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Os seguintes discursos pertencem á sessão do dia 20 do corrente mez, e publicada no Diario de Lisboa n.° 116, de 23 de maio corrente, que na occasião opportuna se não estamparam por não terem sido devolvidos á respectiva repartição pelo digno par.
O sr. Ferrer; — Pedi a palavra para dizer que, como a minha interpellação esta de certo modo ligada com a do sr. marquez de Sá, é necessario que a camara saiba que o sr. ministro dos negocios estrangeiros, segundo o que acaba de dizer, não recebeu ainda copia da minha, e por isso é impossivel que eu hoje a verifique. Quando s. ex.ª receber a referida copia, e estiver habilitado para responder, então teremos occasião de trocar algumas considerações importantes, que dizem respeito á interpellação annunciada.
O sr. Ferrer: — Sr. presidente, como vi que alguns membros da commissão tinham assignado com declaração o parecer, desejava ouvi-los primeiro.
Uma voz: — Isso é na especialidade. O Orador: — N'esse caso usarei eu da palavra na generalidade.
Sr. presidente, não sei por que fatalidade não póde saber o objecto que hoje se discutia, o por isso não trouxe os apontamentos que tinha colligido a este respeito; no entretanto como o projecto esta em discussão, sempre farei algumas breves reflexões a este respeito.
Principiarei por declarar, e a camara sabe-o muito bem, que eu fui um dos que n'esta casa defendi a lei hypothecaria; por essa occasião mostrei a necessidade de se separarem bem os bancos agricolas dos bancos hypothecarios; convenci-me da alta conveniencia tanto de uns como dos outros, e confesso que principiei a estudar a materia relativa aos bancos agricolas, tencionando ver se podia elaborar um projecto de lei a este respeito.
Estudei, sr. presidente, por bastante tempo; li creio que tudo o que se tem escripto sobre este assumpto; meditei e ruminei bem o que li, e a final cheguei á tristissima conclusão de que, no estado actual da sciencia tanto economica como juridica, os bancos agricolas eram uma cousa impossivel. Uma cousa impossivel, sr. presidente, não porque deixe de ser reconhecida a sua utilidade, como disse, mas porque não podem encontrar-se garantias efficazes, justas e conforme com os principios economicos para os bancos agricolas como ha para os bancos prediaes ou hypothecarios.
Sr. presidente, não venho fazer opposição ao governo; as questões politicas têem o seu cabimento em outras materias. N'estas questões economicas porém entendo que o governo deve considera-las como os inglezes — questões abertas; isto é, em que todos emittem a sua opinião franca e lealmente, sem attender á politica. E assim que eu encaro a questão, depondo perante a camara o producto de uma convicção muito meditada, que me prohibe de ficar silencioso em uma materia de tanta importancia.
Sr. presidente, quando o sr. ministro das obras publicas annunciou este projecto, eu disse para mim, que um homem de tanto talento e tão trabalhador como s. ex.ª é, annunciando um projecto d'estes, tinha de certo descoberto o modo de acabar com as difficuldades que têem encontrado os economistas e jurisconsultos sobre este objecto até hoje, e que teria eu o gosto de dar os parabens a esta nobre terra de Portugal pela descoberta; desgraçadamente porém as difficuldades, que não têem sido debeladas pelos economistas, tambem as não venceu o governo, e não só as não venceu o projecto, mas muito menos foram vencidas pelas emendas da commissão; isto é, entendo que o projecto esta peior em virtude das emendas da commissão do que o estava pelas doutrinas n'elle consignadas primitivamente.
Sr. presidente, toda a questão esta em descobrir garantias sufficientes e justas, de modo que os capitaes dos bancos se não percam. Eis a grande difficuldade!
Se todos nós entendemos que era de uma grande conveniencia para a agricultura o estabelecimento dos bancos hypothecarios para ajudar os lavradores propritarios, porque não havemos de entender que são de uma alta conveniencia os bancos agricolas para ajudar o rendeiro a cultivar melhor as terras que tomou de renda? Se me opponho ao projecto 'não é por não ser louvavel a intenção do sr. ministro; mas é porque a sciencia não disse a este respeito a sua ultima palavra; ainda não se poderam vencer as difficuldades que têem encontrado todos os escriptores.
Sr. presidente, vamos a ver quaes são as garantias que o sr. ministro descobriu e apresentou no seu projecto para que os bens das confrarias e irmandades, convertidas em bancos agricolas, se não percam? São ellas a consignação ou deposito dos fructos futuros, utensilios e gados, e a prisão.
Principiarei pela principal, ou antes unica garantia efficaz— a prisão.
Esta garantia que o sr. ministro apresenta é na verdade efficassima, porque o receio da prisão ha de fazer com que o rendeiro devedor ao banco não se entregue ás fraudes e delapidações dolosas dos bens consignados para segurança do capital; mas, sr. presidente, por mais que se queira dizer, nunca se poderá provar que a consignação ou deposito dos fructos, dos gados e dos utensilios, como garantia, conservando-se estes bens em casa dos rendeiros devedores, é o mesmo do que se estivessem em casa de um fiel depositario. O fiel depositario é depositario de cousa alheia que se lhe entrega, nós aqui estamos em uma hypothese contraria, pois fica de posse do que é seu. O fiel depositario está entregue de uma cousa que existe, e na consignação dos fructos ha apenas uma esperança que póde faltar por mil modos.
Na verdade, sr. presidente, estão consignados os fructos, os gados e os utensilios; mas os fructos futuros são apenas uma esperança que póde falhar peias esterilidades e molestias das oliveiras, vinhedo, soutos, batataes, etc. os gados podem desapparecer com a epizootia, e os utensilios podem ser consumidos pelo fogo, e até" pelo uso, de modo que a consignação de todos estes objectos é uma cousa muito precaria, e podem elles casualmente, sem culpa do devedor, deixar de existir, e por isso sem elle ser responsavel.
Ora, sr. presidente, se não estâmos realmente no caso do infiel depositario, pelas rasões que já apresentei, se no caso da consignação dos objectos, elles se podem perder sem culpa nenhuma do devedor, como é que se ha de tornar responsavel e ser preso o rendeiro como infiel depositario? Isto não póde ser. A sciencia do direito não o permitte.
Sr. presidente, de que se trata? Trata-se dos seareiros ou dos rendeiros, trata-se dos homens que, não tendo propriedades, cultivam terras alheias, e que têem por unico agente da sua fortuna o trabalho do seu braço. Mettei-o na cadeia. Não póde pagar com os bens consignados ou depositados, porque pereceram casualmente sem culpa d'elle; nem póde ganhar para pagar, porque se acha preso. Eis as rasões por que as nossas leis ha muito tempo aboliram a prisão por dividas, que a França ainda agora trata de abolir. O sr. ministro quiz crismar esta prisão por dividas com o nome improprio de prisão de infiéis depositarios. Non sermoni res, sed rei est sermo subjectus. Aqui tem a camara em poucas palavras porque a prisão n'este caso é injusta e anti-economica, ou se funde na ficção dos infiéis depositarios do projecto, ou na outra ficção do flagrante delicto da commissão. E vou mostrar já que n'este caso o flagrante delicto é realmente uma ficção tambem.
A illustrada commissão que rejeitou a prisão por dividas, posto que baptisada com o falso nome de prisão de infiéis depositarios, admitte-a na sua substituição, baptisando-a tambem com outro falso nome de flagrante delicto. Flagrante delicto depois de passados dez dias marcados para o pagamento ao devedor.' Transtorno de todas as idéas juridicas! O flagrante delicto dá-se emquanto o réu pratica os factos do crime e é encontrado n'esse acto, ou consecutivamente correm atraz d'elle os agentes da policia que viram os actos do crime. Como póde pois o réu ser preso em flagrante delicto passados mezes e talvez annos, quando deixa de pagar passados os taes dez dias, visto que o contrato com o banco póde ser por seis annos? O flagrante delicto sómente poderia juridicamente considerar-se no acto do réu destruir ou dilapidar dolosamente os bens consignados ou depositados, mas nunca tão tarde como quer a commissão. Cousa admiravel! A illustrada commissão rejeitou uma ficção e caiu n'outra peior. O sr. ministro, que não é jurisconsulto, ainda tem desculpa, porém os jurisconsultos da commissão deviam lembrar-se de que a lei de 18 de agosto de 1769 e os estatutos da universidade ha muito que baniram do nosso direito as ficções romanas, alheias da verdade, absurdas e inadmissiveis. A commissão pois inciãit in Scillam, cupiens vitare Carybdinem.
Rejeito pois o projecto pela injustiça intrínseca da prisão, e rejeito a substituição da commissão por igual vicio intrinseco, e o que e peior porque as regras de que reveste a prisão são todas de encontro aos principios de philosophia de direito e da sciencia de legislação. E pior a emenda do que o soneto, como se costuma dizer.
Para que se metteu, n'uma lei de bancos, a commissão a regular o processo criminal? Deixe este negocio ao direito commum. Cuide sómente das garantias dos bancos. N'esta parte andou mais avisadamente o projecto do governo.
Sr. presidente, em materia de bancos o que se pretende é a segurança dos bancos e a rapidez dos meios para o pagamento, e a commissão em logar da rapidez da prisão dos infiéis depositarios, estabeleceu a prisão em flagrante, acompanhada de um processo e talvez de dois, processo para se decidir se houve cansas justas, e processo de querê-la e accusação, delongas, custas e outras despezas para os bancos e para os réus. No projecto ha o mal da prisão, na substituição ha esse mal aggravado com outros males gravissimos.
Ha na materia da commissão uma grande lacuna. Quem ha de querelar e accusar? Ha de ser o banco ou o ministerio publico? Não se diz. E é preciso que se diga. E é tanto mais necessario, porque na verdade não se sabe se o processo é crime ou civel. Parece crime pela pronuncia o accusação, e civel porque se extingue pelo pagamento. E como Christo, que tem duas naturezas, divina e humana. E o monstro de Horacio tão disforme — ut nec pes, nec caput, uni reãdatur formae.
Na verdade, sr. presidente, segundo o parecer da commissão, este processo tem duas naturezas — a civil e a criminal; porque, se o devedor não pagar durante elle, o processo continua como crime pela pronuncia e accusação até á execução da sentença e applicação da pena. Se paga antes da sentença, acaba o processo; e o que é mais, qualquer procedimento. Mas, se pagar depois da sentença, não acaba o processo para não obstar ás attribuições do poder moderador, como diz o relatorio da commissão.
Eu, sr. presidente, declaro com toda a franqueza que não comprehendo a natureza d'esta especie de Proteu com duas caras — civel e crime. Ou elle ha de ser crime, e não póde acabar pelo pagamento sem o réu soffrer a pena do delicto, ou é civel e não póde haver querela e accusação, nem pena. Mas o poder moderador?
Ora, sr. presidente, para que se falla em poder moderador no relatorio da commissão tratando-se de um processo que o réu acaba pagando? Como é que o pagamento acaba o processo antes da sentença e o não acaba depois? Muda elle de natureza pela sentença, ou deriva aquella do caracter intrinseco dos actos que fazem o seu objecto?
Sr. presidente, se a commissão entende que o processo deve cessar logo que o devedor pague, para que pretende que o processo continue e o crime subsista, quando o devedor paga depois da sentença passada em julgado? O réu tambem é poder moderador antes da sentença, depois d'ella é o rei. Temos dois poderes moderadores! Temos novo acto addicional da carta constitucional!
A doutrina da commissão contém muitas regras que carecem de grande desenvolvimento, sem o qual os juizes terão um arbitrio illimitado, que é necessario coarctar com toda a clareza. Vejamos o que diz a commissão.
«Será preso immediatamente se dentro do praso de dez dias não pagar ou não apresentar cousa justa e legitima que justifique a sua falta.»
Eu desejava que me dissessem o que quer dizer este immediatamente? Que significação tem? Acabou-se, por exemplo hoje ao meio dia, o praso dos dez dias, em que o devedor não pagou, deve ser preso dentro de algumas horas, ou poderá se-lo dentro de alguns dias, de alguns mezes ou de uns annos. Até onde se estende o espaço de tempo, e quem o ha de definir? Naturalmente o arbitrio do juiz. Por con-