi com atenção que lemos não apenas o texto introdutório mas também o anexo que nos enviou sobre televisão, pelo que o facto de sermos um pouco compelidos a ouvi-lo muito rapidamente não significa menos apreço nem menor atenção pelo que escreveu e agora, mais sumariamente, foi obrigado a enunciar.
Gostaria de dizer frontalmente o seguinte: há concordâncias, há discordâncias, é preciso exprimi-las livremente em democracia - aliás, é para isso que esta reunião também serve.
Em matéria de serviço militar obrigatório e em matéria de regionalização, há, entre as posições que o nosso grupo parlamentar tem defendido, e vai defender, e as que exprimiu, uma divergência clara. Ou seja, não concebemos que entre uma autarquia local (é isso que será uma região administrativa, no nosso futuro sistema) e a Assembleia da República se estabelecesse uma espécie de relação hierárquica ou de tutela que conduzisse à destituição de qualquer titular de um órgão regional pela Assembleia da República. Isso não existe em relação a nenhum órgão autárquico e não vemos razão para instituir esse regime excepcional em relação aos órgãos regionais. Cremos que daí resultaria uma perigosíssima instabilidade.
Em relação a referendos confirmativos, de dez em dez anos, da própria existência das regiões administrativas, veríamos isso como extremamente inconveniente, tal como não conceberíamos um referendo para abolir ou confirmar a existência das regiões autónomas ou para abolir ou confirmar a existência da Assembleia da República ou outras estruturas e instituições que têm cabimento constitucional.
Em relação à questão da comunicação social, devo dizer que, de facto, há, desde 1976, um quarto poder, soi-disant, regulado na Constituição da República Portuguesa, com aperfeiçoamentos ulteriores, e também temos propostas nessa matéria, precisamente tendo em conta muitas das preocupações que enunciou, embora não vamos tão longe quanto Sir Karl Popper, no artigo que citou, admitindo uma espécie de direito de interrupção das transmissões por parte de cameramen em caso de violação da consciência. Ninguém propôs isto em Portugal, ainda, e, pela nossa parte, não propomos, embora tenhamos alguns aperfeiçoamentos em relação ao exercício das actividades relacionadas com a comunicação social.
Eram estas considerações que, apesar da hora, gostaria que ficassem lavradas na nossa acta.

O Sr. Presidente: Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): Sr. Presidente, da leitura e da audição da exposição breve que o Sr. José Pereira aqui fez, há um aspecto que, para além de ser uma proposta concreta, é mais uma reflexão e quase que um grito de alerta que, no fundo, todos nós sentimos um pouco no dia-a-dia e que tem que ver exactamente com esta reflexão sobre a televisão.
Pese embora o adiantado da hora, queria colocar-lhe a seguinte pergunta concreta: por mais que eu possa concordar - e devo dizer que, em muito, concordo, pelo menos com aquilo que entreleio como sendo as suas preocupações, que o levaram a escrever aquilo que escreveu sobre a televisão -, pergunto-lhe se acha que, se for possível avançar-se com qualquer que seja o elenco de propostas que sugere para a Constituição da República, em termos de competências, direitos e deveres para a comunicação social, isso é compatível com um princípio fundamental do Estado de direito democrático e da democracia, que é a liberdade de expressão.

O Sr. Presidente: Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, sumariamente, não quero deixar passar uma intervenção que me pareceu muito interessante em relação à qual, bem como a determinadas questões como a regionalização, temos manifestamente discordâncias e não concordamos com as propostas apresentadas. De qualquer forma, a reflexão que foi feita sobre a televisão traz algumas implicações, suscitadas agora pelo Sr. Deputado Marques Guedes, mas - até porque já há algumas limitações legais em relação a programas e em relação a anúncios televisivos, por exemplo - que, com certeza, teremos oportunidade de discutir. É um bom texto que nos servirá de base, porque, salvo erro, Os Verdes têm também uma proposta neste aspecto, para acautelar determinados problemas que aí colocou, e nós temos também propostas no âmbito da comunicação social. Mas, sobretudo, quero assinalar aqui uma das coisas que mais me agradou ouvir e ler, e que foi o que se refere às suas reflexões sobre o acabar com o serviço militar obrigatório. Isto porque, até pessoalmente, independentemente das posições do meu partido, vejo com grande preocupação a profissionalização total das Forças Armadas. Há exemplos históricos e até actuais sobre o que isso tem representado em muitos países e gostaria de lhe deixar, a este propósito, esta palavra de apreço, mesmo pessoal, pela reflexão que aqui nos trouxe sobre essa questão.

O Sr. Presidente: Tem a palavra o nosso peticionário José Manuel da Silva Pereira. Peço-lhe que seja também muito breve.

O Sr. José Manuel Ferreira da Silva Pereira: Vou ser muito breve.
O Sr. José Pereira falou na televisão. Lanço-lhe um desafio: já leu a Lei de Bases da Televisão, certamente - não tenho dúvidas; já leu a lei que transformou a televisão do Estado nos dois canais, na RTP; e também certamente já leu o Código de Publicidade. A minha pergunta directa é esta: acha que qualquer das estações, seja o canal 1, o canal 2, seja a SIC seja a TVI, cumprem estes três documentos?

O Sr. Presidente: Tem a palavra o Sr. José Gerardo Barbosa Pereira.

O Sr. José Gerardo Barbosa Pereira: Sr. Presidente, Sr. Deputado José Magalhães, sobre a regionalização, sabia muito bem que o que vinha colocar podia provocar reacção negativa por parte dos partidos, mas achei por bem fazê-lo. Somos uma Nação velha de oito séculos e tão vilipendiada que tem sido, de uma forma que me parece injusta! Devo confessar que fui tirar o curso de História há cerca de seis anos e conclui-o recentemente porque sentia isso. Nos últimos dois séculos, temos sido

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tratados de uma maneira que me parece muito injusta, e há aspectos que nem imaginamos que, para nós, são firmes porque temos realmente razões para isso. Nem imaginam, podem crer!
Sou engenheiro militar, sou oficial do quadro permanente mas engenheiro, licenciado no IST também e, recentemente, na Faculdade de Letras, mas estas preocupações são grandes. Pertenço à Associação 25 de Abril, pertenço a várias associações, tenho estado a trabalhar, na minha localidade, nas associações de pais de escolas, desde que os meus filhos foram para o ensino preparatório, em 1977, e até fui membro da comissão de moradores da minha zona, no que houve benefício evidente para a respectiva urbanização, como poderão ver em Carnaxide. Mas isto não vem ao caso!
O que me preocupa fundamentalmente é a comunidade lusíada, é uma herança de séculos que temos - podem crer! Ainda esta semana, fui ver um livro, mais outro livro que aparece aí, uma obra que aparece agora, e julgo que não é por acaso, numa manobra clara de ofuscar a imagem de Portugal e degradá-la o mais possível, numa Europa cada vez mais competitiva, como sabemos, apesar de integradora, mas cujo abraço pode rebentar as costelas, e que é uma obra cujo título é absolutamente inconcebível: A legenda negra de Portugal, um livro da Editora Antígona. Ainda não tive muito tempo de o ler, mas vai aproveitar o resultado prático do Diogo do Couto, mas de uma maneira absolutamente ao contrário, ainda por cima com datas que são claramente da época em que os Filipes já dominavam Portugal; e há depois uma quantidade de outros aspectos. É claro que essa obra é subsidiada pela Universidade de Lyden da Holanda, e, de facto, o autor até faz agradecimentos à Universidade e à instituição. Não me vou perder, porque há tantos outros aspectos que conheço, factos do século passado - Bobson, da Conferência de Berlim, se estivesse aqui a falar demorava muito tempo!
Mas, enfim, Portugal lá conseguiu manter aquele espiritozinho lusitano, aquela maneira de ser humana que temos, aquela forma que faz falta ao mundo e à Europa, de ter certos condimentos que é a nossa maneira - quem quiser ler Leite de Vasconcelos e Jorge Dias, poderá lê-los, e convém que leiam! A mim, causa-me perplexidade a superficialidade reinante que vai fazendo com que Portugal receba os tais apertos nas costelas até ficarem as comunidades lusófonas do mundo a dizer: "mas, afinal, vocês, que são a nossa referência fundamental, porque é que se estão a deixar submergir?" Essas comunidades, muitas vezes, nem são só países - são, de facto, só comunidades: até Coxim, até Malaca! Até aquele senhor de Constância que anda pelo mundo, anda pela Ásia e cada vez que ele vai até aos Himalaias o que lhe falam de Portugal, de Gama, do João de Castro, que bastava mostrar as barbas e pedir o que precisava para a Praça de Dio e era suficiente, homens de grande honra, etc. Para não falar no Pedro Teixeira que só há três anos é que tem a estátua em Cantanhede! Vale a pena ver porque Portugal deixou ao Brasil - e penso que isto deve ser mais reflectido até - o rebuçado maior do terceiro milénio. Estão sempre a procurar denegrir o Brasil, e Portugal ajuda a denegrir o Brasil! É a Amazónia - a Amazónia é um espaço que fala português, que é arreigadamente português e é realmente espantoso, majestoso. Isto é lusófono!
Mas não temos interesse nenhum em ser nacionalistas - não há aqui nenhum nacionalismo ofensivo, é claramente defensivo. Se formos ler a última obra do Professor Veríssimo Serrão (e não percebo porque é que ele anda continuamente a ser esquecido), sobre aquilo que nos foi feito no século XVII e XVIII por franceses, por holandeses, por ingleses e outros, iríamos longe demais - mas terei muito prazer, se houver uma oportunidade, em abordar algo que tem a ver com a História a ser utilizada com fins políticos.
Relativamente à comunicação social, não penso nunca em haver interrupções, Sr. Deputado José Magalhães. Não se trata de interrupções. A meu ver, o que é importante é que haja o enunciado de princípios como há para o poder económico e para o poder político. Princípios como sejam a co-existência do poder da comunicação social com o poder político democrático, numa base de independência e de respeito mútuo. Este seria, por exemplo, um primeiro princípio. O segundo princípio seria a co-existência do sector público…

O Sr. José Magalhães (PS): Dá-me licença, Sr. Presidente e, já agora, Sr. Signatário?

O Sr. Presidente: Sr. Deputado José Magalhães, tem a palavra.

O Sr. José Magalhães (PS): Mas não é esse o princípio que consta do artigo 39.º, e outros, da Constituição, que não só o consagram como, depois, o traduzem em explicitações de obrigações, de garantias, de direitos fundamentais?

O Sr. José Gerardo Barbosa Pereira: Mas entre o artigo 37.º e o artigo 40.º, que são as partes que reparei na Constituição que tratam sobre matéria de comunicação e de direito de antena, não me parece que esteja lá devidamente sinalizado e devidamente colocado no plano que, na prática, está a acontecer, e que é um poder realmente imenso, que quase se sobrepõe a outros poderes. Tem havido, nalguns países, sinais de que esse poder mediático quase que vai submergindo os outros. E não é só esse aspecto. É que está, neste momento, a haver problemas, a meu ver, de sanidade.
Por exemplo, em relação a aspectos como estes, há aqui a questão do equilíbrio e da adequação da programação que se coadune com uma vida salutar, de forma que a haja uma preocupação pela normalidade. A televisão é até um poder tão poderoso e não está a ter o cuidado de mostrar a normalidade da vida nem tão pouco o trabalho humano. Nós, as pessoas, a sociedade, a civilização existe mas, neste momento, aquele meio poderoso dá ideia que emigrou para mãos que não se conhecem bem.

O Sr. Presidente: - Faça favor de concluir.

O Sr. José Gerardo Barbosa Pereira: - Há uma série de princípios, um dos quais julgo que é natural que se imponha numa televisão do Estado, que é a defesa e promoção dos valores da civilização e dos que são próprios da nação portuguesa e do mundo lusófono. Aliás, o da civilização é para todas as televisões, naturalmente, visto que, em princípio, a sociedade não é suicida. Uma sociedade não deve ser suicida, penso eu.
Depois há o seguinte: incumbências do Estado no domínio da comunicação social - e ponho aqui várias incumbências,

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designadamente as contrapartidas por aquilo que o Estado realmente paga às televisões, que é nas áreas da educação, da formação profissional, da higiene e segurança no trabalho e da legislação publicada.
Porque, Meus Senhores, no século XX, a televisão é o Diário do Governo, é o Diário de Lisboa do século passado! Quer dizer, a televisão tem um papel enorme em divulgar a legislação, porque há tanta ignorância da legislação saída - não digo toda, porque há legislação avulsa muito pequenina, mas digo as legislações principais deviam ser tratadas na televisão do Estado, como informação ao público.
Depois tenho outros aspectos, mas não vou agora demorar mais.
Finalmente, sobre a defesa nacional, tenho aqui materialização do que acabei de propor para que a instituição possa modernizar-se mas sem perder o carácter de instituição da Nação e não transformando-se numa instituição do Estado.

O Sr. Presidente: Sr. Engenheiro, agradeço a colaboração que nos trouxe. Creio que fechamos com chave de ouro, não apenas pela vivacidade que nos trouxe mas também por ficarmos a saber que não se trata apenas de um cidadão que se interessa pela coisa pública e resolve colaborar com a Comissão Eventual para a Revisão Constitucional mas que também, na sua vida quotidiana, participa na promoção de uma melhor vida para as suas comunidades, para as escolas, etc.
Obrigado por tudo.
Obrigado a todos os que ainda permaneceram connosco nesta audiência pública e por esta forma de participação dos cidadãos na vida política.
Está encerrada a reunião.

Eram 21 horas.

A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL

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