2 DE DEZEMBRO DE 1961 25
de expressiva admiração. Mas parece ter deixado indiferente a grande maioria dos povos que o voo de águia do infante sobre o grande mar oceano trouxe ao convívio das gentes civilizadas. Formam legião os almirantes e capitães que ao desafio da história levaram aquela resposta que em português se pronuncia Ourique, Aljubar-rota, Diu, e se pronuncia hoje Goa, Nambuangongo, Damba. Recordemos, apenas que, se D. Cristóvão da Gama tivesse a escutar o vento da história, a Etiópia, hoje tão assídua a investigar do modo como administramos território nacional, não passaria de submissa província árabe. Mas ainda hoje não nos arrependemos de à custa do sangue e esforço de 400 portugueses termos desviado a tormenta que ameaçava aquele país cristão quando as batalhas se travavam menos pela cor da pele do que pela cor da alma.
Inúmeros foram os povos que convocámos para mais amplo convívio humano ou chamámos mesmo, pelo baptismo, à civilização. Acusam-nos hoje de imperialismo, mas há que distinguir! A força civilizada, portadora de valores culturais, que se exerce para estabelecer uma ordem jurídica assente na moral universal e lança os fundamentos de novas sociedades para que se constituam em suas hierarquias naturais, não pode confundir-se com a voracidade insatisfeita do mero explorador de recursos económicos e muito menos com a tirania que, nas chamadas democracias populares, reduz à pior das escravaturas grupos étnicos e políticos de personalidade histórica definida.
Falou V. Exa., Sr. Presidente, da "crise dos princípios morais e jurídicos que perturba a consciência geral". E exprimiu naturalmente uma dúvida angustiosa quanto aos princípios, à orientação e chefia que aglutinarão os povos que a vaga da independência arrastou para nociva dispersão. Exprimiu ainda o temor de que o espírito de cedência ponha em perigo os princípios universais e as verdades permanentes que são da essência da nossa civilização. Tocou V. Exa. aí no problema dos problemas porque não há sistema de defesa nem estratégia militar que não inclua necessariamente a do sistema espiritual e moral que vivifica as sociedades. A mais moderna ciência militar ao serviço da defesa colectiva de nada valerá se lhe faltar a dimensão espiritual. Eis o calcanhar de Aquiles do Ocidente europeu e dos seus prolongamentos. A Europa, descrente das suas próprias tradições e dos valores de que foi portadora durante séculos, perdeu por culpa própria a direcção do Mundo.
Foi, no dizer de um historiador contemporâneo, o seu pior inimigo, porque os que de fora implacàvelmente a criticavam faziam-no como discípulos de pensadores europeus, contando com a quinta coluna intelectual dentro da própria sociedade que buscavam demolir.
E isto é qualquer coisa de inédito na história universal, diz-nos Christopher Dawson, grande mestre do pensamento contemporâneo. A Grécia caiu às mãos de Roma, mas jamais vacilou na sua fé na excelência dos ideais helénicos. Roma sucumbiu aos bárbaros, mas o prestígio da civilização romana prolongou-se muito para além do Império. A crise da cultura europeia, este movimento de crítica e aversão ao próprio património espiritual, constitui um fenómeno sem paralelo na história. Ela precedeu o declínio político da Europa, forneceu aos seus inimigos a metralha ideológica com que a combateram, reduziu a sua capacidade de resistência, deixando-a diminuída e inerme.
Observou V. Exa. que a Europa e a América tendem para formas supranacionais de colaboração e de vida. Imperioso é que assim seja, e que de algum modo se
reconstitua, para além das exigências de uma economia integrada, hoje condição de força política e militar, a velha sociedade de povos que a Europa sempre foi, unida por um forte princípio espiritual e sustentada em delicado equilíbrio entre a variedade individual dos povos e a unidade superior gerada pela identidade da tradição.
E é por isso que eu duvido da sabedoria dos que propugnam a fusão política de tantos povos hoje associados em pactos económicos. Pode-se ir longe de mais nas fórmulas de salvação: a língua, a cultura, a conformação mental dos povos são barreiras que cumpre respeitar e que é impossível diluir num todo informe que já não seria Europa e não uniria ninguém.
A crise da cultura vem de longe e filia-se menos na divisão religiosa provocada pela Reforma, fortemente atenuada pela tradição humanística, base comum de autêntica cultura europeia, do que na laicização desse humanismo no século XVIII, que deu categoria absoluta a valores relativos até aí integrados numa concepção religiosa da existência, de que católicos e protestantes participavam por igual. Abrindo fogo contra as traves mestras da tradição, o Enciclopedismo iniciava um processo a cujas derradeiras consequências estamos assistindo com pavor.
Hoje, passou o reinado abstracto da razão. A era é de plena e consciente revolta contra as formas clássicas da lógica e já nenhum político tem de se envergonhar confessando que as suas concepções são apenas tentativas de apoiar intelectualmente apetites desenfreados ou, no melhor dos casos, objectivos de base social.
A vontade nietzschiana de poder afirma-se sem rebuço nas assembleias dos povos, e a cada momento melancolicamente se assiste a sucessivas derrotas do espírito ocidental, da sua integridade e disciplina ordenadora.
O nacionalismo humano e convivente da pátria portuguesa, posto à prova em séculos de tolerante magistério civilizador nos quatro cantos da Terra, é pedra de escândalo para a esmagadora maioria das nações de fresca data fabricadas em série na O. N. U. Mas já o não é o despótico nacionalismo multirracial, mas de signo oposto, da União Soviética, ou o absorcionismo untuoso da União Indiana. É sacrossanto o nacionalismo dos Camarões, deplorável o de Katanga. A esta recusa-se-lhe a independência para que a falta das suas riquezas naturais não perturbe o equilíbrio económico do Congo; mas ninguém se detém a reflectir nos desequilíbrios que ao mundo português traria uma forçada separação de Angola.
Em defesa de um abstracto direito sacrificaram-se a um enclave da Prússia Oriental vidas de milhões numa guerra catastrófica. Em nossos dias assiste-se com indiferença ou regozijo ao desrespeito afrontoso de uma sentença da mais alta instância internacional do Mundo, que proclamou a soberania portuguesa nos enclaves de Dadrá e Nagai-Aveli e que a Índia há pouco integrou no seu bojo voraz de tigre pacifista.
Entoaram-se hinos à vitória da humanidade contra o racismo que perseguia os judeus. Assiste-se hoje à vitória do mais descabelado racismo, como se o único condenável fosse aquele que se dirige contra Israel.
Escrevia há pouco o mais categorizado diário londrino que Platão poderia encontrar no nosso tempo o seu estadista ideal. O mesmo estadista, porém, é periodicamente condenado pelo país que deu à luz Platão, talvez recordado de que já um dia fizera condenar Sócrates por uma maioria de 110 votos por um júri ateniense singularmente parecido com uma comissão da O. N. U.