O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

802 DIARIO DA CAMARA DOS DIGXOS PARES DO REINO

« Todo aquelle que viola ou offende os direitos de outrem constitue-se na obrigação do indemnisar o lesado por todos os prejuizos que lhe causa.»

«A responsabilidade criminal consiste na obrigação em que se constituo o auctor do facto ou da omissão de submetter-se a certas penas decretadas na lei, as quaes são a reparação do damno causado á sociedade na ordem moral. A responsabilidade civil consiste na obrigação em que se constituo o auctor do facto ou da omissão de restituir o lesado ao estado anterior á lesão e de satisfazer as perdas e damnos que lhe haja causado.»

E nem o sr. conde, nem a companhia da Beira Alta, foram os auctores da morte do João Simões, victima de um desastre e não de um acto voluntario do alguem, ou, pelo menos, mandado pelo sr. conde ou pela administração da companhia.

Eu comprehendo, meus senhores, que na mente de todos se formula n’este momento naturalmente uma pergunta: pois se tudo é assim entre os homens de lei, e se esses pontos são correntes e fundamentaes na jurisprudencia, como se póde explicar que chegasse a vir a esta camara um processo judicial, como este, pedindo-se uma responsabilidade criminal, quando, a haver alguma, o que mesmo se nega, só poderia ser a responsabilidade civil?

Esta pergunta tem a sua cabal resposta no processo, e é com o processo na mão que eu vou dal-a ao tribunal.

Eu desejo que se não veja nas minhas palavras, o que nunca estaria nas minhas intenções, qualquer offensa, seja a quem for, e muito menos para o digno magistrado que sustenta a accusação, pessoa por quem tenho o maximo respeito e estima, folgando de ter esta occasião de publicamente o testemunhar.

A verdade, meus senhores, é que a pronuncia do sr. conde, a sua intrusão n’este processo, é um verdadeiro disparate; e se aqui está hoje perante nós, deve-se isso ao seguinte.

As justiças da pronuncia procederam com toda a actividade e diligencia na investigação criminal; chegaram, porém, á conclusão de que o facto tinha sido inevitavel e não imputavel, a quem quer que fosse. Verificou se que um homem surdo, quasi cego e com oitenta annos se tinha, mettido na linha ferrea e havia sido colhido por um comboio, sem que culpa alguma houvesse da parte do machinista. E n’este ponto peço vénia ao sr. juiz relator para completar uma parte do facto, que ficou omissa. S. exa. disse que havia sido n’uma curva da linha ferrea que o João Simões fôra morto, quando a verdade é que no logar era que se deu o desastre havia ainda mais de 1 kilometro de linha recta. Ha tambem ainda uma outra circumstancia importante que ficou no olvido. João Simões foi colhido pelo comboio; a machina bateu-lhe na cabeça, arremessou-o ao chão, e pouco distante parou; mas o cadaver ficou estendido na linha, inteiro; não foi despedaçado; apenas havia uma fractura no logar onde incidiu o choque.

V. exas. comprehendem que, se o comboio não viesse já sem vapor, e só com a velocidade adquirida, as cousas não se teriam passado assim: a machina não iria parar a pouca distancia; o cadaver teria sido esmigalhado e expungido para longe.

O facto é, meus senhores, que o machinista assim que, a mais de 1 kilometro, viu o velho, começou logo dando todos os signaes com o apito da machina, e não só diminuiu o vapor, mas fez até contra-vapor, e apertaram-se os freios do comboio; de modo que já não havia senão a velocidade adquirida, que se não podia sopear, quando o trem chegou ao João Simões.

Portanto, se elle não fosse cego, surdo e octogenario, ter-se-ia afastado a tempo e o desastre não se teria dado. Na comarca da primeira instancia todos estes factos foram investigados e apprehendidos judicialmente, digamos assim, até á ultima molecula, Foi então que o delegado do procurador régio dirigiu á direcção da fiscalisação do governo junto da companhia uma serie de quesitos. Ora esta direcção é sapientissima em cousas de engenheria, em todas que pertencem á sua arte; mas naturalmente não sabe das de direito e de leis.

D’aqui proveiu que o engenheiro da fiscalisação, no officio dirigido em resposta ao do delegado, não só lhe disse o que entendia sobre a parte technica, mas, intromettendo-se na parte legal, escreveu estas textuaes palavras: «O responsavel por esse accidente é o engenheiro director da companhia dos caminhos de ferro da Beira Alta, actualmente o sr. conde do Gouveia».

E, logo, sem mais nem menos, com estas indicações do officio, se lançou a pronuncia e se formulou a accusação!

Se v. exa. está aqui, sr. conde, não foi o juiz de direito que o indiciou; verdadeiramente v. exa. foi pronunciado pelo sr. engenheiro director da fiscalisação governativa. Não foram os tribunaes; foi aquelle officio que designou qual o responsavel perante a lei; erro de direito, que devemos perdoar, porque aos engenheiros não impende a obrigação de saber do direito e direito tão especial e difficil.

A accusação cita o decreto de 31 de dezembro de 18G4, Esse decreto é a unica lei portugueza sobre as responsabilidades provenientes dos accidentes na exploração das vias ferreas. Encerra esse diploma disposições preliminares, transitorias, relativas á epocha da construcção dos caminhos de ferro, e em seguida vem as, que se referem propriamente ao tempo da exploração. É n’esta parte que se encontra o artigo 20.° adduzido pelo ministerio publico.

Fazendo parte de um decreto, que é um diploma de valor legislativo, assignado por um dos nossos mais notaveis ministros, não era possivel que elle contivesse uma imputação de responsabilidade criminal applicavel ao caso presente. E não contém; este artigo não é mais do que a repetição dos principios de direito que citei ao comprovar a illegitimidade do sr. conde:

a Se occorrer, diz esse artigo, accidente, de que resultem offensas corporaes, ferimentos ou morte, serão punidos segundo a respectiva culpabilidade, nos termos do codigo penal: 1.° Aquelles que involuntariamente commetterem ou forem causa d’esses crimes pela sua impericia, inconsideração, negligencia, falta de destreza, ou inobservancia das leis e regulamentos.»

Bastava a referencia aos termos do codigo penal, que são os que já expuz; mas ahi está a confirmação do principio fundamental da imputação individual, nas palavras aquelles que commetterem ou forem causa desses crimes.

Este decreto não tem, pois, applicação ao caso presente, em que não temos para julgar aquelle que commetteu o crime; esse, até, mostra-o o processo, não existe; pois que o accidente não teve auctor senão nas circumstancias materiaes, e a justiça não o achou nas pessoas. Não foi um crime, foi uma desgraça, um desasire.

A accusação tambem citou aqui o artigo 10.° do contrato entre a companhia e o governo; mas eu chamo toda a attenção do tribunal para e artigo 20.° n.° 1.°, que já 15, do decreto de I8G4; elle só pune o homicidio involuntario nos casos ahi declarados.

Logo mostrarei que não ha regidamento algum sobre o caso; mas, sem por ora entrar n’esse ponto, e tomando a accusação no campo em que se colloca, ella cae tambem n’esta parte ferida com suas proprias armas.

Sc o ministerio publico quer ver aqui a violação do artigo 10.° do contrato, como pretende e se abalança a uma accusação criminal?

A falta de cumprimento de uma clausula de um contrato e demais até bilateral, como este é, só póde dar logar á acção civil; nunca á criminal. Isto é corrente em direito e está expresso no artigo 2393.° do nosso codigo civil:

«A responsabilidade proveniente da não execução dos