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Discurso que devia ser transcripto a pag. 657, col. 2.ª, lin. 58 do Diario de Lisboa, na sessão de 3 de março

O sr. Levy (sobre a ordem): — Depois do que já se tem dito, não posso deixar de ser o mais breve possivel, para não cansar a attenção da camara.

Se um estrangeiro, ignorando o nosso estado social e politico, estivesse hontem n'aquellas tribunas, ouvisse o discurso pronunciado por um distincto deputado que se assenta n'aquelle lado da camara (o esquerdo), e acreditasse no horror do quadro desenhado com as negras côres com que o sr. deputado o pintou, immediatamente sairia espavorido de um paiz, onde a liberdade tinha completamente desapparecido, onde reinava a anarchia, onde os poderes publicos se invadiram mutuamente, e onde o executivo, á face do parlamento, havia tido a audacia e arrojo de usurpar as suas attribuições!! (Muitos apoiados.)

Lastimo do fundo d'alma, que ao passo que a opinião publica de toda a Europa, e que a imprensa estrangeira aponta Portugal como typo e modelo dos paizes em que a liberdade é uma realidade (muitos apoiados), lamento do fundo d'alma, repito, que do seio da representação nacional se elevasse uma voz, e tão auctorisada como a de s. ex.ª, para proclamar que a liberdade tinha desapparecido d'este paiz, no mesmo momento em que a liberdade com que s. ex.ª se exprimia era o desmentido mais solemne á sua asserção! (Muitos apoiados.)

E tudo isto, sr. presidente, a proposito de quê? Da questão da nova organisação do exercito (apoiados).

Farei a respeito d'ella todas as diligencias para não ser fastidioso, evitando repetir os oradores que me precederam; mas antes de entrar no assumpto, eu não posso deixar, sou levado mesmo pela força das circumstancias, sr. presidente, de examinar as phases por que tem passado esta questão.

A historia da nova organisação do exercito tem quatro phases.

A primeira é a concessão da auctorisação dada ao governo, e o uso que d'ella fez o nobre visconde, hoje marquez de Sá da Bandeira.

A segunda traduz-se n'um clamor contra essa organisação, e contra o uso que aquelle illustre caracter fizera d'essa auctorisação; clamor que parte do proprio exercito, clamor da imprensa, clamor da minoria, clamor que achou attendivel o proprio auctor da reforma, confessando os defeitos d'ella; defeitos tacitamente reconhecidos pela representação nacional, pelo facto de ter sujeitado o decreto de 21 de dezembro ao exame da commissão de guerra (apoiados). Mas note já a camara a feição que esta questão tomou nesta segunda phase.

Levantára-se (como já disse) a opposição, e empregára todos os seus esforços para combater a reforma; mas fê-lo sómente emquanto se não discutiu a famosa questão da solidariedade. Até ahi, para julgar do uso que havia sido feito da auctorisação concedida ao governo na carta de lei de 9 de julho de 1863, o arsenal politico forneceu toda a especie de armas á opposição para combater; e porquê? Porque ella suppunha que havia solidariedade n'este ponto, e que d'essa solidariedade havia de resultar a queda do gabinete.

Agora a questão passa a uma terceira phase desde o momento em que se reconheceu que não havia solidariedade.

Resolveu-se que não a havia, e que a responsabilidade d'aquelle acto recaía unicamente sobre o honrado marquez de Sá da Bandeira. Este nobre caracter é substituido pelo illustre general Passos que, adherindo aos clamores manifestados na imprensa, na tribuna e no exercito, propõe a revogação desse decreto. Desde logo a opposição toma outro rumo; e dirige a outro alvo os seus ataques: a discussão toma então outro caracter; cessam os clamores da minoria contra a reforma, a qual já para ella não tem os defeitos que até ali lhe tinha assacado; e a questão entra, como disse, n'uma terceira phase combatendo-se a proposta do nobre ministro da guerra para a revogação do decreto.

Este novo plano de ataque ao governo resume-se nos seguintes argumentos habilmente empregados e sustentados pela opposição, aos quaes procurarei responder.

Primeiramente diz-nos: «Propondo e aceitando agora a revogação do decreto do nobre marquez de Sá, publicado em virtude da auctorisação que lhe concedesteis, estaes em contradicção com a necessidade da reforma reconhecida por vós mesmo até aqui». Parece incrivel, sr. presidente, que isto se diga e se escreva! Pois votando a revogação do decreto negâmos porventura a necessidade da reforma, da nova organisação do exercito que mais de uma vez temos proclamado? Contradictorios seriamos se, propondo ou aceitando a revogação da reforma effectuada, negassemos a necessidade de se proceder a outra (apoiados). Mas nós não a negâmos, toda a camara o reconhece, porque não só mandou os projectos attinentes á organisação da força publica para a commissão de guerra estudar seriamente este assumpto, mas o proprio actual sr. ministro da guerra declarou com toda a franqueza que havia de proceder a essa reforma, embora entendesse que se devia fazer gradualmente.

E já que toquei n'este ponto permitta-me o meu amigo, o sr. Camara Leme, a quem tanto respeito e considero, que lhe declare não estar de accordo com s. ex.ª, quando respondeu ao sr. ministro da guerra, na parte em que este declarou que o plano da organisação do exercito devia, na sua opinião, ir de accordo com o systema de defeza do paiz. O nobre deputado levantou se e sustentou que não havia relação alguma entre o systema de defeza do paiz e o systema de organisação do exercito, e combateu com toda a força e energia o pensamento do sr. ministro da guerra, sobre a relação intima entre os dois systemas; e sustentou isto invocando os principios da arte militar.

Sou incompetente, sr. presidente, para entrar n'esta questão, ao passo que o nobre deputado a quem me refiro (e que não carece dos meus elogios), é de certo competentissimo, e reconhecido como tal em todo o paiz; mas permitta-me s. ex.ª (e desculpe o arrojo) que, servindo-me das mesmas armas, procure sustentar nesta parte a asserção do sr. ministro da guerra.

O sr. Camara Leme: — Fica então em contradicção com o que diz o marechal Saldanha, que é tido como grande notabilidade militar.

O Orador: — Eu não quero contestar a opinião do illustre deputado, nem a do nobre marechal, nem para isso teria forças, quero apenas notar que a opinião do distincto general Passos é tambem a de outros officiaes, e sustentada por auctoridades muito competentes, porque o illustre deputado sabe, melhor do que eu, que os escriptores da arte militar, quando se occupam da questão da organisação militar, indicam as considerações que todo o governo deve ter presentes, entre ellas, por exemplo, a população do paiz, a extensão e natureza topographica de territorio, a facilidade de o defender, a sua posição geographica, a extensão vulneravel ou accessivel das suas fronteiras, o seu estado financeiro, o caracter e disposições militares dos nacionaes e povos limitrophes, etc. Todos elles julgam indispensavel que qualquer governo tenha presentes estas condições, quando trata da organisação de um exercito. Ora se n'essa organisação é mister attender a facilidade de defender o territorio e á extensão mais ou menos vulneravel ou accessivel das fronteiras, é claro que entre o systema de defeza e a organisação dá força publica ha uma relação intima.

E nem podia deixar de ser assim; e é por isso, s. ex.ª sabe tambem, que esses escriptores, estabelecendo as regras para a formação de qualquer exercito, dão as seguintes proporções, tomando por unidade a infanteria, e prescindindo de circumstancias especiaes: cavallaria 1/6 da infanteria, cavallaria e infanteria ligeira l/5 de cada totalidade da arma respectiva, artilheria 1/l0 da infanteria, calculando-se ás vezes 2 a 3 bôcas de fogo por cada 1:000 homens e 3 ou 4 por cada 1:000 cavallos, engenheria emfim 1/40 da infanteria.

Mas os auctores que estabelecem estas proporções fazem-no em these, porque na applicação podem os principios variar, e com effeito variam muito, e por isso applicando-os, por exemplo, a um paiz como o nosso, que por sua natureza não póde ter pretensões senão a um systema de guerra defensiva, a um paiz montanhoso e cortado de praças, dizem que precisa mais de infanteria ligeira do que de linha, e mais de infanteria de linha do que de cavallaria, etc.

Trouxe estas considerações para mostrar que o principio do sr. ministro da guerra não era de natureza tal que merecesse ser rejeitado in limine, e que pelo contrario me parece baseado em considerações rasoaveis e dignas da mais séria attenção (apoiados).

O segundo ponto do ataque foi o seguinte: «O projecto da commissão de guerra é mau, porque condemna uma reforma que ainda não está julgada».

A este argumento já em parte respondeu o sr. ministro da fazenda. Nós, votando o projecto da commissão de guerra, não condemnâmos absolutamente o decreto do sr. marquez de Sá da Bandeira (apoiados); não fazemos senão reconhecer que a reforma, a par de optimas idéas, tem defeitos e defeitos taes que produziriam na execução graves inconvenientes. E que a reforma tem defeitos, está reconhecido pelo seu proprio auctor, pela imprensa, pela maioria d'esta casa e até pela propria minoria (apoiados).

Terceiro ponto do ataque: «O decreto do nobre marquez de Sá da Bandeira deve ser julgado com mais attenção e consideração; vá a uma commissão para o examinar com madureza, não sejamos apressados, e não queiramos irrogar uma injuria a um caracter tão respeitavel como o nobre marquez». N'esta parte permitta-me a opposição que lhe declare achar-se em contradicção com os seus proprios factos.

Pois hoje o decreto da organisação do exercito tem tanta importancia e tanto valor, merece lhe tanta consideração, para não se votar a sua revogação e para o mandar á commissão de guerra, a fim de o modificar apenas, e ainda hontem por causa desse mesmo decreto pedíeis a queda do gabinete emquanto o julgáveis todo solidario n'esse acto? (Apoiados.) Notavel contradicção! Enygma que só tem explicação no espirito de partido! (Apoiados.)

Depois pediu-se a suspensão do decreto em substituição á revogação proposta pelo governo; foi este o terceiro ponto de ataque. E pediu-se a suspensão por parte d'aquelles que julgavam que os effeitos d'ella seriam differentes dos da revogação. Mas eu terei occasião de mostrar, quando me occupar da questão da retroactividade (levantada em ultimo logar, e que reservo para o fim), que se a commissão de guerra se limitasse a propor a suspensão do decreto, os effeitos juridicos eram reciprocamente os mesmos que os da derogação para aquelles (apoiados).

Passou ainda a questão a uma quinta, phase e ahi tomou uma nova feição, porque o illustre chefe da opposição, trilhando um outro caminho, collocou a questão no campo pura e exclusivamente politico, fazendo uma diversão, que não prova senão a insufficiencia do systema de aggressão até ahi empregado pela minoria.

Fez ao governo uma accusação grave, gravissima se fosse procedente, porque importa nada menos que tornar o governo responsavel pela suspensão de um decreto com força de lei, isto é, por uma violação do artigo 15.º § 6.° do nosso codigo politico.

Esta accusação a que já responderam os oradores que me precederam, especialmente o digno relator da commissão de guerra, parece-me por um lado contradictoria e por outro falsa.

Contradictoria, porque quem a fez está em contradicção com os seus proprios factos. Accusa-se agora o governo, note-se bem, por ter suspendido o decreto que organisou o exercito; e ao principio d'esta discussão, para provar que da parte do governo não havia senão anarchia, disse-se que as operações que se haviam de fazer em consequencia d'este decreto tinham sido e estavam senão executadas em grande parte! Logo o argumento de que a lei foi suspensa cáe inteiramente por terra como contradictorio, porque se ella tivesse sido suspensa, não se podia ter feito, não se estaria fazendo obra por ella, não podiam ter logar as operações effectuadas em virtude d'ella (apoiados).

E os principios que mostram ser a accusação contradictoria, servem tambem para começar a mostrar que ella é falsa. Pois se se está fazendo obra por aquelle decreto, como se accusa o governo pela sua suspensão? (Apoiados.)

Mas ha outras rasões que convencem, que levam a toda a evidencia, que a accusação é realmente falsa e sem fundamento, e que o governo não suspendeu tal decreto, nem ha nem podia haver da sua parte (a não se sujeitar a circular, que se leu aqui, a uma interpretação visivelmente forçada), um só acto ou documento que declare suspensa a lei.

O que o governo fez foi adiar por algum tempo certas operações a que se devia proceder em virtude do novo decreto, e foi isso o que se quiz dizer nessa circular, que não poderia ser entendido de outro modo sem absurdo desde que se reconhece que o governo foi sempre executando o decreto até onde pôde.

E é certo que havia com effeito operações a que se devia proceder em virtude da nova organisação, as quaes apresentariam umas, gravissimos inconvenientes se se realisassem immediatamente; e outras, acarretariam ao estado uma despeza para que o governo não estava auctorisado.

Ninguem dirá que adiar, espaçar por alguns dias essas operações, sobretudo por motivo de justificadissima conveniencia publica, seja suspender a lei.

A questão pois em ultima analyse vem a reduzir-se a saber se o governo estava ou não no direito de adiar ou deferir por dias operações que se deviam praticar em virtude da lei. Provado que podia faze-lo, provado que estava dentro da esphera das suas attribuições adiando essas operações, sem suspender a lei (o que é differente), provado fica que