16 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
tamanhos pleitos de palavras se feriram, as habilidades , Rei e outro na opinião publica e as mãos enclavinhadas politicas não tinham guarida.
Lá estava o grande Fernandes Thomás, moreno e forte, com os seus olhos de fogo e a voz de trovão, falando, com a eloquencia que vem da alma, uma linguagem de incisiva e imperturbavel verdade. Lá estava Borges Carneiro, de allocação amorosa, mas de ideias avassaladoras, especie de titan ponderado em que a frase era a balança da ideia, e o illustre Sepulveda, que tinha nos labios do soldado uma palavra tão rutila como o gume da sua espada. Lá estava eram a vida politica ainda no seu inicio e já no seu auge, pão da eucharistia da liberdade que a nação pela boca dos, seus representantes pela primeira vez commungava.
Ali falava-se alto. No momento em que se discutia a situação do Principe Real, ao tempo no Brasil, logo acudiu um Deputado exclamando: "é preciso que elle não coma por duas bocas". Quando se propõe que as obras nos paços reaes sejam feitas pelo Ministerio da Fazenda, mas sob a direcção do Rei, logo se apressa Borges Carneiro a dizer que, em tal caso, é preciso que as folhas de pagamento sejam feitas pelos mestres de obras, por causa dos desvios de dinheiro. E quando Sarmento diz que, no começo de cada legislatura, se devia apresentar ao Congresso o orçamento de despesa, marcando-lhe uma determinada quantia, logo Borges Carneiro replica que a quantia certa era um erro, porque se podia gastar noutras cousas, dizendo-se foi gasto nas obras dos paços reaes.
Elles, os homens de 21, bem sabiam com quem lidavam, quem era o Rei, cuja lista civil estavam votando, e quem era o Principe Real para quem deliberaram depositar no Thesouro, á espera que elle chegasse do Brasil, os rendimentos da Casa de Bragança!...
Elles bem conheciam a serie de esbanjadores, de delapidadores da Fazenda Publica, de dissipadores sem escrupulos que constituiam a trama da dynastia de Bragança. Bem sabiam quem era Affonso VI, que deu Tanger e Bombaim aos ingleses; D. João V, que de tal forma desbaratou a Fazenda Publica, que, tendo devorado milhões e milhões de cruzados, não deixou, por sua morte, um real no erario com que lhe fizessem o enterro, tendo o Estado de contrahir um emprestimo para lançar á terra os despojos de quem em vida a pisara com tão formidavel arrogancia; D. João VI, que fugindo para o Brasil levou preciosidades sem conto. Elles bem o sabiam, embora não pudessem adivinhar o que se havia de seguir; D. Pedro IV, tentando vender as colonias; D. Luiz fazendo do seu reinado uma saturnal funambulesca e que se deu em pasto a todos os apetites e D. Carlos alçando a taça de champagne dos festins mundanos de Paris como brasão heráldico de uma dynastia com dois séculos e meio de orgiaca existencia.
Sim, os homens de 21 bem o sabiam e era, por isso, que na referida sessão do Congresso, Barata Feio, contra a proposta de 365:000$000 réis para a lista civil, que foi atinai aprovada, apresentou outra de 180:000$000 réis annuaes, dizendo que os Monarchas se deviam impor pelas virtudes e não pelo luxo, deviam ser sobrios e não gastadores, e que as ostentações só serviam aos Reis que queriam ser absolutos e a "esses escravos tanto mais vis quanto mais graduados que os cercam, e afastam para longe do Throno a virtude, a verdade, a justiça e a innocencia opprimida e amam o despotismo que os nutre no ocio e regalo".
Assim falavam Deputados monarchicos em 1821. Por isso mesmo foi possivel numa sessão fazer tão vasto debate e chegar á tão concretas soluções.
Agora as cousas são diversas. Os Deputados monarchicos não perdem o ensejo de lisonjear o Throno e não ha madrigal que não tenham dirigido ao Rei e á sua mocidade.
O Governo, por seu turno, quer atravessar esse despenhadeiro dos adeantamentos pé ante pé, com um olho no Rei e outro na opinião publica e as mãos enclavinhadas na maromba de falsa acalmação.
O celebre artigo 5.° do projecto em discussão é elucidativo.
Depois de uma commissão parlamentar eleita, vae-se nomear uma commissão de juizes que, escolhidos a dedo, não podem nem devem inspirar confiança a ninguém e marca 5 por cento para pagamento de adeantamentos, cujo quantitativo se não conhece ainda, liquidando assim todo o capital de uma divida com uma simples quota de juros.
E por estas e outras manigancias de sobejo conhecidas que as discussões levam tanto tempo e se arrastam com morosidade, porque as opposições em cada incidente que se levanta teem um vasto thema para flagelar a corrupção dominante e verberar as pessoas pouco escrupulosas que as praticam.
O que se tem passado com este celebre artigo 5.° do projecto é escandaloso.
Por um lado o Governo parece querer dar toda a força á commissão parlamentar, mas por outro põe-lhe á margem, como um espião petulante, a commissão de juizes.
Umas vezes declara que a commissão parlamentar ha de ser o verdadeiro arbitro da questão, mas outras diz que a dos juizes é indispensavel, por dar mais garantia de chegar a um resultado fecundo.
O Governo, ora diz que os juizes só servirão para fazer contas e apuros, ora exclama que a sua acção ponderadora é precisa para a boa solução do assunto.
Emfim, uma comedia triste a que bem podia poupar-se o Sr. Ferreira do Amaral, que pela sua idade tinha obrigação de não sympathizar com essas aventuras.
Mas vejamos a questão da lista civil.
A dotação do Senhor D. Affonso foi elevada a 16:000$000 réis ilegitimamente, porque nem o Senhor D. Affonso ainda jurou que se prestaria a ser o successor do reino, nem que o jurasse havia motivos para lhe elevar a dotação.
O artigo 81.° da Carta diz que "as Cortes assinarão alimentos ao Principe Real e aos Infantes, desde que nascerem".
Esta disposição, porem, não deve ser tomada á letra, porque entre aos não vigora a lei que, por exemplo, vigorava em França antes da republica, que encorporava na Coroa os bens da casa reinante.
Os Principes pertencem á Casa de Bragança, cujo administrador tem obrigação de lhes dar alimentos condignos.
De resto, os Reis de Portugal, alem de Reis, são pães, e teem, isso facto, obrigação de sustentar e educar os seus filhos, no que lhes vae toda a vantagem para o lustre da sua casa e prestigio da sua dynastia.
Portanto, se a alimentação, a educação e a illustração dos Principes se deve julgar assegurada por esta ordem de ideias, em sentido differente deverá ser tomado o referido artigo da Carta.
A dotação dos Principes deverá ser nesses casos um subsidio para a ajuda da sua educação e instrucção, de esta ser o mais cuidada possivel. Mas nunca deve ser uma cousa exagerada como tem sido.
D. Carlos teve como Principe Real 20:000$000 réis por anno, e, todavia, os filhos de D. Maria II tiveram apenas 2:800$000 réis, numa epoca em que Portugal era rico.
A pouco e pouco se foram dispondo as cousas para se aumentar, sem motivo justificado, a dotação dos filhos da Casa Real.
Assim, o Infante D. Augusto tinha 2:800$000 réis, quando em 1861, pela serie successiva de mortes que disimaram os membros da Familia Real, foi elevado a herdeiro presuntivo, aumentando-se-lhe a dotação para réis 16:000$000.
Nascido D. Carlos, que passava a ser o legitimo herdeiro, os 16:000$000 réis, ilegitimamente votados, deviam reduzir-se aos primitivos 2:800$000 réis.