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Discurso proferido na sessão de 26 de março, que devia ter logar a pag. 958, col. 3.ª, lin. 46, e continuado na sessão de 27 a pag. 976, col. 3.ª, lin. 14

O sr. Santos e Silva (sobre a ordem): — A minha moção de ordem é a seguinte (leu).

Está em discussão o orçamento do estado. Se ha discussão em que o exame do deputado da nação tenha de intervir severo e escrupuloso, despido de calculos partidarios, isento de preconceitos, acautelado de terrores, frio de enthusiasmos, e precavido contra as fumaradas do favor popular; é aquella que abrange o estado das finanças de um paiz, que tem o seu futuro, as suas liberdades, os seus horisontes, os seus progressos, e até os direitos da sua autocracia como nação independente, presos ás vias e meios, aos subsidios e recursos de que póde dispor, e ao uso bom ou mau que d'elles haja de fazer.

N'este vasto systema de cosmogonia moral, seja-me permittida a phrase, em que as grandes individualidades, chamadas nações, são todas solidarias, é preciso que o equilibrio seja estavel, e que os povos, como os planetas, girem livres e serenos na orbita que a providencia lhes traçou, sem que se choquem, sem que se atropellem, sem que se esmaguem, sem que se espedacem, recebendo todos do centro, a que os liga a lei commum da attracção, a vida, que é no mundo das idéas a civilisação, rainha na terra, como o sol é, na natureza, o rei da luz.

Uma questão de finanças n'um paiz como o nosso, não é só uma questão de bom ou mau governo, de estacionamento ou de civilisação. É porventura primeiro que tudo uma questão de nacionalidade. Se hoje me perguntassem quaes são os primeiros passos a dar para a verdadeira e solida regeneração do nosso paiz, responderia com desassombro — é fazer da discussão do orçamento uma questão essencialmente nacional. É resuscitar para as finanças o ardor patriotico, que radicou n'este paiz as instituições politicas e liberaes. É interessar o publico nos negocios que lhe são mais intimos e vitaes. É levar a these dos algarismos ás associações scientificas, litterarias e populares. É formular o theorema de governo democratico, economico e barato. É desenhar os lineamentos da iniciativa popular. É finalmente resolver o que é e o que deve ser entre nós a descentralisação governativa; pausada e gradual, como são todas as reformas uteis; respeitadora do caracter e indole nacionaes,

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como são todos os melhoramentos solidos e duradouros; logica e providencial, como devem ser todas as leis quando são o reflexo da actual civilisação e o germen de futuros e successivos aperfeiçoamentos (apoiados).

Vae chegando a hora em que á rasão nacional cumpre sobrelevar aos desvarios interesseiros do acinte partidario. O applauso das praças é o fumo que se desfaz e desapparece em caprichosas ondulações; instavel, irrequieto, voluvel, como a paixão, onde nasce e onde morre, onde se exalta e onde se aniquila, onde referve e onde se subverte. É a onda que remoinha em espiral vertiginosa e prende uns dos ramos nos jactos espumosos que arroja até os ares, e desenrola o outro pelos abysmos, até esmorecer no todo, que é o tumulo das suas contradicções. (Vozes: — Muito bem.)

Quando, as nações vivem prosperas e tranquillas, porque a missão ou o dever de bem governar incarnou nos homens, que recebem da opinião ou da fortuna a investidura de as dirigir e administrar, a tarefa de fiscalisar não é penosa. A nação, pelo orgão das suas maiorias conscienciosas e illustradas (e supponho que as maiorias são sempre conscienciosas e illustradas, porque na opinião dos governos a opposição nunca tem rasão), approva e louva os actos do poder; e ratifica-lhe moralmente ou renova-lhe o encargo de continuar a servir muito a seu contento. E a minoria, que não é nem deve ser o refugo, segregado pela decantação dos elementos politicos e das forças vivas da nação; a minoria, que não é nem deve ser o sedimento onde os odios impotentes, e os tramas microscópicos formigam e serpeiam como o collear dos zoophitos na vaza de que se alimentam, a minoria que é ou deve ser a sentinella vigilante das instituições, a vestal que não deixa apagar a luz, nem se desvia do religioso cumprimento do dever, nem se subverte na paixão, que lhe abre debaixo dos pés a sepultura; a minoria, que até tem obrigação de lavrar em vida, na lousa que lhe ha de resguardar as cinzas, o epitaphio memorativo de actos honrosos, que chamem sobre o pó do tumulo as bençãos piedosas do futuro; a minoria que tambem tem uma missão de bem dirigir e de bem fiscalisar; a minoria que é logica, illustrada, grave, circumspecta, quando não tem que censurar, cala-se; quando não quer louvar, não censura.

Mas quando as nações ou antes os governos, como os nossos, se arrastam n'uma vida trabalhosa, confusa, inerta, indecisa, sem bussola, com rumo, sem normas, sem luz, sem presente, sem futuro, e com fraca aprendizagem do passado; o dever do homem publico, que representa n'esta casa os interesses do seu paiz, é duplamente doloroso: doloroso, porque tem de denunciar, em vasto estendal, o catalogo dos erros, que se não desculpam, e dos perigos que nos ameaçam, doloroso; porque tem ás vezes de ser severo, e quem sabe se apaixonado, quando julga homens aliás dignos, por outros titulos, da sua estima e consideração.

Uma nação é como o individuo sob o seu triplice aspecto, e nas suas evoluções harmonicas, physica, intellectual e moral. Ha quem tenha chamado ao homem microcosmos, — mundo pequeno. V. ex.ª, sr. presidente, que é physiologista, sabe que esta definição não é forçada. Gera-se o homem: embrião informe. E a nação rudimentar. Desenham-se os orgãos, começam as funcções, desabrocham as pálpebras aos raios da luz exterior: a vida é indistincta. Tudo se resume n'um ponto: lei fatal da creação, obediencia céga ás leis geraes do crescimento, inconsciencia de si proprio, necessidades physicas, instincto de conservação. Não se vive, vegeta-se. Não ha vida de relação. O homem como a nação não se alimentam na vida exterior: vivem de si e só para si. É o isolamento no centro da sociedade. São as trevas refractarias á luz.

Esboçam-se as faculdades; despontam os crepusculos da intelligencia; alvorecem os primeiros arreboes do sentimento; espedaça-se o tumulo de pedra dentro do qual vegeta estiolada a creatura; fixam-se os olhos do corpo nos objectos que nos ferem os sentidos, como o espirito recebo, decifra e explica as sensações que o assediam no laboratorio perenne da idéa, da comparação e do raciocinio; desfazem-se os caprichos e phantasias pueris; apparece, como por encanto, uma nova creação; brota a rasão: é o accordo harmonico na diversidade dos sons; é a unidade na variedade; é a expressão potencial, a fórma moralmente algebrica de todas as nossas funcções e faculdades; é a synthese da creação. É o direito; é a justiça; é o progresso; é a moral. Está feito o homem. (Vozes: — Muito bem.) Está completa a nação. (Vozes: — Muito bem.)

Sr. presidente, Portugal não está verdadeiramente na quadra da sua evolução rudimentar, mas nas suas funcções de locomoção ainda preponderam muito o movimento automático e o capricho pueril, que se confundem nos seus effeitos com a caducidade senil.

Eu bem sei que esta descripção é pouco lisonjeira para nós, e mal se compadece com os nossos orgulhos e vaidades nacionaes. Mas a minha primeira obrigação é fallar a verdade ao paiz, tanto mais quanto é facil a missão, como agora, porque nas apreciações que fiz, e nas que tenho intenção de fazer, ha o visivel proposito de não offender, politica ou particularmente, alguem.

O que é o orçamento do estado? O orçamento do estado é a synthese é a analyse do modo de ser politico de um paiz. É o plano geral, desenvolvido e desdobrado minuciosamente em cada uma das suas partes, a respeito de todos os actos e funcções regulares e normaes do grande corpo moral chamado nação. A rodagem d'esta grande machina é o mundo official. O motor principal, senão o unico, é a bolsa do contribuinte. O emprezario superior, o que concentra em si, e tem na mão a direcção intelligente d'este vasto mechanismo social, é o governo, o poder executivo, ou antes o ministerio, vocabulo mais comprehensivel, mais preciso, e mais exacto, na descripção que acabo de traçar.

Permitta-me v. ex.ª e permitta-me a camara esta definição a capricho. E antes uma descripção politica contraposta á definição official. Eu bem sei que ha definições legaes. Não é só na carta constitucional que está a definição do orçamento, se porventura o artigo 138.º do codigo fundamental teve em vista dar uma definição do orçamento, o que não é para mim ponto de fé. A definição legal do orçamento está no artigo 20.º do regulamento geral de contabilidade, decretado em 12 de dezembro de 1863. O orçamento, diz o regulamento, é o acto pelo qual são previstas e computadas as receitas e despezas annuaes do estado competentemente auctorisadas. É uma definição concisa, como devem ser todas as definições, e exacta debaixo do ponto de vista burocrático e fiscal.

É como em geral se define lá por fóra; é pouco mais ou menos como está definido no artigo 5.º do decreto de 31 de maio de 1862, do imperio francez, que lhe chama «o acto, pelo qual são previstas e auctorisadas as despezas e receitas annuaes do estado, ou de outros serviços que as leis sujeitam ás mesmas regras.» O ultimo membro d'esta definição não póde deixar de se referir, como a camara sabe, aos centimos addicionaes, os departamentaes e communaes, que figuram no orçamento como verbas de ordem, porque são recebidos pelo estado com as contribuições geraes, mas cuja applicação é aquella que os adjectivos communal e departamental indicam.

Sr. presidente, o relatorio que precede o orçamento do estado vem nutrido de considerações geraes, farto de esperanças, mas funebremente tarjado de perigos e desgraças. É uma visita de parabens feita por meio de um bilhete de pezames. Vem galhardo e ruidoso, mas acaba por decretar a abstenção e o silencio!

A receita calculada no orçamento do estado para o anno economico de 1866-1867 é de 15.880:635$189 réis. A despeza ordinaria e extraordinaria sobe a 21.127:144$876 réis. O deficit arithmetico que d'aqui provém é de 5.246:509$687 réis.

Este deficit alem de arithmetico, creio que tem tambem o caracter de provisorio, porque carece immediatamente de algumas rectificações, segundo a phrase do relatorio, para ser considerado como definitivo.

Eliminadas as 25:000 libras para a amortisação da divida externa, ou 109:090$909 réis que se suspende ainda por este anno; eliminados os juros de bonds resgatados, que deveriam tambem ser applicados á amortisação, na importancia de 68:744$199 réis; feitas as deducções na lista civil, na somma de 40:000$000 réis; acrescentada a cobrança dos impostos indirectos, a mais do que se calcula, na verba de 25:606$327 réis, temos o segundo deficit de réis 5.003:068$252. Este deficit não tem classificação no orçamento; mas tendo em vista a progressão descendente que ha nos deficits do relatorio, como veremos quando chegarmos ao ultimo, e os caracteres intermediarios que se devem dar entre o que é provisorio e o que é definitivo, peço licença ao sr. ministro da fazenda para baptisar este seu segundo deficit com o epitheto de meio provisorio e meio definitivo. Supponho que não alterei com isto o seu methodo de classificação.

Vem depois o terceiro deficit que toma francamente o nome de definitivo, na importancia de 5.145:799$015 réis, porque se acrescenta ao segundo a quantia de 142:730$763 réis, presumido desfalque que aos rendimentos publicos ha de trazer a moderna legislação, que tornou livre a barra do Porto a todos os vinhos portuguezes. Esta somma parece-me perfeitamente hypothetica ou antes arbitraria.

Não quero dizer que a legislação sobre os vinhos do Douro não haja de trazer differença na nossa receita; mas não sei se é mais ou menos do que o que vem orçado; porque as considerações que se fazem no relatorio para justificar este desfalque não me satisfazem. Suppõe-se que hão de entrar no Porto 80:000 pipas, e que se exportarão por ali 40:000. Quaes são os argumentos em que se funda o relatorio? nenhuns. Quaes são os elementos de apreciação? não os vejo. Ora os calculos em que se baseia um deficit devera ter alguma cousa de serio para que exprimam o mais approximadamente que for possivel a realidade ou a verdade.

E parece-me que a illustre commissão de fazenda tambem concorda até certo ponto commigo n'estas considerações, como terei occasião de demonstrar quando analysar o seu relatorio.

A illustre commissão diz-nos que o desfalque ha de ser compensado pelo augmento de exportação. A diminuição do imposto ha de ser coberta pelo maior movimento commercial.

Mas quando eu me occupar do seu relatorio, esforçar-me-hei por descobrir, se podér, quaes foram os verdadeiros motivos que influiram no seu animo, para não figurar no deficit o supposto desfalque a que me estou referindo.

Trago estas considerações relativamente á verba de réis 142:730$767, para mostrar até que ponto é ou não aceitavel a designação de definitivo dado a este terceiro deficit.

Effectivamente parece-me pouco regular dar a feição fixa, permanente, inalteravel, definitiva ao que deriva de calculos incertos, sem base, e portanto inaceitaveis. Dar o nome de definitivo a este terceiro deficit, parece-me, salva melhor opinião, que não é respeitar muito os dados e elementos proprios e accommodados para apreciações d'esta natureza. Se eu não tivesse para isto argumentos de outra ordem, bastava-me o desaccordo que n'este ponto transparece entre o relatorio do governo e o da illustre commissão. Eu não culpo o sr. ministro da fazenda, queixo-me da rotina. Não ha orçamento algum do estado, pelo menos aquelles que tenho compulsado, que não esteja encaixilhado em iguaes molduras. Abre-se o relatorio, apparecem logo no alto da primeira pagina as verbas de receita e despeza, e depois, como sombra que se projecta do Corpo, o deficit, verdadeira hydra de Lerna, á espera por ora do seu Hercules, que lhe esmague e aniquile, com o cauterio actual, o que os golpes da sua clava não poderam destruir.

Após as tres verbas, que se ligam fatalmente como os tres termos de um syllogismo, vem o que, com bastante exactidão, e sem offensa aos nossos financeiros, se póde appellidar de jogos ou exercicios de grande elasticidade. São os acrescentamentos, os cerceamentos, as apreciações, as hypotheses, os calculos arbitrarios e até as phantasias. São os primeiros, os segundos, os terceiros, os quartos e não sei quantos pais deficits, uns anonymos, outros baptisados, uns provisorios, outros definitivos, uns reaes, porque são em réis, outros, nominal e quasi sempre arithmeticamente exactos. Mas o que até aqui tem havido de exacto e real em tudo isto, é que o deficit dos deficits, o ultimo de todos os deficits, o que se depurou em todas as provas reaes, a quinta essencia dos algarismos, o mais pequeno de todos os deficits, é o que mais falsamente exprime o balanço do deve e ha de haver da nação. O methodo é uma alavanca indispensavel em todos os trabalhos do espirito humano. Não me acho em circumstancias de ensinar regras para a coordenação d'estas peças officiaes. Não sei mesmo se as ha. Mas o que sei é que a analyse severa e conscienciosa, o raciocinio irreprehensivel, a deducção logica e concludente, o rigor nas demonstrações, a contextura harmonica e accorde, ligando, n'uma especie de solidariedade syllogistica, todas as partes que compõem o plano geral: nunca são de mais em documentos, que relatam e inventariam todo o nosso activo e passivo.

Depois do terceiro deficit ou do deficit definitivo, de que acabo de fallar, seguem se no relatorio considerações geraes. O estado da fazenda publica não é prospero, diz-nos o nosso ministro, attentos os actuaes recursos e encargos do thesouro; mas o equilibrio das nossas finanças não é muito difficil, sem vexar o contribuinte e sem gravar as futuras gerações, vista a grandeza das forças productivas da nação, o augmento successivo da receita publica, o desenvolvimento de todas as nossas condições economicas e o muito que ainda póde desentranhar-se das forças vivas do paiz.

É este o transumpto da primeira parte das considerações. É a questão do imposto em todas as suas fórmas variadas, mas disfarçada, por ora, em termos abstractos e genericos.

Seguem-se depois certas indicações especiaes. A primeira é não matar de repente o deficit. A segunda está em perseverar na introducção de bem entendidas economias nas despezas do estado. Perseverar na introducção de economias, que ainda ninguem viu, não me parece muito intelligivel. Isto refere-se naturalmente ás intenções. A terceira consiste em nos convencermos todos (supponho que governantes e governados) da necessidade impreterivel da segunda indicação, e em não nos limitarmos a manifestações estereis. Procedendo assim, havemos de elevar o nosso credito ao par do das nações mais adiantadas e felizes, e saldaremos as nossas despezas com os recursos ordinarios do thesouro. Temos pois, resumindo e aproveitando de tudo isto o que logicamente se póde aproveitar, debaixo do ponto de vista financeiro, postas as duas theses — economias e imposto — são o Alpha e o Omega das nossas reformas de fazenda; são o diagnostico, a therapeutica, é o prognostico favoravel das nossas molestias financeiras. Mas como (continua o relatorio) á grandeza do mal não deve corresponder a energia do remedio, porque n'estas molestias sociaes a cura immediata e radical póde trazer o cataclismo pela violencia dos meios; como o deficit não se póde cobrir com o imposto, porque se obliterariam as faculdades do contribuinte; como seria injusto e cruel cortar, sem piedade, pelos vencimentos, já de si mesquinhos e exiguos, dos servidores do estado: o relatorio appella, por fim, para uma serie de providencias, calculadas debaixo do mesmo pensamento, filhas do estudo, da circumspecção, iniciativa fecunda, e finalmente do tempo, elemento indispensavel em obras de tanta gravidade. Por ultimo o relatorio pede a propaganda d'esta doutrina por espaço de um anno; quer que este programma tome afeição do nacional; deixa-nos entrever as primeiras bases da sua execução, mesmo antes da sancção, do tempo, e da acção fecunda do estudo e da circumspecção; dá-nos a promessa de melhoramentos publicos, depois de, ao mesmo tempo, nos affirmar e negar os meios para os realisar; e conclue, n'esta parte, conscio de si mesmo, e com a consciencia serena e tranquilla, de ter prestado um bom serviço ao seu paiz.

Vou sendo talvez minucioso, na analyse do relatorio, mas v. ex.ª, sr. presidente, com a sisudez que o caracterisa, já deve ter percebido, que este notavel documento encerra em si o programma completo do governo, politico, administrativo, economico e financeiro.

Eu queria poupar-me ás conclusões. O que ali ha de desconnexo e incoherente, não procede de certo do defeito de intelligencia, porque bastantes provas tem dado, e está dando o nobre ministro, da alteza das suas faculdades. O que ali se vê é a rotina a esterelisam um bello talento. São os aléns do outro tempo, suffocados pela impotencia de hoje. É o calculo politico sobrelevando á inspiração reformadora. É o vicio da actual situação (apoiados). É á descrença n'uns e a indifferença em todos. É a ausencia da força moral. É a ferrugem de certas molas, que emperra o machinismo ministerial. O nobre ministro não reforma, porque não póde reformar.

O sr. ministro quer e não quer; alegra-se e entristece-se; diz e desdiz; promette, e é obrigado a faltar; aponta-nos para a luz, e esmorece nas sombras; convida-nos ao bulicio ruidoso da vida, mas impõe-nos fatalmente o silencio; phantasia-nos um mundo de venturas, mas condemna-se a si, e condemna-nos a nós ao nada. É o sr. Pontes de hon-

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tem a lutar com o sr. Fontes de hoje. É o revolucionario arrojado e audaz de ha doze annos sotoposto ao politico precatado, e quem sabe se, com rasão, desconfiado de hoje.

A physionomia da actual situação retrata se no relatorio do ministerio da fazenda (apoiados).

Concordo com o nobre ministro da fazenda, quando diz no seu relatorio, que as finanças de um estado não são exclusivamente o imposto para cobrir o deficit, nem as economias cegas e mesquinhas que reduzem os encargos para poupar o contribuinte.

«As finanças de um paiz são uma e outra cousa; são mais do que tudo isto; são a administração nos seus variadissimos aspectos.» É esta a definição official.

Qual é o modo de as organisar? Está indicado no relatorio. É fazer estradas e caminhos de ferro; é reformar as pautas no sentido da livre permutação, mas sem matar a industria, sem exagerar a protecção, e tendo em vista o interesse fiscal; é fomentar a agricultura com instituições de credito; é crear a vida local, e a iniciativa particular, quer dizer, a descentralisação; é despear o commercio de todos os vexames, que não sejam indispensaveis á fiscalisação; e é finalmente decretando uma serie de providencias que, por ora, não sabemos quaes ellas são.

É este o programma do governo, ou antes a prophecia da nossa futura regeneração E creia a camara que não ha n'esta palavra a mais leve sombra de calembourg (riso). É a prophecia da futura regeneração, aventurada na phrase cursiva, sempre fluente, mas d'esta vez com seus ares e donaires de sibyllina do illustre ministro da fazenda.

Ha aqui o eclectismo ad usum de todas as escolas. É a tranquillidade levada ao seio da protecção. É a esperança desenhada no horisonte da livre troca. É a agricultura fomentada com uma palavra de consolação. É o espirito fiscal, senhor do seu futuro, e seguro dos seus destinos. É a nossa viação levada á quinta essencia da perfeição. São os esboços theoricos da descentralisação administrativa na sua mais lata significação. E é por fim a reserva mental, que fica na cornucopia á espera de monção feliz, para caír fertilisadora n'este torrão abençoado, chamado Portugal, terra destinada para ser habitada, n'um futuro mais ou menos proximo, pelas boas fadas amigas da humanidade.

N'este consorcio civil da economia com as finanças (creio que é o unico casamento civil que nos dá o governo) (riso), estão escrupulosamente attendidas todas as theorias. Está ali Colbert, Ganilh, e o defunto S. Chamans. Estão ali Cobden, Bastiat, Coquelin e Guillaumain, e todos os modernos apostolos da livre troca.

Eu não quero pleitear programmas, nem tomar o passo aos prophetas. Se o trecho que acabo de citar fosse lançado ao consumo das escolas dava, por largos annos, logar a muitas algaravias e celeumas. Mas como o governo falla em nome, e pela bôca do paiz, e como este paiz é de nós todos; peço licença para enxertar no seu programma ou addicionar ás suas prophecias palavras, ou antes idéas, de um homem que não é de cá, mas que escreveu para todos os povos civilisados, é José Garnier: «A sciencia das finanças, ramo da economia das nações, não é a arte do financeiro, que não sabe senão extrahir substancia abundante e succulenta das rendas do cidadão, e fazer emprego, mais rotineiro que racional, do dinheiro de todos, de que o thesouro publico é o reservatorio commum. A sciencia consiste na preferencia dada aos recursos mais racionaes; na suppressão das despezas inuteis, em aligeirar os encargos publicos, em cercear as funcções e pessoal officiaes; em tornar as despezas do estado, de mais em mais, productivas; em tirar os tropeços ao consumo e á producção, em proporcionar as contribuições aos serviços, que os cidadãos tiram da sociedade; é, resumido em poucas palavras, prover ás necessidades normaes da communidade pelos recursos os mais naturaes.»

Veja v. ex.ª como este programma é mais comesinho, mais logico, mais conciso, e até mais natural. Este é que é o programma de todos os paizes que desejarem acclimar os principios da descentralisação.

José Garnier tinha rasão para tomar nas mãos, e levantar bem alta a bandeira das economias, simplificação de serviço e reducções, n'um paiz, como a França, em que a centralisação e a burocracia estão levadas aos ultimos quilates de perfeição. Pois esta bandeira é a de todos os paizes e governos, onde se quizer descentralisar. O systema francez prepondera entre nós, e tende a generalisar-se por toda a parte. Quer v. ex.ª saber qual é o pessoal que ha só no ministerio da fazenda e suas dependencias em França?

Os empregados dependentes do ministerio da fazenda francez são em numero de 92:653! Basta ver esta cifra, para logo nos convencermos, que ha n'estes systemas de centralisação um vicio radical, que é necessario, a bem dos povos, extirpar. Só o secretariado geral e as sete direcções do thesouro têem 1:628 empregados, as contribuições directas têem 7:699 agentes exteriores, os empregados do registo, proprios nacionaes e sêllo, são em numero de 3:951; as matas occupam 5:213, as alfandegas e contribuições indirectas contêem 36:498, o tabaco 707, correios e postas 36:957.

A consequencia pratica do programma de Garnier, que eu acabo de ler á camara, é a morte de um triplice prejuizo, que tem produzido graves perturbações, e grandes desequilibrios na economia das nações. É necessario reduzir os financeiros fiscaes (e aqui não ha allusão pessoal a ninguem) á impotencia de sustentar as doutrinas exageradas das despezas publicas, e de proclamar o imposto, como a melhor das collocações, que o dinheiro póde ter. É necessario persuadir ao publico, que, as arcas do thesouro não são inexgotaveis, e que o que de lá sáe é o que todos nós para lá lançâmos, desfalcado, pelo menos, das despezas de cobrança e arrecadação. É necessario finalmente, arraigar no espirito de todos, que só com a condição de ser bem e escrupulosamente empregado, é que o imposto é uma divida sagrada, necessario para a manutenção da segurança, da tranquillidade, da liberdade de um paiz e da sua nacionalidade.

Sr. presidente, já em mais de um documento, saído das officinas ministeriaes, depois que estão á frente dos negocios publicos os actuaes conselheiros, e especialmente no relatorio que estou analysando, se tem arriscado, mais ou menos explicitamente, a palavra descentralisação. Era já occasião de nos dizer o governo, como e porque fórma, quando tenta começar a descentralisar. Quaes são os serviços que vae simplificar? Quaes são as rodas que na machina governamental quer supprimir? Quaes são as funcções e iniciativas que deseja entregar á acção individual? Como entende remodelar o municipio? Como quer reconstruir o districto ou resuscitar a provincia?!

As reformas na administração não devem ficar afogadas no pantano dos arrozaes. É necessario que emirjam da vaza, desdobrem e espanejem as suas azas ao sol de mais altas aspirações! (Apoiados.)

O governo deve ter um pensamento fixo sobre descentralisação. Não é possivel que se atirasse para os prelos da imprensa nacional com uma palavra pomposa e pouca explorada ainda entre nós, só com o intuito de condecorar os srs. ministros com os fóros de novidade official.

O paiz deseja saber como pensa o governo a respeito das suas legitimas attribuições; é necessario conhecer se os srs. ministros são ou não réus confessos de usurpação. Se o governo está convencido que a missão principal, senão a unica, da auctoridade superior, consiste em manter a segurança e a justiça, por via da administração restricta a estas funcções, por meio da magistratura e da força armada, que felizmente, e digo felizmente, porque desejo fazer um comprimento, e dar os parabens aos meus collegas militares da camara, fica a salvo de todos os camartellos descentralisadores, emquanto se não levar á pratica a formosissima theoria da paz e fraternidade universaes; theoria que não figura por ora no programma dos nossos governos, mas que tem um dia de figurar, porque os que vierem depois têem de dizer alguma cousa de novo; theoria contra a qual me não insurjo, em attenção á sua côr local e feição nacional, porque nós já cá temos ha muito tempo — paz e união entre todos os portuguezes — (riso): se é esta, como ía dizendo, a causa unica e o fim racional das associações nacionaes, subdivididas até ao municipio; é urgente que o governo diga ao paiz, mas em termos claros e precisos: «Prepara-te para a descentralisação gradual e progressiva; as despezas do culto religioso vão ficar, dentro em pouco, a cargo dos particulares; vou alijar de cima do estado para vós, tanto quanto for possivel, a viação e mais obras publicas; vae acabar a caridade legal, e é indispensavel revogar o § 29.º do artigo 145.º da carta constitucional; vão morrer as emprezas scientificas por conta do estado, o ensino, universidades, collegios, lyceus, museus, academias, bibliothecas e escolas; urge tambem eliminar os §§ 30.º e 321.º do artigo 145.º da carta constitucional; já não ha fomento legal para a agricultura, commercio, industria, navegação; está a expirar a protecção que se dá a certas industrias por via da prohibição, ou da taxa exagerada das alfandegas; a propria alfandega municipal tem os seus dias contados, muito a contento, creio eu, dos nossos collegas que representam n'esta casa a capital, e com grande satisfação dos seus habitantes, não sei se com rasão ou sem ella, attento o estado actual do nosso systema tributario; os monopolios ou emprezas especiaes que ainda nos restam, como a fabricação da polvora e outros, não podem sobreviver a este cataclismo que ameaça subverter tudo o que é velho, novo e novissimo; o pouco que nos resta do passado, muito do que veiu na bagagem dos illustres emigrados, que hastearam nas praias do Mindello a bandeira da liberdade, e quasi todas as reformas que ha trinta annos a esta parte se preconisam como salvadoras do paiz. Já não tem rasão de ser a intervenção geral por via de regulamentação. Está a dar o ultimo bocejo a tutela official. O deficit vae ser reduzido ás mesquinhas proporções de uma extravagantissima utopia. As despezas do estado vão, pelo menos, ser rebaixadas á quinta parte. O pulmão do contribuinte forçado vae resfolgar n'esta atmosphera limpida e serena da vida municipal».

Se a descentralisação é um systema logico e completo, as conclusões que d'ella tiro são fataes e inevitaveis; a questão é apenas de tempo. Eu não sei o que o governo tenta fazer; mas o que lhe posso afiançar é que me ha de encontrar a seu lado em tudo que for racional e consentaneo á indole da nação e ao caracter do povo portuguez.

Acredite o governo que não me hei de prevalecer de pretextos politicos, derivados da falta de confiança, em qualquer dos conselheiros da corôa que se sentarem n'aquelles logares (apontando para as cadeiras dos ministros).

E a rasão é muito simples. É porque a descentralisação é para mim uma belleza de que estou namorado ha muito tempo; talvez V. ex.ª o não soubesse; pois é uma verdade. Gosto d'aquelle self-government dos inglezes, paiz que citâmos para tudo, menos para estudar e aproveitar n'elle o que lá possa haver de acclimavel entre nós.

Fallemos com franqueza; a descentralisação ou o governo do paiz pelo paiz (porque a descentralisação é o verdadeiro governo do paiz pelo paiz), não parece na opinião de certos publicistas, compativel com o caracter meridional de alguns povos, e tambem do povo portuguez, que mostra dar-se por satisfeito com esta meia importancia que se liga aos cargos municipaes e ás funcções districtaes. Ha aqui, supponho eu, um grande equivoco ou labora-se n'um circulo vicioso. Até se sacrifica a historia e se renegam as tradições (apoiados).

Porque não ha de ser a centralisação que nos esmaga a nós e a muitos povos ha tantos annos, principalmente depois que a palavra insolente e despotica de Luiz XIV foi santificada por todos os estados; porque não ha de ser a centralisação a causa d'essa indolencia e a origem de todos os erros que os povos têem a respeito da missão e obrigações dos governos?!

«As instituições são para os povos, diz Batbie, na edição de 1864 do seu curso de direito publico e administrativo, o que a educação é para o individuo: uma pratica inversa do que até aqui se tem seguido modificará em pouco tempo os costumes administrativos.» Ou não ha verdade no progresso ou este enunciado, de Batbie é um axioma: não carece de demonstração.

Vou concluir as minhas observações sobre descentralisação, pedindo ao governo, que se tenta emprehender alguma cousa a serio, e se é sectario d'esta grande idéa como eu sou, diga toda a verdade ao paiz. A descentralisação não é um governo absolutamente barato para um povo que necessita civilisar-se e progredir. É democratico, é mais economico, mas não é gratuito. As obrigações são onerosas, as funcções são serias, e os sacrificios de tempo e de dinheiro são impreteriveis. Administrar-se por si é obrar por si. As vantagens e as honras não se podem segregar dos encargos e deveres pessoaes.

O nobre ministro da fazenda procurou, segundo diz o seu relatorio, approximar-se escrupulosamente da verdade, nas verbas do orçamento do estado, calculando as receitas pelo rendimento do ultimo anno, quando a tendencia para o augmento era progressiva, constante e gradual, e pela media dos ultimos tres annos, quando se não notava tendencia nem para mais nem para menos; e fixou geralmente as quantias em sommas redondas. Contra esta ultima asserção dos numeros redondos protestam logo as tres primeiras verbas, que apparecem no alto do relatorio, e que são, nada mais e nada menos, a synthese de todas: a receita, a despeza e o deficit.

Bem sei que para haver este resultado basta dar-se uma fracção n'uma das parcellas ou n'uma das addições. Mas o caso não é este. Tive curiosidade de analysar, uma por uma, as fontes do nosso rendimento, calculado no presente orçamento, e as verbas que as representam; pois, senhores, em cento e tantas verbas achei mais de trinta, quer dizer um terço, pouco mais ou menos, terminadas por fracções. Quem quizer verificar isto, lance os olhos sobre o mappa da nossa receita, que vem não só no orçamento, mas tambem annexo ao parecer da illustre commissão. Á vista d'isto fiquei surprehendido, e custou-me a explicar, como no relatorio se quiz elevar ás alturas de novo methodo um principio, que era immediatamente esquecido ou desprezado na pratica. Não teria prestado maior attenção a este facto, se o relatorio não tivesse castigado com phrases um pouco dogmaticas os vicios dos anteriores orçamentos, que, terminando quasi todas as quantias por fracções, inculcavam um certo luxo de approximação da verdade, que só por acaso se póde attingir.

A doutrina que o illustre ministro diz ter seguido, supponho ser a que está consignada no artigo 24.º do regulamento geral de contabilidade, combinado, se é possivel combina-lo com o artigo 33.º do mesmo regulamento, e que é sempre bom citar, para que se não torne, apesar de novo, obsoleto, sorte que acompanha grande parte da nossa moderna legislação.

Se o nobre ministro se conformou ou não na pratica com estas prescripções exaradas no seu relatorio, é tarefa que incumbe particularmente a quem examinar o orçamento na sua especialidade. Entretanto seja-me permittida de passagem uma observação.

Na conta da receita e despeza do thesouro publico do anno economico de 1863-1864, lê-se que a cobrança dos rendimentos, publicos fôra n'aquelle anno de 10.673:857$876 réis, que faz differença para menos em 874$593 réis da cobrança que vem no mappa do relatorio do ministerio da fazenda, que ha poucos dias foi distribuido na camara. A differença não é muito grande, e é natural que o nobre ministro ou a illustre commissão nos digam d'onde ella provém.

Não insisto n'este ponto, porque a quantia não é muito avultada; no entanto, quando se analysa um orçamento, temos restricta obrigação de dar conta do minimo real, e da mais insignificante fracção.

Vem, como disse, no mappa do rendimento do anno economico de 1863-1864 a somma de 15.673:857$876 réis. Refiro-me a este anno, porque não podemos ter a conta do de 1865-1866 que ainda não terminou. O anno de 1864-1865 é de difficil comparação, pelas alterações favoraveis, mas até certo ponto anormaes que se deram na receita publica, derivadas das phases por que passou o rendimento do tabaco. É pois o rendimento de 1863-1864, que eu quero confrontar com aquelle que é computado no orçamento para o anno de 1866-1867.

Dá-nos o illustre ministro para o futuro anno economico uma receita de 15.880:635$189 réis, e a cobrança dos rendimentos do thesouro no anno de 1863-1864, como já disse, foi de 15.673:857$876 réis. Por consequencia ha uma differença de 206:779$313 réis a mais no futuro anno, sobre o que se cobrou ha tres annos.

Ora, aceitando a verba de 1.935:597$174 réis, que, no relatorio, por favor especial, se nos dá, para o rendimento futuro do tabaco, favor, que até a propria commissão declina, porque as suas apreciações fazem ascender a mais 500:000$000 réis, pelo menos, a receita futura do tabaco: a differença entre a verba do tabaco, mesquinhamente orçada, e o que rendeu o monopolio no anno de 1863-1864, é mais do que sufficiente para cobrir os 206:779$313 réis. E ainda que acrescentemos aos 1.521:000$000 réis do mo-

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nopolio o antigo imposto sobre o tabaco, que se cobrava na alfandega, que dava duzentos e tantos contos, mesmo assim crescem na mesquinha verba dos 1.935:597$174 réis pelo menos 200:000$000 réis, tanto quanto é preciso para cobrir a differença a mais, já notada, de 206:779$313 réis.

Quer dizer: se tirarmos aos rendimentos do anno que vem os 1.935:597$174 réis que se orçaram para o tabaco, e eliminarmos aos rendimentos do anno de 1863-1864 o producto do monopolio e o imposto do tabaco; as outras receitas publicas, impostos directos, impostos das alfandegas, impostos indirectos, proprios nacionaes e rendimentos diversos, saldam-se e equilibram-se nos dois annos economicos a que me tenho referido. E se ha alguma differença é a favor do anno de 1863-1864.

Agora pergunto eu: ha ou não tendencia para o augmento successivo das nossas receitas? Se ha, qual é a rasão por que de todas as nossas fontes de receita, excepto a do tabaco, hão de manar para o anno menos recursos do que manaram no anno de 1863-1864? Como é que, no anno que vem, havemos de ser mais pobres do que no anno de 1863-1864, ou tão pobres como n'esse anno?

Ou o sr. ministro da fazenda seguiu á risca os preceitos exarados no seu relatorio, ou não.. Se os seguiu, não ha augmento progressivo nas nossas receitas, e andâmos aqui a illudirmo-nos uns aos outros, porque á parte o tabaco, os nossos rendimentos futuros estão calculados exactamente por aquillo, que já produziam ha tres annos; e senão seguiu ou se faltou na pratica ao que nos prometteu no seu relatorio, que era de mais a mais o que tinha obrigação de fazer, em vista da legislação vigente; então as nossas receitas estão baixamente orçadas, como é minha humilde opinião.

Veremos como o governo se sáe d'este dilemma.

A discussão especial do orçamento é que nos ha de dar a chave d'este enygma.

No orçamento da despeza diz-nos o nobre ministro, que se descreveram em todos os ministerios os encargos do serviço publico, na conformidade dos quadros legaes e disposições legislativas, que regem os diversos assumptos. Occorre-me desde já perguntar, se o quadro de engenheria civil é ou não legal. Pela lei de 25 de julho de 1864 foi auctorisaria a reforma dos serviços, a cargo do ministerio das obras publicas; e a importancia da despeza do corpo de engenheria e seus auxiliares, creados aquelles e estes, em virtude da referida lei, por decreto de 3 de outubro de 1864, é de 186:300$000 réis.

Se a engenheria civil é quadro legal, onde está a sua dotação? Está incluida nos 1.000:000$000 réis para estradas? Se o não é: o que significa n'este paiz um decreto com força de lei? Revoguem-no pelo menos, e extingam tambem a engenheria. Mas abolir a engenheria é abolir as estradas. O governo deve escolher.

E a respeito d'estes 1.000:0001000 réis é necessario fixarmos isto por uma vez; ou o governo nos quer dar estradas e viação accelerada, ou não; se quer; não ha de ser com 1.000:000$000 réis, cerceados de mais de 200:000$000 réis que em tanto importam os ordenados dos engenheiros, gratificações, ajudas de custo, vencimentos de aspirantes, etc., etc., que havemos de ter obras publicas e mais melhoramentos, que o governo nos promette no seu relatorio; se não quer, então não sophismemos e digamos a verdade ao paiz. Se a viação ordinaria é tão impreterivel nas nossas actuaes circumstancias, como a viação accelerada; se o ultimo contrato Salamanca se traduz, como não póde deixar de se traduzir e desde já, em encargos para o thesouro; não é com 1.000:0001000 réis cerceados de 200:000$000 réis, que se ha de satisfazer a tudo isto.

Basta que o governo faça menos da metade do que promette, para se rir do orçamento e dos que o approvarem na boa fé.

Duas importantes innovações introduziu o nobre ministro no orçamento d'este anno: a primeira consiste na transferencia de certas verbas da tabella das despezas extraordinarias para a tabella das despezas ordinarias; a segunda consiste na suppressão dos creditos supplementares, precedida do augmento previo de certas dotações. O relatorio não dá muita importancia á classificação methodica das despezas, em ordinarias e extraordinarias, mas a suppressão dos creditos supplementares merece-lhe toda a consideração, e é para o governo, uma medida de maximo alcance.

Cada um póde apreciar as suas obras e os seus actos como quizer, e por consequencia eu não prescutarei se s. ex.ª o sr. ministro tem ou não rasão, para dar pouca importancia á sua primeira innovação, que poucas linhas antes tinha aquilatado de maximo alcance, e á qual a commissão de fazenda, nem sequer, faz a mais leve allusão.

Mas o que posso afiançar a v. ex.ª e á camara, é que ha já quem se não contente com dois orçamentos de despeza, ordinaria e extraordinaria. Ha quem queira tres classificações, ordinaria, supplementar e extraordinaria. O illustre financeiro, publicista e economista, a quem me estou referindo, o sr. Mauricio Block, que não deve ser menos competente n'estas materias, do que foi para a questão da liberdade de imprensa, discutida ha pouco tempo n'esta casa, quer tres distinctos orçamentos com dotações certas, definidas e especiaes: o 1.º, o ordinario, destinado ás necessidades de primeira ordem; o 2.º, o supplementar, destinado ao que é util; o 3.º, o extraordinario, dedicado á satisfação do luxo do estado, ou da nação.

Entre nós ha alguma cousa de luxo, um tanto de util, e quasi tudo absorvido no que se chama ordinario, sem serem todas as suas despezas de primeira necessidade.

Em França, sabe a camara, que existe ha annos essa distincção entre despezas ordinarias e despezas e trabalhos extraordinarios. É materia que está legislativamente prescripta na lei de finanças de 2 de julho de 1862. Para cada um d'estes orçamentos é precisa uma lei especial; e os recursos peculiares destinados ao segundo têem um caracter temporario, como os encargos, a que fazem face. Um illustre financeiro d'aquelle paiz, que se chama Fould, deu grande importancia a esta questão de methodo, como se póde ver no seu relatorio, publicado no Moniteur de 22 de janeiro de 1862.

Apesar d'isto, eu não desconheço que a primeira qualidade de um orçamento, leal e scientemente confeccionado, quer dizer, o equilibrio não se obtem exclusivamente pela distincção methodica, a que acabo de me referir. O equilibrio só se obtem pela justa e sã apreciação das necessidades e dos recursos. O equilibrio material só se dá quando ha o equilibrio moral, que é a proporção das despezas entre o a harmonia d'estas com as verdadeiras possibilidades do paiz (apoiados).

Cada paiz, sr. presidente, tem o seu modo de fazer orçamentos. Até ha orçamentos brutos e orçamentos liquidos; ha orçamentos brutos de 1.ª ordem (riso), e brutos de 2.ª ordem. Os primeiros comprehendem todas as receitas e despezas publicas, embora parte d'estas não seja despendida por conta do estado, como são os centimos departamentaes e communaes, em França, recebidos com as chamadas contribuições geraes, mas gastos e applicados pelos departamentos e communas. Os de 2.ª ordem são como os nossos: o nosso orçamento é um orçamento bruto de 2.ª ordem (riso): comprehendem só a receita e despeza por conta do estado, inclusos todos os gastos de cobrança e arrecadação. Os liquidos são os que descrevem quanto o estado gasta e recebe, deduzidas todas as despezas de cobrança e arrecadação.

Aqui tem v. ex.ª como ha differentes maneiras de fazer orçamentos, e como cada paiz adopta um systema conforme entende.

A Inglaterra tem tambem o seu methodo particular. V. ex.ª sabe muito bem, porque esteve lá, naturalmente no tempo da emigração, que d'aquelle paiz tudo é historico e tradicional, como a constituição do seu paiz. Eu não fui emigrado; não tinha idade para isso: mas não se me daria de affirmar que ha trinta annos já lá se faziam os orçamentos como se fazem agora.

O orçamento n'aquelle grande paiz repousa, parte sobre textos escriptos, parte sobre antigos usos. Tres quartos das receitas do orçamento formam o fundo consolidado, que não precisa de auctorisação annual. Está seguro por leis permanentes e antigos usos, e d'ali é que sáem a lista civil, a dotação da magistratura e outras despezas; e a outra quarta parte constitue o que lá se chama orçamento provisorio ou lei de finanças annual, com que se dotam outros serviços, e differente do orçamento definitivo ou lei de contas (porque lá tambem ha dois orçamentos), onde vem a generalidade e a especialidade de todas as receitas, e despezas da nação.

Mas deixemos as despezas ordinarias e extraordinarias e os orçamentos dos outros paizes, e vamos aos creditos supplementares.

Os creditos, supplementares têem já uma longa historia; não é só em Portugal, é em muitas nações. Os governos têem em geral usado largamente d'esta arma, d'este meio de se tirarem de apuros e difficuldades; e a opinião e a imprensa têem-se indignado. Creio que todos têem tido rasão — governantes e governados. Os governos não abrem de certo, por prazer ou mero capricho, os creditos supplementares. É a força das circumstancias contra sua vontade e desejos que os impelle a isso.

E nós veremos no futuro que o sr. ministro da fazenda, apesar de todas as suas previsões, se não podér abrir creditos supplementares, porque a nova legislação lh'o prohiba, ha de praticar actos de que derivem pessimos resultados para alguns serviços publicos; ha de sacrificar verbas e dotações, umas ás outras, dentro do mesmo capitulo, como parece prohibir-lh'o, não só o artigo 13.º do regulamento geral de contabilidade, mas tambem o artigo 12.º, § 1.º do acto addicional á carta; e como parece facultar-lh'o, mas á contrario sensu, o artigo 14.º do mesmo regulamento, doutrina que s. ex.ª perfilhou e desenvolveu no artigo 6.º da sua proposta da lei da despeza.

Hoje, em França, paiz onde ha contabilidade e administração levada ao seu apuro burocrático, depois de variadas alternativas por que passaram os creditos supplementares, em cuja torrente não poderam ter mão diversas providencias e alvitres, este serviço está regulado pela seguinte fórma: o poder executivo, ou melhor o chefe do estado, não tem direito de abrir creditos supplementares ou extraordinarios. É precisa uma lei. A faculdade dos virements subsiste; é a transferencia de uns capitulos para os outros, dentro de cada ministerio, das verbas descriptas no orçamento. Mas são precisos para estas transferencias decretos especiaes approvados ou fundamentados em conselho d'estado. Não obstante todas estas providencias não é efficaz o methodo que tem por fim obstar aos abusos dos creditos supplementares. É a opinião de alguns escriptores.

O nobre ministro da fazenda não se conformou inteiramente com a legislação franceza. Supprimiu completamente os creditos supplementares, mas deixa-nos o virement, ou transferencia dentro de cada capitulo, sujeita a decreto especial, fundamentado em conselho de ministros, e dispensado o voto consultivo do nosso conselho d'estado. A proficuidade d'este methodo, contra o qual me não insurjo absolutamente, o futuro no-la demonstrará. Por ora não posso confiar n'elle cegamente. Mas o que ha aqui de notavel é a solidariedade ministerial na transferencia de qualquer verba de um artigo para outro dentro do mesmo capitulo. Vamos pois d'aqui em diante ter immensas questões ministeriaes. Preparem-se os argos implacaveis do orçamento que pairam sobre as cadeiras dos ministros, não para lhes prear as pastas, mas para protestarem a toda a hora contra o minimo desvio das verbas do orçamento: preparem-se, digo eu, para essas multiplicadas questões ministeriaes que vão surgir d'aqui em diante. Tinhamos falta de questões politicas, agora teremos superabundancia. O illustre ministro prescreve para as transferencias a doutrina que o regulamento geral de contabilidade marca para os creditos extraordinarios.

Quanto aos creditos extraordinarios só podem ser abertos para casos de força maior, como epidemia, guerra, inundação, incendio e outros similhantes. O ultimo membro d'esta proposição é a valvula resuscitada que o nobre ministro quiz destruir, e por onde hão de, naturalmente, resfolgar cortas despezas, que, se lhes não chamarem supplementares, nem por isso deixarão de ser extra-orçamentaes. Podem dar-lhes a designação que quizerem. Mas verdade, verdade. Com os creditos extraordinarios houve mais attenções do que com as transferencias. O conselho d'estado é ouvido; e os creditos só podem ser abertos quando estão encerradas as côrtes, tendo depois de ser examinados pelas camaras e confirmados por lei. É a alteração do que se acha determinado na parte 1.ª do artigo 54.º do regulamento geral de contabilidade, porque se supprime a solidariedade ministerial, que no regulamento é prescripta; e acrescentam-se as attenções para com o conselho d'Estado.

Quem abrir portanto um credito extraordinario responde isoladamente por elle. Se a camara o não approvar não cae o ministerio, cae o ministro. O ministerio só cae quando a camara censurar a transferencia inconveniente de uma verba, qualquer que ella seja e por mais pequena que seja, dentro do mesmo capitulo. Esta theoria de responsabilidades ministeriaes não deixa de ser engenhosa.

Para que possa regularmente funccionar o systema que tem em vista obstar ás facilidades das despezas extra orçamentaes, e para que a letra da lei seja sincera, e não uma triste decepção, é necessario dotar ricamente certos serviços. Isto é obvio, não tem contestação. Aliás temos o desequilibrio e a perturbação dentro do orçamento; o abuso dos virements, serviços sacrificados uns aos outros; e a machina dos creditos extraordinarios buscando pretextos para funccionar em falsos casos de força maior. Mas o relatorio que estou analysando faz milagres, porque não obstante ter de attender á eliminação dos creditos supplementares, dotando ricamente certas verbas, dá-nos uma despeza inferior á que vinha no orçamento do corrente anno economico, que não chegou a ser approvado. A differença para menos é de 117:801$763 réis.

Pouco tempo duraram estas illusões no espirito boçal d'aquelles que, como eu, acreditam em milagres! A illustre commissão de fazenda levou a sua impiedade ao ponto de reduzir esta differença a quasi metade, acrescentando as despezas publicas em algumas dezenas de contos de réis!

O relatorio seria mais franco e mais explicito se nos dissesse que a inculcada differença não procede, como algum incauto poderia suppor, de economias ou reducções operadas em despezas ordinarias e improductivas. As differenças, se existem ou se convem arranja-las, hão de, em todos os casos, provir da mesquinhez com que vão ser dotadas as obras publicas (apoiados).

Não me é facil agora, nem mesmo o comporta a discussão na generalidade, entrar em apreciações de methodo, ou dar opinião sobre as alterações que se encontram no ministerio das obras publicas, comparando o orçamento, que estou analysando, com o do anno corrente, que não chegou a ser approvado. E a respeito deste orçamento, note a camara, que o meu proposito não é defende-lo. Refiro-me algumas vezes a elle, porque necessito responder aos argumentos do nobre ministro que, por mais de uma vez, no seu relatorio, para encarecer as suas importantes reformas, allude ou faz insinuações a um projecto ou proposta de orçamento, que não chegou a ser lei do estado (apoiados).

Ha verbas ordinarias no orçamento do anno futuro que figuram como extraordinarias no outro, e ha n'este despezas ordinarias que não figuram n'aquelle nem como ordinarias nem como extraordinarias; tal é a verba da engenheria civil na importancia de perto de 200:000$000 réis. Mas para chegar a uma conclusão pratica, deduzida da comparação dos dois orçamentos, basta-me confrontar a despeza no ministerio das obras publicas. A despeza total, ordinaria e extraordinaria, do orçamento do governo é de réis 3.030:988$479, verba que tambem não justifica os intuitos dos srs. ministros em fazer contas redondas; e a mesma despeza no orçamento, que não foi approvado, é de réis 3.964:414$553. A differença para menos no orçamento futuro é de 935:426$074 réis.

Ora, como não ha economias e reducções no serviço ordinario que me constem, nem a engenheria civil ha de ser supprimida, apesar de não ter verba, ás claras, no orçamento, segue-se que uma parte importante dos trabalhos publicos é que vae ser supprimida (apoiados); e se o não for, teremos um deficit muito maior. Se o governo emprehender trabalhos publicos em larga escala, como nos annuncia nos seus programmas, havemos de ter augmento de deficit, e até graves perturbações dentro do orçamento, pelo sacrificio de verbas umas ás outras. Talvez mesmo não esqueçam os suppostos casos de força maior para fabricar moeda. Ha de haver de tudo. Haverá divida fluctuante, essa futura divida fluctuante, que nascerá infallivelmente no mesmo dia em que for sepultada sua irmã, que está já, sem remissão, condemnada á morte. Teremos emissão de titulos de divida publica, cujos encargos hão de pesar, por algum tempo, sobre nós, antes de se obterem meios especiaes que lhes façam face. Póde o governo propor ao parlamento que lhe dê meios, em vista de um projecto que ha

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pouco foi votado por nós para occorrer aos encargos da emissão de novos titulos; póde o parlamento votar-lh'os; mas o desequilibrio que d'aqui ha de provir durará, pelo menos, em relação a um anno ou a um orçamento, porque os impostos levam tempo a discutir, votar, distribuir e arrecadar. Será facil semear; mas recolher, ha de ser mais difficil (apoiados).

«No calculo das receitas, diz o relatorio, é que as precisões do orçamento foram mais modestas com receio de exagerar.» Eu não condemno a modestia, mas prefiro a exactidão ou as probabilidades fundadas. Na condemnação dos orçamentos vale mais a exactidão do que a modestia, sentimento aliás digno e muito apreciavel em qualquer homem publico. E afianço ao nobre ministro que podia avolumar certas verbas de despeza sem escrupulo de exagerar. Para não accumular exemplos, citarei, por agora, só um.

A receita da alfandega municipal de Lisboa é computada no orçamento em 1.º 90:662$407 réis, receita já de si inferior á que figura nos mappas estatisticos do ultimo anno economico, na importancia de 1.109:621$948 réis. Mas a questão não é esta, porque a differença que se nota provém de figurar o producto do pescado em Lisboa, que se recebe agora por aquella casa, em outra verba do orçamento, onde está representada toda a receita do pescado do reino.

Se s. ex.ª tivesse notado a differença de 139:140$000 réis que se dá entre o rendimento de 1863-1864 e o rendimento de 1864-1865, veria que procede em grande parte do imposto sobre os cereaes estrangeiros. Com effeito se abatermos dos 139:140$000 réis, pouco mais de 17:000$000 réis que produziu o pescado nos primeiros seis mezes do anno civil de 1865, cobrados pela alfandega municipal, em virtude da ultima reforma das alfandegas; se abatermos perto de 50:000$000 réis, devidos ao augmento de despacho de liquidos e cereaes, o resto ou perto de 82:000$000 réis provém do imposto especial sobre os cereaes estrangeiros, creado por decreto do 11 de abril de 1865, que só começou a vigorar, creio eu, no principio de maio do mesmo anno. E a respeito d'este decreto é já tempo de o homologar (apoiados). Salvas as alterações de que precise, é urgente confirma-lo por lei (apoiados). Não podemos nem devemos continuar por mais tempo n'este estado provisorio e excepcional (muitos apoiados).

Não digo mais nada ácerca d'isto, porque não quero offender ninguem. As condições ou circumstancias especiaes em que foi publicado aquelle decreto são mais uma rasão para sairmos d'este estado indefinido e entrarmos no estado normal (apoiados).

Ora, como este decreto só começou a vigorar nos fins de abril ou principios de maio, os 82:000$000 réis são apenas a receita de dois mezes escassos, quer dizer, de maio e junho, proveniente do imposto sobre os cereaes estrangeiros. Já se vê pois que se não ha o proposito de prohibir a importação ou de supprimir o imposto, não seria exagerar se se computassem mais 150:000$000 réis, ou pelo menos réis 100:000$000 no rendimento futuro da alfandega municipal.

Para prova d'esta minha asserção, basta comparar a receita dos ultimos oito mezes do corrente anno economico, quer dizer, desde 1 de julho até 28 de fevereiro passado, com a de igual periodo do anno anterior, em que não houve importação de cereaes estrangeiros; a primeira é de réis 821:955$242; a segunda é de 680:960$263 réis; a differença a mais nos oito mezes do corrente anno é de réis 140:994$979. Esta differença procede em grande parte, do imposto especial sobre os cereaes. Estas apreciações não são materias de opinião; deduzem-se de factos, elementos estatisticos dos mappas que se publicam mensalmente no Diario de Lisboa, ácerca do rendimento das nossas tres principaes alfandegas.

Estou já adivinhando a resposta que o nobre ministro ou o illustre relator da commissão me ha de dae. «Pois eu havia ir de encontro ao regulamento geral de contabilidade, que me manda no artigo 24.º calcular o futuro rendimento pela receita do ultimo anno?» Pobre regulamento! responderei eu. Tem sido esquecido em todas as suas disposições; mas servirá, pelo menos uma vez, para desculpar lapsos ou encobrir propositos que se sobredoiram com o pretexto da modestia! Se o sr. ministro augmentando o futuro rendimento da alfandega municipal e outros que estão no mesmo caso, dissesse francamente no seu relatorio que se afastava n'este ponto do regulamento, porque é inexequivel a respeito de certos rendimentos, apesar do artigo 33.º, que, se não completa, é antinomico com o artigo 24.º: eu, sem entrar na interpretação dos artigos, daria rasão a s. ex.ª O unico ponto, pois, em que s. ex.ª teria fundamento para saír do regulamento, foi aquelle em que o seguiu á risca.

Demais, sr. presidente, este facto de diminuir o calculo das nossas receitas, se é perfeitamente innocente emquanto ás intenções do governo, não é inoffensivo quanto aos resultados. Diminuir as receitas é augmentar o deficit. O paiz precisa saber qual é o seu deficit real, tanto quanto é possivel sabe-lo. Quando lhe pedirem dinheiro, quer saber quanto deve. Não augmentemos o deficit, diminuindo por modestia as nossas receitas; augmentemo-lo, sim, fazendo figurar no orçamento da despeza verbas sonegadas que lá não estão, como são os encargos do contrato Salamanca e outros.

Sr. presidente, continuando a folhear o relatorio que precede o orçamento, deparei, com grande pasmo e assombro meu, com um quarto deficit. Fiquei realmente bastante perturbado. O meu espirito é um pouco methodico, e eu queria, á força, classificar o novo deficit. Tinhamos o deficit provisorio, o meio provisorio e meio definitivo, e o deficit definitivo. Depois de um deficit definitivo é realmente querer apurar a paciencia, e pôr em torturas o espirito investigador de cada um, obrigando-o a inventar um nome para baptisar uma cousa que se atira anonyma e de surpreza para o publico. Mas tanto barafustei, sr. presidente, que encontrei o meu eureka. Achei o nome. É o deficit arredondado. Se o vocabulo definitivo tivesse superlativo, usado na nossa lingua, te-lo-ía preferido, porque em materia de deficit o superlativo é o menor, porque o menor é o melhor; mas como eu não tenho auctoridade para estender palavras, saí-me da difficuldade pela feliz inspiração de que acabo de dar conta á camara. O quarto deficit é pois de 4.600:000$000 réis. E aqui está achada a chave de um enigma que ainda não tinha podido decifrar. O relatorio tinha-nos logo a principio annunciado sommas redondas, e eu ainda não pôde encontrar senão fracções. Era preciso justificar o novo methodo financeiro. Foi o papel que se distribuiu ao deficit arredondado.

Sr. presidente, se ha creações de espirito, é realmente o quarto deficit. Não digo que sejam absolutamente inexactas ou falhas de todo o fundamento certas apreciações que se fazem no relatorio para chegar a este resultado; o que digo é que os variados processos que o nobre ministro empregou, as analyses a que desceu, e as comparações que forçou revelam claramente a luta que houve entre o presentimento da verdade, e a necessidade politica ou financeira de arredondar um deficit de 4.600:000$000 réis. E senão vejamos.

Diz o relatorio (leu). Ora realmente não é assim que se devem calcular despezas e deficits. Suppõe o sr. ministro, dadas certas hypotheses, que no primeiro semestre do anno economico, em que nos achâmos, se gastaram 10.320:734$744 réis; e suppondo tambem que se deve gastar igual quantia no semestre em que estamos, dá-nos uma despeza em todo o anno de 20.641:469$488 réis. É um calculo facil, multiplica-se a primeira verba por 2, e está tudo feito. Suppondo agora que no anno futuro se gasta igual quantia, temos o deficit, resultante da confrontação da receita com a despeza. De sorte que o deficit provavel do orçamento já não é o resultado das receitas e despezas calculadas, ou d'aquellas para que se pedem auctorisações, nas propostas de lei de receita e despeza. O deficit agora deriva das supposições que cada um queira fazer. Por esta fórma nunca é possivel haver um deficit approximado da verdade.

A camara sabe quaes são os meios que o governo destina para fazer face ao deficit até quasi aos fins de janeiro de 1867. É a receita de quasi 3.000:000$000 réis, provenientes do contrato de 14 de outubro ultimo, e o beneficio que nos ha de advir da consolidação da divida fluctuante com penhor. O nobre ministro, respondendo na ultima sessão ao illustre deputado que encetou o debate sobre o orçamento, disse-nos aqui que = estes meios não eram phantasticos, eram reaes e effectivos =.

Peço licença a s. ex.ª para não acreditar absolutamente na realidade d'esses meios. Acredito nos 3.000:000$000 réis; mas nos beneficios que hão de vir ao thesouro dos 1.120:000$000 réis provenientes da consolidação da divida fluctuante, posso deixar, de acreditar. Não sei quaes serão as oscilações que se darão no nosso mercado quando se lançarem para a praça 16.000:000$000 réis de inscripções. Se o seu valor baixar, o beneficio não será tão grande como s. ex.ª suppõe.

Não faço mais extensas observações, sobre esta operação financeira, e restrinjo-me a desejar que seja prospero e venturoso o governo n'estas suas previsões, porque a final de contas quem lucra é o paiz.

Saíndo exactos os calculos do relatorio, ficam a descoberto, desde janeiro até junho de 1867, dois mil e alguns contos mais. Quaes são os meios que se apresentam para saldar aquelle deficit? Nenhuns!

Sr. presidente, é talvez esta a primeira vez, depois que ha entre nós systema constitucional ou orçamentos regulares, que apparece um deficit sem recursos para o equilibrar. Até n'este ponto foi esquecido ou esbulhado nas suas loucas pretensões o infeliz regulamento geral de contabilidade, que ensina, no artigo 42.º, os meios de que se deve lançar mão para supprir a differença entre a receita e a despeza.

E a respeito do regulamento geral de contabilidade, sejam-me permittidas ainda duas palavras. Convem saber se este regulamento é ou não lei do estado. Vejo-o alterado em tanta parte, sem nem a elle se alludir, nem da revogação de seus artigos se fazer especial menção, que é permittida a duvida se o dito regulamento está ou não em vigor. O exemplo que acaba de nos dar o relatorio será ou não argumento para que qualquer funccionario, repartição ou corpo do estado despreze ou deixe formalmente de cumprir uma prescripção qualquer do citado regulamento? É um ponto que desejo ver esclarecido pelo nobre ministro da fazenda.

Voltemos porém ao deficit dos 2.000:000$000 réis. Se o governo não indica meios para o extinguir, não se esqueceu d'elles a commissão. A illustre commissão cortou por todos os receios e abusões; tomou o governo pela mão, subiu ao alto da montanha, e mostrou-lhe ao longe a terra da promissão. Tivera o governo a veleidade de vaguear por algum tempo no deserto; mas a prophecia que aqui lhe fiz na discussão do contrato de 14 de outubro ha de cumprir-se. O credito e as inscripções batem-nos ás portas! (Muitos apoiados.)

Os esforços de todos os ministros da fazenda em todos os paizes onde ha deficits applicam-se a desentranhar da propria pratica e sciencia financeiras, da consciencia do seu dever, e das serias obrigações que lhe impõe o cargo, os meios racionaes de saldar o deficit. Entre nós aconselha-se o estudo, convida-se á propaganda, appella-se para o tempo; mas esquece fazer parar o sol, como fez Josué. Se nós podessemos adormecer ou hybernar por alguns mezes, se conseguissemos supprimir os negocios publicos, o movimento e trafego da vida social, a acção do tempo e as despezas impreteriveis do thesouro; se nos fosse dada a magica trombeta que fez caír aos seus sons estas verdadeiras muralhas de Jericó, seriam aceitaveis os conselhos. De outro modo não vejo rasão para render graças a Jehovat ou pedir a corôa civica em premio de um grande serviço.

Sr. presidente, não sei se os homens d'estado, se os, chefes politicos, se os chefes de partido do meu paiz, têem ou não obrigação, quando estão na opposição, de confeccionar projectos, ou de elaborar propostas para apresentar, ao parlamento, quando são chamados ás regiões do poder. O que eu sei é que os partidos, quando o são, têem idéas fixas, e principios determinados; e que os chefes, quando estiveram por muitos annos accusando situações, atacando medidas, e revelando a maneira de as substituir, vindo ao poder, tinham obrigação de fazer (senão tudo) pelo menos alguma cousa (apoiados).

Sr. presidente, dou sinceros e cordiaes parabens ao nobre ministro da fazenda, por ter arvorado e levantado tão alto a velha bandeira das economias, que em outro tempo tão desprezada, injuriada, ridiculisada e insultada foi.

Saudo sempre com emoção essa bandeira, porque foi a de um partido a que sempre pertenci!! Ainda não ha muito tempo, aqui n'esta casa, assistiu o paiz a uma luta travada principalmente entre dois distinctos membros do parlamento (nenhum dos quaes era então ministro), a respeito da celebre questão das economias; atacaram se e defenderam-se com denodo as economias (apoiados); e atacaram-se como atacam os chefes de partido, quando têem voz auctorisada, como é a do illustre caudilho, a quem me estou referindo.

S. ex.ª fallava em nome da sua escola, e defendia calorosamente o seu passado.

Não censuro hoje o sr. ministro das finanças, pela sua rapida conversão; dou-lhe apenas os meus cordiaes parabens.

Sr. presidente, o deficit é uma cousa bastante séria nas finanças do paiz. Despreza-lo é pôr em sobresalto a opinião, e dar logar a graves apprehensões na consciencia da nação.

O povo, a sociedade, precisa respeitar, e ter confiança na entidade — governo; derivam d'aqui os principaes elementos da segurança e ordem publica. Urge sempre ter tranquilla a nação, e mostrar-lhe que os homens d'estado têem a peito resolver as grandes difficuldades da governação, ainda que nem sempre sejam os melhores, os alvitres que cada qual apresenta. E n'este caso está o deficit.

Tenho sido longo de mais, e sinto necessidade de concluir, porque estou fatigado, e a camara deve-o estar tambem. Não posso porém terminar sem fazer algumas observações a respeito do parecer da commissão de fazenda.

Só por incidente tenho a elle alludido, e a rasão é muito simples.

Para mim o programma do governo está no relatorio do governo, e nas considerações n'elle expendidas. Tenho por muito sensatas e judiciosas as observações da commissão, nem outra cousa havia a esperar da illustração dos cavalheiros que a compõem. Mas as opiniões da commissão podem não ser as do governo, porque n'estas materias basta haver accordo quanto ás conclusões. Creio não haver n'estas palavras offensa a alguem. Nem em mim podia haver tal proposito. Respeito collectivamente a illustre commissão; estimo individualmente cada um dos seus membros, e até de alguns tenho a honra de ser amigo ha muitos annos.

Vozes: — Deu a hora.

O Orador: — Não sei se deu a hora.

Vozes: — Não deu ainda.

O sr. Presidente: — Faltam dois minutos.

O Orador: — Se v. ex.ª me desse licença e a camara m'o consentisse, eu ficava com a palavra para ámanhã (apoiadas).

Não posso concluir hoje e incommodaria muito a camara se pretendesse faze-lo. Pedia este favor (apoiados).

O sr. Presidente: — Fica com a palavra reservada para ámanhã.

Vozes: — Muito bem. — Apoiados.

(O orador foi comprimentado, no fim do seu discurso, por um grande numero de srs. deputados de todos os lados da camara).

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