O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

739

Em virtude, da resolução da camara dos dignos pares do reino se publica a seguinte representação

Dignos pares do reino. — O cabido da sé cathedral de Leiria, lendo o relatorio e projecto de lei apresentado n'essa camara para a desamortisação dos bens da igreja, viu com profunda magoa que nelle se pretende effectuar este importante negocio sem o concurso e consentimento da mesma igreja; e não póde deixar de vir protestar perante vós contra tal pretensão,.como protestou já perante a camara dos senhores deputados, porque entende que deve á igreja esta demonstração, e á sociedade este publico testemunho dos seus sentimentos; declarando ao mesmo tempo que os argumentos adduzidos para fundamentar tal projecto em nada vieram abalar, o juizo e sentimento d'esta. corporação.

Fundam-se estes argumentos: uns na historia, que se diz favorecer tal pretensão, outros em disposições de direito canonico, outros parece querer deduzirem-se da philosophia do direito; e outros finalmente tem por base o interesse e conveniencia da mesma igreja. Não pretendemos fazer uma refutação completa de taes argumentos porque nem este papel a comporta, nem a esclarecida illustração dessa camara a precisa, mas não podemos deixar de tocar de passagem algumas rasões que destroem á primeira vista os argumentos allegados, para justificarmos o nosso procedimento.

A historia não favorece de modo algum a pretensão. Poderá ella mostrar que o poder civil, cioso e receiando as riquezas da igreja, cuida ha muitos seculos de contrariar a agglomeração d'essas riquezas, oppondo-lhe os estorvos que póde; e mesmo mostrará que por occasião de transtornos sociaes o estado se apoderasse por vezes desses bens violentamente. Mas taes factos não podem fazer direito, nem nunca o fizeram. Citam-se para serem evitados e nunca imitados. Foi para se não repetirem taes abusos que está escripto na carta constitucional. «É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude» e não para se renovarem ou aggravarem á sua sombra. E a historia não dá só conta d'esses abusos; tambem nos ensina que os motivos que havia n'outros tempos para o estado receiar das riquezas da igreja desappareceram inteiramente, porque a tal abatimento está hoje reduzida emquanto ao temporal, que nada ha d'ella a receiar, nem motivos para isso; que em muitos tempos e logares a igreja tem tido inteira liberdade de acção para adquirir e possuir; e que quando esta lhe era restringida, a mesma igreja considerou sempre esses actos como oppressivos e tyrannicos. Ensina-nos mais a historia que em todas as nações cultas, e mesmo entre nós, nunca o estado dispoz, em tempos normaes, dos bens da igreja sem consentimento d'ella; e que se alguma vez fez o contrario teve de recorrer á mesma igreja, pedindo sanação de taes irregularidades é abusos, que alem de serem anti-sociaes, são anti economicos, como a experiencia tem mostrado. Portanto a historia só fornece provas em favor da igreja nesta questão.

Emquanto ás disposições de direito-canónico estão ellas todas em opposição com o que se pretende. O mesmo capitulo IX De rer. permut. (3—19) allegado para auctorisar a permutação dos bens ecclesiasticos, exige alem da igualdade ou superioridade dos bens dados á igreja, a condição expressa, de communi voluntate, circumstancia que admira ter escapado á perspicácia da illustre commissão, e que torna o argumento contraproducente. E por todas as citações de direito canonico bastará allegar o capitulo XI de Ref. da Ses. xxil do Concilio Trindentino, admittido, e considerado como lei d'este reino, que fulmina com as censuras canonicas a toda e qualquer pessoa, que por qualquer modo tentar contra os bens ecclesiasticos. -

Os argumentos que parece deduzirem-se da philosophia do direito, reduzem-se a que o estado póde regular a propriedade, e portanto intervir na administração dos bens ecclesiasticos, que se querem considerar como cousa meramente temporal. Não ha duvida que o direito civil regula a propriedade, mas para que taes regulamentos sejam justos é necessario que sejam geraes, e que sejam fundados nos principios fundamentaes do direito, que tem por base, segundo as idéas modernas e de justiça, não o antigo direito eminente do estado sobre a propriedade, mas a liberdade da acção da sociedade em todas as espheras, bem regulada; e administração da justiça, mantendo-se cada um na posse do que lhe pertence; e não fazendo-se excepções odiosas condemnadas pela carta constitucional, que ordena que a lei seja igual para todos. A igreja por ser um corpo moral, não é menos capaz de direitos que qualquer individuo; é o mesmo projecto que o confessa, nem podia deixar de o confessar, portanto tem direito a ser comprehendida na lei geral, como qualquer individuo; e toda a excepção que se fizer contra ella será injusta e odiosa. Se o estado obrigasse todas as corporações e individuos a permutarem os seus bens por inscripções da junta do credito publico praticaria um acto injusto, mas ao menos igual: obrigar á isso só a igreja, contra sua vontade seria, alem de injusto, in constitucional e repugnante. Nem se compare a igreja com um hospital: este é um estabelecimento administrado, dirigido e sustentado pelo estado; aquella é Inteiramente livre e independente como sociedade completa e perfeita, que não está sujeita ao estado senão n'aquillo em que o estão todos os individuos da sociedade. E se por serem temporaes os bens que a igreja administra o poder civil tem sobre elles direitos, tambem os tem iguaes nos dos particulares, porque estes não são menos temporaes que aquelles.

Finalmente pretende-se sustentar o projecto pelas grandes vantagens que hão de resultar á igreja de taes medidas. Sem entrarmos na apreciação d'estas vantagens, de que ha bastante a desconfiar, por as não quererem seguramente para si os defensores do projecto, trocando os seus bens de raiz por papeis de credito; deixando pois taes apreciações, só notaremos que por dois unicos principios se poderia o estado ingerir, nos negocios da igreja, ou por direito proprio, ou por direito de protecção. Mas por direito proprio não; porque a igreja é uma pessoa moral capaz de direitos e obrigações como qualquer individuo, e tão independente do estado como elle. E com effeito é facto incontestavel e constante que nos paizes em que não ha religião do estado, este não intervém nem se intromette na vida e negocios das differentes sociedades religiosas; portanto só a titulo de protecção é que o estado pretenderá regular os negocios da igreja. Mas que se dirá de uma protecção dada sem ao menos querer consultar a vontade do protegido?... Dir-se-ha que tal protecção é uma verdadeira oppressão, e" que a igreja é mais livre e feliz nos paizes não catholicos do que n'aquelles que o são.

Confiámos, senhores, que pela vossa profunda prudencia, esclarecida illustração e piedade se não dará um escandalo tal n'um reino que se intitula fidelíssimo; e nós da nossa parte temos cumprido um dever que nos dieta a consciencia, sem outro algum fim ou interesse senão satisfazer ao que julgâmos uma obrigação sagrada.

Leiria, em cabido de 8 de março de 1861. = O deão, João Pereira Botelho de Amaral e Pimentel. = O chantre, Antonio Ferreira Miranda Oliveira. = O conego, Theodoro Ferreira e Silva. = O conego, Carlos de Santa Posa Lemos. = O conego, Antonio do Patrocínio Goes. = O conego, Antonio Dias da Silva = O conego, Urbano José Ferreira.

O conego, José Venancio Cardozo. = O conego, Rodrigo Pedro de Oliveira.