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Discurso que devia ser transcripto a pag. 762, col. 1.ª, lin. 101.ª no Diario de Lisboa, na sessão de 11 de março

O sr. Mártens Ferrão: — Principio por pedir a v. ex.ª que me torne a inscrever sobre a materia. Não desejo fazer reflexões sobre a questão sem primeiramente ter ouvido as explicações do nobre ministro da justiça, que eu vou provocar sobre os differentes pontos, que me parece resumem a questão.

V. ex.ª e a camara sabe que o objecto da interpellação que está dado para a primeira parte da ordem do dia de hoje, é a nomeação feita pelo governo de secretario para a camara ecclesiastica de Coimbra, nomeação sobre a qual não fôra ouvido previamente o prelado diocesano. Resultou d'ahi que o prelado declarou ao governo que por motivos que então expoz não podia ter a confiança necessaria no nomeado, e por isso não podendo em sua consciencia dar-lhe posse, nem querendo levantar conflito com o governo, pedia licença para impetrar da santa sé a aceitação da resignação da sua diocese. E extra officialmente consta que por parte da santa sé não fôra aceita a renuncia pedida.

Os factos a que tenho de me referir, constam da folha official. Por ella vê se que, vagando nos fins de 1862 o logar de secretario da camara ecclesiastica de Coimbra, o prelado d'aquella diocese officiou ao governo participando-lhe aquelle facto, e notando a conveniencia que havia de que o cargo fosse provido em ecclesiastico, porque os negocios que correm por aquella repartição são negocios de jurisdicção do prelado, e de relações ecclesiasticas, que melhor seriam prehenchidos por um ecclesiastico idoneo. Representando mais que sendo a ordem de funcções de que se tratava ligadas intimamente com a confiança do prelado, tornava-se assim de indispensavel necessidade que n'aquelle logar fosse provido individuo que merecesse a confiança do prelado diocesano. As palavras dos prelados são as seguintes:

«No dia 5 do corrente mez de outubro falleceu o individuo que exercia o officio de escrivão da camara ecclesiastica da diocese, o qual é de necessidade que seja provido quanto antes, e que o seja não era pessoa que o procure para modo de vida, mas em individuo que, alem do conhecimento e pratica dos negocios ecclesiasticos e da probidade e sisudeza de caracter, mereça de mais a mais inteira confiança do prelado com quem tem de tratar quotidianamente e muito de perto; e esta qualidade não se descobre senão por proposta ou indicação do mesmo prelado. Cumpre tambem que o mesmo individuo seja antes ecclesiastico que secular, por ter muitas vezes de escrever em assumptos que vão tocar com a reputação de familias, nos quaes deve haver todo o segredo, e este mais o esperam os fieis do ecclesiastico...

«Por estas rasões, e porque esta especie de provimento era feito em outro tempo por livre escolha dos prelados, e hoje ainda não está, que eu saiba, definitivamente regulado por outra fórma, peço a v. ex.ª permissão para propor a pessoa que me parece mais idonea...»

Passou-se mais de um anno sem que este negocio tivesse solução alguma, e no fim d'este praso appareceu nomeado um cavalheiro, que não era aquelle que tinha sido proposto pelo prelado, e ácerca do qual elle não tinha sido ouvido nem havia informado, dizendo-se no decreto de nomeação que fôra attendida a informação da commissão municipal de Coimbra, e do administrador do concelho.

Segundo consta dos documentos officiaes, o prelado representou ao governo, que por motivos de consciencia que elle expoz, mas que eu não tenho necessidade de discutir, porque nada discuto em relação á pessoa que foi agraciada (para mim é vedada sempre a discussão de pessoas), repugnava á sua consciencia a aceitação d'aquelle individuo para secretario da camara ecclesiastica, cargo intimamente ligado com a confiança do prelado, porque tinha de despachar com elle negocios de responsabilidade episcopal. Não querendo porém crear um conflicto com o governo que tinha servido sempre fiel e lealmente, preferia pedir ao governo de Sua Magestade que lhe concedesse licença para impetrar de Roma a resignação da sua diocese.

O governo respondeu por uma portaria, notavel de certo, que não tinha havido desconsideração com o prelado, mas que se elle insistisse nas duvidas que apresentava, duvidas de consciencia, o governo apresentaria a Sua Santidade o pedido de resignação, pagando assim aquelle prelado n'estas poucas palavras muitos annos de bons serviços prestados por elle á igreja, ao partido liberal e em geral ao paiz como governador de varias dioceses, como prelado da universidade, e no exercicio episcopal!

Passados estes factos, que todos constam dos documentos, que não leio para não cansar a attenção da camara, consta que por parte da santa sé não fôra aceita a renuncia offerecida pelo prelado, mas sim instado para que perseverasse na sustentação dos principios que tinha manifestado ao governo.

É esta a exposição succinta dos factos. Não farei sobre, elles reflexões, sem ouvir do sr. ministro da justiça as explicações necessarias sobre alguns pontos, que passo a formular, e a que espero s. ex.ª se prestará a responder explicitamente.

Pergunto ao sr. ministro da justiça:

Qual é o estado verdadeiro e exacto em que actualmente se acha esta questão?

Quaes são as rasões de governo e de boa administração que o sr. ministro tem para querer impor ao prelado um secretario da camara ecclesiastica, que elle diz que em consciencia, e allegando motivos, não pôde aceitar?

Que intenta o governo fazer? Reformar o seu despacho ou fazer accusar o prelado?

E finalmente pergunto tambem ao sr. ministro como se acha conduzida a questão internacional entre o governo e a côrte de Roma sobre a não aceitação da renuncia pedida?

Tendo o nobre ministro da justiça a bondade de explicar o procedimento do governo e as suas intenções n'este negocio sobre os pontos a que me referi; e se essas explicações não me satisfizerem, farei as reflexões que julgar convenientes. Por ora não me posso antecipar ás explicações de s. ex.ª, as quaes provavelmente esclarecerão as duvidas que tenho sobre este assumpto.

Discurso que devia ser transcripto a pag. 763, col. 3.ª, lin. 94.ª do Diario de Lisboa, na sessão de li de março

O sr. Mártens Ferrão: — Ouvi com a maior attenção as explicações dadas pelo nobre ministro da justiça, e feriu o meu animo a maneira forte e em apparencia vigorosa como s. ex.ª concluiu o seu discurso!

Realmente, sr. presidente, se os antecedentes d'esta situação era casos analogos auctorisassem uma similhante ostentação de força pela energia do gabinete, eu acreditaria nas palavras do nobre ministro! Mas quando vi os ecclesiasticos declarados benemeritos pelo parlamento (apoiados), por se terem opposto ás invasões do nosso padroado no oriente, e recusarem reconhecer dois breves que não haviam obtido nem podiam obter o beneplacito do governo do paiz, porque era a sancção da perda do padroado portuguez; quando vi esses ecclesiasticos declarados dignos da patria, pelos representantes do paiz, pela maneira porque tinham a sós sustentado os direitos do padroado em epochas de provação e desalento, e os vi depois completamente desprezados e abandonados pelo governo em frente das exigencias de Roma, contra as quaes tanto se protestava, e tudo isto pelo actual gabinete; quando vi que esses breves que nunca haviam tido o beneplacito de governos, menos ostentosos do que este, eram de facto reconhecidos em todo o padroado do oriente, pela mais lamentavel incuria e fraqueza da situação (apoiados); rasgando-se assim tudo quanto em sentido contrario tinha feito o parlamento, e tinham promettido os homens que hoje se sentam nos bancos do poder (apoiados); não posso acreditar e tomar a serio estas explusões de força e de energia de um dia, que no outro vão quebrar-se contra a mais leve resistencia de quem se lembra oppor-se-lhes! (Apoiados), Não vimos nós os membros da actual situação indignados contra o representante da corto de Roma, pela nota que havia enviado ao seu governo, era que era offendido o governo portuguez? Não sustentavam que aquelle alto funccionario deviam ser mandados os passaportes, como cumpria a um governo energico, forte, cheio de vida, ufano de grandiosas aspirações, como este ostentava; e não esperavam todos por esses actos de força e de vigor que recordariam as epochas do marquez de Pombal e de José de Seabra?! (Apoiados). E que vimos depois? Vimos que o governo nem ousou ter a mais leve demonstração com aquelle alto funccionario, e todas essas vãs ostentações de força de enthusiasmo e de energia não foram mais do que um triste padrão da fraqueza e da timidez do governo, que assim ficava abatido em frente das suas proprias manifestações d'outr'ora! (Apoiados).

Sr. presidente, quando vejo que estes são os factos da administração; quando vejo que esse mesmo despacho de que tratámos é um manifesto testemunho da fraqueza do governo que cede sempre a quem lho impõe; lamento que questões pequenas e insignificantes se deixem elevar á altura de questões internacionaes para d'ahi se despenharem, até ao abatimento, e sermos assim obrigados a fazer um triste papel! (Muitos apoiados.)

O sr. ministro da justiça, cujas boas intenções sou o primeiro a reconhecer, ha de ter tanta força para se desembaraçar d'esta questão, hoje internacional, com teve para se desembaraçar do despacho, que lhe foi exigido, e como a situação tem tido em todas as outras questões que tem chegado a esta altura, ou que tem adquirido importancia pela má direcção que lhe tem dado, tendo o governo decaído successivamente com perda da força moral e da auctoridade, sem a qual não ha administração, e não póde haver governo representativo (apoiados).

Esta é a historia contemporanea que todos conhecemos e que por isso tira a força ás declarações pomposas do nobre ministro e as deixa reduzidas a bem acanhadas e tristes proporções! (Apoiados.)

Sr. presidente, pela minha parte não censurei o nobre ministro por vir aqui responder primeiro, do que á outra casa do parlamento; para mim é indifferente que s. ex.ª respondesse primeiro n'esta ou n'outra camara; estava no seu direito e eu sendo quem primeiro dirigi a nota de interpellação estimei poder verifica-la logo que s. ex.ª se deu por habilitado não lhe faço pois censura por isso.

Eu folguei de ouvir a declaração do sr. ministro de que respeitava os prelados portuguezes. Membro do governo de um paiz catholico, em que ha uma religião do estado, s. ex.ª não podia nem devia fazer outra declaração; é o dever do seu cargo, que lh'a impõe, s. ex.ª não podia nem devia faltar a elle. Eu tenho julgado sempre que a desharmonia entre os governos e o elemento ecclesiastico é prejudicial a um e a outro; os seus fins legitimos bem comprehendidos, conduzem-os á harmonia ao accordo e não a guerra, só uma triste aberração póde conduzir aquelle caminho. A missão de um governo illustrado é dirigir os actos da administração de maneira que essa harmonia se não perturbe quando para isso não ha um justo motivo, e não alentar e simentar constantemente uma guerra permanente que não traz senão embaraços e difficuldades que muitas vezes vão reflectir-se na massa do paiz com prejuizo das crenças dos povos e dos costumes que sobre ellas baseiam. As invasões do poder ecclesiastico deve repelli-las o governo quando ellas se derem. Mas estar todos os dias a trazer a publico estas mesquinhas dissenções; converter o systema representativo de systema de representação e liberdade em systema de oppressão e de absolutismo, é um errado e fatal caminho.

Mas o nobre ministro da justiça respeita tambem as immunidades do seu cargo. Eu apoio-o n'esta parte; creio que o governo tem obrigação de elevar-se a altura da sua missão e fazer respeitar as immunidades do seu cargo. Mas chega-se a essa elevação e fazem-se respeitar essas immunidades, quando o governo sabe modelar todos os seus actos de governo pelas regras moraes da boa administração, pelos principios estabelecidos nas leis, e pelas illustradas praticas e tradições do systema representativo, que são o seu codigo, para que não possam ser arguidos os seus actos de menos pensados ou de menos reflectidos; ou como determinados por principios abaixo da elevação, em que deve conservar se um governo! (Apoiados.)

Pareceu-me notavel perguntar o nobre ministro qual era a lei que o obrigava a ouvir informações para a nomeação de qualquer individuo para os cargos publicos? A lei que obriga a ouvir informações ou a conhecer das habilitações dos individuos para os cargos para que são nomeados é a lei pela qual os srs. ministros são responsaveis pelos seus actos (apoiados). Esta é que é a lei! Os ministros de um governo representativo não são ministros absolutos, têem a responsabilidade pelos motivos de ordem publica que determinam os seus actos de governo; são responsaveis pela maneira porque conduzem os negocios publicos e exercem as funcções do executivo (apoiados). Nem tudo está escripto, nem tudo está litteralmente prevenido nas leis. Mas o que está escripto, o que deve estar presente a todos os governos, segundo as boas praticas do systema representativo, é que os actos de governação se devem dirigir conforme essas boas praticas do systema representativo, tendo os actos do governo sempre por fim a boa ordem e a conveniencia da administração e não a vontade arbitraria do ministro, despreoccupada de todas as considerações de conveniencia de serviço e da sua boa execução; porque o governo representativo não é um governo absoluto e sem responsabilidade moral e legal dos seus actos. Não é um governo de parcialidade que só tenha a attender ao que esta lhe impozer, sem outra rasão de administração; é sim um governo que abre as portas a todos para representarem contra as irregularidades que porventura possam resultar dos actos inconvenientes de administração e contra a arbitrariedade d'esses actos. Dizer que o governo não tem que tomar informação das condições de idoneidade dos funccionarios para os cargos para que se propõem é proclamar o absolutismo, a anarchia e o puro arbitrio na ordem do despacho. É dar aos despachos é caracter de mera graça e favor do ministro, quando os principios proclamam que os cargos publicos devem ser providos nos mais idoneos e dignos d'elles, e os governos são responsaveis perante o parlamento e perante o paiz pela inversão d'esses principios e pelas consequencias que d'ahi provem para a administração púbica. É bom, sr. presidente, que n'esta quadra de irresponsabilidade do governo se fixem bem, e se assente n'estes principios que são os da administração dos estados (apoiados).

Eu quero, sr. presidente, collocar a questão no seu legitimo terreno e encara-la debaixo do seu verdadeiro ponto de vista, e não espero ver mais uma vez interpor-se entre o parlamento e o governo a já gasta questão da incompetencia parlamentar, e sem aceitar o debate escudar-se com o requerimento para se julgar discutida a materia! Esse meio está já sufficientemente gasto para que ainda possa impor-se á opinião (apoiados).

Eu não contestei nem contesto ao governo a faculdade de nomear para o cargo de que se trata, não cerceio em nada as attribuições do executivo; não interpreto restrictivamente a carta; não disputo a applicação do decreto de 1833; nada d'isso questionei, nem carecia de o questionar. O que eu examino, o que arguo é o mau exercicio feito pelo governo d'aquella faculdade, não arbitraria, como já disse, mas subordinada ás regras da boa administração e á pratica constante do systema constitucional. O que eu sustento é que offende os principios da boa administração, e n'este caso a boa harmonia e consideração que o governo deve ter com o elemento ecclesiastico, nomear para o exercicio de funcções todas subordinadas á jurisdicção dos prelados, todas da sua absoluta responsabilidade religiosa, e de consciencia nomear, digo, qualquer individuo em que sede uma incompatibilidade moral entre elle e o prelado com quem ha de funccionar. O governo não póde impor essa confiança n'uma esphera que lhe é estranha. A obrigação do governo é nomear os individuos adoptados ás funcções de que vão ser encarregues; e não é satisfazer a este principio querer impor á consciencia de um prelado respeitavel um funccionario em quem elle pelos motivos que expõe não tem confiança.

«Não é obrigado a informar se convenientemente da idoneidade do individuo, póde impo-lo ao bispo, quando as funcções que elle tem a exercer são todas da confiança do bispo, porque são funcções dependentes da sua jurisdic-