O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 51

REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES

4.° SUPLEMENTO AO N.° 127

ANO DE 1937 29 DE ABRIL

CÂMARA CORPORATIVA

Parecer acêrca do projecto de lei n.° 111

Convidada, nos termos do artigo 103.° da Constituição Política da República Portuguesa, a apreciar o projecto de lei n.° 111, dos ilustres Deputados Srs. Drs. Luiz da Cunha Gonçalves e Ulisses Cruz de Aguiar Cortês, a Câmara Corporativa, por intermédio das suas 18.ª e 22.ª secções (Política e administração geral e Justiça), e ouvida a 15.ª secção (Interêsses espirituais e morais), emite o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

§ 1.°- Posição já tomada

1. Destina-se o projecto em estudo a modificar o actual regime jurídico do divórcio e da separação de pessoas e bens, tal qual êle resulta essencialmente das disposições do decreto de 3 de Novembro de 1910. E essa modificação faz-se no sentido de restringir consideràvelmente os termos em que poderão de futuro ter lugar tanto o divórcio como a separação judicial de pessoas e bens.
Com efeito, quanto ao divórcio, elimina-se a modalidade do divórcio por mútuo consentimento, estabelecendo-se o princípio de que êle só poderá ser decretado em processo litigioso; e, quanto às causas e fundamentos do divórcio litigioso, são êles consideràvelmente reduzidos, admitindo-se, por outro lado, em termos muito restritos - apenas no caso de adultério da mulher posterior à separação, e a requerimento do marido - a conversão da separação de pessoas e bens em divórcio. Por outro lado, estabelecem-se restrições importantes à faculdade dos divorciados de contrair novo casamento, assim como se recusam ao ex-cônjuge culpado certas vantagens de natureza patrimonial que actualmente lhe são asseguradas como consequência da dissolução do vínculo matrimonial, e que, se não constituem um verdadeiro estímulo para o divórcio, muito concorrem, em todo o caso, para o facilitar.
Não está, pois, directamente em causa, no presente projecto de lei, o problema da indissolubilidade do matrimónio. Consagrada na nossa legislação vigente a faculdade de dissolução do casamento pelo divórcio, o projecto em discussão propõe-se apenas restringir os termos em que tal faculdade é assegurada aos cônjuges.

Ora a êste respeito a Câmara Corporativa marcou já nìtidamente a sua posição no parecer que elaborou, por intermédio da sua 18.ª secção, sôbre o projecto de lei n.° 25, apresentado em 1934 à Assemblea Nacional pelo ilustre Deputado Sr. Braga da Cruz.
Apreciando o problema da indissolubilidade do casamento, no campo dos princípios, pronunciámo-nos então aberta e decididamente pela doutrina da indissolubilidade do matrimónio, mostrando que, se o divórcio tinha de ser repelido por considerações de carácter político-social, como elemento dissolvente, que era, do agregado familiar, tampouco se podia justificar, no campo puro da técnica jurídica, com base no conceito do casamento-contrato, pois a êste conceito antiquado, fruto da viciosa ideologia individualista dos séculos XVIII e XIX, devia substituir-se a noção mais racional e realista do casamento-instituição, a única que correspondia à verdadeira natureza das relações jurídicas que no casamento têm a sua origem.
Acentuámos mais que a indissolubilidade representava até um corolário ou uma exigência dos novos princípios constitucionais em que assentava o Estado Novo, que proclama a família como a unidade social base da organização político-jurídica da Nação.

Página 52

632-BBB DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

«Uma vez que os princípios informadores do Estado Novo - escrevemos no já citado parecer -, como organização política da unidade social -a Nação -, representam a condenação do individualismo que imperou no século XIX, e, nesta ordem de ideas, a nossa Constituição Política de 1933 consagra a família como unidade social por excelência, proclamando no seu artigo 11.° o princípio de que o Estado assegura a sua constituição e defesa, como fonte de conservação e desenvolvimento da raça e como base primária da educação, da disciplina e harmonia social, e consigna ainda nos artigos 12.° e 13.° diversos preceitos concretos, inspirados sempre no intuito afirmado de defesa da instituição familiar, impõe-se como corolário lógico a condenação do divórcio, como elemento de dissolução, que é, dêsse mesmo organismo social.
Não podemos conceber dúvidas sôbre a acção dissolvente do divórcio na família, se atendermos às condições em que êle nos aparece no direito moderno, e aos resultados sociais que produziu no período subsequente à sua promulgação, no final do século XVIII».

E condenando a instituição do divórcio, especialmente no nosso País, olhando ao seu condicionalismo peculiar, ético, político e social, acentuámos também que a condenação do divórcio, nos termos em que ficava pronunciada, se apresentava, não pròpriamente como solução de um problema religioso, mas sim como solução de um problema, social.

« Se se afirma o princípio da indissolubilidade do casamento - lê-se ainda no referido parecer -, êle é proclamado, não como um atributo do casamento-sacramento, ou como princípio de uma religião, para com a qual a lei e a governação se mostram mais tolerantes, mas antes como uma afirmação no campo da pura sociologia, reconhecendo-se essa indissolubilidade como condição primária de existência e conservação da família como organismo social e requisito indispensável para que nela possa assentar o aperfeiçoamento moral da sociedade. Não é necessário atermo-nos ao conceito religioso do casamento para proclamar na lei civil a sua indissolubilidade, assim como não carecemos de nos escudar nos preceitos da religião para condenar nas leis penais o roubo ou o homicídio».

Ora deve recordar-se também que, se a Câmara Corporativa, afirmando por forma bem nítida a doutrina da indissolubilidade do casamento, que é também proclamada pela Igreja Católica, não deu então o seu apoio ao projecto de lei do ilustre Deputado Sr. Braga da Cruz, que pretendia eliminar pura e simplesmente o divórcio da nossa legislação civil, foi a isso levada exclusivamente por motivos de oportunismo político.
A Câmara reconhecia que a nossa legislação se devia orientar no sentido da eliminação do divórcio, e apenas julgava inconveniente e perigosa a sua eliminação brusca e imediata, feita de um jacto. Admitido de facto na nossa legislação desde 1910, uma parte da população do País, infelizmente não muito deminuta, afez a sua mentalidade ao casamento dissolúvel. E assim a abolição pura e simples do divórcio, feita abruptamente, apresentava-se como uma medida violenta - observava-se -, que produziria naturalmente uma perturbação no espírito público, capaz até de afectar os seus resultados.

«A medida seria violenta e os seus resultados duvidosos; bem menos eficazes, por certo, do que se se procedesse gradualmente, suavemente, só chegando às medidas extremas após a adopção de providências que, sem grande convulsão, assegurassem a aceitação do regime novo.

Não basta, pois eliminar da lei o divórcio, para sanear a família. É necessário completar, ou, melhor, conjugar essa medida com um trabalho de preparação, que só pode pedir-se à educação moral. Não é o preceito legal da indissolubilidade do matrimónio, só por si, que pode produzir de um jacto bons maridos, espôsas virtuosas, lares sãos, filhos educados num ambiente de moralidade.
A proibição imediata do divórcio, desacompanhada de uma conveniente campanha de preparação moral, poderia até ter apenas como efeito, pelo receio que a indissolubilidade criaria no ânimo daqueles que não têm a consciência do que deve ser a família, a deminuição dos casamentos, o aumento das uniões fugazes em mancebia ou concubinato.
Antes, pois, de decretar a indissolubilidade dó casamento, e para que esta possa até produzir os efeitos sociais que dela se requerem, é necessário preparar o ambiente, criando o espírito do matrimónio indissolúvel. A família, que êste deve produzir, não pode compor-se com os elementos de uma sociedade que o divórcio viciou durante tantos anos».

2. Foi êste o ponto de vista em que se colocou a Câmara Corporativa ao apreciar o projecto de lei n.° 25, para a abolição do divórcio; e não podíamos deixar de o recordar agora, ao emitir o nosso parecer sôbre o projecto em discussão.
É que, como resultado destas considerações, a Câmara Corporativa exprimiu no seu citado parecer a opinião de que, em vez de proclamar já na lei a indissolubilidade do casamento, pareceria mais razoável actuar primeiro, pelo menos no que respeitava aos casamentos contraídos no regime da dissolubilidade, no sentido de modificar a nossa legislação, restringindo os termos em que o divórcio era admitido.
E, fazendo algumas sugestões, como concretização desta orientação geral, preconizava-se no parecer referido a eliminação do divórcio por mútuo consentimento, e, quanto ao divórcio litigioso, a redução dos seus fundamentos legais, limitando-os essencialmente às causas de separação judicial de pessoas e bens admitidas no Código Civil, definindo-se, em todo o caso, o fundamento das sevícias e injúrias graves, de modo a evitar que a excessiva generalidade e a imprecisão da fórmula legal permitissem dar-lhe uma tal amplitude que o divórcio litigioso se transformasse de facto num divórcio sem causas, por mera vontade unilateral de um dos cônjuges.
Verberava-se ainda especialmente, quanto a êste fundamento da lei actual, o sistema das «injúrias legais», consagrado nos artigos 34.°, 45.° e 60.° e seus parágrafos do decreto de 3 de Novembro de 1910 ; e, no capítulo das causas, particularmente se criticava a equiparação do adultério do marido ao adultério da mulher. Condenava-se ainda explìcitamente o princípio da conversão da separação em divórcio; e preconizando-se, além disso, certos meios indirectos de atacar a instituição do divórcio, independentemente da restrição dos seus fundamentos, aconselhava-se não só a atribuição aos cônjuges separados judicialmente de pessoas e bens da faculdade de disposição dos bens imobiliários que lhes fôssem atribuídos na partilha, derogando-se assim o preceito do artigo 1216.° do Co-

Página 53

29 DE ABRIL DE 1937 632-CCC

digo Civil, como também a recusa ao cônjuge culpado das vantagens que lhe adviessem da comunhão de bens, ampliando-se assim à comunhão o princípio estabelecido no artigo 27.° do decreto do divórcio, quanto aos «benefícios» assegurados pelo outro cônjuge.
Ora a esta orientação obedece fundamentalmente o projecto de lei que estamos analisando. Elimina-se o divórcio por mútuo consentimento, restringem-se consideràvelmente as causas ou fundamentos do divórcio litigioso. Substitue-se o clássico fundamento das sevícias e injúrias graves, estabelecendo-se critérios definidos, para a apreciação da gravidade das injúrias, que essencialmente correspondem às exigências denunciadas no parecer da Câmara Corporativa, e desaparece a estranha doutrina das «injúrias legais». A conversão da separação em divórcio só excepcionalmente se admite, no caso restrito já mencionado. E, quanto aos meios indirectos de ataque ao divórcio, consagram-se afinal as diversas providências apontadas por esta Câmara como tendentes a destruir vantagens que o cônjuge culpado ou o requerente do divórcio nêle encontram no regime vigente.
Nestes termos, correspondendo essencialmente o projecto em estudo à orientação geral definida pela Câmara Corporativa no seu já referido parecer, e dando completa satisfação a tantas das sugestões aí formuladas, não pode esta Câmara deixar de lhe dar o seu acôrdo na generalidade.
Existindo de facto o divórcio em Portugal, e consagrando-o o nosso direito em termos tam amplos que só são excedidos na legislação de países que negam o valor social da família e procuram a sua dissolução como unidade moral e social do Estado, impõe-se a quem condenou o divórcio como factor de dissolução social dar o seu apoio a toda a reforma que o converta num mal menor, restringindo as condições em que pode ser decretado.
Se bem, pois, que, em vários pontos de pormenor, o projecto nos mereça reparos, que mais adiante referiremos, damos-lhe, quanto à essência e orientação geral, um voto francamente favorável.

§ 2.°- Efeitos civis do casamento católico Indissolubilidade do casamento

3. Entende, porém, a Câmara Corporativa, após um maduro exame das circunstâncias da hora presente, que o projecto não vai até onde seria legítimo ir, no campo da defesa da instituïção da família, e que mais largas aspirações se podem hoje formular, sem quebra mesmo do ponto de vista que esta Câmara deixou expresso no parecer sôbre o projecto de lei do Deputado Sr. Braga da Cruz.
Escreveu-se, de facto, nesse parecer, depois de se observar que ao Estado não pode deixar de interessar a constituição e organização da família, a disciplina jurídica do matrimónio, fonte dos mais importantes efeitos jurídicos, o seguinte:

«Não quere isto dizer que o Estado tenha necessàriamente de estabelecer uma regulamentação específica, em normas próprias, do casamento, abstraindo do carácter religioso que para certas pessoas o acto apresenta, nem que possa proceder arbitrariamente na fixação das normas reguladoras do casamento acto civil, destacado da união religiosa.
O casamento, como união dos sexos para fins naturais, morais e sociais, apresenta-se ao legislador como uma realidade objectiva, que como tal êle tem de reconhecer e disciplinar, emquanto se lhe apresenta como base de importantes efeitos sociais, que assim se convertem em efeitos jurídicos. Mas, ao estabelecer essa disciplina jurídica, deve naturalmente apoiar-se na própria realidade social, conformando-se com as ideas, costumes, sentimentos e aspirações dominantes na sociedade. E assim é perfeitamente legítimo que, tendo em vista a circunstância de que uma grande parte ou a maioria da população professa uma religião determinada, que bem possa dizer-se a religião dominante ou a religião nacional, e em harmonia com ela costuma celebrar a união conjugal, atribua efeitos civis ao casamento religioso, confiando embora a funcionários próprios os serviços do registo do estado civil.
Competir-lhe-á então organizar, e sempre também em harmonia com as circunstâncias do meio social, o casamento simples união civil para aqueles que não professam aquela religião ou não têm religião alguma.
Ainda desta forma, porém, e quando atribue efeitos civis ao próprio acto religioso, o Estado disciplina a constituição da família, do estado de casado, e afirma o seu direito ou a sua competência para regular o matrimónio como origem de importantes efeitos jurídicos».

Ora, na lógica destas considerações, afigura-se à Câmara Corporativa que poderia e deveria mesmo ir-se agora até ao ponto de reconhecer efeitos civis ao matrimónio religioso, realizado em harmonia com os preceitos da religião católica, isto é, das leis canónicas que o disciplinam, embora o legislador civil estabelecesse paralelamente as normas reguladoras da união matrimonial para aqueles que não professam aquela religião, e exigisse bem assim que a união religiosa, ou o casamento canónico, satisfizesse concomitantemente a determinadas condições de validade intrínseca que a lei civil dita para a constituição da sociedade conjugal; o registo dos casamentos celebrados religiosamente ficaria, é claro, como o dos casamentos de carácter puramente civil, a cargo dos funcionários e repartições a quem o Estado confia os serviços do registo do estado das pessoas.
Mas êste casamento religioso - e o que afirmamos está ainda na lógica do que se escreveu no anterior parecer -, a que o Estado reconhece efeitos civis de casamento, deverá considerar-se indissolúvel, por ser essa a natureza que lhe atribue a legislação canónica, em harmonia com a qual êle se realiza, e aquela que a tal união pretendem deliberada e conscientemente atribuir os próprios nubentes que a contraem.
Nenhuma violência se fará assim à consciência pública, pois a união conjugal só é indissolúvel para aqueles que nesses termos e com êsses efeitos a querem contrair. Desta forma, pois, a lei não faz mais do que sancionar a vontade dos próprios nubentes, que, além de um acto civil - acto jurídico, produtor de certos efeitos de direito -, querem praticar um sacramento, sublimando dêsse modo a sua união conjugal. Nenhum princípio de direito, nenhuma razão de política social poderá levar neste caso o Estado, o poder civil, a impor a dissolubilidade do casamento, que só aparece justificada pela invocação de um princípio de liberdade. Violência e sacrifício da liberdade só se concebe que se aleguem quando a indissolubilidade seja decretada como princípio absoluto, imposto a todos. De violência e de negação da liberdade poderá ser acusado o Estado que teimar em declarar dissolúvel uma união que, por exigências da consciência religiosa, alguns cidadãos querem que seja indissolúvel.
Desta forma, consagrando esta doutrina, o legislador não faria hoje mais do que voltar fundamentalmente

Página 54

632-DDD DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

ao sistema do Código Civil, que, publicado numa época em que triunfaram em Portugal, com todo o vigor das ideas novas de importação estrangeira, os princípios do liberalismo individualista, consagrava a dualidade de regime do casamento, estabelecendo para os católicos o casamento «pela forma estabelecida na Igreja católica» e para os que não professassem a religião católica «e o casamento perante o oficial do registo civil, com as condições e pela forma estabelecidas na lei civil» (cfr. artigo 1057.° na redacção primitiva, alterada subsequentemente pelo decreto n.° 19:126, de 16 de Dezembro de 1930).
Simplesmente no Código Civil a indissolubilidade era prescrita para ambas as formas de casamento, reconhecendo-se ainda então a fôrça das razões de ordem, social que a impunham, mesmo quanto às uniões de carácter civil. Só mais tarde, com a abolição do casamento católico, decretada em 1910 em nome da liberdade, se impôs a todos os cidadãos, ainda em homenagem à mesma liberdade, a dissolubilidade do casamento, declarado como acto de natureza «puramente civil».
Hoje, numa orientação menos sectária, mas sem dúvida mais conforme com os princípios da verdadeira liberdade, dar-se-ia satisfação à consciência católica de uma grande parte do País atribuindo-se efeitos civis ao casamento católico, como o fazia o Código Civil, e respeitando-se a indissolubilidade do casamento, que o referido Código também sancionava; e respeitar-se-ia, ao mesmo tempo, a liberdade de pensamento daqueles que não professassem a religião católica, mantendo para êles o casamento mero acto civil, com o carácter de dissolubilidade que lhe foi atribuído na legislação actualmente em vigor. E desta forma se evitava ainda a medida extrema da abolição pura e simples do divórcio, que à Câmara Corporativa causou as apreensões já conhecidas.

4. A simples lógica das ideas expostas no anterior parecer desta Câmara sôbre o problema do divórcio levaria já, como fica dito, a propugnar o sistema que nas suas linhas gerais acabamos de definir. Mas circunstâncias especiais que a Câmara não podia menosprezar fornecem hoje uma justificação particularmente concludente da orientação que fica definida.
Factos de uma gravidade evidente e de significado particularíssimo se produziram desde que a Câmara Corporativa abordou pela primeira vez o assunto do divórcio e das bases da constituição da família.
Por um lado, adentro do nosso País, o Govêrno do Estado Novo lançou-se abertamente na obra superior da educação nacional e no revigoramento dos princípios morais que se proclamaram como base da vida social portuguesa. Iniciou-se assim a grande obra de educação e saneamento moral da sociedade portuguesa, que apresentamos como o passo indispensável para a proclamação do casamento indissolúvel, como princípio geral, e para a sólida preparação da família baseada numa união conjugal dessa natureza. Essa obra, auspiciosamente iniciada com afirmações tam significativas que mais uma vez vieram revelar a feição essencialmente cristã da sociedade portuguesa, tem a sua expressão mais aparente na criação do Ministério da Educação Nacional.
Por outro lado, e para além fronteiras, graves acontecimentos se têm produzido, que não podem deixar indiferente a Nação; antes hão-de nela provocar uma acção reflexa, que só deixaria de existir se esta perdesse a consciência da própria vitalidade e das exigências da sua estrutura própria. Espíritos dementados, animados dos mais baixos e ferozes instintos, têm-se esforçado por destruir a estrutura da nossa civilização, desencadeando diabólicos ataques contra todos os princípios morais sôbre que ela se alicerça. A característica essencial da agitação comunista, que na hora em que escrevemos atingiu proporções até agora desconhecidas, e quási projecta já os seus embates até ao limiar da nossa nacionalidade, é a relaxação de todos os freios morais e a negação de todos os princípios do Bem com que a velha civilização cristã soube dominar os piores instintos da humanidade, tam vil na sua materialidade.
Estas circunstâncias do ambiente externo criaram nos países que, como o nosso, desejam salvar-se na voragem da rebelião dementada da bestialidade humana a necessidade urgente e imperiosa de salvar o princípio espiritual da nossa cultura e da nossa civilização.
Estas sofrem na hora presente a mais grave crise que jamais conheceram. O momento não é, portanto, para hesitações. Se queremos salvar a nossa civilização, as aspirações do nosso espírito, educado para se elevar até ideais que suavizam a tristeza e a miséria da vida material, proclamemos agora aberta e corajosamente essa vontade, afirmando a nossa decisão firme, inabalável, de vencer, e mostrando-nos prontos a todos os sacrifícios.
E, nesta ordem de ideas, afirmemos desde já bem claramente, nas suas diversas realizações, os princípios cristãos da nossa organização social, que a Constituição proclama como um programa que deve ter execução prática, como tudo o que é programa do Estado Novo. Lançadas as bases de um ensino educativo que deixou de ser laico, neutro ou anticristão, deve passar-se agora a permitir aos católicos a constituição da família na base espiritual e religiosa em que êles a desejam constituir, assegurando assim à união conjugal a dignidade e a elevação que tam alto valor moral imporiam à família que nela se apoia.
Entretanto a obra educativa das novas gerações irá fortificando, até se chegar um dia àquele estado de preparação moral que representa o ambiente próprio para a profícua proclamação do casamento indissolúvel.

5. Antevemos as objecções que os adversários, que num espírito intolerante impuseram a consagração do carácter civil e da dissolubilidade do casamento, vão de certo opor contra a modalidade que agora preconizamos.
Se os nubentes são católicos, a lei não os impede hoje de realizar a união religiosa; e se esta é indissolúvel, a lei, admitindo a dissolução pelo divórcio, não a impõe todavia aos católicos.
Mas a verdade é que, se para os católicos o casamento é mais do que o acto jurídico, criador das relações de família, que constituem os seus efeitos civis, não há razão para que a lei civil não reconheça como acto civil uma união que, segundo a lei religiosa daqueles que a contraem, é também destinada a produzir aquelas relações sociais que estão inerentes à constituição da família, e que só são jurídicas porque a lei as tutela, garantindo os interêsses a que elas correspondem.
Tanto deve, pois, ser um acto jurídico, produtor de efeitos de direito, o acto que no seu formalismo civil apenas traduz a vontade de constituir legìtimamente a família e criar as relações de carácter pessoal e patrimonial que o casamento origina, como o acto que, revestido embora de carácter religioso, e visando também efeitos espirituais, é todavia realizado, para a vida do direito, com o mesmo intuito de constituir legìtimamente a família e produzir todos os efeitos jurídicos que resultam do «contrato civil» do casamento.
E se a vontade dos nubentes católicos é contrair uma união indissolúvel, embora seja certo que a lei lhes não impõe a dissolução, certo é igualmente que se não concebe porque não possa ou não deva a lei reconhecer esta indissolubilidade, que é da natureza da união contraída;

Página 55

29 DE ABRIL DE 1937 632-EEE

tanto mais que com isso só tem a ganhar socialmente a Nação.
Não poderá certamente negar-se o significado que no campo dos princípios tem o reconhecimento pelo Estado da natureza indissolúvel que ao matrimónio atribuem os católicos que o contraem, e que constituem ainda a grande massa da Nação. Será talvez o significado de tal reconhecimento que principalmente animará as críticas que contra êle não deixarão de se levantar.
Dir-se-á mais que se não justifica a dualidade do regime, não fazendo sentido um casamento indissolúvel ao lado de um casamento que o divórcio pode desfazer.
A anomalia não será diversa da que já admitia em princípio o Código Civil, criando a dualidade do casamento, para católicos e para não católicos, regulado aquele pelas «leis canónicas recebidas no reino», e sujeito êste às disposições da lei civil, reguladoras tanto das condições de validade intrínseca, como das relativas à sua forma externa. E se é certo que a própria união civil era indissolúvel, não havendo no regime do Código Civil a apontada anomalia, a verdade é que a dualidade quanto à natureza da própria união, sob os referidos aspectos de validade intrínseca e consequente regime de anulação, e das formalidades extrínsecas, não representava anomalia menos grave ou importante do que aquela que agora resultaria da simples circunstância de a lei civil respeitar, quanto ao matrimónio dos católicos, o princípio da indissolubilidade que antes afirmara também quanto ao matrimónio civil.
Ora se no regime agora preconizado haverá ainda o dualismo do casamento, quanto às condições da sua celebração, a verdade é que êsse dualismo sob êste aspecto não tem o alcance que apresentava no sistema do Código Civil, pois na fórmula preconizada, atribuindo-se apenas efeitos civis ao casamento religioso quando êle obedeça simultaneamente a determinadas condições de validade intrínseca consideradas essenciais pela lei civil, cuja observância é assegurada por um processo de carácter civil, deixa-se a cargo dos funcionários civis o serviço do registo dos casamentos; a inscrição do casamento católico nos livros de registo do estado civil é condição essencial para que se lhe reconheçam efeitos civis.
Mas a verdade é que - note-se ainda - anomalia e bem mais grave é a que hoje consagra a lei, impondo aos católicos, com violência da sua consciência religiosa, um estranho dualismo de actos matrimoniais, com a dupla manifestação de vontade que tal prática envolve.
Deve, com efeito, ter-se em vista que a Igreja, tolerando o casamento civil quanto aos cristãos baptizados que vivam fora dela ou abandonaram a sua obediência, exige, quanto ao matrimónio dos seus fiéis, que êle seja realizado na forma por ela preceituada, e nas condições requeridas para a validade do sacramento. E, assim, para a Igreja só é válido o consentimento prestado «face da Igreja, sendo nulo o que se presta perante o funcionário do registo civil. Proibido por ela o casamento civil, os católicos têm todavia de o celebrar como meio de assegurar efeitos civis ao acto que pretendem realizar, e existência jurídica à família que se propõem constituir. Assim se cai na dualidade de contratos e de celebrações matrimoniais, por fôrça desta exigência da consciência católica dos nubentes, para os quais só há contrato matrimonial onde houver sacramento, e só é válido o consentimento prestado perante o ministro da religião. E desta forma se converte afinal num contrato vazio de vontade ou em mera aparência de contrato o que os verdadeiros crentes realizam perante o funcionário do registo civil, visto que só por necessidade legal o realizam, e para o acto religioso reservam o seu consentimento sincero, real.
Com razão se tem, pois, observado que «a lei do casamento civil obrigatório constitue uma violação dos direitos da consciência, obrigando os fiéis a contrair matrimónio por uma forma que repugna à sua crença, e que, sendo feita a sério, implicaria a negação da identidade do contrato e do sacramento que a Igreja ensina» 1.
Acresce que, como também nota o escritor cujas palavras ficam transcritas, a duplicidade de consentimentos matrimoniais, conjugada com a dissolubilidade do casamento civil, leva muitas vezes a situações absurdas e altamente inconvenientes.
Havendo dois actos distintos, com regimes jurídicos e condições de validade diferentes, pode subsistir um, dissolvendo-se ou anulando-se o outro. É o que sucede quando um dos esposos obtém o divórcio e ainda, por exemplo, quando se anula o casamento civil depois de realizado o casamento religioso, e por fundamentos que não podem ser invocados perante o juízo canónico para a anulação do casamento-sacramento. Não raro acontece também que, depois de celebrado o casamento civil, o marido se recusa a contrair o casamento religioso que antes prometera realizar. E se o divorciado, que casara também religiosamente, tiver contraído novo casamento civil, ainda que queira voltar à convivência com a consorte a quem, no seu arrependimento, se considera perpètuamente ligado pelo vínculo religioso, a lei civil opõe um obstáculo, porventura irremovível, a que essa união, que êle reconhece em sua consciência, seja uma realidade em face do direito 2.

6. Não deixaremos porém de notar que, se o sistema da dualidade de casamento, religioso e civil, sendo êste facultativo, foi já uma realidade em Portugal, tendo-o consagrado, como vimos, o Código Civil, ainda hoje o praticam grande número de Estados que se pode bem dizer que caminham na vanguarda da civilização.
Adoptam efectivamente, e de há muito, o sistema de casamento civil facultativo, atribuindo efeitos civis ao casamento religioso, a Inglaterra, com os seus Domínios, as nações escandinavas, a Áustria, a Polónia, a Letónia, a Sérvia e a América do Norte 3. Mais recentemente foi êle adoptado na Itália, que em 1929 o sancionou pela Concordata de Latrão, e no Brasil, que o consagrou na sua nova Constituição política, como se referiu já no citado parecer desta Câmara sôbre o projecto do Deputado Sr. Braga da Cruz, embora o Brasil não fôsse tam longe como a Itália, nos termos em que reconhece efeitos ao acto religioso.
Mas é particularmente digno de registo o caso da Itália, pois neste país pode hoje dizer-se que o casamento está sujeito a um tríplice regime: o casamento civil, regulado no Código Civil e sua lei sôbre o registo do estado civil; o casamento católico, celebrado perante o ministro da religião católica, nos termos da Concordata e da lei de 27 de Maio de 1929, que lhe dá execução; e o celebrado perante os ministros de outros cultos admitidos no país, que esta última lei também regulamenta, sendo, porém, o casamento católico aquele a que é assegurado o regime de mais perfeito e mais amplo reconhecimento, confiando a lei civil no rigor com que a lei canónica estabelece a disciplina da vali-

1 Cf. António Durão, Broteria, «A família cristã na Assemblea Nacional», vol. XXIV, fase. 2, 1937, pp. 178 e segs.
2 Cf. António Durão, loc. cit., p. 181, e E. Chénon, Le rôle social de l'Église, p. 85, cit. por A. Durão, ibid.
3 Cf. António Durão, loc. cit., artigo citado, pp. 184 e segs.; «Concordats conclus durant le pontificat de Sá Sainteté le Pape Pio XI», Roma, 1934, nota n.º 158, p. 76.

Página 56

682-FFF DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

dade do matrimónio e na seriedade com que as autoridades eclesiásticas a fazem observar.
Não deixaremos tampouco de pôr em relêvo os termos em que no texto da Concordata de Latrão se consagra o princípio do reconhecimento dos efeitos civis do casamento católico, pelo alto significado que para nós tem semelhante afirmação.

«O Estado italiano - diz-se no artigo 34.° da Concordata -, querendo restituir à instituição do matrimónio, que é a base da família, dignidade conforme às tradições católicas do seu povo, reconhece ao sacramento do matrimónio, disciplinado pelo direito canónico, efeitos civis».

Êste deve ser o fim, e esta é a justificação da doutrina que agora sugere a Câmara Corporativa para Portugal.

II

Apreciação na especialidade

7. Definida a orientação geral a que, em nosso entender, deveria, no presente momento, obedecer qualquer reforma que atingisse o regime jurídico do divórcio e respeitasse ao problema da indissolubilidade do casamento, passemos ao exame em especial das diversas disposições do projecto de lei em discussão. Limitar-nos-emos no nosso estudo às questões de doutrina, aos problemas essenciais suscitados pelas disposições do projecto, abstendo-nos, por via de regra, de descer à crítica da redacção dos artigos, se bem que se nos afigure que a de alguns dêles poderia ser vantajosamente modificada.

§ 1.° - Da dissolução do matrimónio - Causas

8. Dispõe-se no artigo 1.° do projecto que o casamento se dissolve por morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio.
A triunfar a doutrina preconizada pela Câmara Corporativa, nas suas considerações sôbre a generalidade, o preceito teria de ser modificado, restringindo-se ao casamento celebrado «pela forma estabelecida na lei civil».
Consideremos, porém, agora as causas ou fundamentos do divórcio, que, como dito fica, segundo o projecto, só poderá ter a forma litigiosa, o que quere dizer que se elimina o divórcio por mútuo consentimento, devendo um dos cônjuges pedir o divórcio contra o outro, invocando algum dos fundamentos taxativamente indicados na lei.

a) Adultério do marido

9. Enumera o projecto em primeiro lugar o adultério da mulher; e refere-se em seguida ao adultério do marido (artigo 2.°, n.ºs 1.° e 2.°).
Mas o adultério do marido tem de ser qualificado, isto é, só pode constituir fundamento de divórcio pedido pela mulher, quando se dêem certas circunstâncias especiais, que lhe imprimam particular gravidade.
Desaparece, pois, o princípio do decreto de 3 de Novembro de 1910, que igualava «em carácter e gravidade» o adultério do marido e o da mulher (artigo 61, § 1.°), e volta-se à doutrina do Código Civil, que, para o efeito da separação de pessoas e bens, exigia, como é sabido, que o adultério do marido fôsse acompanhado de determinadas circunstâncias, que eram referidas no n.° 2.° do artigo 1204.°
Já no parecer do projecto de lei n.° 25 a Câmara Corporativa manifestou a opinião de que se não justificava a equiparação do adultério do marido ao da mulher, visto que a moral social reage de modo diverso num e noutro caso, mostrando-se muito severa quanto ao adultério da mulher, sendo de gravidade diversa as consequências da infidelidade desta na família, até por motivos de ordem fisiológica.
Concordamos, pois, com o princípio da diferença, e com a imposição de restrições quanto ao adultério do marido como fundamento de divórcio.
Alguns reparos nos provoca, porém, a forma por que o projecto condicionou o adultério do marido.
Segundo o Código Civil, o adultério do marido, para constituir causa de separação de pessoas e bens, deveria ser a com escândalo público, ou completo desamparo da mulher, ou com concubina teúda e manteúda no domicílio conjugal».
Indicavam-se, pois, três circunstâncias diversas, qualquer das quais imprimia gravidade suficiente à infidelidade do marido para a erigir em fundamento legal da acção de separação:
a) O escândalo público;
b) O completo desamparo da mulher;
c) O facto de ser o adultério com concubina teúda e manteúda no domicílio conjugal.
É intuitivo que qualquer destas circunstâncias atribuía uma gravidade especial ao adultério do marido, pelo dano moral ou material que acarretava para a esposa ofendida.
Era a fórmula do Código Civil, que no nosso anterior parecer preconizávamos como devendo ser adoptada para qualificar o adultério do marido como fundamento de divórcio e de separação.
O projecto, porém, não a manteve, e modificou-a nos seguintes termos: - o adultério do marido deve ser «com amante teúda e manteúda dentro ou fora da casa conjugal, embora sem escândalo público, ou com, abandono físico e moral da mulher».

É manifesta a diferença entre uma e outra destas fórmulas.
O escândalo público deixa de ser uma agravante do adultério, capaz só por si de o qualificar como fundamento legítimo de divórcio ou de separação; e apenas a êle se alude para acrescentar que o facto de o adultério ser com amante teúda ou manteúda dentro ou fora da casa conjugal não precisa de ser acompanhado de tal circunstância para legitimar o desagravo da mulher. O facto, puro e simples, de o marido ter a amante nas referidas condições é que constitue fundamento da acção.
Mas agora na doutrina do projecto já não se exige o facto de o adultério ser com concubina teúda ou manteúda no domicílio conjugal, circunstância de evidente gravidade, por ser particularmente ofensiva do brio e dignidade da esposa ofendida.
Falando de adultério «com amante teúda e manteúda dentro ou fora da casa conjugal» o projecto parece reclamar apenas que exista mancebia com certo carácter de permanência, isto é, que o marido mantenha a amante, uma amante determinada, que frequente com regularidade, mesmo fora da casa conjugal, e que se não trate portanto de relações fugazes, com diversas mulheres, com carácter acidental. Quere dizer: a circunstância que qualifica o adultério é a de haver a situação de concubinato, a que se alude na doutrina e na legislação francesa sôbre a investigação da paternidade ilegítima; o facto de a concubina ser mantida no domicílio ou casa conjugal nada acrescenta ao facto

Página 57

29 DE ABRIL DE 1937 632-GGG

do concubinato. Êste basta para que o adultério seja qualificado como fundamento da acção reconhecida à mulher.
Quanto ao desamparo da mulher pelo marido adúltero, o projecto substituiu a fórmula do Código Civil «completo desamparo da mulher» pela expressão «com abandono físico e moral da mulher legítima».

10. Ignoramos as razões que levaram os autores do projecto a pôr de parte a fórmula adoptada pelo Código Civil e a modificar tam profundamente a doutrina nêle estabelecida. O projecto não vem precedido de qualquer relatório que elucide, quem tem de apreciar as suas disposições, sôbre o fundamento ou razão de ser e até mesmo sôbre o alcance ou sentido exacto das mesmas. E, tratando-se de um diploma da natureza daquele de que nos ocupamos, que visa a realizar uma reforma de tam largo alcance, num ramo tam importante da nossa legislação civil, é particularmente de lamentar essa falta.
O confronto, porém, que acima deixamos feito entre as duas fórmulas, desacompanhado de qualquer justificação das alterações propostas à doutrina do Código, não é de molde a inclinar-nos em favor do regime do projecto.
O escândalo público não deverá eliminar-se do quadro das circunstâncias que podem elevar o adultério do marido à categoria de fundamento de divórcio ou de separação, visto que a publicidade do mau comportamento do marido afecta essencialmente o brio, a dignidade da mulher, dando um relêvo particular à ofensa que lhe é feita; e essa reprovação social da ofensa constitue sem dúvida um factor preponderante da incompatibilidade entre os cônjuges, que poderá justificar o afastamento dêstes e a cessação da vida em comum.
O carácter de regularidade ou permanência das relações sexuais fora do leito conjugal, que caracteriza o concubinato, não cremos que seja de molde a qualificar a infidelidade como base da acção de divórcio ou de separação e a atribuir-lhe efeitos diferentes das relações igualmente regulares e frequentes com mulher determinada, que seja mantida por outro (que pode ser até um marido), ou das relações incertas, mas frequentes, com mulheres diversas, que o adúltero não se pode dizer que tenha e mantenha fora do seu domicílio conjugal.
Note-se que a frase «teúda e manteúda» é de sentido perfeitamente definido e claro na fórmula do Código Civil, que se refere à concubina que cohabita com os cônjuges no domicílio conjugal; mas perde o seu significado e precisão, torna-se de alcance vago e dúbio quando desarticulada do resto da fórmula. Parece significar que deve tratar-se do caso de o marido ter uma amante por sua conta, naturalmente fora da casa conjugal; mas não pode determinar-se com precisão se é essencial a circunstância de a mulher viver a expensas do adúltero, ficando então fora do alcance do preceito o caso de ligações regulares com mulher casada ou amancebada com outro, que o adúltero não sustenta, como sustentaria uma mulher com quem vivesse em concubinato.

A substituição da fórmula «domicílio conjugal» pela expressão «casa conjugal», já empregada no Código Penal, ao definir os requisitos do crime de adultério do marido, supomos que obedece ao desejo de tornar bem claro que, na primeira das hipóteses consideradas (amante teúda e manteúda dentro da casa conjugal), a lei apenas contempla a hipótese de a amante viver de portas a dentro da casa em que o marido vive com a mulher legítima, acentuando-se assim que a fórmula
não abrange o caso de a concubina ser teúda e manteúda na mesma localidade ou povoação em que vive o casal, isto é, no lugar do domicílio dos cônjuges.
Mas se esta distinção tinha interesse no sistema do Código Civil, que qualificava o adultério do marido, como base da separação dos cônjuges, apenas pela circunstância de ser a concubina teúda e manteúda no domicílio conjugal, perde a sua significação e utilidade prática desde que o adultério constitue fundamento para a acção, quer a amante viva de portas a dentro, quer esteja fora da casa de habitação do casal.

Não podemos, por fim, deixar de aludir ao aspecto das dificuldades da prova, ao confrontarmos a doutrina do projecto com a que se consignava no Código Civil.
A circunstância de ser a mancebia com concubina teúda e manteúda no domicílio conjugal é bem aparente e de fácil prova, desde que se provem as relações sexuais. Mas que dificuldades existem na prova de que é o marido adúltero que sustenta ou mantém a amante fora da casa conjugal, se é êste o alcance da fórmula do projecto!

11. Quanto à substituição da fórmula «completo desamparo da mulher», por «abandono físico e moral da mulher legítima», supomos que obedece ao propósito de melhor definir a, noção de desamparo, acentuando que êle compreende o abandono físico e o abandono moral da mulher.
Afigura-se-nos, porém, que a nova fórmula não leva vantagem à primeira.
Não têm, com efeito, significado e alcance suficientemente precisos as expressões «abandono físico» e «abandono moral». E assim por novas dúvidas e questões se substituirão aquelas que se teria em vista eliminar.
Que significa e em que consiste o abandono físico? Será o afastamento físico do marido, que abandona o lar conjugal, passando a residir fora da casa em que vivia com a mulher e os filhos? Bastará o simples facto de se abster por completo de ter com ela relações sexuais? Será ainda o facto de lhe negar os recursos necessários para a sua manutenção?
E abandono moral, o que significa? Particularmente vago se nos afigura o conceito deste abandono. Consistirá êle na cessação do afecto que antes existia entre os esposos, ou quererá antes dizer-se que é necessário que o marido, que abandona fìsicamente a mulher, a deixe ao mesmo tempo privada da assistência moral que deve existir entre os cônjuges? Não será também abandono moral a cessação de relações do esposo adúltero com a mulher legítima?
A fórmula «completo desamparo», do Código Civil, parece-nos, na sua generalidade, mais expressiva e menos propícia a dúvidas. Há nela uma idea de graduação - «completo desamparo»- que se nos afigura particularmente útil e limitativa. É necessário que o marido desampare completamente a mulher, para que o seu adultério tenha gravidade suficiente para servir de fundamento ao divórcio ou à separação.

«Completo desamparo -escrevia Dias Ferreira - é abandonar o marido a cohabitação da mulher, negar-lhe os alimentos indispensáveis, etc., faltando assim a uma das obrigações fundamentais da sociedade matrimonial, que é o socorro e auxílio mútuo».

E observa a seguir o sábio comentador que ao prudente arbítrio dos tribunais ficará a apreciação dos factos que constituem o completo desamparo.

Página 58

632-HHH DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

Enunciada pelo legislador a idea fundamental, deixa-se ao prudente arbítrio do julgador a apreciação da sua realização. É isto preferível a caracterizar a situação e procurar limitá-la, mediante a enunciação de requisitos de conceito impreciso e obscuro.
Optamos por isso pela forma clássica do Código Civil - «completo desamparo».
Consequentemente deixaríamos o n.° 2.° do artigo 2.° do projecto redigido em termos idênticos aos do n.° 2.° do artigo 1204.° do Código Civil.

b) Ausência ou desaparecimento

12. O n.° 6.° do artigo 4.° do decreto de 3 de Novembro de 1910 referia entre as causas de divórcio litigioso «a ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a quatro anos».
O projecto, apesar de esta circunstância não figurar entre as que no Código Civil se enumeraram como causas de separação, mantém-na como fundamento do divórcio e da separação, se bem que em termos bastante diferentes. A ela se refere o n.° 3.° do artigo 2.°
Analisemos detidamente esta disposição do projecto:
Fala-se no n.° 2.° de:

«Ausência ou desaparecimento do cônjuge por mais de dez anos, a contar da instalação da curadoria definitiva dos seus bens, ou, na falta dêstes, desde a data em que o desaparecimento haja sido verificado pela autoridade policial».

A primeira pregunta que ocorre ao espírito do intérprete, ao ler esta disposição, e naturalmente a seguinte:
Qual o alcance da palavra «desaparecimento»? Que significação tem êste têrmo, e com que intuitos se adita à palavra «ausência» com a disjuntiva «ou»? Tratar-se-á de dois casos ou fundamentos distintos de divórcio, correspondendo o «desaparecimento» ao caso de o cônjuge não ter bens?
Depois de dar a noção de ausência, e de explicar que ausência em sentido técnico representa a não presença do indivíduo no lugar do seu domicílio, sem que dêle haja notícias, ignorando-se, portanto, se êle é vivo ou morto, o Dr. Guilherme Moreira, nas suas Instituições do Direito Civil Português, escreve:

«Não deve confundir-se com a ausência o facto de uma pessoa haver desaparecido em seguida a um crime ou desastre em virtude dos quais deva ter perecido».

Indica então o notável professor as consequências que dêsse facto resultam para o direito; e sôbre êle se contêm hoje algumas disposições no Código do Registo Civil vigente (decreto n.° 22:018, artigos 340.° e segs.), que, no artigo 347.°, relativamente ao caso de catástrofes ou calamidades, como incêndio, descarrilamento, naufrágio, guerra, desastre, etc., também fala de «desaparecido».
Não é certamente a casos ou situações como os que ficam indicados que os autores do projecto se querem referir, se bem que na parte final do n.° 2.° se aluda a verificação de desaparecimento pela autoridade policial.
Nas considerações com que anota a matéria do n.° 6.° do artigo 4.° do decreto de 3 de Novembro de 1910, relativo a ausência, o Doutor Luiz da Cunha Gonçalves, um dos autores do projecto, dizendo que êste preceito deve ser conjugado com os artigos 55.° e 64.° do Código Civil, nota que assim se vê que nêle «se trata da ausência-desaparecimento e não da simples não-presença do cônjuge na localidade ou no país em que vivia. A falta de notícias a que esta disposição se refere é acêrca da existência do ausente, em qualquer parte do mundo, e à incerteza absoluta sôbre a sua vida ou morte» 1.
Igualmente, no seu trabalho sobre as Reformas necessárias na legislação civil e comercial portuguesa, o Doutor Cunha Gonçalves se refere à «ausência-desaparecimento» como um dos fundamentos de divórcio que devem ser eliminados da lei 2.
Daqui somos levados a concluir que a expressão «ausência ou desaparecimento» corresponde à fórmula «ausência-desaparecimento» que o Doutor Cunha Gonçalves emprega nos citados lugares para designar a ausência em sentido técnico, ou ausência sem que do ausente haja notícias, como se dizia no n.° 6.° do artigo 4.° do decreto de 1910; considera-se, pois, uma só e única circunstância - a da ausência sem notícias; e prevendo-se o caso de o ausente não ter bens, e de não haver portanto necessidade de instalar a curadoria definitiva, preceitua-se que o prazo de dez anos deve então ser contado desde a data da verificação do desaparecimento pela autoridade policial.

13. Partindo do princípio de que é êste o pensamento dos autores do projecto, várias observações temos a fazer quanto a êste número do artigo 2.°
Em primeiro lugar achamos inconveniente, inaceitável mesmo, a fórmula «ausência ou desaparecimento», que dá origem às dúvidas que ficam referidas, quando é certo que nenhuma razão há para preterir a fórmula «ausência, sem que do ausente haja notícias», absolutamente consagrada na doutrina, com base nas disposições do Código Civil, e que é a usada no n.° 6.° do artigo 4.° do decreto de 1910.
Em segundo lugar deve atender-se a que, quando o ausente tenha bens, a justificação da ausência só tem lugar decorridos que sejam quatro anos, depois do dia em que desapareceu o ausente ou da data das últimas notícias, se o ausente não deixou procurador, ou decorridos dez anos, a contar das mesmas datas, se êle deixou procurador bastante (Código Civil, artigos 64.°, 82.° e 90.°); e, sendo certo que, tratando-se de ausente casado sem filhos, o cônjuge presente «conserva» a administração de todo o casal pelo espaço de vinte anos ou até o ausente completar noventa e cinco anos de idade (Código Civil, artigo 83.°) e o Código Civil não fala de curadoria definitiva, mas de «administração dos bens do ausente casado», a verdade é que pode dizer-se instalada a curadoria definitiva quando, ao cabo dos períodos atrás referidos, a ausência é justificada e se procede com citação dos herdeiros a inventário e partilha ou a separação de bens.
Não se nos afigurando de excluir, no caso de ausente casado, a hipótese de o ausente ter deixado procurador - apesar de ser a mulher, nos termos do artigo 1189.° do Código Civil, a administradora dos bens do casal, pois essa administração só tem lugar quando o marido, no caso de ausência, com ou sem notícias, não a delegou em qualquer pessoa que administra em nome dêle -, bem pode dar-se o caso de a justificação da ausência só ter lugar, e de, portanto, a curadoria definitiva só poder dizer-se instalada, ao cabo de dez anos a contar do desaparecimento ou da data das últimas notícias.
E, assim, neste caso - de o ausente ter bens - o divórcio só poderá ser requerido decorridos, pelo menos, catorze anos, ou vinte anos, conforme os casos, após a data do desaparecimento, ao passo que, no caso de êle não ter bens, poderá ser pedido decorridos dez anos

1 Cf. Tratado de Direito Civil, vol. VII, p. 43.
2 Cf. p. 49.

Página 59

29 DE ABRIL DE 1937 632-III

sôbre essa data, se o desaparecimento foi verificado pela autoridade policial logo na data em que êle teve lugar.
Mas por outra ordem de considerações nos merece ainda reparos neste ponto o preceito do n.° 3.° do artigo 2.° do projecto.
Se o fundamento do divórcio é sempre a ausência sem notícias, quer o ausente tenha bens, quer não, como se explica que neste último caso se tome como base do divórcio a simples verificação do desaparecimento pela autoridade policial, verificação que só pode respeitar ao facto actual, digamos, momentâneo, de o cônjuge não estar presente no lugar do seu domicílio, e que é, portanto, ou pode ser, absolutamente muda ou inexpressiva quanto ao significado do facto, não permitindo ajuizar sôbre a possível duração de tal estado de cousas, e, portanto, sôbre as probabilidades de o ausente viver, de voltar ao lar conjugal?
A ausência, como base da curadoria definitiva e para efeito da instalação desta, verifica-se por meio de justificação judicial rigorosa, que obedece a determinadas formalidades processuais, destinadas a assegurar publicidade ao procedimento requerido e a provocar o aparecimento do ausente, procurando-se levar ao seu conhecimento o procedimento requerido.
Assim é que êle é citado editalmente, como citados são os diversos interessados nos seus bens; e à sentença que defere a curadoria assegura igualmente a lei a maior publicidade (Código Civil, artigo 65.°, e Código do Processo Civil, artigos 406.° e seguintes). Sendo instalada a curadoria, se o ausente viver e tiver conhecimento dela, cessando portanto a causa de divórcio, o facto não pode passar despercebido, dados os importantes efeitos da cessação da ausência e da certeza de que o ausente é vivo; outro tanto se não dará no caso de não ter sido instalada a curadoria, tendo havido apenas a verificação do desaparecimento pela polícia. Acresce que o indivíduo pode não ter bens na data do desaparecimento, mas vir a tê-los ulteriormente. Devendo então instalar-se a curadoria definitiva, o preceito do projecto dá lugar a dúvidas.
Afigura-se-nos, pois, inadmissível a própria distinção feita quanto ao caso de ausência em sentido técnico, parecendo-nos que não é possível basear nela um pedido de divórcio sem que tenha sido judicialmente justificada a ausência.
Mas poderá observar-se que, no sistema do decreto de 1910, não se exige a instalação da curadoria definitiva para que possa requerer-se o divórcio, embora o tempo de ausência sem notícias, exigido para tal efeito, seja o que a lei requere para a instalação da curadoria definitiva; que a base do divórcio neste caso é menos a incerteza sôbre a vida do ausente do que o facto de êle ter privado o cônjuge da convivência conjugal, deixando um vazio no lar e faltando ao cumprimento dos deveres dos esposos.
Não é justificada a observação, nem em face do projecto, nem perante o decreto de 1910. A serem exactas estas afirmações, não se referiria como fundamento de divórcio a ausência sem notícias, a ausência em sentido próprio (ausência-desaparecimento), e bastaria a não presença no lar conjugal, ou a separação de facto, imposta por um dos cônjuges ao outro.
Razão tem, pois, o Doutor Cunha Gonçalves quando afirma, em face do n.° 6.° do artigo 4.° do decreto de 1910, que «ê a vaga suspeita de o ausente haver falecido que justifica o divórcio» 1.
Reconhecemos que a ausência é uma circunstância que, na lógica da doutrina da dissolubilidade do matrimónio, parece impor-se de modo particular como
fundamento de divórcio, sendo talvez o caso a que melhor se ajustará a observação de que se deve permitir ao cônjuge, que não é culpado de qualquer falta, refazer a sua vida e reconstituir o seu lar. Mas a verdade é que com facilidade se passará desta situação a outras que dela se não afastam consideràvelmente e em que igualmente justificado se julgará o divórcio, tais como a da loucura, a do abandono do domicílio conjugal e, porventura, algumas mais.
E quanto é justificado êste nosso reparo demonstram-no bem eloquentemente as considerações com que o Dr. Botto de Carvalho criticou o sistema do projecto de que se trata, na conferência há pouco feita na Ordem dos Advogados.
Observa, de facto, o ilustre advogado que não vê a razão por que, uma vez admitido o divórcio como um mal necessário, se considera fundamento legal para êste a ausência ou desaparecimento de um dos cônjuges «por mais de dez anos» 1 e se não considera como fundamento «de igual senão de maior fôrça e procedência» a loucura incurável, que determina o afastamento do doente, o impede de qualquer colaboração no labor da família e lhe dá «uma situação pràticamente correspondente à de ausente ou de desaparecido» 2. E isto observa o Dr. Botto de Carvalho a despeito das razoáveis considerações com que anteriormente verberara a indicação, no decreto de 1910, como causas de divórcio, dá doença, mesmo incurável, e da condenação nas penas maiores fixas dos artigos 55.° e 57.° do Código Penal 3.
Por isso continuamos a inclinar-nos no sentido de que se deve romper em absoluto com a ampliação de fundamentos de dissolução ou modificação da sociedade conjugal, produzida pelo decreto de 1910, regressando-se à enumeração subsistente a quando da publicação dêste diploma. Cumpre, portanto, reduzir os fundamentos de divórcio e de separação aos factos particularmente graves, referidos nos n.ºs 1.°, 2.° e 4.° do artigo 1204.° do Código Civil, que criam uma situação de absoluta irredutibilidade entre os cônjuges, tornando a bem dizer impossível e ineficaz a continuação da vida em comum.
Essa ampliação das causas de apartamento dos cônjuges, consagrada no decreto de 3 de Novembro de 1910, como bem nota o Dr. Botto de Carvalho, além de importar desharmonia entre as disposições do mesmo decreto e os preceitos do decreto n.° l de 25 de Dezembro do mesmo ano, em que se definem os direitos e obrigações gerais dos cônjuges, não foi determinada por um superior interêsse social, e é o
«sintoma claro de que, esquecida a coerência entre os fins do instituto da família e os meios determinativos do seu fomento, se procurou apenas dar ao indivíduo, num movimento de reacção, possibilidades que de nenhum modo eram condicionadas pelas suas necessidades ...» 4.

c) Ofensas corporais e outros delitos contra a pessoa do cônjuge; condenação a pena maior por delitos contra pessoas de família; injúrias graves e reiteradas.

14. Querendo restringir o divórcio ao adultério e às sevícias e injúrias graves, observamos já, quanto a êste último fundamento, que cumpria modificar a fórmula legal de maneira a evitar a extrema elasticidade que se lhe tem dado, fixando-se ao mesmo tempo os critérios necessários para a apreciação da gravidade das sevícias e injúrias!

1 Cf. Tratado de Direito Civil, vol. cit., p. 48.
1 A referência não é rigorosa, como resulta do que acima se observou.
2 Dr. João Botto de Carvalho, Paraíso Perdido, conferência acêrca do divórcio, Lisboa, 1986, p. 42.
3 Vide ob. cit., p. 40.
4 Cf. ob. cit., p. 41.

Página 60

632-JJJ DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

Vejamos se a doutrina do projecto corresponde a êste ponto de vista, e se dá, ou em que medida dá satisfação às aspirações formuladas.
O projecto elimina a fórmula «sevícias e injúrias graves», e no n.° 4.° do artigo 2.° refere-se a «ofensas corporais e quaisquer outros delitos contra a pessoa do cônjuge requerente»; acrescenta a êstes factos os da «condenação a pena maior por homicídio ou por ofensas corporais graves contra filho, ascendentes ou irmão do cônjuge requerente, ou contra filho comum»; o n.° 5.° refere-se em especial a «injúrias graves e reiteradas».
Consideramos conjuntamente as causas do divórcio indicadas nestes dois números do artigo 2.° por ser manifesta a relação que elas têm com o clássico fundamento de «sevícias e injúrias graves», que o decreto de 1910 menciona, e que já o Código Civil apontava como causa de separação judicial de pessoas e bens.
Era êste um dos fundamentos contra os quais se levantavam na crítica mais vivos clamores, em consequência da extrema elasticidade dada não só ao conceito de sevícias, como especialmente ao de injúrias graves; elasticidade tal que, como é sabido, se afirmou, como apreciação da jurisprudência de certos países, que o divórcio com tal fundamento correspondia pràticamente ao divórcio à moda russa - o divórcio sem invocação de causa, por simples vontade unilateral de um dos cônjuges.
A verdade, porém, é que a nossa jurisprudência não chegou, que saibamos, aos exageros que determinaram tais críticas, e no referido fundamento havia a criticar mais o perigo que oferecia pelos extremos a que fàcilmente poderia levar, e de que forneciam exemplo os tribunais franceses, do que a interpretação que lhe era dada comummente no nosso fôro.
Apontavam-se ainda como inconvenientes deste fundamento as dificuldades ou dúvidas de interpretação que suscitavam tanto a fórmula do Código Civil como a ligeira modificação nela introduzida pelo decreto de 1910, discutindo-se o significado da expressão «sevícias», bem como se o qualificativo de «graves» se referia a ambas as causas, «sevícias» e «injúrias», ou respeitava apenas às injúrias.
Acentuava-se também, como é sabido, o carácter delicado da apreciação a fazer desta gravidade, mesmo quando referida exclusivamente às injúrias, dada a diversa sensibilidade própria das diferentes classes sociais, conforme o seu grau de educação, e atentas até as diferenças que frequentemente se observam dentro da mesma classe, de pessoa para pessoa, em função de múltiplos factores de índole variada.
Todas estas circunstâncias, que largamente refere o Doutor Cunha Gonçalves no seu Tratado de Direito Civil 1, foram por certo consideradas pelos autores do projecto, ao substituírem a causa tradicional - sevícias ou injúrias graves, pelos fundamentos que se referem nos n.ºs 4.° e 5.° do artigo 2.° do projecto.
Que pensar, porém, desta substituição?
Será ela vantajosa, quer sob o ponto de vista da certeza ou precisão na designação das causas de divórcio, quer sob o aspecto da restrição da liberdade de dissolução do casamento?
Afigura-se à Camará Corporativa que nenhum dêstes resultados se pode considerar atingido.
E considerando a doutrina do projecto especialmente sob êste último aspecto da amplitude da admissibilidade do divórcio, parece-nos que ela não corresponde às directrizes indicadas por um dos autores do projecto para as reformas a fazer na mesma legislação civil, em matéria de divórcio, ao afirmar que, sendo o divórcio uma espécie de abcesso de fixação ou uma operação cirúrgica, só deveria ser permitido em casos gravíssimos e absolutamente irremediáveis 1.

15. Analisemos mais detidamente o preceito do n.° 4.°
A expressão «sevícias» foi abandonada no projecto. Mas em substituição dêste fundamento de divórcio enumeram-se diversos outros factos, que certamente nunca poderiam ser abrangidos no conceito de sevícias; alguns dêles representam antes uma transplantação parcial do fundamento do n.° 3.° do artigo 4.° do decreto de 1910, que se refere à condenação a qualquer das penas maiores fixas dos artigos 55.º e 57.° do Código Penal.
Tem-se discutido, como observámos já, o conteúdo ou significado da expressão «sevícias», que alguns consideram como ofensas corporais, outros como sinónimo de violências físicas ou maus tratos, de pancadas ou ferimentos. Para Dias Ferreira as sevícias representam «crueldade excessiva», mas significam principalmente as ofensas corporais. Para Dias da Silva e para o Doutor José Alberto dos Reis as sevícias consistem em maus tratos corporais, e têm de ser «graves», pois às sevícias se aplica êste qualificativo da fórmula legal. Mas há quem entenda que não apenas as ofensas corporais ou violências físicas se contêm no termo «sevícias», e que estas abrangem também a violência moral, designadamente as ameaças a que se refere explìcitamente o Código Civil italiano.
Na opinião do Doutor Cunha Gonçalves, a palavra «sevícias», na nossa lei, compreende toda a espécie de violências físicas e morais, que ponham em risco a saúde, a liberdade, o sossêgo de espírito, ou a integridade física do cônjuge ofendido, tornando-lhe insuportável a vida em comum. E assim considera como sevícias a sequestração ou conservação dá mulher em cárcere privado, a recusa de alimentos, o abuso das relações sexuais, até ao extremo de fazer adoecer a mulher, a transmissão de uma doença venérea, mas sobretudo as pancadas. Isto quanto a violências físicas. Quanto a violências morais, considera ainda como sevícias, além das ameaças, «a proibição de sair de casa, receber visitas, ter relações com os pais ou irmãos e outros» 2.
Depois destas referências, que fizemos no propósito de indicar mais concretamente as hesitações da doutrina quanto ao conceito de sevícias, e a gravidade de tal estado de cousas, e no intuito ainda de ver se podemos fixar o alcance do fundamento do n.° 4.° do artigo 2.° do projecto, vejamos agora o que deve concluir-se da fórmula usada neste preceito.

16. Falando apenas de «ofensas corporais», parece claro que os autores do projecto quiseram consagrar o conceito mais restrito de sevícias. Aludem manifestamente às violências físicas. E afastada fica, deste modo, a latíssima e perigosa doutrina que o Doutor Cunha Gonçalves defendia, como interpretação, aliás, da fórmula da lei vigente.
E parece que à expressão se deverá dar o sentido com que é empregada nos artigos 359.° e seguintes do Código Penal. Ofensas corporais são os maus tratos, pan-

1 Vol. VII, n.° 928, pp. 32 e sega.
1 Vide Doutor Cunha Gonçalves, Reformas necessárias da legislação civil e comercial portuguesa, «Restrições do divórcio», p. 48, Lisboa, 1934.
2 Vide Dias Ferreira, Código Civil Português anotado, vol. II, p. 434; Dias da Silva, Processos civis especiais, 2.ª ed., revista pelo Prof. J. A. doa Reis, p. 243, Coimbra, 1919; Doutor Cunha Gonçalves, ob, e vol. cit., p. 35.

Página 61

29 DE ABRIL DE 1937 632-KKK

cadas, ferimentos e contusões, quer dêles resultem, quer não, a impossibilidade de trabalho ou as demais consequências referidas nos artigos 360.° e seguintes.
Mas o Código Penal também considera como ofensa corporal a simples ameaça com arma de fogo ou de arremesso, em disposição de ofender, e até o tiro de arma de fogo e o emprego de arma de arremesso, ainda que de tais factos não resulte ferimento ou contusão.
E assim, pelo menos nestes casos, parece abalado o princípio restritivo do projecto.
Mas há mais.
O projecto adita neste número, como vimos, às ofensas corporais «quaisquer outros delitos contra a pessoa do cônjuge requerente».
Qual será o significado, o alcance desta fórmula «delitos contra a pessoa» do cônjuge?
Na classificação dos crimes previstos e punidos no Código Penal encontramos referida, como categoria específica, a dos crimes contra as pessoas, objecto do título IV do livro II.
Se bem que esta classe de crimes abranja infracções que certamente nada têm que ver com as relações entre os cônjuges, parece razoável partir do princípio de que hão-de pertencer a esta categoria os crimes contra a pessoa do outro cônjuge a que se refere o projecto.
Será realmente esta a idea dos seus autores? Quererão êles considerar apenas esta espécie de crimes, quando se dêem relativamente à pessoa do outro cônjuge, com exclusão, portanto, daqueles que, tendo por vítima o cônjuge, o atinjam nos seus interêsses materiais, como o abuso de confiança, o furto, etc.
Supomos que sim.
Mas, nesse caso, êste fundamento de divórcio adquirirá uma latitude inadmissível, abrangendo um sem número de infracções, e colocando além disso o intérprete em sérias dificuldades para determinar aquelas que poderão considerar-se como relativas à pessoa do outro cônjuge.
Serão assim fundamento de divórcio a sujeição do outro cônjuge a cativeiro (artigo 328.°), a conservação em cárcere privado, ainda que por menos de vinte e quatro horas (artigo 330.° e seus parágrafos), o segundo ou ulterior casamento, sem estar legìtimamente dissolvido o anterior (artigos 337.° e 338.°), o abôrto provocado pelo marido, ainda que com consentimento da mulher (artigo 358.° e § 1.°), o lenocínio cometido pelo marido (artigo 405.°, § 1.º), a difamação (artigos 409.° e seguintes).
Mas que pensar, por exemplo, a respeito do parto suposto, com que a mulher iluda o próprio marido? Trata-se de um crime «contra o estado civil das pessoas», e seria legítima a dúvida sôbre se se trata de um crime contra a pessoa do marido, Que decidir quanto ao casamento que o suposto cônjuge simule com outrem para prejudicar os direitos de alguém? Poderá o outro cônjuge, ainda que não seja a pessoa que com o casamento suposto se queria prejudicar, considerar-se atingido pelo crime?
Por outro lado, em face do artigo 379.° do Código Penal, deverão considerar-se fundamento de divórcio as ameaças, quando feitas à pessoa do outro cônjuge, nas condições ou com os elementos no mesmo artigo referidos. E, mais ainda, com base no § único no mesmo artigo, será igualmente fundamento de divórcio a violência moral que consista na ameaça ou intimidação feita por qualquer meio para constranger o outro cônjuge a fazer ou deixar de fazer alguma cousa a que por lei não é obrigado.
E assim ficará inutilizado, pelo menos em grande parte, o resultado que, à primeira vista, parecia conseguir-se com a fórmula empregada no projecto.
Mas outros inconvenientes tem ela ainda, em nosso entender, como passamos a referir.

17. A seguir às ofensas corporais e quaisquer outros delitos contra a pessoa do cônjuge, o n.° 4.° menciona a «condenação a pena maior por homicídio ou ofensas corporais graves contra o filho, ascendentes ou irmão do cônjuge requerente, ou contra filho comum».
É manifesto que êste fundamento não se apoia exclusivamente na ofensa, ainda que indirecta, contra a pessoa do outro cônjuge, pois, se assim fôsse, não se limitaria ao caso de condenação a pena maior. A gravidade da condenação é, pois, sem dúvida, um elemento substancial dêste fundamento de divórcio. Por isso dissemos que êle representava uma transplantação parcial do fundamento referido no n.° 3.° do artigo 4.° do decreto de 1910.
É certo que muito se restringe o seu alcance e que desaparece o inconveniente, apontado ao preceito vigente, de se atender mais à pena do que ao carácter infamante do delito, o que permitia basear um divórcio numa condenação, por exemplo, por um crime político. Mas nem assim se nos afigura justificada a manutenção do fundamento da condenação que, pelo projecto, é simplesmente em pena maior, quando o decreto de 1910 aludia às penas maiores fixas dos artigos 55.° e 57.° do Código Penal, portanto a condenação mais grave.
Ao indicar as causas de divórcio que cumpria suprimir da lei vigente, o Doutor Cunha Gonçalves, no seu já citado trabalho sôbre as Reformas necessárias da legislação civil e comercial portuguesa, referia em primeiro lugar a condenação de um dos cônjuges a pena maior 1. Lamentamos por isso que o seu ponto de vista radical não tenha sido mantido no projecto em discussão.
Mas há ainda a notar que nesta disposição do projecto, depois de se falar de ofensas corporais e outros delitos contra a pessoa do cônjuge, se alude à condenação a pena maior.
Isto mostra, por um lado, que a condenação nesta pena é, de facto, o elemento preponderante desta causa de divórcio, como acima acentuamos; e leva a concluir, por outro lado, afastando assim uma questão idêntica à que já se suscitara quanto a certos fundamentos da acção de investigação de paternidade ilegítima, em face do artigo 34.° do decreto n.° 2 de 25 de Dezembro de 1910, que a acção de divórcio não depende da condenação pelas ofensas corporais e outros delitos contra a pessoa do cônjuge, e portanto da sua verificação em processo crime.

18. Consagremos agora a nossa atenção em especial ao n.° 5.° do artigo 2.° Fala o projecto de «injúrias graves e reiteradas».
Um dos pontos discutidos relativamente à fórmula consagrada «sevícias e injúrias graves» era o de saber se o emprêgo destas expressões no plural levava ou não o intérprete a concluir pela necessidade da repetição das sevícias ou das injúrias para se decretar o divórcio ou a separação.
Para excluir esta interpretação, já na lei brasileira anterior ao actual Código Civil se falava de «sevícia ou injúria grave», mantendo-se esta fórmula no Código (artigo 317.°, III) 2. Se bem que no Código Civil francês se empregue fórmula idêntica à nossa - excès, sévices et injures graves, já se tem julgado na juris-

1 Cf. Reformas necessárias cit., p. 49.
2 Vide Clovis Belavilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, vol. II, p. 269.

Página 62

632-LLL DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

prudência francesa que em certas circunstâncias pode um facto isolado, pela sua gravidade especial - uma ferida grave, o atentado contra a vida -, ser considerado suficiente para decretar o divórcio 1.
Observando que, em seu entender, o legislador usou as referidas palavras no plural para significar classes de factos, o Doutor Cunha Gonçalves acentua, e bem, que esta causa de divórcio não é peremptória, pois envolve uma apreciação da gravidade dos factos provados, que depende essencialmente do prudente arbítrio do juiz, e diz ser claro que «segundo as circunstâncias e a natureza do facto, e sobretudo segundo as pessoas, basta uma só sevícia ou injúria para fundamentar o divórcio».

«A apreciação da gravidade da sevícia ou da injúria - continua o referido escritor - depende do prudente arbítrio do juiz, conforme as pessoas, o lugar, a publicidade, a frequência dos factos e outras circunstâncias» 2.

Esta se nos afigura a verdadeira doutrina, e é a que ensinam jurisconsultos de autoridade indiscutível.
A frequência maior ou menor das injúrias, como das sevicias, não pode deixar de se considerar como um elemento de apreciação da sua gravidade emquanto fundamento, quer de divórcio, quer de separação.
Serão, em geral, as sevícias repetidas e as injúrias habituais que criarão o estado de cousas necessário para se justificar o divórcio. Mas não é lícito afirmar em absoluto que um facto isolado, como violência ou como injúria, não seja suficiente para criar entre os cônjuges a situação de irredutibilidade, ou o ambiente intolerável que deve ser o pressuposto do divórcio ou da separação.
Foi por isso com surprêsa que vimos adoptada no projecto a expressão «injúrias graves reiteradas», depois das judiciosas consideragoes que sôbre êste assunto se lêem no Tratado de Direito Civil, do Doutor Cunha Gonçalves, apoiadas na opinião autorizada dos mais notáveis jurisconsultos franceses. Na ignorância das razões que possam ter determinado a adopção da fórmula do n.º 5.º do artigo 2.º, não podemos dar-lhe o nosso acôrdo.
Merece, porém, o nosso inteiro aplauso a doutrina do § único do artigo 2.º do projecto, onde se dispõe que «a gravidade das injúrias será apreciada na sentença final conforme a classe social, o grau de educação, ou sensibilidade moral dos cônjuges».
Corresponde êste preceito inteiramente às aspirações já por esta Câmara formuladas no seu parecer sôbre a proposta do ilustre Deputado Sr. Braga da Cruz, e a que atrás fizemos alusão. Parece-nos, até, particularmente feliz a referência à sensibilidade dos cônjuges, valioso elemento para a determinação da gravidade da injúria, que necessàriamente reclama uma apreciação em concreto, feita na base de um critério subjectivo.

«Factos que num certo meio social - escreve o Doutor Cunha Gonçalves - entre pessoas de aproximada educação, ou que deviam tê-la, assumem extrema gravidade, não tem importância de maior nas classes baixas, entre pessoas rudes, que proferem palavrões e injúrias, com a maior naturalidade, nos actos e nas conversas cotidianas, até contra crianças de tenra idade» 3.

19. Que concluir, pois, de tudo o que fica exposto, e qual a posição a tomar perante os preceitos dos n.ºs 4.º e 5.º do artigo 2.º do projecto?
Ela está já em parte marcada no que se lê no parecer por esta Câmara emitido sôbre o projecto do Sr. Braga da Cruz. Aí observamos, com efeito, que, quanto ao fundamento das sevícias e injúrias graves, cumpria apenas fazer na fórmula legal as restrições, correcções ou complementos necessários para bem definir a amplitude desta causa de divórcio e precisar o seu verdadeiro alcance, excluindo assim o arbítrio ilimitado do julgador, e impedindo que nela se enquadrem as mais extravagantes circunstâncias 1.
Ora, no que respeita a sevícias, o alcance da fórmula legal vem já, por assim dizer, definido e delimitado essencialmente desde o nosso antigo direito. Era êste, no dizer de Coelho da Rocha, o fundamento por que mais ordinàriamente as mulheres requeriam a separação. E segundo o ensinamento dos nossos praxistas as sevícias consistiam nos maus tratos. A acção de separação por sevícias, diz-nos ainda Coelho da Rocha, ordinàriamente começa pelo depósito da mulher em casa honesta e segura «para evitar os maus tratos do marido» 2.
Com êste conceito coincide essencialmente o que se surpreende na passagem de Correia Teles que transcreve o Doutor Cunha Gonçalves no seu Tratado de Direito Civil, extraída da fórmula de petição para a acção de separação de pessoas e bens: «Que, sendo casada com o dito seu marido, êste a trata pior do que se fôsse sua escrava, dando-lhe pancadas frequentes vezes, arrastando-a pelos cabelos e ameaçando-a com a morte, de forma que a vida da suplicante corre grande risco em poder do suplicado» 3.
Desta interessante fórmula se depreende ainda que nos maus tratos, nas sevícias, se compreendem as próprias ameaças quando estas tenham seriedade e gravidade tal que representem para o outro cônjuge um verdadeiro perigo, tornando-lhe intolerável a convivência conjugal.
Em nosso entender, o que é essencial é que na lei se acentue que tanto as sevícias como as injúrias só podem justificar ou determinar a dissolução do vínculo conjugal e o afastamento dos cônjuges quando criem para a vítima uma situação intolerável que torne verdadeiramente insuportável para ela a continuação da convivência com o cônjuge.
A fórmula legal não deve, pois, comportar a inclusão de qualquer violência ou injúria que, ofendendo embora o cônjuge, não represente mais do que uma destas culpas que sempre os esposos têm de recìprocamente se perdoar como atritos inevitáveis entre seres humanos, e portanto não perfeitos, que vivem debaixo das mesmas telhas. Mal seria da instituição da família se a lei a deixasse exposta aos abalos que resultam de certos conflitos, quási inevitáveis mesmo entre pessoas educadas.
É por isso que julgamos particularmente expressiva a fórmula de Correia Teles quando põe a mulher a queixar-se de que o marido a trata pior do que uma escrava.
E êste critério - repetimo-lo - é comum às sevícias e às injúrias. Aquelas atingem a sensibilidade física do cônjuge; estas a sua sensibilidade moral. Não são, pois, quaisquer palavras ou atitudes de um dos cônjuges, como o facto de cortar relações com qualquer pés-

1 Bouast no Traité pratique de Droit Civil français, de Planiol et Ripert, vol. II, n.° 515, p. 425.
2 Cf. ob. e vol. cit., p. 34.
3 Loc. cit.
1 Cf. Diário das Sessões, Suplemento ao n.° 32, de 22 de Março de 1935, p. 11, 2.ª coluna.
2 Cf. Instituí., vol. I, § 238 e nota p. 162.
3 Cf. Cunha Gonçalves, ob. e vol. cit., p. 35.

Página 63

29 DE ABRIL DE 1937 632-MMM

soa da família do outro, ou a proibição à mulher de visitar os seus pais ou parentes ou de se dar com êles, que poderão justificar um divórcio por injurias graves.
É bem conceituosa a observação de que é ocioso discutir se o qualificativo de graves abrange tanto as sevícias como as injúrias, visto que umas e outras hão-de já necessàriamente e na essência representar factos graves. Por isso entendemos que só ha necessidade de aludir à gravidade das sevícias ou das injúrias para marcar explìcitamente os efeitos ou consequências que, por via dela, hão-de produzir na sociedade conjugal.
Afigura-se-nos, pois, que os n.ºs 4.º e 5.º do artigo 2.º poderiam ser substituídos pelo seguinte preceito:

«4.º Os maus tratos, como pancadas e outras violências físicas ou ameaças delas, e as injurias, desde que sejam suficientemente graves para tornar intolerável ao cônjuge ofendido a convivência com o outro ou para criar entre ambos uma situação de irredutibilidade».

0 § único do artigo 2.º ficaria assim redigido:

«§ único. Na apreciação da gravidade dos maus tratos e das injúrias, nos termos e para os efeitos do n.º 4.º dêste artigo, o juiz atenderá sempre a classe social a que pertencem os cônjuges, ao seu grau de educação, à sua sensibilidade moral e a quaisquer outras circunstâncias que o processo lhe proporcione».

Desta forma, e conjugando o n.º 4.º com o § único do artigo, não será já lícito discutir se os requisitos de gravidade exigidos respeitam tanto as injúrias como aos maus tratos ou sevícias, questão que, de resto, já hoje se não pode julgar seria, assim como não são de considerar as dúvidas sôbre se um só dos factos enunciados, no n.º 4.º que sugerimos, sem suficiente para justificar o divórcio, e outras que se levantavam em face da fórmula tradicional.
A triunfar a fórmula que sugerimos, nas consideragoes dêste parecer encontrará o interprete elementos bem claros para o fixar sôbre a doutrina que na lei se quis consignar.

§ 2.º - Restrições ao exercício da acção de divórcio

a) Casos em que o cônjuge não pode pedir o divórcio

1) Enumeração

20. Sempre numa louvável orientação adversa ao divórcio, o projecto consigna no capitulo II, sob a epígrafe «Do exercício da acção de divórcio», diversas disposições em que não só se limita a faculdade ou poder legal de requerer o divórcio como se procura evitar que a acção, quando intentada, chegue a seu termo.
Assim, no artigo 4.º preceitua-se que não pode requerer o divórcio:

1.º O cônjuge que ostensivamente consentiu no adultério do outro ou o incitou ao adultério.

Respeita êste múmero, como parece óbvio, aos fundamentos referidos nos n.ºs 1.º e 2.º do artigo 2.º - adultério da mulher ou do marido. Por muito estranho que pareça, a imoralidade da época contemporânea regista casos em que, especialmente por conveniências materiais, os cônjuges descem à degradação moral que o projecto contempla, parecendo particularmente frequente a exploração pelo marido da prostituição da espôsa. Impõe-se, por isso, ao legislador a previsão de semelhantes aberrações.
Não pode tampouco requerer o divórcio, e qualquer que seja o fundamento de que se trate:

2.º O cônjuge que houver incorrido para com o outro em idêntica culpa.

Finalmente não pode propor a acção de divórcio:

3.º O cônjuge ofendido que, nos casos dos n.ºs 1.º, 2.º, 4.º e 5.º do artigo 2.º, houver perdoado as ofensas, reconciliando-se e continuando a viver no lar comum.

Apenas o fundamento da ausência ou desaparecimento de um dos cônjuges é, por motives óbvios, excluindo do âmbito dêste preceito.

2) A compensação de culpas e a reconvenção

21. É particularmente digno de registo o fundamento do n.º 2.º, que modifica fundamentalmente a doutrina consagrada no artigo 15.º do decreto de 1910.
Nos termos dêste artigo, era sempre admitida a reconvenção nas acções de divórcio, e assim o cônjuge réu na acção de divórcio, que pudesse, por sua vez, invocar contra o autor nessa acção um fundamento idêntico ou diverso de divórcio, tinha sempre o direito de o fazer valer em reconvenção; e, sendo a acção principal e a reconvenção julgadas como uma só acção, a sentença proferida na acção principal deveria declarar, quando decretasse o divórcio, se o autorizava pelos fundamentos desta ou da reconvenção.
Na doutrina do projecto a culpa do autor invocada pelo réu só neutralizará a sua acção se fôr idêntica a imputada ao réu. Supomos que esta identidade abrange o próprio adultério, se bem que o do marido exija requisites especiais que em rigor o excluiriam.
Com esta disposição do artigo 4.º se conjuga porém o preceito do § 1.º do artigo 36.º, onde se dispõe que não é admitida a reconvenção do réu, podendo êste, todavia, «opor ao autor algum dos factos previstos no artigo 4.º». Quere dizer: seja qual fôr o facto que o cônjuge, contra quem é intentada uma acção de divórcio, se proponha invocar contra o autor dessa acção, como fundamento também de divórcio que pretenda fazer declarar a seu favor, nunca o poderá alegar em reconvenção. Apenas o poderá fazer valer, se a acção em que é réu fôr julgada improcedente, como base de nova acção a intentar por sua vez contra o autor da primeira, se nesse propósito persistir.
Mas, se êsse fundamento fôr culpa idêntica aquela que lhe é imputada e em que o autor baseia a acção contra êle intentada, poderá então o réu, ao contestar a acção, opor-lhe êsse facto como meio de comprometer o êxito da referida acção, assim como, com igual fim, lhe poderá opor qualquer das circunstâncias referidas nos n.ºs 1.º e 3.º do artigo 4.º Trata-se de verdadeiras excepções que se destinam a paralisar a ofensiva do autor, constituindo uma defesa indirecta. E é evidente que, dêstes meios de oposição, só a alegação de culpa idêntica poderia constituir matéria de reconvenção.

3) Apreciação

22. Ora estas observações, que decorrem naturalmente do preceito do § 1.º do artigo 36.º, levam a formular certas reservas sôbre a justiça da doutrina nêle contida, dados os termos absolutos em que esta concebido.
Com efeito, a exclusão da reconvenção não inibe como vimos, o réu na primeira acção de requerer êle

Página 64

632-NNN DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

em seguida o divórcio no caso de absolvição, mesmo que o fundamento alegado agora seja culpa idêntica a que lhe fôra imputada, se a primeira acção foi julgada improcedente por não se provar o fundamento invocado pelo autor. Com efeito, nessa hipótese, arredada a respeito do réu nesta acção a acusação que lhe era feita, deixa de se verificar, quanto a êle, quando proponha nova acção contra o cônjuge autor da primeira, a circunstância referida no n.º 1.º do artigo 4.º do projecto, que alude ao cônjuge que houver incorrido para com o outro em culpa idêntica.
Ora, supondo que o réu na primeira acção pode, de facto, invocar contra o autor um fundamento de divórcio de natureza diferente daquele que lhe é imputado, estando inibido de o alegar em reconvenção, e não o podendo tampouco invocar nos termos do artigo 4.º, isto é, para os efeitos de paralisar a acção do autor, a consequência será que o divórcio nesta acção só poderá ser decretado contra êle, ou seja, atribuindo-se-lhe a qualidade de cônjuge culpado; quando, se lhe fôsse permitido deduzir os seus agravos em reconvenção, observando-se o sistema do decreto de 1910 (artigo 15.º e § único), poderia conquistar uma posição de vantagem, sendo certo que não e indiferente, mesmo no sistema do projecto em discussão, a posição de cônjuge culpado, quer no que respeita aos efeitos patrimoniais do divórcio, quer no que respeita ao destino dos filhos.

Do que fica exposto deve pois deduzir-se uma de duas conclusões:
Ou se amplia a doutrina do n.º 2.º do artigo 4.º do projecto, e se priva da faculdade de requerer o divórcio o cônjuge que houver incorrido em qualquer culpa que seja fundamento para o outro contra êle requerer também o divórcio, e se permite portanto ao réu, no § 1.º do artigo 36.º - continuando a não se admitir a reconvenção -, opor ao autor, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º, n.º 2.º, além da culpa idêntica a que lhe é imputada, qualquer outro facto que seja fundamento legal de divórcio contra o autor; ou, restringindo-se, como se faz no projecto, a excepção do n.º 2.º à culpa idêntica, se permite a reconvenção, no caso de o réu poder invocar contra o autor um fundamento diverso daquele que por êste foi alegado, para assim permitir ao réu defender-se contra a posição de cônjuge culpado, quando, sendo êle, de facto, culpado quanto ao fundamento alegado pelo autor, êste o seja também quanto a culpa, embora diversa, que lhe e imputada pelo réu.
Ora, nesta alternativa, o que parece mais razoável é mais na lógica da orientação adversa ao divórcio é a primeira modalidade, pois não vemos que razões de pêso possam conduzir a limitar a paralisação ou compensação de agravos recíprocos ao caso de êsses agravos serem de natureza idêntica, pois todos êles tem de comum - e isso é que parece ser jurìdicamente relevante - constituírem fundamento legal de divórcio.
Porque admitir, na verdade, que a mulher que é acusada pelo marido de o injuriar possa evitar o divórcio alegando que também o marido a tem injuriado a ela, e recusar idêntico resultado quando a mulher, demandada, possa acusar o marido de ofensas corporais, de outros delitos contra a sua pessoa ou de adultério com amante teúda e manteúda na casa conjugal?
Mas; pelo que respeita particularmente à reconvenção, devemos observar que, quando mesmo, contra o que parece razoável, se entenda o preceito do § 1.º do artigo 36.º no sentido de que o réu não pode, nem mesmo em acção separada e distinta, pedir o divórcio contra o autor, ainda que tenha sido vítima de um
facto que é causa legítima de divórcio, é absolutamente inadmissível a proibição da reconvenção.
Que o réu fique inibido de fazer valer contra o autor o direito de requerer o divórcio pela simples circunstância de o autor se antecipar a êle, parece inteiramente injusto, representa uma iniquidade intolerável. Que tenha de recorrer a uma acção nova, é manifestamente inconveniente. Em vez de um pleito escandaloso e perturbador, teríamos dois.
Parece, pois, que não só se deve admitir a reconvenção, como cumpre até consignar a doutrina de que, se o réu quiser pedir o divórcio contra o autor, só em reconvenção o poderá fazer. A reconvenção deverá portanto ser obrigatória neste sentido: o réu renuncia ao pedido de divórcio contra o autor, por factos já existentes, se o não deduzir em reconvenção.
Mas é claro que êste direito de reconvir em nada deve prejudicar a faculdade de alegar e invocar qualquer dos factos que puderem fundamentar um pedido de divórcio, apenas para o efeito de paralisar a acção do autor, isto é, como simples meio de defesa indirecta nesta acção.

23. Ora, nestes termos, afigura-se a Câmara Corporativa que os artigos 4.º e 36.º, § 1.º, do projecto poderiam ser modificados nos termos que passamos a indicar.
Na sua redacção actual o artigo 4.º priva, em certos casos, um dos cônjuges da faculdade ou do direito de requerer o divórcio contra o outro. «Nao pode requerer o divórcio ...», diz-se no artigo. Assim, e o cônjuge privado do próprio direito de acção, como resulta ainda da colocação do artigo no capítulo cuja epígrafe é «Do exercício da acção de divórcio».
Como, porém, de facto, o cônjuge requere o divórcio, e os factos ou circunstâncias, que no artigo se enumeram, apenas o impedem de o obter, e hão-de ser provados no decurso da acção, que segue portanto necessariàmente os seus termos, vê-se que na realidade as circunstâncias referidas no artigo 4.º não inibem pròpriamente o cônjuge de requerer o divórcio, e apenas obstam a que êle seja decretado.
Mais razoável parece pois acomodar a êste estado de cousas a estrutura do artigo 4.º, que poderia, portanto, ficar redigido da seguinte forma e colocado onde melhor convenha:

«Não poderá ser decretado o divórcio requerido por um dos cônjuges:
1.º No caso dos n.ºs 1.º e 2.º do artigo 2.º, se o cônjuge que o requereu tiver incitado o outro a cometer o adultério ou nêle tiver consentido ostensivamente;
2.º Se o cônjuge que o requereu fôr por sua vez convencido de qualquer facto contra êle invocado pelo outro e que constitua fundamento legal de divórcio;
3.º Nos casos dos n.ºs 1.º, 2.º, 4.º e 5.º do artigo 2.º, se o cônjuge ofendido houver perdoado as ofensas, reconciliando-se e continuando a viver no lar comum».

0 preceito relativo à reconvenção (§ 1.º do artigo 36.º) poderia, por sua vez, ser concebido nos seguintes termos:

«As acções de divórcio admitem sempre reconvenção, e entender-se-á que renuncia ao direito de pedir o divórcio contra o autor, por qualquer fundamento legal já existente, o cônjuge que o não invocar em reconvenção.
§ 1.º (Igual ao § único do artigo 15.º do decreto de 3 de Novembro de 1910).

Página 65

29 DE ABRIL DE 1937 632-OOO

§ 2.º Não querendo reconvir, poderá o réu alegar na contestação, para os efeitos do artigo 4.º da presente lei, qualquer facto que constitua fundamento legal de divórcio contra o autor».

No artigo em que se permite a reconvenção, apenas interessa preceituar que pode o réu opor ao autor, para os efeitos do artigo 4.º, qualquer facto que por si seria fundamento legal de divórcio a invocar em reconvenção. As demais circunstâncias referidas no artigo 4.º, que impedem que seja decretado o divórcio, não ha que aludir aqui, e é evidente que o réu as poderá alegar e provar, visto que constituem meio legítimo de oposição ao divórcio.
Aceite a doutrina que acabamos de sugerir, e redigido o artigo 4.º nos termos que ficam indicados, deverá eliminar-se, por desnecessário, o preceito do artigo 7.º do projecto, cuja redacção aliás não era feliz.
Por um lado, não se via claramente com que intuito e utilidade se exigia na sentença condenatória a declaração de culpado do cônjuge que houvesse dado causa ao divórcio, sendo certo que, na estrutura do projecto, o divórcio assenta sempre numa falta ou culpa do cônjuge contra quem é requerido; por outro lado, não era correcto, falando-se da sentença a que julgar procedente a acção», dizer que ela recusaria o divórcio se das provas produzidas resultasse que ambos os cônjuges eram culpados, nos termos dos n.ºs 1.º e 2.º do artigo 4.º E se culpado é o cônjuge que da causa ao divórcio, isto é, aquele em quem se verifica o facto que se invoca como fundamento do divórcio, não parecia rigoroso qualificar também como culpado aquele dos cônjuges que simplesmente incitou o outro a praticar o facto alegado como fundamento do divórcio - o adultério - ou nêle consentiu ostensivamente; aqui a culpa correspondia a um conceito fundamentalmente diverso.

b) Carácter pessoal da acção de divórcio

24. Dispõe o artigo 52.º do decreto de 3 de Novembro de 1910 que a acção de divórcio só compete aos cônjuges e extingue-se pela morte de qualquer dêles; e preceitua em seguida, de um modo geral, o artigo 53.º que, se o cônjuge a quem competir a acção fôr incapaz de exercê-la, poderá, em sua vida, ser representado por qualquer dos seus ascendentes, descendentes ou irmãos, e, na falta ou recusa dêles, pelos parentes mais próximos, observada a ordem em que são mencionados no artigo.
Que doutrina se consigna a êste respeito no projecto?
Dispõe o artigo 3.º que:

«0 divórcio só pode ser requerido pelo cônjuge inocente. Se a acção estiver pendente na data da sua morte, não poderá ser prosseguida pelos seus herdeiros».

A doutrina estabelecida neste artigo não diverge, na essência, da que se consigna no decreto de 1910.
Declarando explìcitamente que é o cônjuge inocente, e só êle, que tem a faculdade de requerer o divórcio - doutrina que já se deduzia das disposições do decreto de 1910, designadamente do seu artigo 44.º, se bem que a expressão «cônjuge inocente» não fôsse perfeitamente adequada ao sistema nêle consagrado, havendo fundamentos de divórcio, que nem sempre correspondem a culpa de um dos cônjuges -, o artigo é certamente destinado também a afirmar o princípio de que só pessoalmente pelo cônjuge, ou em nome dêle, pode ser intentada a acção de divórcio; tanto assim que, como se preceitua explìcitamente na sua parte final,
se o cônjuge que a intentou morrer na pendência da acção, os seus herdeiros não poderão sequer prosseguir com ela.
Simplesmente se não diz no artigo, tal qual está redigido, se a acção se extingue ou não no caso de morte do cônjuge contra quem foi intentada. E como no artigo 52.º do decreto de 1910 se preceitua claramente a doutrina de que a acção se extingue por morte de qualquer dos cônjuges, a disposição do artigo 3.º do projecto há-de necessàriamente dar lugar a dúvidas.
Poderá dizer-se que não é necessário declarar expressamente que a acção se extingue por morte do cônjuge contra quem foi proposta, visto que, tendo o divórcio por fim a dissolução da sociedade conjugal, dissolvida fica ela pela morte de um dos cônjuges. Mas então desnecessário seria também declarar que ela não prossegue no caso de morte do autor. E a verdade é que são diferentes os efeitos da dissolução por morte e da dissolução por divórcio, especialmente quando êste assenta na culpa de um dos cônjuges. Por isso mesmo, até na vigência do actual decreto, e a despeito do preceito do seu artigo 52.º, temos conhecimento de que já se pretendeu que a acção de divórcio deveria seguir até final, apesar da morte de uma das partes.
Parece-nos por isso preferível neste particular a fórmula do decreto de 1910, que poderia melhorar-se modificando-a nos seguintes termos:

«A acção de divórcio compete pessoalmente ao cônjuge inocente e extingue-se pela morte de qualquer dos cônjuges, não podendo prosseguir com os herdeiros de qualquer dêles».

Mas, emquanto o decreto de 1910 alude em termos genéricos ao caso de incapacidade do cônjuge a quem compete requerer o divórcio, dizendo que poderão em vida dêle propor a respectiva acção os seus parentes, como seus representantes, o projecto dispõe no § único do artigo 3.º, e como excepção única ao carácter pessoal da acção de divórcio, que,

«Se o cônjuge inocente fôr demente, pode o seu divórcio ser requerido por qualquer dos seus parentes consanguíneos em linha recta ou em segundo grau da linha colateral».

Quere dizer, o projecto refere especialmente o caso de incapacidade por demência, quando o decreto de 1910 aludia genèricamente a incapacidade do cônjuge para exercer a acção; mas a verdade é que a incapacidade por demência e a única espécie de incapacidade que pode impedir o cônjuge do exercício da acção de divórcio, visto que as diversas formas de incapacidade do cônjuge, respeitando apenas à administração dos bens, não afectam o exercício de direitos respeitantes a relações de natureza pessoal.
É pois meramente aparente o carácter limitativo do preceito do § único do artigo 3.º do projecto; e, assim, em face do projecto, como no decreto de 1910, o carácter pessoal da acção de divórcio não significa que só êle, pessoalmente, a possa exercer em vida, pois em seu nome e representação a podem propor os seus parentes; significa apenas que o direito de a propor não se transmite, por morte do cônjuge, aos seus herdeiros, e, pelo menos, na doutrina do decreto de 1910, que ela termina com a morte de qualquer dos cônjuges.
A faculdade, porém, de propor a acção em nome do cônjuge incapaz por demência e atribuída pelo projecto apenas aos parentes consanguíneos em linha recta e aos irmãos, ao passo que no decreto de 1910 é concedida ainda, na falta ou recusa dos ascendentes, descendentes ou irmãos, a quaisquer outros parentes, prefe-

Página 66

632-PPP DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

rindo os mais próximos. Também no decreto de 1910 se antepõem os ascendentes aos descendentes, preferencia que se não consigna no preceito do projecto. Parece, portanto, dever observar-se a ordem legal estabelecida para a nomeação dos herdeiros legítimos. Seria conveniente esclarecer êste ponto, indicando explicìtamente a ordem de preferência, entre os consanguíneos da linha recta, para a representação do demente na acção de divórcio, pois a preferencia dos ascendentes parecia-nos justificada pela consideração de que os filhos devem, quando isso seja possível, ser estranhos a certas questões respeitantes à vida conjugal dos pais.

c) Prescrição

25. Inteiramente dignas de aplauso se nos afiguram as disposições do artigo 6.º e seu § único, em que se estabelece a prescrição da acção de divórcio, fixando-se as condições dessa prescrição.
Dispõe o artigo 6.º que o direito à acção de divórcio prescreve decorrido um ano a contar do momento em que o cônjuge ofendido teve conhecimento do facto invocado como fundamento da acção, ou três anos a contar da data em que o mesmo facto ocorreu; e no § único acrescenta-se:

«Se, porém, o fundamento de divórcio fôr o do n.º 3.º do artigo 2.º, poderá a acção ser instaurada emquanto subsistir o estado de facto que a motiva».

Confirma, pois, o § único, aludindo especialmente ao fundamento da ausência, a conclusão, que já resultava da referência feita no corpo do artigo ao «cônjuge ofendido», de que o princípio ali consignado respeitava exclusivamente aos outros fundamentos de divórcio que envolvem culpa ou ofensa do réu para com o autor.
Notaremos apenas que, referindo o n.º 4.º do artigo 2.º do projecto, como fundamento de divórcio, alguns factos ou circunstâncias que não representam pròpriamente uma ofensa ao cônjuge que pretende requerer o divórcio, sendo o carácter infamante da condenação ou a gravidade da pena que fundamentalmente servem de base a êste, a expressão «cônjuge ofendidos não é de grande propriedade. Reconhecendo, porém, a dificuldade de a substituir, supomos que não oferecera dúvida que a prescrição de um ano abrange o próprio caso de o fundamento a invocar ser a condenação a pena maior a que se alude no final do n.º 4.º

d) Reconciliação, desistência e transacção

26. Como dissemos já, o projecto, não se limitando a restringir os casos ou fundamentos de divórcio, procura ainda evitá-lo por meios indirectos de diversa natureza, destinados fundamentalmente a impedir que a acção, uma vez proposta, conduza a dissolução do casamento.
Nesta orientação, o projecto consigna disposições especiais relativas à reconciliação dos cônjuges, que vão mais além das que se estabeleciam já no decreto de 1910. Reproduzindo-se no corpo do artigo 5.º o princípio enunciado na última parte do artigo 18.º daquele decreto, preceitua-se no § 1.º que, nos casos dos n.ºs 4.º e 5.º do artigo 2.º, o juiz convocará sempre os cônjuges a uma conciliação em presença do conselho de família, podendo renovar a tentativa e adiar a sentença final pelo tempo que, em seu prudente critério, julgar conveniente.
Não só se promove e facilita a conciliação, atribuindo-se ao juiz um papel activo, pela convocação dos cônjuges a uma conferência na presença do conselho
de família, como se permite a renovação da tentativa, e até o adiamento da sentença final.
Não se pode deixar de apoiar como útil e feliz esta disposição do projecto. Como, porém, somos contrários à intervenção do conselho de família nos processos de divórcio, pelas razões que adiante se verão, não podemos concordar com a doutrina do § 1.º do artigo 5.º, na parte em que exige que a conferência de conciliação tenha lugar na presença daquele conselho.

Sempre na mesma ordem de ideas, o projecto dispõe no artigo 8.º, como de resto já o fazia o decreto de 1910 (artigo 18.º), que as acções de divórcio não podem ser confessadas pelo réu.
Completando êste preceito do decreto vigente, veio o decreto n.º 21:287 dispor no artigo 139.º que nas causas de divórcio a falta de contestação não importa a confissão dos factos em que se baseia a acção, resolvendo assim as dúvidas que se haviam suscitado em face do artigo 15.º do decreto n.º 12:353.
Ora, o projecto vai mais longe ainda, preceituando que a confissão dos factos alegados pelo autor não dispensa êste de produzir provas por testemunhas ou documentos.
Adopta-se, pois, um princípio semelhante ao que já se consagra em processo penal, de negar efeito probatório pleno a confissão do réu. Destina-se manifestamente esta disposição a evitar os chamados impròpriamente divórcios simulados, que assentam numa combinação dos cônjuges desavindos que decidiram de comum acordo divorciar-se por um processo mais rápido que o de divórcio por mútuo consentimento. Por êste expediente os cônjuges concertam-se para atribuir a um dêles, na posição de réu, certos factos que constituirão o fundamento legal, mas não real, do divórcio, pois apenas para o efeito de obter o divórcio são falsamente atribuídos ao cônjuge, que falsamente também os confessa na acção.
Representando êste divórcio, como dito fica, uma verdadeira modalidade de divórcio por mútuo consentimento, sendo até frequente invocar esta prática para justificar a admissão daquele, afigura-se-nos digna de todo o aplauso a disposição contida no artigo 8.º

Nos §§ 1.º e 2.º dêste artigo do projecto declara-se inadmissível a transacção, salvo quanto as questões de carácter patrimonial, e dá-se ao autor a faculdade de desistir da acção em qualquer altura da causa.
Amplia-se, assim, quanto à desistência, a doutrina consignada no artigo 18.º do decreto de 1910, segundo a qual o autor podia desistir da acção apenas até a conclusão para sentença final em l.ª instância.
Quanto à transacção, a doutrina consignada obedeceu ao princípio de que esta, como a renuncia, é excluída nas acções que respeitem ao estado das pessoas. Como porém o divórcio, determinando a dissolução do vínculo matrimonial, importa a partilha do casal, havendo assim interêsses de ordem patrimonial a regular, o projecto permite, quanto a questões desta natureza, a transacção ou acôrdo das partes.
Parece-nos inteiramente justificada a disposição.

§ 3.º - Restrições às novas núpcias do divorciado

27. Uma das innovações mais importantes do projecto é a que respeita às restrições opostas ao novo casamento do divorciado.
Regula-se o assunto nos artigos 11.º e 12.º
No artigo 11.º, correspondente ao preceito do artigo 55.º do decreto de 1910, estabelecem-se apenas os prazos que devem decorrer sôbre a data do divórcio para que qualquer dos cônjuges possa contrair novo

Página 67

29 DE ABRIL DE 1937 632-QQQ

casamento. Mantêm-se os prazos de um ano e de seis meses, respectivamente, para a mulher e para o varão, já estabelecidos no decreto de 1910.
No artigo 12.º, porém, de muito maior alcance, preceitua-se que não pode contrair novo matrimónio:

1.º «0 cônjuge que por duas vezes se haja divorciado por causa que lhe seja imputável»;
2.º «0 cônjuge condenado por homicídio voluntário, consumado ou frustrado, ou tentativa dêle na pessoa do outro cônjuge ou seus ascendentes».

Antes de nos ocuparmos da disposição dêste artigo, faremos algumas observações sôbre o preceito do artigo 11.º relativo aos prazos para que o divorciado possa contrair novas núpcias.
São conhecidas as razões, não apenas de ordem fisiológica como também de decôro social, em que se apoia a imposição dêstes prazos. No sistema do decreto de 1910, em que o divórcio litigioso era admitido por diversos fundamentos que desaparecem da enumeração do artigo 2.º do projecto, e se admitiam o divórcio por mútuo consentimento, e a conversão da separação em divórcio ao cabo de cinco anos, o § 1.º do artigo 55.º lògicamente dispunha que cessava a exigência dos prazos estabelecidos no corpo do artigo, e o novo casamento era imediatamente possível, quando o divórcio litigioso fôsse decretado por algum dos fundamentos que importavam já de per si um período não inferior aos prazos do artigo, durante o qual cessasse a cohabitação dos cônjuges, e ainda quando se tratasse de divórcio por mútuo consentimento ou de conversão da separação em divórcio, pois nestes casos subsistia a circunstância referida; o divórcio por mútuo consentimento só era decretado definitivamente ao cabo de um ano de divórcio provisório, durante o qual cessava a vida em comum dos cônjuges; e no caso de conversão o divórcio era decretado ao cabo de cinco anos de separação de pessoas e bens.
0 projecto, não admitindo o divórcio por mútuo consentimento, elimina da enumeração dos fundamentos do divórcio litigioso o abandono completo do domicílio conjugal por tempo não inferior a três anos e a separação de facto livremente consentida por dez anos consecutivos.
Mas subsiste o fundamento da ausência, sendo aliás maior a duração desta. Por outro lado, segundo o artigo 33.º do projecto, a separação de pessoas e bens ainda será convertível em divórcio no caso de adultério posterior da mulher, embora sòmente a requerimento do marido.
Parece, pois, que para os casos de ausência e de conversão da separação em divórcio, quando esta tivesse tido lugar após um período de separação de pessoas e bens não inferior aos prazos referidos no artigo 11.º, se justificava um preceito idêntico ao do § 1.º do artigo 55.º do decreto de 1910.
0 desfavor pelo divórcio não nos parece suficiente para justificar a omissão de um preceito que se apresenta como uma exigência imperiosa da lógica jurídica: cessante ratione legis, cessat ejus dispositio.

Mas outro reparo nos merece ainda o texto do artigo 11.º do projecto:
Ao estabelecer, para a realização de novas núpcias pela mulher, um prazo mais elevado do que o fixado para o varão, a lei teve em atenção a necessidade de evitar a confusão do sangue, impedindo situações em que a paternidade de um filho nascido após o novo casamento da divorciada pudesse atribuir-se tanto ao novo marido como ao anterior.
E, assim, o Código do Registo Civil vigente( decreto n.º 22:018), no § único do seu artigo 291.º, dispõe, alterando dêste modo o preceito do artigo 10.º do decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910, e implìcitamente a disposição do artigo 55.º do decreto do divórcio, que

«a mulher viuva ou divorciada poderá, porem, casar depois de seis meses, a contar da dissolução do casamento, desde que prèviamente faça verificar, nos termos do artigo 650.º do Código do Processo Civil, se esta ou não grávida».

Supomos que não está nos intuitos do projecto derogar, quanto ao caso de dissolução do casamento por divórcio, a doutrina já hoje estabelecida nestas disposições, que, referindo-se genèricamente à «dissolução do casamento», abrange tanto a dissolução por morte como a resultante de divórcio, e portanto não só o novo casamento da viúva como também o da divorciada.
Será, pois, conveniente, para evitar dúvidas sôbre se o novo preceito do projecto revoga ou não o preceito geral do Código do Registo Civil no caso de dissolução por divórcio, como lei especial posterior, aditar ao projectado artigo 11.º um parágrafo em que se consigne doutrina harmónica com a que se estabelece no citado preceito do Código do Registo Civil, ou se ressalve explicìtamente a disposição nêle consagrada. Em novo parágrafo se deverá, além disso, consignar o princípio de que o novo casamento dos ex-cônjuges e imediatamente possível nos casos atrás referidos: ausência do cônjuge e conversão da separação em divórcio.
O artigo 11.º poderia, pois, ficar redigido da seguinte forma:

«A mulher divorciada não poderá contrair novo casamento sem que haja decorrido um ano completo desde que transitou em julgado a sentença que decretou o divórcio, salvo o disposto no § único do artigo 191.º do decreto n.º 22:018, de 22 de Dezembro de 1932, e o marido não poderá fazê-lo sem que tenha decorrido o prazo de seis meses sôbre a data referida.
§ único. Cessa a disposição dêste artigo e o novo casamento e imediatamente possível quando o divórcio tiver sido decretado com fundamento no facto referido no n.º 3.º do artigo 2.º ou nos termos do artigo 33.º da presente lei».

Julgamos desnecessário ressalvar expressamente neste artigo os casos do artigo subsequente, em que se indicam as hipóteses em que aos cônjuges divorciados e recusado o direito de contrair novo matrimónio, parecendo evidente que as disposições do artigo em que se fixam as condições de tempo em que os ex-cônjuges poderão voltar a casar só se aplicam aos casos em que essa faculdade lhes não e negada.

28. Analisemos agora o preceito do artigo 12.º do projecto.
Proibindo o novo casamento ao cônjuge que por duas vezes já se tenha divorciado por causa que lhe seja imputável, o projecto tem em atenção que o cônjuge que se encontra nestas condições é como que um profissional do divórcio, que, não tendo a compreensão e a consciência da alta dignidade da união conjugal como base da constituição da família legítima, apenas vê no casamento o meio de satisfazer baixos instintos carnais; e presumìvelmente um inadaptável a vida conjugal. E o varão que pretendesse contrair novas núpcias depois de ter dado por duas vezes causa ao divórcio e legítimo presumir também que no casamento procura

Página 68

632-RRR DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

apenas o meio de possuir mulheres que de outra forma se lhe não entregariam.
A disposição é salutar e a prática legislativa regista casos de limitação, nestes termos, da faculdade de contrair casamento. O facto de se ter divorciado por duas vezes, e por causa que lhe seja imputável, constitue, pois, para o ex-cônjuge um impedimento para novo casamento, que deverá aditar-se, a triunfar a disposição do projecto, aos referidos no artigo 4.º do decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910.
Com efeito, no preceito do artigo 12.º deve ver-se a consignação de uma incapacidade de gôzo de um direito. Esta incapacidade é absoluta. Propondo-se a lei impedir a nova união do divorciado nestas condições, nunca se poderá reconhecer como valido o casamento que êle porventura venha a realizar. Tal casamento deveria, pois, a nosso ver, considerar-se absolutamente nulo e como se nunca tivesse existido, não admitindo nem regulando a lei a forma de sanar tal incapacidade.
Esta conclusão parece, de resto, confirmada pela natureza da incapacidade referida a seguir no n.º 2.º do mesmo artigo 12.º, a respeito da qual se nos afigura que não poderão surgir dúvidas.
É dessa incapacidade que passamos a ocupar-nos.

29. Refere-se o n.º 2.º do artigo 12.º, como vimos, ao cônjuge condenado por homicídio voluntário, consumado ou frustrado, ou por tentativa de homicídio contra a pessoa do outro cônjuge ou seus ascendentes.
Colocado no artigo 12.º dêste projecto, isto é, num diploma relativo ao divórcio e numa disposição em que se trata de limitar o direito do divorciado a contrair novo casamento, parece concluir-se que no preceito em questão se considera apenas o condenado pelo crime ou tentativa que ficam referidos, e que, tendo-se divorciado, pretenda contrair novo matrimónio.
Esta expressão «novo matrimónio» que se lê no corpo do artigo 12.º, conjugada com a ressalva que as «restrições do artigo subsequente» se faz no final do artigo 11.º, reforçam esta conclusão.
Mas chegaremos a conclusão diversa se aproximar-mos esta disposição do n.º 5.º do artigo 4.º do decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910, em que se estabelecem os impedimentos do casamento chamados de proibição absoluta, visto que ferem de nulidade absoluta o casamento realizado contra as proibições aí formuladas.
Nesse artigo, com efeito, declara-se que

«Não pode contrair casamento:

5.º O cônjuge condenado como autor ou como cúmplice do crime de homicídio, ou de tentativa de homicídio, contra o seu consorte, com qualquer dos condenados como autores ou cúmplices do mesmo crime».

0 preceito do artigo 12.º, n.º 2.º, do projecto, alterando a redacção desta disposição de maneira a tornar claro que se trata apenas do homicídio voluntário, e tanto de crime consumado como de crime frustrado - eliminando assim questões ventiladas em face do decreto do casamento -, converte êste impedimento, de relativo que era, segundo a terminologia clássica, no sentido de só obstar ao casamento do condenado com qualquer das pessoas condenadas como coautores ou cúmplices do mesmo crime, em impedimento absoluto, que obsta ao casamento do condenado pelas faltas referidas com toda e qualquer pessoa, sendo ainda de notar que, emquanto o decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910 considera apenas o homicídio ou tentativa de homicídio contra a pessoa do consorte, o projecto contempla também o caso de homicídio ou tentativa contra os ascendentes do consorte.
Ora, sendo assim e estando o caso especialmente prevenido no n.º 5.º do artigo 4.º do decreto do casamento (homicídio ou tentativa contra a pessoa do consorte) abrangido no texto do n.º 2.º do artigo 12.º do projecto, é evidente que esta incapacidade, neste caso, não afecta apenas o ex-cônjuge condenado, que tivesse dissolvido, por divórcio, o seu casamento anterior com a vítima do homicídio frustrado ou da tentativa de homicídio, divórcio que poderia ter sido decretado contra êle pelo consorte sobrevivente, com fundamento no próprio n.º 4.º do artigo 2.º ou com qualquer outro motivo legal. Essa incapacidade existe mesmo no caso de dissolução do casamento anterior por morte, quer esta provenha quer não do próprio crime que deu origem à condenação.
Ora, sendo assim, parece claro que a mesma amplitude deve ter a incapacidade nos demais casos a que o n.º 2.º do artigo 12.º alarga o preceito do decreto do casamento. A proibição, com efeito, e estabelecida nos mesmos termos para, todos os casos abrangidos no texto do n.º 2.º
A conclusão a tirar, pois, é a de que o preceito do n.º 2.º está aqui inteiramente deslocado. E, a querer-se consagrar a doutrina rígida que nêle se contém, o meio adequado de o fazer seria propor a alteração do texto do n.º 5.º do artigo 4.º do decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910.
Mas a verdade é que, pôsto assim a claro o alcance e significado do n.º 2.º do artigo 12.º do projecto, apurado como fica que se trata de um verdadeiro impedimento do casamento, de carácter geral, que nada tem que ver com o divórcio, não vemos razões que levem a estabelecer uma proibição tam ampla e radical.
Ainda se justificaria, como medida de protecção contra a pessoa do consorte, que a condenação pelas infracções referidas se considerasse impedimento para o casamento do condenado com qualquer pessoa, que nem mesmo fôsse coautor ou cúmplice da infracção base da condenação, especialmente quando se apurasse que a infracção fôra cometida para se poder realizar o novo casamento; procurar-se-ia assim evitar que o indivíduo casado se animasse a matar, o seu consorte como meio de poder contrair nova união com outra pessoa. Mas nunca se justificaria o impedimento quando o crime fôsse cometido contra a pessoa dos ascendentes do outro cônjuge. E a verdade é que, mesmo no primeiro caso, a pretensão de novo casamento dos condenado poderia ser ulterior e inteiramente estranha ao crime por que foi condenado. E, assim, o preceito do projecto, desvirtuando completamente o impedimento clássico do «conjugicídio», já admitido no direito canónico, redundaria afinal num forte obstáculo a uma união legítima, no ponto de vista da lei civil, e até mesmo no da lei religiosa, se o condenado viúvo se propusesse contraí-la também à face da Igreja.
Julga por isso a Câmara Corporativa que deve eliminar-se pura e simplesmente o preceito do n.º 2.º do artigo 12.º do projecto.

§ 4.º - Efeitos do divórcio quanto a bens

30. Na secção relativa aos efeitos do divórcio quanto aos bens dos ex-cônjuges começa o projecto por consignar, no artigo 13.º e seu § único, a doutrina de que:

«Do divórcio resulta sempre a dissolução da sociedade conjugal e a partilha dos bens comuns do casal; e cada um dos ex-cônjuges terá a livre administração e disposição dos que lhe ficarem pertencendo.

Página 69

29 DE ABRIL DE 1937 632-SSS

§ único. A partilha dos bens entre os cônjuges poderá ser feita amigàvelmente, por meio de escritura pública, ou judicialmente, nos termos da lei processual».

É transparente o propósito do projecto de, com esta disposição, corrigir e melhorar a disposição correspondente do artigo 26.º e seu § único do decreto de 1910. A verdade, porém, e que a correcção não se nos afigura inteiramente feliz.
Diz-se no artigo 26.º do decreto de 1910 que «do divórcio resulta sempre a separação de bens entre os cônjuges, adquirindo cada um dêles a propriedade plena e livre disposição dos que lhe ficarem pertencendo, podendo sôbre êles transaccionar livremente e por todas as formas».
A fórmula não é perfeita, sendo todavia claro que se pretendia assinalar em termos explícitos que o divórcio, que, nos termos do artigo 1.º, determina a dissolução do casamento, acarretava a partilha do casal, e que, por isso, ao contrário do que se dava na separação de pessoas e bens, cada um dos ex-cônjuges, tendo a propriedade plena dos bens que na partilha lhe eram adjudicados, podia dêles dispor livremente e por qualquer forma, sem portanto ficar sujeito à outorga ou autorização do outro, quanto a bens imobiliários.
Não parecendo correcto aos autores do projecto dizer-se que «do divórcio resulta sempre a separação de bens», decerto porque esta separação de bens é uma simples modificação na sociedade conjugal, e o divórcio dissolve essa sociedade, substituíram a fórmula do decreto de 1910 pela que fica transcrita, dizendo que «do divórcio resulta sempre a dissolução da sociedade conjugal e a partilha dos bens comuns do casal».
Ora, se de facto convinha por de parte a fórmula do decreto citado, a verdade e que não lhe leva grande vantagem a que se emprega no projecto, pois é inteiramente desnecessário declarar neste artigo que do divórcio resulta sempre a dissolução da sociedade conjugal, desde que no artigo 1.º se começa por consignar o princípio de que o casamento se dissolve pelo divórcio.
A única cousa, pois, que haverá que dizer no artigo 13.º é que o divórcio, pondo termo a sociedade conjugal, determina a partilha do casal, adquirindo cada um dos ex-cônjuges a livre administração e a faculdade de disposição dos bens que na partilha lhe forem atribuídos.
Não julgamos correcto falar apenas em «partilha dos bens comuns», o que levaria a concluir que só quando houvesse bens comuns haveria lugar a partilha do casal. A partilha tem um alcance maior do que a de simples divisão de uma massa de bens comuns. Sempre que se dissolve a sociedade conjugal, que supõe a existência de um ou mais centros patrimoniais que estão afectados à satisfação das necessidades e cobertura das despesas do casal, ha a partilha dos bens do casal, operação que tem por fim a determinação e relacionação dos bens que pertencem ou ficarão pertencendo a cada um dos cônjuges, e que envolve naturalmente, sempre que haja bens comuns, a divisão dêstes entre os cônjuges ou entre um dêles e os herdeiros ou representantes o outro.
E assim, mesmo nos regimes de separação ou de completa incomunicabilidade, pode falar-se de partilha, devendo os cônjuges, neste caso, em inventário ou por escritura amigável, determinar e relacionar quais os bens que constituem o património próprio e individual de cada um dêles. Cumpre ter em atenção que, vivendo os cônjuges, mesmo nos regimes de separação, numa verdadeira comunidade de interêsses, estando os bens de ambos entregues a administração do marido, vivendo o casal dos rendimentos dos bens tanto de um como de outro e podendo haver créditos e débitos recíprocos no momento da dissolução da sociedade conjugal, a determinação do que pertence a um e a outro dos cônjuges não se encontra automàticamente feita, e importa um trabalho de apuramento que prende necessàriamente com as contas do marido, como administrador do casal. Esta determinação, êste apuramento, ou se faz por entendimento ou acôrdo amigável dos cônjuges, ou em processo de inventário, e é isto que constitue a partilha do casal nos casamentos sem comunhão de bens. Parece-nos, por isso, preferível dar ao artigo 13.º a seguinte redacção:

«Artigo 13.º O divórcio determina a partilha do casal, adquirindo cada um dos cônjuges a livre administração e a faculdade de livremente dispor de todos os bens que lhe ficarem pertencendo».

§ único. (Como está).

31. Seguindo na nossa análise das disposições desta secção do projecto, julgamos de vantagem passar desde já ao exame do artigo 16.º, que introduz alterações importantes na disposição do artigo 27.º do decreto de 3 de Novembro de 1910.
Já no parecer emitido sôbre o projecto de lei do ilustre Deputado Sr. Braga da Cruz notámos os inconvenientes que resultavam desta disposição legal, que, privando o cônjuge culpado dos benefícios que tivesse recebido ou houvesse de receber do outro cônjuge, quer estipulados em contrato antenupcial, quer assegurados posteriormente, lhe permite aproveitar das vantagens da comunhão de bens.

«... a experiência tem mostrado - escrevemos então - que em muitos casos o divórcio é positivamente provocado por um dos cônjuges como meio de se locupletar, em vida do outro, com os bens por êsse levados para o casal, visto que, sendo o casamento com comunhão de bens, a sua dissolução lhe atribue direito à meação nos bens comuns; representando a partilha uma vantagem para êle, o seu procedimento conjugal e norteado pelo objectivo de provocar uma rotura, que lhe atribue um bom quinhão nos haveres da sua vitima».

E acentuámos então que isto era possível porque o artigo 27.º aludia apenas a benefícios assegurados por um dos cônjuges ao outro, e a expressão «benefícios», envolvendo a idea de uma liberalidade, nunca poderia abranger as vantagens que ao cônjuge culpado adviessem da comunhão de bens, que eram mero efeito do regime matrimonial a que ficava sujeito o casamento.

«Ora o direito à meação - lê-se no citado parecer -, ainda quando a comunhão seja estabelecida por convenção, é um simples efeito do regime matrimonial, como tal resultante da lei; nunca poderá considerar-se como um «benefício recebido do outro cônjuge», ainda que a comunhão proporcione vantagens a um dêles, na partilha, por ser a sua situação de fortuna inferior a do outro» 1.

Por isso se observou então que seria justificável preceituar na lei que nos casamentos com comunhão de bens o cônjuge que desse causa ao divórcio não teria direito à meação em relação aos bens que ao casal tivessem advindo pela cabeça do outro cônjuge, cabendo-lhe portanto apenas, quando muito, metade nos

1 Cf. Diário das Sessões, Suplemento ao n.º 32, de 22 de Março de 1935, p. 12, 2.ª coluna.

Página 70

632-TTT DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

adquiridos conjuntamente por ambos, por titulo oneroso, na constância do matrimónio; e isto porque, emquanto o matrimonio subsistiu, os rendimentos pertenceram em comum a ambos.
Ora, procurando evitar os inconvenientes e injustiças que ficam apontados, o projecto consigna no artigo 16.º a doutrina de que o cônjuge que der causa ao divórcio «perderá em favor dos filhos comuns, havendo-os», além dos benefícios recebidos ou a receber do cônjuge inocente, assegurados por convenção antenupcial, doação ou testamento, o direito à meação dos bens que o cônjuge ofendido tiver trazido para o nasal ou que por título gratuito lhe hajam advindo na constância do matrimónio.
Criticando esta disposição do projecto, o Dr. Botto de Carvalho, na sua já referida conferencia, observava que a injustiça resultante do artigo 27.º do decreto vigente subsistiria desde que não houvesse filhos do matrimónio que pelo divórcio se dissolve, continuando o preceito do projecto a consentir em tal caso que a meação fique pertencendo ao cônjuge culpado.
Entende, portanto, o ilustre advogado que a redacção do artigo leva a concluir que a existência de filhos comuns condiciona, não apenas a atribuição a êstes dos bens que deveriam compor a meação do cônjuge culpado, mas a própria perda por parte dêste do direito a essa meação.
A interpretação é legítima, faltando uma vírgula a seguir à palavra «perderá».
Duvidamos, todavia, que seja essa a doutrina que se propuseram consignar os autores do projecto, sendo legitimo admitir que, no seu pensamento, quando não houvesse filhos, o cônjuge culpado continuaria privado do direito a meação, de que beneficiaria então naturalmente o outro cônjuge.
Só assim se evitam, neste sistema, os inconvenientes e injustiças que juntamente tem sido apontados como resultantes do artigo 27.º E, a ser esta a doutrina do artigo 16.º, não deixamos de a julgar justificada, pois se atenua em certo modo a derrogação dos princípios que ela importa, a preterição das consequências lógicas da dissolução do matrimónio que a solução envolve.
Na parte final do artigo precisa-se o alcance da disposição, declarando-se que o cônjuge culpado perde o direito à meação «nos bens que o cônjuge ofendido tiver trazido para o casal ou que por título gratuito lhe hajam advindo na constância do matrimónio».
Corresponde assim a doutrina consignada no projecto a que, no seu já citado parecer, esta Câmara declarava aconselhável, pois se assegura de tal modo ao cônjuge culpado participação nos bens que na constância do matrimónio tenham sido adquiridos por título oneroso, com rendimentos que eram comuns.
Concordando, pois, a Câmara Corporativa com a doutrina que na essência se consagra no artigo 16.º do projecto, não deixara contudo de exprimir os reparos que lhe provocam os termos em que está redigido o artigo.
Alude-se nêle ao «cônjuge que tenha dado causa ao divórcio», dizendo-se que êle perdera todos os benefícios que lhe advenham do a cônjuge inocente». Não poderá, portanto, oferecer duvida que o cônjuge que deu causa ao divórcio é, não o cônjuge autor, mas o cônjuge réu, a quem respeita o facto que serve de fundamento ao divórcio.
Como, porém, a esta expressão se contrapõem as fórmulas «cônjuge inocente» e «cônjuge ofendido», poderá entrar a duvidar-se se o cônjuge que dá causa ao divórcio é só aquele por cuja culpa o divórcio é decretado, portanto aquele que se torna responsável para com o outro por qualquer falta ou ofensa, ou se a expressão abrange, de um modo geral, qualquer fundamento de divórcio, e portanto designa o cônjuge réu, compreendendo assim o próprio caso em que não pode rigorosamente falar-se de culpa ou de ofensa, como e o do n.º 3.º do artigo 2.º - ausência.
E a dúvida e tanto mais legítima quanto e certo que o artigo 27.º, regulando o direito do cônjuge divorciado a alimentos, estabelecendo, na primeira parte do artigo, que o cônjuge inocente tem direito a reclamá-los do cônjuge culpado, alude em seguida, como hipótese nova e especial, ao caso do divórcio com fundamento na ausência, falando então de a cônjuge necessitado».
Comentando a fórmula empregada no artigo 27.º do decreto de 1910, idêntica ao do artigo 16.º do projecto, o Dr. Botto de Carvalho, qualificando de imprópria a expressão usada, observa que o caracter penal da disposição não permite incluir no seu âmbito senão as causas de divórcio que tem como origem um facto voluntário praticado pelo cônjuge requerido. E assim conclue que escapam ao rigor do artigo os divórcios decretados por ausência, loucura ou doença contagiosa incuráveis.
Na opinião dêste advogado, portanto, a disposição do artigo 16.º do projecto não se aplicará a todos os casos ou fundamentos de divórcio considerados no artigo 2.º, escapando naturalmente ao princípio nela enunciado os casos de ausência.
Afigura-se-nos no entanto que, sem grande violência, se poderia aplicar o princípio do artigo aos casos de ausência, visto que, a não ser que a ausência não seja voluntária, ela representa uma violação das obrigações que a lei impõe aos cônjuges de viverem juntos e de se auxiliarem e socorrerem recìprocamente.
A conservar-se, pois, o fundamento de divórcio mencionado no n.º 3.º do artigo 2.º, cumpriria ter em atenção as dificuldades e questões que ficam enunciadas, redigindo o artigo de forma a evitar as dúvidas de interpretação que deixamos referidas.

Abordando êste problema da comunhão em benefício do cônjuge culpado, o Dr. Botto de Carvalho, arredando a objecção de que bastará, na previsão do divórcio, excluir, por convenção, a comunhão de bens para que deixe de se produzir a injustiça verberada, resultante de o cônjuge que dá motivo ao divórcio aproveitar da fortuna da vítima, mostra-se adepto entusiasta da substituição da velha doutrina, que proclama a comunhão geral de bens como regime legal, na falta de convenção antenupcial, pelo princípio de que em tal caso o casamento se considera realizado com separação de bens e comunhão de adquiridos 1.
Dando o nosso pleno acôrdo a esta doutrina, pois julgamos, de um modo geral, o princípio da comunhão legal como uma reminiscência do passado, que se mantém pela fôrça da tradição, mas não corresponde as circunstâncias novas da presente época, advertimos todavia que a doutrina não dispensaria o preceito do artigo 16.º, pois é necessário considerar também o caso de a comunhão resultar de convenção das partes, estipulada na previsão ou na esperança, tantas vezes frustrada, de um perfeito e duradouro entendimento entre os cônjuges.
Se é certo que a circunstância de a comunhão resultar de uma convenção entre os esposos parece fazer aluir a base da doutrina do projecto, em favor da qual já nos havíamos pronunciado, pois poderá dizer-se que, ao estipular a convenção antenupcial, os esposos bem conheciam e deviam ter em vista o risco de uma dissolução por divórcio, a verdade e que nem assim carece de base jurídica a exclusão ou restrição da comunhão que se consigna no projecto, pois falta, no caso de divórcio,

1 Cf. ob. cit., pp. 45 e segs.

Página 71

29 DE ABRIL DE 1937 632-UUU

a pressuposição em que assentava a comunhão convencionada, e o princípio do artigo 16.º corresponde a considerar o divórcio como uma espécie de «condição resolutiva tácita» do regime de comunhão geral.

§ 5.º - O novo casamento do divorciado e o regime de bens

32. Sob a epígrafe Dos efeitos do divórcio quanto aos bens, na secção n, insere o projecto, aliás com impropriedade, disposições relativas ao novo casamento que venha a contrair o divorciado, quer com a pessoa de quem se divorciou, quer com outra pessoa. E dizemos com impropriedade, porque aquela expressão só pode com propriedade referir-se aos efeitos que o divórcio determina no regime das relações patrimoniais entre os cônjuges que o divórcio aparta.
Considerando a hipótese de o divorciado ter filhos do anterior matrimónio e contrair novas núpcias com pessoa que não seja o seu ex-cônjuge, o artigo 14.º do projecto dispõe que o novo casamento ficará sujeito ao regime da separação absoluta de bens, não podendo além disso o divorciado que volta a casar dispor a favor do novo cônjuge, por doação ou testamento, directamente ou por interposta pessoa, dos bens provenientes do anterior casal.
Consigna-se assim uma nova disposição em desfavor das segundas núpcias, já objecto de restrições especiais no Código Civil, onde se considera no entanto apenas a dissolução do anterior casamento por morte de um dos cônjuges.
Ao lermos o preceito do artigo 14.º do projecto, somos, com efeito, levados a aproximá-lo do artigo 1235.º do Código Civil, que, permitindo ao bínubo o casamento com comunhão de bens, simplesmente limita os bens que êle pode comunicar com o novo cônjuge e restringe bem assim a sua faculdade de fazer doações a favor deste.
Havendo já no Código Civil disposições gerais relativas às segundas ou novas núpcias, e sendo hoje, sem dúvida, o artigo 1235.º aplicável às novas núpcias do divorciado, pois o seu texto, alterado já depois do decreto de 1910, nada contém que autorize a considerá-lo restrito às segundas núpcias do viúvo (como é o caso do artigo 1236.º), como explicar a nova disposição do projecto, essa restrita explicitamente às novas núpcias do divorciado?
A diferença de regime entre o artigo 1235.º e o artigo 14.º do projecto, visto que em ambos os casos se trata de segundas núpcias do ex-cônjuge com filhos de anterior matrimónio, só pode apoiar-se na própria causa da dissolução do anterior matrimónio: a morte ou o divórcio.
Ora haverá razões que levem a considerar de modo particular, neste capítulo das novas núpcias, a dissolução do anterior casamento por divórcio, e poderá dizer-se que esta causa de dissolução determina e justifica um regime mais rigoroso, quer quanto à comunhão, quer quanto às liberalidades a favor do novo cônjuge?
Francamente não as vemos, e aqui temos um caso em que é particularmente de lastimar a falta de um relatório justificativo das disposições do projecto.
Poderá dizer-se que, resultando os principais inconvenientes do divórcio da constituição de novas famílias pelos ex-cônjuges, a disposição de que se trata visa precisamente a criar mais graves peias a essas novas uniões, que agora ambos os ex-cônjuges podem contrair.
Mas a verdade é que as disposições de que se trata, restritivas das segundas núpcias, têm por fim apenas proteger os interesses dos filhos de leito anterior. Note-se, com efeito, que tanto o artigo 1235.º como o artigo 14.º do projecto contemplam especialmente o caso de haver filhos do anterior matrimónio.

«Duas ordens de disposições - escreve Dias Ferreira no seu comentário ao Código Civil- estabelece o Código relativamente aos bínubos, uma para obviar à incerteza da prole (artigos 1232.º e 1234.º), e outra para acautelar os interesses dos filhos (artigos 1235.º a 1238.º), contra a leviandade ou imprudência dos bínubos que não duvidam arriscar e comprometer a fortuna dos filhos de leito anterior em proveito das relações jurídicas criadas com a nova associação familiar».

Antes mesmo da promulgação do Código Civil, providências bem mais severas se haviam adoptado em defesa dos interesses dos filhos de anteriores matrimónios. Assim, segundo a lei de 9 de Setembro de 1769 (§ 27.º), todo o pai de família que casava segunda vez, tendo filhos do primeiro matrimónio, era obrigado a fazer inventário dos bens móveis, semoventes, de raiz e acções que tivesse ao tempo do dito segundo matrimónio, e a segurar com caução de indemnidade as legítimas que nos tais bens tocassem ao filho ou filhos do dito primeiro matrimónio, de sorte que não pudessem distraí-los e menos aliená-los por qualquer título que fosse.
Esta lei, muito mais severa para as viúvas com filhos ou netos do que o Código Civil, foi provocada

«pelas vivas e repetidas queixas das grandes deteriorações e subsequentes ruínas que se tinham seguido às casas de segundos e terceiros casamentos feitos por homens que, depois de terem estabelecido as suas casas com uma numerosa sucessão, casavam segundas e terceiras vezes sem necessidade, prejudicando gravemente, e até abandonando, os filhos do primeiro matrimónio, para interessarem os do segundo por importunas instâncias das madrastas» 1.

Sendo, pois, êste o espírito das disposições referidas, não parece justificado considerar num preceito especial o caso da dissolução do anterior casamento por divórcio, ao regular, no que respeita a segundas núpcias do ex-cônjuge com filhos, a liberdade de comunicações de bens com o novo cônjuge e a faculdade de o contemplar com liberalidades.
Pronunciamo-nos, pois, pela eliminação do artigo 14.º, deixando o caso sujeito à disposição geral consignada no artigo 1235.º do Código Civil.

33. No artigo 15.º do projecto considera-se a hipótese - de que a prática apresenta não poucos exemplos - de os ex-cônjuges voltarem a casar um com o outro; e dispõe-se que neste caso subsistirá o regime matrimonial de bens que, por força da lei ou de convenção antenupcial, houver regido o anterior casamento, sem prejuízo dos direitos que em relação aos bens dos cônjuges tenham sido adquiridos por terceiros, no tempo que mediou entre o divórcio e o novo casamento.
Visa esta disposição, e mediante processo de muito maior rigor jurídico, um fim idêntico ao que determinou a alteração feita no artigo 1156.º do Código Civil, relativo ao dote, pelo decreto n.º 19:126, que reformou diversos artigos do mesmo Código.
Trata-se de evitar o expediente, de que já largamente se abusou, dos divórcios decretados entre cônjuges que vivem em perfeita harmonia, e requeridos de comum acordo com o fim exclusivo de modificar o regime ma-

1 Vide Dias Ferreira, Código Civil Português anotado, vol. II (2.º edição, 1896), pp. 342 e 347.

Página 72

632-VVV DIÁRIO DAS SESSÕES - Nº 127

trimonial de bens, iludindo assim o princípio do artigo 1105.º do Código Civil. Foi para evitar abusos desta natureza, e os divórcios que bem podem dizer-se obtidos a em fraude à lei», que, quanto ao regime dotal, se dispôs no artigo 1156.º que, dissolvido embora o matrimónio pelo divórcio, os bens imóveis só ficavam livres do ónus dotal por falecimento de qualquer dos cônjuges.
É, pois, uma disposição salutar, e merece a aprovação da Câmara Corporativa, a que se contém no artigo 15.º do projecto.

§ 6.º - Efeitos do divórcio quanto aos filhos

34. Na secção III do projecto regulam-se especialmente os efeitos do divórcio quanto aos filhos, considerando-se os seus reflexos sobre o poder paternal, quer no que toca aos encargos que ele acarreta para os pais, quer no que particularmente respeita ao gravíssimo problema da fixação do destino dos filhos menores.
Trataremos separadamente dêstes dois aspectos do objecto da referida secção, começando por examinar as disposições relativas à atribuição do poder paternal e aos encargos dele emergentes, para em seguida nos ocuparmos da matéria respeitante propriamente à determinação do destino dos filhos menores.

a) Pátrio poder

35. Começa o projecto por afirmar no artigo 17.º o princípio de que, dissolvido o matrimónio pelo divórcio, o pátrio poder continua a pertencer a ambos os pais, com todos os inerentes direitos e obrigações, salvo o caso de interdição ou inibição do exercício do mesmo poder.
Corresponde êste preceito ao do artigo 22.º do decreto de 1910, com a diferença apenas de que este último, como está a seguir ao artigo em que se regula o destino dos filhos e se permite que eles sejam entregues a algum dos cônjuges ou a terceira pessoa, acentua que em todos esses casos, isto é, seja qual for o destino dos filhos, e portanto ainda que sejam entregues só a um dos ex-cônjuges ou a terceira pessoa, ambos os pais conservam sobre eles o pátrio poder, emquanto dele não forem interditos; e além disso, na sua parte final, menciona explicitamente - o que na verdade é desnecessário - certos direitos que são inerentes ao pátrio poder e representam o seu exercício.
Propôs-se o projecto usar de uma fórmula mais correcta, na referência que faz ao pátrio poder, a com todos os inerentes direitos e obrigações»; mas não foi inteiramente atingido o seu objectivo, pois, como bem observa um dos autores do projecto no seu Tratado de Direito Civil 1, no caso de divórcio o pátrio poder não subsiste para ambos os pais com a plenitude dos seus direitos e encargos, isto em consequência de os filhos nunca poderem ficar, como durante a constância do matrimónio, igualmente sujeitos aos cuidados, ao convívio e à direcção de ambos os pais. Se todos ou alguns são entregues ou confiados a um deles, é claro que isso importa sacrifício nos direitos do outro inerentes ao pátrio poder, e manifesto é também que não poderá subsistir a supremacia ou preponderância da acção do pai, nos termos do artigo 13.º do Código Civil, que se baseia na qualidade de chefe da família, que desaparece com a dissolução da sociedade conjugal.
Por outro lado, aludindo-se à interdição, conviria especificar que se trata da interdição ou inibição do poder paternal.
E, assim, afigura-se à Câmara Corporativa que o artigo 17.º do projecto poderia com vantagem ficar redigido nos seguintes termos:

«Artigo 17.º Dissolvido o matrimónio em consequência de divórcio, ambos os pais conservam, salvo se dele foram interditos, o poder paternal sobre os filhos comuns, e exercê-lo-ão nos termos gerais de direito, com as restrições resultantes dos artigos subsequentes».

Atribuindo o poder paternal a ambos os pais, e acompanhando ainda neste ponto o decreto de 1910, o projecto consigna o princípio de que nenhum dos cônjuges pode renunciar a ele, nem mesmo em benefício do outro, sendo-lhes igualmente proibido estipular qualquer cláusula que os iniba de ver, visitar ou receber os seus filhos ou corresponder-se com eles.
É a doutrina do artigo 20.º, correspondente à do artigo 23.º do decreto de 1910. Apenas se acrescenta no texto do projecto a referência ao direito de correspondência com os filhos, que o Doutor Luiz da Cunha Gonçalves, no seu já citado trabalho, diz estar compreendido no direito de ver e visitar os filhos.
Não julgando rigorosa esta afirmação, visto que ver e visitar os filhos e corresponder-se com eles são cousas diferentes, e correspondem a situações que reciprocamente se excluem, não duvidamos em todo o caso de que os pais, que mantêm o pátrio poder, embora os filhos lhes não sejam entregues, têm o direito de com eles se corresponder, quando deles separados. Não se nos afigura, pois, necessária a indicação expressa deste direito, que aliás se não faz no artigo 20.º, que apenas expressamente proíbe que se renuncie a tal direito. Mas não vemos inconveniente em que ao preceito do artigo 23.º do decreto de 1910 se faça o aditamento proposto.

36. Conservando ambos os pais o pátrio poder, ambos são obrigados a contribuir, na proporção dos seus haveres, para os alimentos dos filhos menores. É a doutrina que explicitamente se enuncia no artigo 25.º do projecto, como já o fazia o artigo 24.º do decreto de 1910, que, além disso, no § único declara que a prestação de alimentos em benefício dos filhos tem hipoteca legal sobre os bens dos cônjuges.
Suprimindo esta referência explícita à hipoteca legal, certamente atenderam os autores do projecto a que o Código Civil a consigna já, de um modo geral, a favor do credor por alimentos, no n.º 5.º do artigo 906.º
É certo que o próprio princípio enunciado no artigo, quanto à prestação de alimentos, não é mais do que a reprodução da doutrina que de um modo geral se consagra no artigo 140.º do Código Civil. Mas a verdade é que, tratando-se agora de uma situação de facto diversa, vivendo os pais em economia separada, tem justificação acentuar que cada um deles é obrigado a contribuir para os encargos da sustentação dos filhos na proporção dos seus recursos pessoais. E é esse o alcance do artigo, que, justamente, enunciando esta obrigação, acrescenta: e quer estes (filhos menores) sejam todos confiados a um deles, quer divididos entre os dois, quer entregues a terceira pessoa ou internados em qualquer estabelecimento de educação ou assistência».
No § único preceitua-se, porém, como innovação, que nos a alimentos» se compreende o sustento, a habitação, o vestuário e a educação física e mental.
Sendo já consagrado o conceito de alimentos, que o Código Civil definiu no artigo 171.º e seu § único, e declarando-se neste parágrafo que os alimentos compreendem também «a educação e instrução do alimen-

________________

1 Doutor Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil (em comentário ao Código Civil), vol. VII, n.º 943.

Página 73

29 DE ABRIL DE 1937 632-XXX

tado, sendo êste menor», só podemos ver no texto do § unico do artigo 25.º do projecto o desejo de bem acentuar que a «educação» de que fala o Código compreende a educação física.
Hoje, que está merecendo especial cuidado aos poderes publicos dos diferentes países a educação física da mocidade, principio a que não faz excepção, felizmente, o nosso País, bem pode considerar-se justificado o cuidado dos autores do projecto.
Mas desde que se especifica o conteúdo da educação, afigura-se-nos indispensável aludir tambem especialmente à educação moral, visto que a educação mental corresponde propriamente a «instrução do alimentado» de que se fala no § único do artigo 171.º do Código Civil.
O final do parágrafo deverá, pois, referir «a educação física e moral e a instrução» ou a educação física, moral e mental»; afigura-se-nos porém preferível a primeira fórmula.
No artigo 25.º, porem, declara-se ainda, na parte final, depois de enunciada a obrigação de ambos os pais de contribuírem para os alimentos dos filhos, que, se um dos pais não tiver os recursos precisos, embora a êle sejam entregues os filhos, ficarão a cargo do outro todas as despesas de tais alimentos 1.

Merece certos reparos a doutrina aqui sancionada.
Compreende-se e justifica-se que se aquele dos pais a quem os filhos foram confiados, por assim o exigirem os interesses destes, não tiver recursos, as despesas com os alimentos dos filhos sejam totalmente suportadas (todas as despesas) pelo outro cônjuge. Mas se, não tendo os recursos precisos para custear integralmente os alimentos dos filhos que lhe são confiados, tiver todavia alguns meios que lhe permitam concorrer para as despesas com tais alimentos, e, de um modo geral, para os alimentos de todos os filhos menores, então, segundo o principio geral do artigo, terá de partilhar do encargo «na proporção dos seus haveres», isto é, na medida em que lhe fôr possível.
Ora, tal como está redigido, o final do artigo, em rigor, leva a impor totalmente o encargo dos alimentos ao outro cônjuge, quando aquele a quem foram entregues os filhos não tenha os recursos necessários para os custear, doutrina que o projecto não pode ter querido sancionar.
Ora a verdade é que, consignado o princípio da proporcionalidade, nada mais é preciso preceituar. O encargo de concorrer para os alimentos dos filhos menores é constante, e não depende do destino que se lhes dá ou da circunstancia de êles serem entregues a um ou outro dos pais ou a terceira pessoa. E, assim, o proprio principio enunciado na primeira parte do artigo leva a concluir que se um dos pais não tiver recursos para comparticipar nos encargos dos alimentos terão de ficar a a cargo do outro todas as despesas de tais alimentos, isto ainda que o cônjuge sem recursos seja aquele a quem todos ou alguns dos filhos foram entregues. Isto é, de resto, o que resulta da própria fôrça das circunstâncias.
A desnecessidade de tal preceito é, de resto, reconhecida pelo Doutor Cunha Gonçalves nas palavras com que anota a disposição do artigo 24.º do decreto de 1910, que consagra, como vimos, regra idêntica a que se enuncia no artigo 25.º do projecto. Observa, com efeito, o ilustre Deputado que o facto de os filhos serem confiados todos a um dos pais não liberta o outro da obrigação de contribuir para as despesas dos alimentos, se tiver para isso os necessários recursos; e que tam-pouco ficam isentos de tal encargo ambos os pais quando os filhos sejam confiados a terceira pessoa. E acrescenta finalmente que o artigo 24.º do decreto de 1910 «é bem claro a tal respeito» 1.
Julgamos, pois, que deve eliminar-se a frase final do corpo do artigo 25.º; quando assim se não entenda, convirá então substituí-la nos seguintes termos:

«Se um dos pais não puder concorrer, por falta de recursos, para os alimentos dos filhos que lhe foram entregues, serão as respectivas despesas totalmente suportadas pelo outro».

37. No artigo 26.º consigna-se a doutrina de que «os filhos menores que na data do divórcio dos pais tiverem dezóito anos completos ou os completarem depois do divórcio ficarão emancipados de direito».
Ja no artigo 60.º do decreto de 1910 se dispõe que se os cônjuges «tiverem filhos de mais de dezóito anos e de menos de vinte e um serão êles emancipados de direito pelo divórcio definitivo dos seus pais...».
Em face da redacção do artigo 60.º do decreto de 1910 só os filhos que à data do divórcio tivessem já atingido a idade de dezóito anos é que ficavam emancipados; tem-se entendido, no entanto, que os filhos que após o divórcio atingissem essa idade deviam igualmente ser emancipados, por efeito dêste.
A doutrina era muito contestável, pois bem poderia admitir-se que o legislador estabeleceu a doutrina referida quanto aos filhos que já tivessem dezóito anos na data do divórcio, como meio de evitar questões delicadas que sempre surgem ou podem surgir quanto a determinação do destino dos filhos menores, e que, portanto, uma vez que se providenciou sôbre a sorte dos filhos que então não podiam ainda, por falta de idade, ser emancipados, já não subsiste a razão para admitir quanto a êles uma emancipação consequente do divórcio.
Ulteriormente, porém, o decreto n.º 20:431, relativa às tutorias da infância, veio dispor, no § 2.º do artigo 11.º, que as tutorias poderão, se assim o julgarem convenientes, decretar a emancipação dos menores a que se refere o artigo 1.º, e portanto dos filhos de pais divorciados, logo que perfaçam dezóito anos de idade.
Não se estabelece, pois, para os menores que tenham menos de dezóito anos na data do divórcio a emancipação de direito logo que completem esta idade; deixa-se às tutorias a apreciação da conveniência dessa emancipação, atribuindo-se-lhes a faculdade de a decretar se assim o julgarem conveniente, atendendo naturalmente tanto a situação de facto existente, quanto às relações entre êles e os pais, como à própria aptidão do menor para reger a sua pessoa e bens.
O projecto consigna doutrina diversa, tornando extensiva a emancipação ipso jure aos menores que só completem dezóito anos depois de decretado o divórcio dos pais.
Afigura-se a Câmara Corporativa que e preferível o regime actualmente em vigor. For isso, uma vez que, segundo o projecto, o decreto de 3 de Novembro de 1910 ficará totalmente revogado pela nova lei sôbre o divórcio, devera o artigo 26.º do projecto ter a seguinte redacção:
«Artigo 26.º Os filhos menores que na data do divórcio dos pais tiverem dezóito anos de idade fi-

1 No texto do projecto que oficialmente nos foi remetido lê-se: «Se um dos pais não tiver recursos precisos, embora a êles sejam entregues os filhos ...». Fizemos as correcções resultantes do que acima escrevemos, por nos parecerem óbvias, sendo certo que no texto impresso do Diário das Sessões já a palavra «êles» foi substituída por «êle».

1 Cf. Ob. e vol. cit., p. 105.

Página 74

632-YYY DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

carão emancipados de direito, averbando-se a emancipação no respectivo assento de nascimento, em face da sentença de divórcio.
§ único. As tutorias da infância poderão, se se assim o julgarem conveniente, decretar a emancipação dos menores que completem a idade de dezóito anos posteriormente ao divórcio.

Mudou o projecto a colocação dêste artigo, que no decreto de 1910 figura entre as disposições gerais; aparece-nos agora entre as disposições relativas aos efeitos do divórcio quanto aos filhos. Justifica-se a orientação do projecto, pois trata-se de um efeito do divórcio sôbre o estado civil e capacidade dos filhos; pela emancipação cessa o poder paternal, quanto ao filho que atinge os dezóito anos; e, assim, era neste lugar que a disposição tinha o seu cabimento. Além disso, a colocação, que agora se lhe dá, assegura melhor o conhecimento de tam importante disposição.

b) Destino dos filhos

38. Com justeza observa um dos autores do projecto, o Doutor Cunha Gonçalves, que a questão da entrega dos filhos aos pais divorciados e a que mais dolorosos conflitos suscita entre estes e também aquela que maiores embaraços cria aos juizes que sôbre o assunto tem de decidir.
Acrescenta o referido publicista que, para mais, «são tam variadas as circunstâncias de cada divórcio, que podem considerar-se insuficientes as indicações que a lei lhes fornece para uma adequada e justa solução» 1.
Se, como parece, a observação respeita a impossibilidade de regular de modo completo com disposições legais o complexo e delicadíssimo problema do destino dos filhos menores, privados do lar paterno pelo divórcio, e não se trata apenas de uma apreciação critica da lei hoje vigente, reputamo-la inteiramente acertada e oportuna, pois reconhecemos não só a grande dificuldade de enunciar um sistema satisfatório de normas legais neste capitulo, desde que se saia da indicação de principios ou directrizes muito gerais, como tambem os inconvenientes de pretender formular preceitos rígidos para a solução de um problema a que a acentuada variabilidade de circunstâncias atribue aspectos novos, quasi de caso para caso, levando-nos, portanto, a pedir a sua justa regulamentação, mais do que a previsão do legislador, ao prudente arbitrio do julgador.
Pensando como fica indicado, não deixa de nos merecer simpatia a discreta moderação dos preceitos contidos no decreto de 3 de Novembro de 1910 e no decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910 2. A legislação subsequente, relativa a tutoria da infância, não se afasta essencialmente desta orientação, e o princípio que fundamentalmente a inspira é o da resolução equitativa de cada caso pelo tribunal, embora com a colaboração, sempre pedida, dos próprios pais dos menores.
Não se dispensaram, porém, os autores do projecto de consignar novos preceitos relativos ao destino dos filhos. Cumpre-nos, pois, agora ver o alcance de tais preceitos, a orientação a que obedecem e os resultados a que poderão conduzir.

39. Começaremos por mencionar o preceito do artigo 19.º e seu § único, em que se consagra um principio geral de orientação, inteiramente salutar, e que corresponde, em absoluto, a orientação que dissemos ser aconselhada, de simplesmente fixar em normas legais as directrizes por que se há-de nortear o julgador ao ter de resolver em cada caso as questões relativas as relações dos pais divorciados com os filhos menores.
Aí se diz que as providências a tomar quanto ao destino dos filhos inspirar-se-ão nos superiores interêsses dêstes, prescrevendo-se o regime de convivência entre êles e seus pais. Ao estabelecer êste regime, acrescenta o § único, dever-se-á ter em conta

«as circunstâncias de facto averiguadas, o número de filhos, o sexo, a idade, o estado de saúde, o caracter, as necessidades de educação e as qualidades dos pais, incluindo o facto de ser vencedor ou ofendido o cônjuge a favor do qual foi decretado o divórcio».

Há na disposição dêste parágrafo manifestos lapsos de redacção, que atraiçoam o que decerto foi a intenção dos autores do projecto.
Comentando as disposições da legislação vigente, e com particular referência ao artigo 21.º do actual decreto e ao decreto n.º 20:431, sôbre as tutorias da infância, o Doutor Cunha Gonçalves diz que cumpre ao juiz da tutoria ponderar não só todas as circunstâncias morais e materiais dos divorciados, mas tambem as da idade, do sexo, da saúde e da educação dos filhos. O juiz dará preferencia ao cônjuge vencedor quando não houver razões para confiar alguns dos filhos ao cônjuge vencido».
Aproximando estas considerações do texto do § único do artigo 19.º do projecto, torna-se evidente que êste se inspira naquelas, e será assim possível surpreender o alcance do preceito proposto, que de outra forma ficaria nebuloso.
Ve-se assim que as «circunstâncias de facto averiguadas» são as circunstâncias morais e materiais dos divorciados que puderam ser averiguadas ou ficaram apuradas no decurso do processo de divórcio; e mais se vê ainda que se pretende no parágrafo que se atenda, como circunstâncias relevantes, ao numero de filhos, ao sexo, idade, estado de saúde, caracter e necessidades de educação dêstes e, por outro lado, de um modo geral, as qualidades dos pais, e especialmente a circunstância de ser vencedor na acção ou cônjuge ofendido, o que significa que o cônjuge não tem a posição de culpado ou de causador do divórcio.
Sendo êste certamente o alcance do preceito, é de aceitar a sua doutrina, que corresponde às exigencias do bom senso e da equidade e dos ensinamentos da experiência havida. Mas a sua redacção é que tem absolutamente de ser corrigida.
Sugere, por isso, a Câmara Corporativa a seguinte redacção:

«§ único. Ao ditar essas providências deverá o juiz ter em conta as circunstâncias de facto que no decurso do processo tenham sido averiguadas quanto à situação material e atributos morais dos divorciados, a qualidade de vencedor na acção de divórcio e ainda o número de filhos, o sexo, a idade, o carácter, o estado de saúde e as necessidades de educação dêstes».

A circunstância de ser vencedor na acção não pode deixar de se considerar como particularmente importante para decidir do destino dos filhos, especialmente no sistema de causas de divórcio consagrado no projecto, visto ser em principio manifestamente inconveniente, quanto a alguns dos fundamentos legais, entregar os filhos menores ao cônjuge réu, contra quem foi decretado o divórcio.

Página 75

29 DE ABRIL DE 1937 632-ZZZ

A essa circunstância se atribue já grande valor no decreto vigente, de 1910, em cujo artigo 21.º se dispõe que «os filhos serão de preferência entregues e confiados ao cônjuge a favor de quem tenha sido proferido o divórcio».

receitua, porem, mais o § único dêste artigo que

«No caso de manifesta inconveniência de serem os filhos entregues e confiados à guarda de qualquer dos cônjuges, serão todos, ou alguns, confiados a terceira pessoa, preferindo-se para êsse fim os mais próximos parentes da linha paterna ou materna».

Regulando esta matéria, veio subsequentemente o decreto n.º 20:431 dispor, no seu artigo 11.º, que

«O tribunal na sua decisão regulará o exercício do poder paternal de harmonia com os interêsses do menor, que poderá ser confiado à guarda de qualquer dos pais, de terceira pessoa ou de um estabelecimento de beneficência ou educação».

Esta disposição - que, em nosso entender, não revogou o preceito do artigo 21.º do decreto de 1910, visto que, resultando a revogação das disposições legais anteriores, sobre determinada matéria, da sua incompatibilidade com as disposições da lei nova, essa incompatibilidade se não dá no caso presente - tem apenas o alcance de permitir que os filhos menores sejam confiados á guarda de um estabelecimento de beneficência ou de educação; esclarece-se assim ou completa-se a fórmula a confiados a terceira pessoa» do artigo 21.º do decreto de 1910, que, em boa razão, permitia já entregar os menores aos cuidados de qualquer estabelecimento de educação ou de assistência. E assim o entende o Doutor Cunha Gonçalves, observando, em comentário ao artigo 21.º, que a terceira pessoa pode ser parente ou não parente «e até um colégio ou asilo infantil» 1.
Entendemos também, como já fica indicado, e neste ponto acompanhamos o Doutor Cunha Gonçalves, que, ao decidir sobre o destino dos filhos, o julgador deve inspirar-se ainda, como direito subsidiário, nos principios contidos nos artigos 34.º e 35.º do decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910, que revela neste ponto uma perfeita unidade de orientação, relativamente ao decreto do divórcio.
Segundo estas disposições, no caso de o casamento ser anulado sem culpa de qualquer dos cônjuges, assegura-se à mãi o direito à posse das filhas, emquanto menores, e a dos filhos até completarem a idade de seis anos; quanto ao caso, porém, de haver culpa de um dos cônjuges, estabelecendo-se o principio de que só ao outro compete a posse dos filhos, ressalva-se o caso de a anulação ser devida à mãi, para se lhe assegurar, ainda neste caso, o direito de os conservar consigo até a idade de três anos, sem distinção de sexo.
Apesar da enorme diferença que pode separar as duas situações, anulação de casamento ou divórcio, dados os factos que constituem a culpa do cônjuge numa e noutra destas hipóteses, a verdade e que dêstes preceitos se destacam dois grandes critérios de orientação: o primeiro é o de que a posição de culpado na acção e no desmembramento da família prejudica o direito à posse dos filhos, e já vimos que o consagra em termos explícitos o artigo 21.º do decreto de 3 de Novembro de 1910; o segundo é o de que existe uma preferência, que poderemos dizer natural, a favor da mãi, quanto à posse das filhas, durante toda a menoridade delas, quanto à posse dos filhos até à idade, talvez exagerada, de seis anos, e quanto à posse dos filhos, sem distinção de sexo, emquanto, por sua tenra idade, carecem dos carinhos e cuidados que por via de regra as mãis melhor podem assegurar, isto é, até a idade de três anos.
Ora, feita esta indicação geral do estado actual da legislação sobre o destino dos filhos, vejamos que novos preceitos se formulam no projecto, além do principio geral orientador, já referido, do artigo 19.º

40. Dispõe o artigo 18.º do projecto que

«Os filhos menores serão confiados a guarda de um dos pais, de terceira pessoa, tendo preferência os parentes mais próximos da linha materna, ou internados num estabelecimento de educação ou assistência publica ou particular».

E o § 1.º acrescenta que

«Os filhos de idade inferior a dois anos não podem ser apartados da mãi, salvo com seu consentimento; e os filhos de idade superior a catorze anos serão sempre ouvidos acerca do seu destino e demais providências a tomar a seu respeito».

Como se vê, no corpo dêste artigo reproduzem-se essencialmente a doutrina e o texto do artigo 11.º do decreto n.º 20:431; apenas se introduz o princípio, quanto a hipótese de entrega a terceira pessoa, da prefer~encia dos mais próximos parentes da linha materna, e se acentua que o estabelecimento de educação ou assistência tanto pode ser público como particular 1.
Emquanto, pois, o decreto de 1910, no preceito elástico do § único do artigo 21.º, enunciava claramente o criterio a que obedecia a entrega dos filhos aos cônjuges ou a terceira pessoa, e, para esta ultima hipótese, estabelecia a preferência genérica dos mais próximos parentes da linha paterna ou materna, e tudo sempre regulado pelo prudente arbítrio do juiz, que apreciava a conveniência de uma ou outra solução, no artigo 19.º do projecto, consignando-se secamente a faculdade de entregar os filhos a terceira pessoa, estabeleceu-se uma preferência nova, em favor dos parentes da linha materna.
Quanto à omissão do critério para a escolha da pessoa a quem confiar os filhos, está ela suprida pelos principios, até bem mais detalhados, que se enunciam no artigo 19.º, § único.
Mas que pensar desta preferência dos parentes da linha materna?
No comentário ao preceito do artigo 21.º do decreto de 1910, o Doutor Cunha Gonçalves pronunciou-se no sentido de que «entre os parentes, em igualdade de circunstâncias, devem ter preferência os da linha paterna aos da linha materna»2. Porque se consignaria, portanto, doutrina oposta no projecto?
Na falta de um relatorio, não pudemos atinar com os fundamentos de tal doutrina. Tanto mais que não vemos razoes plausíveis que possam levar a estabelecer em abstracto qualquer preferência, quando se trata, não de escolher entre o pai e a mãi, mas entre parentes de uma ou de outra linha. Nesta hipótese afigura-se-nos que só poderá atender-se ás circunstâncias do caso

1 Cf. ob. e vol. cit., p. 104.
1 No texto publicado no Diário das Sessões lê-se «num estabelecimento de educação ou assistência publica ou particular»; no texto dactilografado, oficialmente remetido à Câmara Corporativa, por efeito de uma emenda não pode precisar-se se o texto diz «pública» ou «público».
2 Cf. ob. e vol. cit., p. 104.

Página 76

632-AAAA DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

concreto e em especial às qualidades que concorram nos parentes de uma ou de outra linha.
Pronunciamo-nos, pois, decididamente pela eliminação desta preferência e sugerimos a substituição das palavras da linha paternal pela fórmula da linha paterna ou maternas.

41. O § 2.º do artigo 18.º do projecto previne a hipótese de o progenitor que tem os filhos em seu poder se recusar a entregá-los à pessoa a quem a sentença judicial determinou que fôssem confiados, e ainda o caso de êle os raptar do poder desta, após a entrega; ambos êstes factos são punidos com a pena de prisão correccional até um ano, pena que cessará logo que a entrega se realize.
A justificação dêste facto, como se vê do que escreve o Doutor Cunha Gonçalves no seu já citado trabalho, provém de que frequentemente um dos cônjuges, que tem consigo os filhos no momento em que é decretado o divórcio, se recusa a cumprir ou acatar a determinação do juiz de os entregar ao outro cônjuge ou a terceira pessoa, chegando a escondê-los para impedir a entrega coerciva - que Rouast declara repugnar aos principios do moderno direito e ser impraticável quando a criança está bem escondida - e até a rapta-los do poder da pessoa a quem foram confiados.
Refere o citado autor do projecto que já se tentou punir criminalmente a inexecução da intimação judicial; mas um tribunal superior julgou, embora inexactamente, na sua opinião, que a pena por falta de cumprimento de obrigações civis está banida da nossa legislação, com excepção dos casos dos artigos 373.º, 825.º e 859.º do Código do Processo Civil» 1.
Nestas circunstâncias, e para obviar a tais inconvenientes, o projecto consigna a referida sanção, a exemplo do que faz a legislação francesa, que pune com a pena de prisão até um ano e multa de 5:000 francos o pai ou mãi que não cumprir a ordem judicial acerca da entrega dos filhos, após o divórcio 2. Preceituando que a pena estabelecida no § 2.º cessará logo que o progenitor entregue o filho a quem de direito, o projecto inspira-se na doutrina já estabelecida no decreto n.º 20:431, que, punindo com a pena de prisão correccional até seis meses aquele que, podendo, não prestar alimentos a um menor, depois de decorrido o prazo de noventa dias a contar da sentença que os decretou, ou desde que se encontre em mora, quanto a qualquer prestação vencida, dispõe que ficarão extintos o procedimento criminal e a pena, logo que o réu prove que prestou os alimentos (cf. artigos 16.º e 17.º). A estas disposições se refere o Doutor Cunha Gonçalves, quando lamenta que o decreto n.º 20:431 não tivesse estabelecido penalidades para a hipótese agora considerada no § 2.º do artigo 18.º do projecto, ainda que ela não seja tam frequente como a da falta de pagamento de alimentos 3. Das considerações feitas resulta que a Cãmara Corporativa se afigura vantajosa e justificada em principio à nova disposição do § 2.º do artigo 18.º do projecto.
Mas, quanto a penalidade aí estabelecida, serão legítimos os receios de que ela não seja de gravidade suficiente para compelir o cônjuge a cumprir o determinado na sentença, e portanto para prevenir os abusos que o projecto se destina a evitar.
De facto, a prática regista casos curiosos de resistência pertinaz às determinações judiciais, quanto a entrega dos filhos, mostrando até que há uma tal ou qual relutância por parte das autoridades em dar cumprimento a determinações violentas quando um dos cônjuges as provoca como meio de se assegurar do exercicio dos seus direitos, quanto aos filhos.
Não falta por isso quem preconize a imposição de uma pena pecuniária, conjuntamente com a de prisão, e até quem sugira que, no caso de ter direito a alimentos o cônjuge que se recusa, na época própria, a fazer a entrega do filho ou filhos que lhe estavam confiados, ou a assegurar ao outro o exercício do direito de ver os filhos ou de os ter em sua companhia, em harmonia com o determinado na sentença judicial, se reconheça ao outro cônjuge a faculdade de cessar a prestação dos alimentos até que o primeiro cumpra as obrigações que lhe são impostas.
É de notar que na lei francesa a prisão até um ano e acompanhada de multa até 5:000 francos; e o próprio projecto, de que estamos tratando, para o caso do delito que chama de «abandono da familia» (recusa ou falta de pagamento pontual de alimentos devidos à mulher pelo marido que a abandonou) adita à pena de prisão correccional de um ano a de multa até 2.000$.
Por outro lado, relativamente ao caso especial de um dos pais se recusar a cumprir as obrigações judicialmente impostas, quanto ao direito reconhecido ao outro de ver e receber ou ter em fina companhia os filhos que aquele foram entregues, já essa falta é punida com a pena de multa até 2.000$, nos termos dos artigos 19.º e 20.º do decreto n.º 20:431, disposição esta que a nova lei sôbre o divórcio não revogará. E se esta penalidade pode ser julgada excessivamente leve, não se nos afigura em todo o caso que seja recomendável aplicar a esta falta a sanção de cessar ou suspender a prestação de alimentos, sanção esta que poderia dar lugar a abusos tam perigosos como aqueles que se pretendem evitar, quando a sua aplicação não se tornasse dependente, como se faz mester, de determinação judicial.
Para as faltas, pois, a que se referem os artigos 19.º e 20.º do decreto n.º 20:431 julgamos suficiente para melhorar o regime actual a cominação de uma penalidade mais grave, já pela elevação do limite da multa, já pelo aditamento a multa da pena de prisão correccional; inclinamo-nos até para esta última modalidade, por se poder dar o caso de o infractor não ter bens que assegurem o pagamento da multa. Bastará, pois, se a Assemblea Nacional concordar com o ponto de vista que acabamos de expor, modificar a parte final do artigo 19.º do decreto n.º 20:431, substituindo a actual penalidade pela seguinte: pena de prisão correccional até um ano e multa até 10.000$; e eliminar-se-iam então as palavras finais «e remível nos termos gerais».
Este preceito legal, assim concebido, ficaria bem colocado entre as disposições do novo diploma sôbre divórcio, cabendo-lhe de facto um papel importante no sistema das disposições referentes aos efeitos do divórcio; por isso deveria transplantar-se para o novo diploma regulador deste, como objecto de um artigo novo.
Quanto ao caso, porém, que é especialmente previsto no § 2.º do artigo 18.º do projecto - recusa da entrega dos filhos por parte de um dos pais - , são de tal modo graves e até por vezes escandalosos os casos conhecidos de desrespeito pelas determinações judiciais e violação dos direitos assegurados ao outro cônjuge que entende-mos que se impõe a cominação de uma pena mais grave. E, assim, parece-nos razoável cominar para esta hipótese uma penalidade idêntica a que sugerimos para o caso dos artigos 19.º e 20.º do decreto n.º 20:431 - prisão correccional até um ano e multa até 10.000$. O juiz graduará esta pena conforme as circunstâncias.

Página 77

29 DE ABRIL DE 1937 632-BBBB

Razoável nos parece tambem para êste caso a sanção de suspender a prestação de alimentos, até que o cônjuge refractário ao cumprimento das determinações judiciais sôbre entrega dos filhos se decida a acatá-las convenientemente. Mas esta sanção só poderá aplicar-se quando devidamente cominada pela autoridade judicial, não podendo de modo algum admitir-se que a imponha por sua iniciativa o cônjuge lesado, a quem é recusada a entrega dos filhos, sem recorrer a autoridade judicial.
0 § 2.º do artigo 18.º poderia, pois, ficar redigido nos seguintes termos:

«§ 2.º O progenitor que se recusar a entregar os filhos, que tiver em seu poder, a pessoa ou entidade a quem deverem ser confiados por determinação judicial, ou que dificultar essa entrega opondo obstáculos ás diligências para tal fim ordenadas, ou os raptar do poder da referida pessoa ou entidade, incorrerá na pena de prisão correccional até um ano e multa até 10.000$, cessando, porém, o procedimento criminal ou a pena de prisão logo que seja feita a entrega do filho. Se, porém, o progenitor, depois de condenado, persistir em recusar ou dificultar a entrega dos filhos, ou reincidir em os raptar, a pena de prisão correccional não poderá ser substituída por pena pecuniária e a multa poderá ser elevada até ao dôbro».

Aditar-se-ia então ao artigo 15.º um novo parágrafo do seguinte teor:

«§ 3.º Se ao progenitor a que se refere o parágrafo anterior tiverem sido arbitrados alimentos, poderá tambem a autoridade judicial, a requerimento do outro progenitor ou oficiosamente, autorizar êste a suspender o pagamento da prestação de alimentos até que os filhos lhe sejam entregues».

42. Outro principio geral consignado no projecto, e a que a Câmara Corporativa não pode deixar de dar o seu apoio, e o que se enuncia no artigo 23.º, segundo o qual

«Todas as providências judiciais tomadas sôbre o destino, alimentos e educação dos filhos reputam-se provisórias, para o efeito de poderem ser alteradas por qualquer motivo supervenientes.

Não se trata de uma inovação do projecto. Já no artigo 14.º do decreto n.º 20:431 se dispõe:

«Quando, por motivos supervenientes, fôr necessário alterar o que se tiver decidido a respeito dos filhos ou dos alimentos, seguir-se-á, perante a respectiva tutoria, o processo dos artigos 5.º e seguintes».

E êste artigo, por sua vez, não fez mais do que generalizar, para os casos em que intervém a tutoria a providenciar sôbre menores, o que já se estabelecia, para o processo de separação de pessoas e bens, no artigo 473.º do Código do Processo Civil.
Julgamos, porém, mal cabida no texto do projecto a referência à educação dos filhos, que não é de boa técnica, desde que se fala de «alimentos», e êstes, segundo uma disposição expressa do projecto, compreendem a educação física e mental (§ único do artigo 25.º). Por outro lado, não se indica no artigo o processo a seguir para a alteração das providências judiciais, por circunstâncias supervenientes. Não revogando a nova lei sôbre divórcio o preceito do artigo 14.º do decreto n.º 20:431, é claro que terá de se observar o processo nêle estabelecido para a decisão das providencias sôbre alimentos. Por esta ordem de considerações somos levados a concluir pela desnecessidade de o consignar na nova lei.
Como, porém, se trata de um principio geral, que tem o seu lugar próprio num diploma da natureza daquele que esta Câmara agora é chamada a apreciar, parece vantajoso manter o artigo, dando-lhe, porém, a seguinte redacção, inspirada no texto do artigo 473.º do Código do Processo Civil:

«Todas as providencias judiciais sôbre o destino dos filhos e seus alimentos poderão ser alteradas, se isso se tornar necessário por circunstâncias supervenientes, observando-se para êsse fim o processo estabelecido para a determinação de tais providencias.
Da mesma forma se procederá quando houver necessidade de tomar alguma providencia nova».

Afirmando o carácter provisório das providencias sôbre os filhos, o Doutor Cunha Gonçalves, no seu Tratado de Direito Civil, justificando êste principio, observa que o pai ou a mãi que sentem os inconvenientes praticos das deliberações tomadas, ou a impossibilidade de continuar a executá-las, podem e devem pedir ao juiz que as modifique; acentua, porém, que «nisto deverá atender-se sobretudo aos interêsses dos filhos, e não as emulações e picardias dos pais». São judiciosas estas considerações.
Mas acrescenta o citado escritor, acompanhando Rouast, que as segundas núpcias do pai ou da mãi não constituem motivo para a revogação ou modificação do que estiver estabelecido a respeito dos filhos 1.
Considerando particularmente a circunstância de a mãi projectar contrair novas núpcias, diz ainda o Doutor Cunha Gonçalves que o facto só por si não constitue a manifesta inconveniência, na linguagem do decreto de 1910, para se lhe recusar a entrega dos filhos, nem portanto para o efeito de se lhe retirar a posse dos que lhe haviam sido confiados, visto que o novo casamento é um acto lícito, confere a mãi uma situação mais decente e isenta de suspeitas e de maledicências do que a simples posição de divorciada, e pode representar a garantia de subsistencia futura.
«Os filhos de uma divorciada que se torna a casar não ficam em pior situação moral do que os de uma viúva bínuba» 2.
Nestas considerações, que dentro da logica do divórcio se apresentam como correctas e razoáveis, estão o fundamento e a justificação da doutrina do artigo 24.º do projecto. Simplesmente se nos afigura duvidosa a necessidade de a consignar numa disposição de lei.
Uma vez requerida a alteração das providencias tomadas sôbre os filhos, é evidente que o tribunal tem de apreciar as circunstâncias invocadas; e, como se diz, aliás desnecessariamente, no final do artigo 24.º do projecto, só se houver motivos ponderosos se atenderá a pretensão formulada. Trata-se de uma apreciação em concreto, que ao juiz se impõe de um modo necessário, e não se nos afigura que haja neste caso razão especial para advertir o julgador sôbre o valor em abstracto da circunstância invocada.
Afigura-se-nos, por isso, que deverá eliminar-se a referida disposição. Quando, porém, a Assemblea Na-

1 Cf. ob. e vol. cit., p. 108; Planiol & Rippert, Traité de Droit Civil, vol. II, n.º 65.
2 Cf. ob. e vol. cit., p. 105.

Página 78

632-CCCC DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

cional entenda que convém conservá-la, cumpre então suprimir as palavras finais «salvo se ocorrerem..., etc.».

43. Ainda no capítulo das providências sôbre o destino dos filhos o projecto consigna no artigo 21.º o princípio de que

«O progenitor ou a pessoa a quem os filhos estiverem entregues não poderá mudar de terra ou retirar-se para o estrangeiro, levando-os consigo, sem prévio consentimento do outro cônjuges.

É perfeitamente justificada a disposição, emquanto visa a restringir a liberdade de movimentos da pessoa a quem os filhos foram confiados, quer seja um dos cônjuges, quer seja uma terceira pessoa. E não pode oferecer dúvidas a sua oportunidade.
É esta, com efeito, uma das causas de atritos entre os cônjuges, que a prática regista com frequência, e parece claro que o reconhecimento de uma liberdade absoluta de deslocação assegurada ao cônjuge ou a pessoa a quem os filhos foram confiados poderia converter-se no meio fácil de frustrar as regalias e direitos reconhecidos a um ou a ambos os progenitores.
Não se nos afigura, porém, que o preceito consignado no projecto consigne a melhor forma de prevenir tais inconvenientes e de conseguir os resultados que é mester assegurar.
Não é lícito ao pai ou à mãi ou à terceira pessoa, diz a êste respeito o Doutor Cunha Gonçalves no seu já citado comentário, infringir o sistema das providencias tomadas, «nem mudar de terra, ou expatriar-se permanentemente, levando consigo as crianças e privando o outro progenitor, quer do seu direito de visita, quer do direito de vigiar e fiscalizar a educação que lhes é dada.
Ora, se é certo que a pessoa que tem consigo os filhos não deve poder mudar de terra ou sair do País com caracter de permanência, isto é, transferir a sua residência ou domicílio para outra terra, no País ou no estrangeiro, a verdade é que pode muito bem haver circunstâncias que justifiquem um afastamento temporário do lugar onde se encontrava ao tempo do divórcio a pessoa a quem os filhos foram confiados.
Assim, por exemplo, é mais do que justificado o afastamento na epoca de férias ou na época balnear para qualquer praia ou estação termal, por necessidade ou conveniência de saúde, quer dos menores, quer da pessoa a quem estão entregues. Igualmente pode esta ter de se ausentar por algumas semanas do lugar da sua residência para se ocupar, por exemplo, de assuntos de administração da sua casa; e vamos até ao ponto de admitir que pretenda legitimamente o depositário do menor ausentar-se uma vez ou outra, em viagem de curta demora no estrangeiro, sobretudo se era seu costume fazê-lo.
Ora, tal como está redigido o artigo do projecto, que fala de forma vaga e genérica em mudar de terra ou retirar-se para o estrangeiro, se se deixa dependente do consentimento do cônjuge qualquer deslocação da pessoa com quem vive o menor, é bem de recear que se caia no abuso oposto aquele que se pretende evitar, e que esta se veja na dura situação de não mais poder arredar pé do lugar do seu domicílio.
E isto seria tanto mais lamentável quanto é certo que, para o abuso que o projecto se propõe reprimir, já a legislação hoje vigente em certo modo oferece remédio, pois, como vimos, o artigo 19.º do decreto n.º 20:431 pune com a pena de multa até 2.000$ aquele dos pais que se recusar a cumprir as obrigações impostas por decisão judicial, prejudicando o outro no seu direito de
visitar o menor, de o receber na sua casa ou em qualquer outro lugar, de estar com êle ou de o ter em sua companhia nas horas, dias ou épocas previamente designadas; e o artigo 20.º torna êste preceito extensivo a terceiras pessoas, a quem o menor tiver sido confiado. Ora poderá bem ver-se, em certos casos, na deslocação para outra terra ou para o estrangeiro uma recusa do cumprimento das obrigações correlativas dos direitos que em relação a pessoa dos filhos foram atribuídos aos pais; e, modificada que seja a doutrina destes artigos, nos termos que atrás sugerimos, mais eficaz ainda se tornará a sanção nêles contida.
Refere-se o Doutor Cunha Gonçalves ao preceito do artigo 3.º do decreto n.º 4:174, de 26 de Abril de 1918, segundo o qual, no caso de anulação ou dissolução do matrimonio por divórcio, o cônjuge a quem hajam sido confiados os filhos não poderá retirar êstes do Pais sem assentimento do outro, a todo o tempo revogável, e que a falta deste assentimento poderá ser suprida pelo juiz, nos termos do artigo 6.º do decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910. Foi aquele decreto revogado pelo decreto n.º 5:644, de 10 de Maio de 1919, mas, estando a sua doutrina dentro do espirito dos artigos 21.º a 23.º do decreto do divórcio - observa o Doutor Cunha Gonçalves -, tem sido por mais de uma vez aplicada pelos tribunais 1.
Ora o projecto não se limita a reproduzir a doutrina sancionada no decreto de 1918. Emquanto êste proibia o cônjuge a quem tivessem sido confiados os filhos de os a retirar do País», o que dá a idea de saída para o estrangeiro, com caracter de permanencia, o projecto inibe o cônjuge ou a pessoa a quem os filhos foram confiados de a mudar de terra ou retirar-se para o estrangeiro». Mesmo quanto à deslocação para o estrangeiro, há certa diferença entre a fórmula do decreto de 1918 e a do projecto. Mas êste proíbe, além disso, a mudança de terra.
Acresce, e êste é que se nos afigura o ponto essencial, que o decreto de 1918 consignava um principio salutar e do mais elevado alcance: o do suprimento do consentimento do cônjuge, no caso de injusta recusa.
Ora êsse principio não o consagra o projecto, e, se bem que êle esteja em harmonia com a orientação do nosso direito matrimonial, não poderá observar-se, sem que uma disposição expressa o consagre.
Entendemos, pois, em conclusão, que a doutrina enunciada no artigo 21.º do projecto deve ser modificada ou esclarecida, no sentido de tornar dependente do consentimento do outro cônjuge apenas a mudança de residência permanente, quer dentro do Pais, quer fora dêle, escapando assim ao alcance do projecto as deslocações temporárias, acidentais, que devem considerar-se previstas ao regular o regime de visitas e de convivência dos pais com os filhos. Quanto a estas deslocações, tem os pais, como já dissemos, um meio de defesa contra possíveis abusos no preceito já citado dos artigos 19.º e 20.º do decreto n.º 20:431 ou no preceito correspondente do novo diploma do divórcio, se fôr aceite pela Assemblea Nacional a sugestão que fizemos no n.º 41, sendo certo que, segundo essa sugestão, e agravada a sanção penal estabelecida para tais faltas. E êste meio e tanto mais eficaz quanto e certo que o § único do artigo 19.º do referido decreto preceitua que o disposto no artigo (imposição da pena) não prejudica as providencias que houvessem de ser tomadas pela tutoria, com o fim de regular o exercício do poder paternal, o que mostra que, além da aplicação da pena, o tribunal pode modificar as providências tomadas quanto ao destino dos menores, de forma a melhor as-

1 Cf. ob. e vol. cit., p. 109.

Página 79

29 DE ABRIL DE 1937 632-DDDD

segurar ao progenitor, vítima das infracções do outro ou de terceira pessoa, o contacto com os seus filhos.
No caso em que o consentimento é exigido, cumpre estabelecer o princípio do suprimento, que deve ser requerido ao juiz da tutoria. Parece-nos também indispensável estabelecer uma sanção para o cônjuge ou terceira pessoa que, contra o disposto no novo preceito, mudar de residência, levando consigo os menores, sem consentimento do cônjuge ou cônjuges interessados, ou seu suprimento judicial.
Nesta conformidade, sugere a Câmara Corporativa que ao preceito do artigo 21.º do projecto seja dada a seguinte redacção:

«Artigo 21.º O progenitor ou terceiras pessoas a quem hajam sido confiados os filhos não poderão mudar a sua residência habitual para outra terra no País ou para o estrangeiro, levando-os consigo, sem prévio consentimento do cônjuge ou cônjuges interessados.
§ 1.º No caso de injusta recusa, poderá o consentimento do cônjuge, que o recusar, ser judicialmente suprido, devendo o suprimento ser requerido ao tribunal da tutoria que tiver decidido sôbre o destino dos filhos.
§ 2.º O progenitor ou terceira pessoa a quem hajam sido confiados os filhos que, contra o disposto neste artigo e § 1.º, mudar a sua residência sem prévio consentimento do cônjuge ou cônjuges interessados, ou seu suprimento judicial, incorrerá na pena de multa até 5.000$, conforme as circunstâncias, que será imposta pelo tribunal da tutoria, sem prejuízo das providencias que o mesmo houver por necessárias para regular em tal caso o exercício do pátrio poder».

c) Interêsses materiais dos filhos

44. A secção III do projecto, relativa aos efeitos do divórcio quanto aos filhos, contam ainda um preceito em que se dispõe que o divórcio dos pais não prejudicará os filhos, seja qual fôr a sua idade, era relação a quaisquer doações ou outras vantagens que lhes estejam asseguradas por lei, pelos pais e outros ascendentes, ou por terceira pessoa.
Corresponde esta disposição à do artigo 25.º do decreto de 1910, onde se diz que:

«A dissolução do casamento pelo divórcio não prejudicará os filhos em quaisquer vantagens que lhes estejam asseguradas pela lei, pelos pais ou por terceira pessoa».

Anotando esta disposição do decreto vigente, o Doutor Cunha Gonçalves acentua que os filhos a que o artigo se refere não são somente os de menor idade, mas também os maiores, e que assim continuarão os filhos maiores a ter o direito de pedir alimentos a qualquer dos pais, nos termos dos artigos 171.º e seguintes do Código Civil; serão respeitadas e irrevogáveis as doações que a favor dos filhos estejam feitas; não poderão os pais fazer liberalidades com prejuizo das legitimas dos filhos, observando-se em tal caso as regras relativas a inoficiosidade 1.
As alterações que o projecto introduz no texto do artigo 25.º do decreto de 1910 consistem, pois, em se especificar que a disposição respeita aos filhos tanto maiores como menores, em se mencionar explicitamente as doações entre as vantagens que no artigo se consideram, e em se fazer especial referência a outros ascendentes, além dos pais.
Parecendo-nos desnecessárias as alterações referidas, e não nos constando que sôbre o assunto se tenham suscitado duvidas, não vemos contudo inconveniente em que se adopte o novo texto do projecto.

§ 7.º - Alimentos do divorciado

a) A favor de quem existe a obrigação de alimentos

45. O artigo 29.º do decreto de 1910 dispõe, em termos genéricos, que «qualquer dos cônjuges tem direito a exigir do outro que lhe preste alimentos se dêles carecer.
Dando direito a alimentos ao proprio cônjuge culpado, o referido preceito foi objecto de violentas e justificadas críticas, pois além da incoerência que envolve o prolongamento de uma obrigação, que só pode logicamente apoiar-se no dever de assistência entre os cônjuges, e portanto no próprio laço conjugal que os une, para além da dissolução do matrimónio, a atribuição de alimentos ao cônjuge culpado representa uma revoltante injustiça e constitue, como bem observa um dos autores do projecto, o melhor dos incitamentos ao divórcio 1.
É certo que já se pretendeu interpretar o artigo de modo a evitar tam repugnante resultado, afirmando o Doutor Cunha Gonçalves que a sua combinação com o n.º 2.º do artigo 32.º, em que se dispõe que a obrigação de alimentos cessa «se o cônjuge que os recebe se tornar indigno dêsse beneficio por seu comportamento moral», leva a concluir que só tem direito a alimentos o ex-cônjuge completamente inocente ou que não foi causador, mas sim vítima do divórcio. Todavia, e apesar do apoio que semelhante interpretação encontrou na doutrina e jurisprudência francesa, com base em textos que o referido autor diz terem servido de fonte a nossa lei, não a consideramos defensável, por generosos que sejam os intuitos que a inspiram, pois os termos em que está redigido o preceito do n.º 2.º do artigo 32.º mostram bem que se trata da cessação de uma prestação de alimentos, que foi estabelecida, e que esta se apoia num comportamento posterior ao momento em que foi decretado o divórcio e estabelecida a obrigação de alimentos.
Ora é justamente para pôr fim a êste estado de cousas e para evitar quaisquer duvidas sôbre os termos em que se consagra o direito a alimentos que o projecto, no artigo 27.º, expressamente restringe êste direito ao cônjuge inocente, e ao «cônjuge necessitado» no caso de o divórcio ser decretado com fundamento na ausência.
Merece-nos porém certos reparos a redacção dada ao artigo 27.º

A referencia especial que neste artigo se faz ao caso de ausência e a alusão ao «cônjuge necessitados mostram, como já noutro lugar observamos, que êste fundamento de divórcio não é considerado como culpa do cônjuge", não devendo, no sistema do projecto, ser qualificado como cônjuge culpados o cônjuge ausente que da causa ao divórcio.
Da primeira parte do artigo resulta claramente que e o cônjuge inocente que tem direito a reclamar alimentos ao cônjuge culpado. E supomos que na segunda parte, considerando-se o caso de ausência, se tem em vista sancionar a doutrina de que só o cônjuge presente os pode reclamar pelas forças dos bens do ausente, que,

1 Cf. ob. e vol. cit., p. 110.
1 Cf. Doutor Cunha Gonçalves, ob. e vol. cit., p. 118.

Página 80

632-EEEE DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

embora não possa classificar-se de culpado, e, todavia, o causador do divórcio.
Esta conclusão parece reforçada com o preceito do § único, em que, depois de se afirmar a doutrina de que a obrigação de alimentos se não transmite aos herdeiros do cônjuge culpado, se acrescenta, novamente em preceito especial para o caso de divórcio por ausência, que «a obrigação alimentar ficará a cargo dos curadores dos bens do ausente».
No entanto, a redacção da segunda parte do corpo do artigo, o uso da expressão «cônjuge necessitado» - certamente empregada para significar que se não deve agora falar de cônjuge inocente nem de cônjuge culpado -, da origem a dúvidas, permitindo a interpretação de que o proprio cônjuge ausente, se fôr necessitado, pode, quando regresse depois de decretado o divórcio, reclamar alimentos do cônjuge autor.
A hipótese não será vulgar, mas não há dúvida de que se pode dar, sendo admissivel o caso de os bens em curadoria ou administração não chegarem para o sustento do ausente que regressa. Isto seria, pois, só por si bastante para o artigo não poder ficar redigido como esta.
Para podermos porem fazer juízo sôbre o corpo do artigo 27.º cumpre-nos entrar desde já na analise do preceito do seu § unico.

b) Sôbre quem pesa a obrigação de alimentos

46. Consigna-se expressamente neste parágrafo o caracter pessoal da obrigação de alimentos, declarando-se que ela não se transmite aos herdeiros do cônjuge culpado. E a seguir, considerando-se novamente em particular o caso de ausência, diz-se: «Mas, no caso de divórcio por ausência, a obrigação alimentar ficará a cargo dos curadores dos bens do ausente».
Não oferece dúvidas o principio de que a obrigação de alimentos não se transmite, neste caso, aos herdeiros do alimentante. É esta a boa doutrina, e a necessidade de a consignar resulta do principio oposto já consignado no artigo 176.º do Código Civil, e mantido na nova redacção que lhe foi dada pelo decreto n.º 19:126.
Reforça-a o facto de já se ter julgado entre nos que a mulher divorciada tem direito a apanágio, doutrina que o Doutor Cunha Gonçalves justamente condena, acentuando que a obrigação de apanágio é pela lei imposta directamente aos herdeiros do cônjuge falecido, e pondo em relevo as diferenças que estruturalmente separam a dissolução por morte da dissolução por divórcio 1.
Quanto à segunda parte do parágrafo, porém, ligada a primeira parte pela adversativa mas, temos a fazer largas considerações.

Qual é afinal a doutrina que ai se pretende consignar?
Cumpre ter em atenção que se trata agora de ausente casado. Deve pois distinguir-se o caso de o ausente ter filhos do caso de os não ter.

47. Se o ausente não tem filhos, justificada a ausência, o cônjuge presente conserva a administração de todo o casal por espaço de vinte anos contados do desaparecimento ou da data das últimas notícias, ou até o ausente completar noventa e cinco anos de idade; e, findos vinte anos ou completando o ausente noventa e cinco anos de idade, podem os herdeiros habilitados tomar conta dos bens do ausente e dispor d~eles livremente, como seus (cf. artigos 83.º, 85.º, 87 e 79.º do Código Civil).
Se, pois, antes de decorrido o tempo durante o qual a lei lhe concede o gôzo e administração dos bens do ausente, o cônjuge presente, com base na ausência do outro, provoca o divórcio, como êste importa a dissolução da sociedade conjugal, e êle perde, portanto, a qualidade de cônjuge, tudo se passará necessariamente como no caso de morte do cônjuge presente antes de vinte anos de ausência ou de o ausente completar noventa e cinco anos; os bens são entregues aos herdeiros deste, que serão considerados como curadores definitivos, levando-se-lhes em conta, pelo que respeita ao termo da curadoria definitiva e direitos que lhes competem, o tempo de administração do cônjuge falecido (Código Civil, artigo 88.º).
É manifestamente tendo em vista esta situação que no § unico do artigo 27.º se declara que a obrigação de alimentos ficara a cargo dos curadores dos bens do ausente.
Mas fazendo os curadores sua uma parte dos rendimentos dos bens que administram (Código Civil, artigo 73.º) qual será a doutrina que no projecto se pretende consignar? Deverão ser pagos os alimentos pela parte dos rendimentos que não pertence aos curadores, ou devera entender-se que os alimentos representam um encargo dos curadores, que êles terão de satisfazer, ainda que com prejuizo da parte que lhes deveria caber no total dos rendimentos?
Por outro lado, findos os vinte anos ou completando o ausente noventa e cinco anos de idade, os bens são, como vimos, entregues aos herdeiros, que dêles podem dispor livremente (Código Civil, artigo 87..º). Deixa, pois, em rigor de haver curadores definitivos.
No entanto, prolongando-se a situação de ausência, e havendo apenas a presunção da morte, tanto assim que a lei prevê ainda o regresso do ausente e determina que os bens lhe sejam restituídos, poderá perguntar-se se neste caso subsistira ainda o direito do cônjuge presente a alimentos, e se será essa a doutrina que o projecto se propõe consignar, dizendo que a obrigação alimentar ficara a cargo dos curadores, o que parece mostrar que se trata de um encargo pessoal destes, que se prolongara para além da curadoria.
Esta solução parece tanto mais de considerar quanto é certo que o § único do artigo 87.º do Código Civil assegura ao cônjuge presente, nos casos referidos, como na hipótese de haver a certeza da morte do ausente, o direito de apanágio, nos termos do artigo 1231.º
Julgamos no entanto de repelir semelhante conclusão a despeito da adversativa mas que separa as duas partes do parágrafo, pois ela estaria em aberta oposição com a logica da doutrina que o parágrafo sanciona, e representaria um absurdo.
Se a obrigação de alimentos fundada no divórcio, nos casos em que êste assenta numa culpa do alimentante, não se transmite aos seus herdeiros, tendo o encargo, como se viu, uma natureza diversa do apanágio do cônjuge viuvo, não pareceria, de facto, logico nem razoável que, quando êle se baseia na ausência, essa obrigação ficasse onerando a pessoa dos herdeiros numa fase em que e já nessa qualidade, e não na de curadores, que êles estão na posse dos bens, visto que, desde que decorreram vinte anos de ausência ou o ausente completou noventa e cinco anos de idade, termina a curadoria definitiva, e pouco importa para o caso que haja

Página 81

29 DE ABRIL DE 1937 632-FFFF

a possibilidade de o ausente voltar (Código Civil, artigo 78.º).

48. Se o ausente, casado, tem filhos, procedendo-se do mesmo modo, uma vez justificada a ausência, a partilha do casal, são subdivididos entre os referidos filhos os bens que tocarem a parte do ausente, tomando os que forem maiores conta dos que lhes couberem, e administrando-os como seus, embora só ao cabo de dez anos de ausência os possam alienar (Código Civil, artigos 90.º e 91.º). Decorrido êste prazo, dá-se portanto a entrega definitiva dos bens aos filhos maiores, que ficam numa situação idêntica aquela em que ficam os herdeiros do ausente casado sem filhos, quando a ausência se prolonga por vinte anos ou até o ausente completar noventa e cinco anos de idade; e assim é que o artigo 94.º do Código Civil dispõe que, se o ausente regressar depois de decorridos os referidos dez anos, só poderá recuperar os bens que efectivamente existirem ainda em poder dos seus filhos e os sub-rogados ou comprados com o preço dos alienados.
Quanto aos filhos menores, mandando a lei observar as disposições relativas ao poder paternal na constância do matrimonio, tanto em relação aos filhos, como em relação aos bens que lhes tocarem, ficarão os ditos bens confiados a administração do cônjuge presente, que deles terá consequentemente o usufruto, percebendo os respectivos rendimentos (Código Civil, artigos 92.º e 145.º). E como naturalmente, decretado o divórcio, os filhos só podem ser confiados ao cônjuge presente, subsistirá depois dêle a situação anterior, continuando o cônjuge presente a beneficiar dos rendimentos dos bens dos menores.
Ve-se, portanto, que nesta hipótese só se poderia considerar, para efeito de prestação de alimentos, o caso dos filhos maiores. Como, porém, a ausência, segundo o projecto, só é fundamento de divórcio depois de decorridos dez anos a «contar da instalação da curadoria definitiva dos seus bens», é evidente que à data do divórcio decorreu já o prazo findo o qual os filhos podem dispor dos bens como seus (artigo 91.º do Código Civil). Verificando-se então, segundo vimos, uma situação absolutamente idêntica a que se dá quando, no caso do ausente casado sem filhos, a ausência dura vinte anos ou o ausente completa noventa e cinco anos - presunção de morte -, como logica consequência deverá admitir-se neste caso a mesma situação que dissemos impor-se no caso de entrega dos bens a outros herdeiros do ausente, na hipótese de êle não ter filhos. Não se justificaria, dada a presunção legal de morte do ausente, a imposição da obrigação de alimentos aos herdeiros como tais. Mas existindo filhos comuns dos divorciados, e recebendo êles como herdeiros do ausente os bens que lhes competirem, aos filhos poderá o cônjuge presente exigir, se deles necessitar, os alimentos que por êstes directamente lhe são devidos por vinculo de sangue.
Chega-se assim à conclusão de que, havendo filhos, não há que considerar em especial o divórcio por ausência, para o efeito de assegurar alimentos ao cônjuge presente, cumprindo apenas regular o caso do ausente casado sem filhos e consignar expressamente o principio de que, quando os bens forem entregues definitivamente aos herdeiros do ausente, por haver a presunção da sua morte, não poderão êles ser obrigados a prestar alimentos ao cônjuge presente.
Ora, quanto ao encargo dos alimentos, sendo a parte dos rendimentos atribuída aos curadores um direito que a lei pessoalmente lhes reconhece, e que se baseia, ora no proprio facto da administração, ora na presunção de que os bens lhes pertencem, por se dever julgar falecido o ausente, afigura-se-nos que se deve respeitar êsse direito. De contrario, seriam eles, e não o cônjuge ausente, os onerados com a obrigação de alimentos, os devedores destes.
E quanto ao período posterior à entrega definitiva dos bens, como, na hipótese do ausente com filhos, o divórcio é decretado já posteriormente a essa entrega (cf. artigo 2.º, n.º 3.º, do projecto), não se nos afigura necessário declarar expressamente que dos filhos, ou de outros herdeiros (que os pode haver por testamento) não tem o cônjuge presente, como tal, direito a exigir alimentos.

Em conclusão, pois, do que fica exposto, entende a Câmara Corporativa que, a conservar-se o fundamento de divorcio mencionado no n.º 3.º do artigo 2.º, deverá dar-se ao artigo 27.º do projecto a seguinte redacção :

«Artigo 27.º O cônjuge inocente tem direito a exigir do culpado que lhe preste alimentos, se deles carecer. Igual direito e reconhecido ao cônjuge que obteve o divórcio com fundamento na ausência do outro.
§ unico. A obrigação de alimentos não se transmite aos herdeiros do cônjuge que os prestava. Se o divórcio fôr decretado com fundamento na ausência, a obrigação de alimentos, não havendo filhos, ficará a cargo dos curadores definitivos, sem prejuizo da parte dos rendimentos dos bens do ausente que lhes pertencer nos termos do artigo 73.º do Código Civil, e cessará quando os bens do ausente forem entregues aos herdeiros, nos termos do artigo 87.º do citado Código».

c) Quantitativo dos alimentos

49. O artigo 29.º do decreto de 1910, depois de consignar o direito a alimentos do ex-cônjuge divorciado, preceitua no seu § único que o quantitativo dêsses alimentos será fixado em harmonia com a necessidade do cônjuge que os recebe e com as circunstâncias de quem os presta; mas nunca poderá exceder um terço do rendimento liquido deste. É o princípio já consagrado de um modo geral no Código Civil, quanto a obrigação de alimentos entre parentes.
Sôbre o assunto consigna o projecto a disposição do artigo 29.º, em que essencialmente se enuncia a mesma doutrina do actual decreto. Simplesmente se faz referência expressa à hipótese de fixação por acordo, acentuando-se assim que as regras enunciadas na lei o são apenas para o caso de o quantitativo de alimento ter de ser fixado pelo juiz. Desde que no processo de alimentos, que corre, como veremos, por apenso ao do divórcio, se permite naturalmente a sua fixação por acordo, e intuitivo que só na falta de acordo tem o juiz de observar os principios enunciados quanto a fixação do quantitativo dos alimentos.
Mas na enunciação dêstes principios afasta-se o projecto da formula do actual decreto.
No texto dactilografado que oficialmente foi remetido a esta Câmara le-se: «... conforme as necessidades do cônjuge que o reclama e as pessoas de quem os presta». No texto impresso do Diário das Sessões lê-se: «... conforme as necessidades do cônjuge que o reclama e a pessoa que os presta».
Optamos decididamente pela fórmula do decreto de 1910, ou ainda pela que se adopta no artigo 178.º do Código Civil. E, assim, sugere a Câmara Corporativa que ao artigo 29.º se de a seguinte redacção:

«Artigo 29.º O quantitativo dos alimentos, quando não seja fixado por acôrdo, sêlo-á pelo juiz, segundo o seu prudente arbitrio, tendo em atenção a necessidade do cônjuge que os recebe e os meios do

Página 82

632-GGGG DIARIO DAS SESSÕES - N.º 127

que os presta; não poderá, em todo o caso, exceder um terço do rendimento liquido dêste».

50. O decreto de 1910 contém no artigo 31.º diversas regras relativas, quer à redução, quer ao aumento ulterior da prestação de alimentos originariamente fixada, isto em consequência de alterações supervenientes, quer na situação de necessidade do alimentado, quer no estado de fortuna do que presta os alimentos.
Não reproduz o projecto êsses preceitos, mas deduz-se do seu artigo 30.º que considera admissível a redução dos alimentos, pois aí se declara que a redução não poderá ser pedida com o fundamento de ter aquele que os presta contraído novas núpcias, acrescentando-se ainda:

«... mas o pedido de redução será admissível se aquele (que os presta) tiver dois ou mais filhos do segundo casal ou se por outra causa tiverem deminuido as suas possibilidades».

Várias dúvidas surgem desta disposição do projecto.
Em primeiro lugar, como na primeira parte do artigo se considera o caso de o cônjuge que presta os alimentos contrair novas núpcias, e como na segunda parte, ligada à primeira pela adversativa mas, que acima sublinhamos, se continua a contemplar o mesmo caso, para considerar, a titulo de excepção, a hipótese de haver dois ou mais filhos do novo matrimónio, será legítimo concluir que a segunda excepção referida - «se por outra causa tiverem deminuido as suas possibilidades» - é relativa apenas ao dito caso de êle ter contraído novas núpcias.
Como, porém, uma vez que se não reconhece a circunstância do novo casamento como origem de novos encargos, não há qualquer razão logica para considerar em especial e exclusivamente quanto ao que contrai novas núpcias, a circunstância de deminuição das suas possibilidades, inclinamo-nos a admitir que esta deminuição continua ainda, no animo dos autores do projecto, a constituir uma causa geral de redução da prestação de alimentos. Mas é manifesta a falta de rigor da formula usada.

Mas outra duvida se apresenta ao nosso espírito: como o projecto guarda silêncio quanto ao aumento da prestação de alimentos, significará isso que se rejeita o princípio actualmente consagrado no artigo 31.º do decreto de 1910?
Esta conclusão parece impor-se com tanto maior fôrça quanto é certo que a elevação ulterior da prestação de alimentos representa uma innovação do decreto de 1910, visto que, quanto a obrigação de alimentos entre parentes, o Código Civil apenas considerava a redução (artigo 181.º).
Como porém o decreto n.º 21:287 contém disposições relativas aos alimentos dos cônjuges e regula tambem o aumento da respectiva prestação, consignando até o salutar princípio, alias já afirmado no decreto de 1910, de que o pedido de redução ou de aumento só pode ser deduzido depois de decorrido um ano sôbre a anterior ou a primeira fixação, poderá porventura admitir-se que os autores do projecto, tendo como um princípio geral a faculdade de redução e de aumento, não aludiram ao aumento da prestação de alimentos por o julgarem desnecessário. Mas então igualmente desnecessário seria consignar explicitamente a faculdade generica de redução, e a ela se alude, ao que parece, segundo vimos, no final do artigo 30.º
Ora a verdade e que, respeitando a redução e o aumento da prestação alimentar ao regime da obrigação de alimentos, é a lei substantiva do divórcio, em que se consagra a referida obrigação e se definem os termos em que ela é organizada, o lugar próprio para permitir e regular o aumento ou redução da prestação referida.
Deve por isso o projecto consignar tanto a faculdade de a reduzir como a possibilidade de a aumentar. Cumpre, portanto, assentar doutrina sôbre êste assunto.
Ora, se bem que a favor da eliminação da faculdade de aumentar a prestação de alimentos possa invocar-se, além do precedente do Código Civil, quanto aos alimentos devidos jure sanguinis, a consideração de que desta forma se diminuem as vantagens que acompanham o divórcio, praticando-se portanto uma política adversa ao mesmo, a verdade é que, uma vez admitido o direito do divorciado a alimentos e consagrado o princípio de que o seu quantitativo é proporcionado à necessidade de quem os recebe e aos meios de quem os presta, e sobretudo desde que se permite pedir a sua redução, a lógica exige que se reconheça o direito de reclamar o seu aumento, quando o alimentado carece de maior prestação e o alimentante esta, por melhoria de situação, em circunstâncias de a aumentar.

51. Mas que pensar da doutrina firmada no artigo 30.º, quanto à redução da prestação de alimentos, no caso de novas núpcias, quando da nova união nasçam dois ou mais filhos?
Não nos inclinamos no sentido de semelhante innovação do projecto.
Nela vemos um novo incentive as novas núpcias do divorciado, quando é certo que a principal origem dos males e desordens sociais resultantes do divórcio reside nas novas uniões e novos núcleos familiares constituídos pelos divorciados.
Em concordancia com êste ponto de vista está um dos autores do projecto, o Doutor Cunha Gonçalves, quando, no seu comentário ao decreto de 1910, aludindo ao preceito do artigo 33.º, que dispõe que o novo casamento do que presta os alimentos não o exime da obrigação de os prestar, nem pode servir-lhe de fundamento para pedir a sua redução, observa que «deste modo o legislador indirectamente dificulta as segundas núpcias do divorciado devedor 1.
Os inconvenientes das segundas núpcias no caso de divórcio são muito mais graves do que no caso de dissolução por morte, pois cada um dos divorciados pode constituir uma nova familia, e a reacção que o facto pode produzir nos ex-cônjuges não raro se reflectirá sôbre os filhos do matrimonio dissolvido, com quem ambos os pais mantém contacto.
Em conclusão portanto, e a Câmara Corporativa de parecer que o artigo 30.º do projecto deve ser substituído pela doutrina do artigo 31.º e §§ 1.º e 2.º do decreto de 1910, aditando-se a doutrina do corpo do artigo, relativa a redução, uma alínea ou um parágrafo em que simplesmente se preceitue que:

«O facto de o cônjuge que presta os alimentos contrair novo casamento não pode ser invocado como fundamento para pedir a redução da respectiva prestação».

Não há necessidade de declarar que tal facto não o desonera da obrigação de alimentos, pois desde que não pode sequer pedir a sua redução, claro é que o encargo subsiste; e isso resulta do facto de a lei não referir tal circunstância entre as que determinam a cessação da prestação de alimentos.

1 Cf. ob. e vol. cit., p. 124.

Página 83

29 DE ABRIL DE 1937 632-HHHH

d) Cessação dos alimentos

52. É esta matéria regulada no artigo 28.º do projecto, onde se indicam os casos em que a mulher perde o direito a alimentos.
O artigo 32.º do decreto de 1910 dispõe, de um modo genérico e com relação a qualquer dos cônjuges, que:

«O direito aos alimentos e a obrigação de prestá-los cessam:
1.º Se o cônjuge que os recebe contrair novo casamento;
2.º Se o cônjuge que os recebe se tornar indigno dêsse beneficio por seu comportamento moral;
3.º Se o cônjuge que os presta não puder continuar a prestá-los, ou se o que os recebe deixar de os precisar.

Comentando esta disposição, o Doutor Cunha Gonçalves, no seu já referido Tratado de Direito Civil, observa que nos dois primeiros números dêste artigo o legislador visou apenas a mulher, pois só esta fica tendo, quando passa a segundas núpcias, quem a sustente por obrigação legal e moral; e quanto ao comportamento moral - acrescenta - quere-se certamente aludir a prostituição ostensiva ou clandestina da divorciada, sendo certo que a sociedade não reprova com igual repugnância o divorciado que tem uma amante.
Partindo dêste ponto de vista, os autores do projecto apenas consideram no artigo 28.º as causas de cessação dos alimentos prestados a mulher.
Mas a verdade é que é o próprio Doutor Cunha Gonçalves quem, no mesmo lugar, observa que, quando o bínubo fôr o marido, se justifica também a cessação dos alimentos, porque deve entender-se que não carece dêles quem mostra poder sustentar outra mulher, e é injusto e repugnante que o ex-marido sustente outra mulher à custa daquela de quem se divorciou 1.
E o n.º 3.º contem doutrina que igualmente o citado publicista reconhece que se aplica e justifica, tanto em relação aos alimentos da mulher como relativamente aos do marido.
Ora, o artigo 28.º do projecto, reproduzindo nos dois primeiros números, embora por ordem invertida, a doutrina dos n.ºs 1.º e 2.º do artigo 32.º do decreto de 1910, desdobra nos dois ultimos a matéria do n.º 3.º do citado artigo 32.º, mas considerando em todos êles exclusivamente os alimentos devidos a mulher.
Sendo porém certo que, no sistema do proprio projecto (artigo 27.º), os alimentos podem ser concedidos tanto ao marido como à mulher, e sendo evidente que, pelo menos as circunstâncias referidas no n.º 3.º do artigo 32.º do decreto vigente (não poder o cônjuge devedor continuar a presta-los por decair de fortuna, e deixar de os precisar, por adquirir meios de subsistência, o cônjuge que os recebe), tanto devem fazer cessar os alimentos devidos pelo marido a mulher, como os pagos pela mulher ao marido, não vemos como possa justificar-se, mesmo tecnicamente, que deixem de se indicar na lei os casos em que cessa a obrigação de alimentos a favor do marido.
Mas já vimos que as novas núpcias também devem determinar para o marido a perda dos alimentos que recebia da mulher de quem se divorciou. Resta-nos, pois, considerar apenas o caso do comportamento moral.
O Doutor Cunha Gonçalves considera apenas o comportamento sob o aspecto das relações sexuais; e é assim que e levado a restringir este fundamento a mulher. Mas a verdade é que, se a mulher que tem mau porte perde o direito aos alimentos, não há razão para que o não perca o ex-marido que é invertido, por exemplo. Acresce, porém, que a expressão «comportamento moral» não pode limitar-se ao sector do comércio sexual; e se considerarmos o comportamento do marido noutros planos, não será difícil conceber casos em que o seu procedimento o torna igualmente indigno da assistência material da mulher de quem se divorcia. Suponhamos, por exemplo, o caso de o marido se entregar ao vício do jogo ou ao alcoolismo. E os exemplos podiam multiplicar-se.
Em conclusão, não podemos dar o nosso apoio a doutrina do artigo 28.º do projecto, e julgamos preferível o preceito do artigo 32.º e seus números do decreto vigente. Simplesmente modificaríamos a formula aí usada, dizendo apenas:

«Cessa a obrigação de alimentos:».

e) Pedido de alimentos - Alimentos provisórios

53. O artigo 30.º do decreto de 1910 regulava o processo para o pedido de alimentos, preceituando que êle podia ser formulado cumulativamente com o pedido de divórcio ou posteriormente a sentença; e mesmo no primeiro caso era êle objecto de uma acção propria, que corria por apenso a acção do divórcio.
Posteriormente, porém, o decreto n.º 21:287 consignou também varias disposições sôbre o processo de alimentos, sendo pelos preceitos dêsse diploma que hoje se regula essencialmente esta acção, assim como, em grande parte, a acção do divórcio.
Ora o projecto, no artigo 31.º, permitindo, como o decreto de 1910, que o pedido de alimentos seja formulado cumulativamente com o de divórcio, ou posteriormente em acção separada, limita-se a dispor, numa orientação diversa da daquele decreto, que, no primeiro caso, o pedido deve ser formulado na propria petição inicial da acção de divórcio, e que, quando o pedido seja feito em acção separada, será esta processada por apenso.
Permite mais o § 1.º que o cônjuge necessitado reclame alimentos provisórios, direito que o decreto de 1910 já reconhecia à mulher, quando ela requereresse o depósito judicial, quer fôsse autora, quer fôsse ré (artigo 20.º, § 3.º). Acrescenta porém o parágrafo citado que no caso de concessão de assistência judiciária os alimentos provisórios não compreenderão as quantias destinadas às despesas de demanda.
Quer quanto ao pedido de alimentos definitivos, quer quanto ao de alimentos provisórios, o projecto manda observar as disposições da lei geral de processo.
Limita-se portanto o projecto a enunciar os referidos principios gerais quanto ao pedido de alimentos, remetendo, quanto ao respectivo processo, para as disposições da lei processual.
Como innovações notam-se apenas o princípio de que o pedido de alimentos deve ser formulado na petição da acção de divórcio, o que se nos afigura uma simplificação justificável, e a generalização dos alimentos provisórios, que podem ser pedidos por qualquer dos cônjuges, desde que dêles tenha necessidade.
Embora nada se diga a tal respeito no § 1.º do artigo 31.º, parece obvio que só o cônjuge autor, que, nos termos do artigo 27.º, tem direito a alimentos definitivos, pode pedir os alimentos provisórios; com esta restrição tem, pois, de se entender a expressão «cônjuge necessitado» que se emprega no referido parágrafo.
Nada temos que opor a esta extensão da faculdade de pedir alimentos provisórios durante o processo de divórcio, que parece justa. No entanto, para tornar

Página 84

632-IIII DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

mais clara a doutrina que acima enunciamos, deveria dar-se ao § 1.º a seguinte redacção:
«§ 1.º O cônjuge que, nos termos do artigo 27.º, tiver direito a alimentos poderá reclamar alimentos provisórios, mas no caso de lhe ser concedida assistência judiciaria êstes alimentos não compreenderão as quantias necessárias para as despesas da demanda».

§ 8.º~- Separação de pessoas e bens

a) Causas de separação

54. No capitulo IV ocupa-se o projecto que estamos apreciando da separação de pessoas e bens. Acompanha assim a orientação e o âmbito do decreto de 3 de Novembro de 1910, que, além dodivórcio, regulou também o instituto da separação judicial dos cônjuges, já regulado no Código Civil, dispondo no artigo 43.º que a separação de pessoas e bens dos cônjuges e admitida pelos mesmos fundamentos do divórcio litigioso. Desta forma o decreto de 1910 veio alargar consideravelmente as condições de admissibilidade da separação, que o Código Civil permitia apenas, como é sabido, nos casos de adultério e de sevícias e injúrias graves, desaparecendo, por efeito da reforma penal de 1884, o fundamento da condenação a pena perpetua. E ainda, quanto ao adultério do marido, se estabeleciam circunstâncias especiais para que êle pudesse servir de base à separação.
Vejamos agora em que termos admite o projecto a separação judicial dos cônjuges, que, como é sabido, não dissolve o vinculo matrimonial, e apenas modifica ou interrompe a sociedade conjugal, determinando o afastamento pessoal dos cônjuges - a cessação da vida em comum - e a separação dos seus bens ou a partilha do casal.
É o assunto regulado no artigo 32.º do projecto, do qual resulta que se pôs de parte o sistema do decreto de 1910 de fazer coincidir os fundamentos ou causas da separação com os do divórcio litigioso.
Com efeito, além dos fundamentos do artigo 2.º, que são os relativos ao divórcio, o artigo 32.º enumera:

a) A condenação do marido a pena maior por qualquer delito comum (n.º 2.º);
b) Sevicias que não sejam graves (n.º 3.º);
c) Injurias reiteradas ou com escândalo publico (n.º 4.º).

Não podemos de forma alguma dar nesta parte o nosso apoio à doutrina sancionada no projecto, que reputamos de um modo geral condenável e altamente perigosa, independentemente dos reparos que merece em certos pontos de pormenor.
Se a separação não dissolve o vínculo conjugal, e não é portanto causa de tantas desordens sociais como o divórcio, não deixa no entanto de afectar profundamente a instituição da familia, prejudicando essencialmente os fins do matrimonio, causando, como o divórcio, especialmente quando haja filhos, a destruição do lar, com consequências morais que podem ser desastrosas. Por isso o direito canónico, consagrando o principio da indissolubilidade, se mostrou sempre severo quanto a separação quoad thorum et cohabitationem, admitindo-a apenas em casos excepcionais, por fundamentos graves. E o nosso direito pátrio, tanto no Código Civil como no direito anterior, seguiu sempre orientação idêntica, permitindo a separação apenas em casos muito restritos.
Ora o projecto, com a perigosa disposição do artigo 32.º, vem alargar os laços conjugais que unem os esposos até ao ponto de quasi os relaxar por completo, deixando a convivência destes e a sorte da associação familiar à mercê da mais leve desavença, do mais fácil atrito entre êles.
Basta, para disso nos convencermos, considerar as disposições dos n.ºs 3.º e 4.º
Como admitir, na verdade, que os cônjuges se separem, em consequencia de sevicias que não sejam graves, ou de injúrias que também não sejam graves?
Confrontando o n.º 4.º do artigo 32.º com o n.º 5.º do artigo 2.º, relativo às causas do divórcio, resulta que, referindo êste ultimo preceito as injúrias graves e reiteradas, aquele contempla apenas as injurias que não sejam graves, desde que elas sejam reiteradas, ou, independentemente disso, dêem escândalo na vizinhança!
Não pode ser.
É o Doutor Cunha Gonçalves, um dos autores do projecto, quem condena a estranha doutrina a que deu agora o seu apoio.
Com efeito, ao comentar as disposições do decreto de 1910 sôbre as causas do divórcio, referindo, quanto ao fundamento de «sevicias ou injurias graves», a observação de Planiol de que é ocioso discutir a que palavras respeita o qualificativo de «graves», pois os factos que a disposição legal contempla hão-de ser, em si mesmo, factos grave, que não precisam de ser assim qualificados, não se usando as palavras da lei (excès et novices) para designar actos insignificantes, afirma peremptoriamente que esta é a exacta doutrina 1.
Se as sevicias e injurias, uma vez referidas na lei como causa de divórcio ou de separação, hão-de já necessáriamente e por definição representar factos graves, visto que sôbre factos sem gravidade ninguém pensaria em balear tam importantes efeitos, chega a ser paradoxal, além de ser perigoso, enumerar como causas de separação sevicias e injurias sem gravidade.
Inadmissível se nos afigura tambem considerar a circunstancia do escândalo nos vizinhos suficiente para se autorizar a separação por injurias, ainda que estas não sejam reiteradas. Em certas classes sociais, poucos seriam os casais que não estivessem ameaçados de separação, quando afinal, se as injurias, por não serem graves, não abriram chaga profunda no coração dos esposos, bem poderia o mal remediar-se por outro modo, até com uma simples mudança da residência conjugal.
Quanto ao fundamento do n.º 2.º - condenação do marido a pena maior por qualquer delito comum -, parece claro que êle corresponde ao do n.º 3.º do artigo 4.º do decreto de 1910, corrigindo-se todavia o inconveniente, que já tem sido apontado, de se atender simplesmente a pena, sem se olhar à natureza do delito. É assim que agora se fala de delito comum, excluindo-se deste modo o caso de condenação por delitos políticos, que não tem caracter infamante.
Poderá dizer-se que, tratando-se de separação e não de divórcio, bem se justifica a admissão desta causa, pois separados de facto já os cônjuges ficam por efeito da condenação. Mais se poderá dizer, em favor do preceito do projecto, que já o próprio Código Civil admitia a condenação a uma pena grave como causa de separação.
Mas, em primeiro lugar, quanto ao preceito do Código Civil, atenda-se a que o Código considerava a condenação a uma pena perpetua, o que modifica totalmente o problema, visto que o condenado nunca mais voltaria ao lar. Em segundo lugar, e no confronto com o decreto de 1910, não se esqueça o que observamos já a

1 Cf. ob. e vol. cit. n.º 928, p. 38.

Página 85

29 DE ABRIL DE 1937 632-JJJJ

propósito do n.º 4.º do artigo 2.º do projecto: aludindo a pena maior, o projecto deminue consideravelmente a gravidade e a duração da condenação que serve de base á separação, pois o decreto de 1910 só considera as penas maiores fixas dos artigos 55.º e 57.º do Código Penal.
Não vemos, além disso, porque, a admitir-se a condenação como causa de separação, se restringe o fundamento a condenação do marido.
Não é decerto por ser êle normalmente o amparo material do casal, pois, não havendo na separação a rotura do vinculo conjugal, impossibilitada fica a mulher de procurar noutro matrimónio um novo marido que a sustente a ela e aos filhos. Além de que, se o marido tiver bens e a mulher não, a separação só pode ser desfavorável para ela, ainda que obtenha a prestação de alimentos.
Mas emfim, e de um modo geral, não se nos afigura justificável êste fundamento de divórcio ou de separação, especialmente nos termos em que o projecto o consagra, aludindo a pena maior. A simples condenação do marido a dois anos de prisão maior, por qualquer delito comum, poderia determinar a separação dos cônjuges.
Ora, sendo um dos deveres conjugais o da assistência mútua, não deve privar-se, no caso de condenação, o marido do amparo moral e dos cuidados da mulher, que, se fôr esposa dedicada e possuidora de virtudes morais e estiver animada de verdadeiro espirito cristão, muito poderá concorrer para a regeneração do marido e assim assegurar a reconstituição futura do seu lar.

«Não é quando o cônjuge doente ou condenado - escreve o Doutor Cunha Gonçalves - carece de apoio moral do seu consorte, que a êste se deve permitir o egoísmo de se evadir do lar, num assômo de revoltante indiferença e crueldade 1».

Estas palavras, escritas embora para repelir o divórcio com fundamento na loucura incurável, doença contagiosa ou condenação a pena maior, tem, como é óbvio, inteira aplicação ao caso da separação de pessoas e bens.

Em conclusão, portanto, a Câmara Corporativa, repelindo aberta e decididamente a separação de pessoas e bens por qualquer dos fundamentos que se indicam nos n.ºs 2.º a 4.º do artigo 32.º do projecto, sugere que a êste se dê a seguinte redacção:

«É permitida aos cônjuges a separação de pessoas e bens pelos mesmos fundamentos que no artigo 2.º se enumeram como causas de divórcio.
§ único. É ao cônjuge inocente, ou ao cônjuge presente no caso de ausência, que compete optar pela acção de divórcio ou pela de separação de pessoas e bens.»

Quando se aceite a sugestão da Câmara Corporativa de eliminar no artigo 2.º o fundamento da ausência, no § único dir-se-á apenas:

«É ao cônjuge inocente que compete», etc.

b) Separação por mútuo consentimento

55. Um problema grave suscita o projecto submetido a apreciação desta Câmara:
Qual a posição tomada quanto a separação por mútuo consentimento? Subsistira ela no nosso direito, ou deverá considerar-se excluída, assim como excluído fica o divórcio por mútuo consentimento?
O decreto de 3 de Novembro de 1910 não estabelecia a separação por mútuo consentimento, limitando-se a permiti-la «pelos mesmos fundamentos do divórcio litigioso» (artigo 43.º).
Só em 1918 foi admitida esta forma de separação (decretos n.ºs 4:343 e 4:431, de 30 de Maio de 1918), depois mantida no Decreto n.º 5:644, de 10 de Maio de 1919.
Revogando a lei, em que se converta o presente projecto, o decreto de 3 de Novembro de 1910, ficara de pé e em vigor o preceito actual do decreto n.º 5:644? Ou deverá considerar-se revogado também êste decreto, por efeito do artigo 48.º do projecto, que, usando de uma formula um tanto original, declara revogados todos os diplomas posteriores ao decreto de 3 de Novembro, «que nêle se baseiam»?
O que devera entender-se por esta expressão, inédita em formulas de revogação explicita? Significara ela que se pretende revogar todos os diplomas, com data posterior ao decreto citado, que contenham disposições relativas aos assuntos nêle regulados ou que de algum modo completam e regulamentam principios e disposições nêle consignados?
Mas então deverão considerar-se revogados o decreto n.º 20:431, sôbre as tutorias da infância, sendo certo aliás que o projecto em varias disposições se reporta a esta instituição, e o decreto n.º 21:287, pelo menos nas disposições que ao divórcio dizem respeito.
Por outro lado, apesar de o decreto de 3 de Novembro conter disposições sôbre divórcio e sôbre a separação de pessoas e bens, constituindo esta objecto de um dos seus capítulos, o artigo 48.º do projecto, ao referir-se a ele, designa-o apenas como decreto sôbre o divórcio, o que poderá levar a supor que, ao referir-se em seguida aos «diplomas posteriores que nêle se baseiam», o projecto tem apenas em vista os diplomas relativos ao divórcio, com exclusão dos que dizem respeito a separação de pessoas e bens.
Cumpre, pois, esclarecer êste ponto. Tanto mais que não colhe dizer-se que, não sendo admitido o divórcio por mútuo consentimento, é de concluir que excluída esta tambem a separação por mútuo consentimento.
O raciocínio não é rigoroso.
Não o poderá invocar quem, relativamente a própria separação litigiosa, admite, como é o caso do projecto, que ela seja decretada por causas novas além das que podem fundamentar o divorcio.
Mas é legitimo fazer a êste respeito distinção entre o divórcio e a separação.
Com efeito, num regime em que divórcio e separação assentam nas mesmas causas, quem opta pela separação mostra já por êsse facto um indiscutível respeito pela instituição do matrimonio e da familia, um escrupuloso desejo de evitar um descalabro maior da associação familiar. Poderá, pois, agora, quanto à separação, ter melhor cabimento a conhecida justificação de que a modalidade do mútuo consentimento oferece a vantagem de evitar escândalos.
A separação por mútuo consentimento, portanto, mais do que como um processo de multiplicar os casos de separação, apresentar-se-á, pois, como um meio de atenuar os seus perniciosos efeitos, evitando agravar com a publicidade e com os cuidados da prova judicial as desavenças entre os esposos e frequentemente a situação dos filhos.
Nem representara incongruência repelir como fundamento de separação litigiosa outros factos alem dos que constituem causas de divórcio, e admitir a separa-

Página 86

632-KKKK DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

ção por mÚtuo consentimento, rejeitando o divórcio nessas condições, pois cumpre não esquecer que nesta modalidade da separação e essencial o acôrdo dos cônjuges, o que já de si representa uma garantia de que a separação só terá lugar quando haja realmente uma profunda incompatibilidade entre os esposos, que não esquecem a natureza indissolúvel do vinculo que os une. Para melhor assegurar tal resultado, seria até de considerar a vantagem da elevação do período de duração do casamento e do mínimo de idade dos cônjuges, que na lei actual se estabelecem como requisito de que depende o divórcio por mútuo consentimento.
Ora o alargamento das causas de separação, particularmente nos termos em que o faz o projecto, corresponde a facilitar a um dos cônjuges, e contra a vontade do outro, a dissociação do lar, dependente apenas da prova a fazer de factos verdadeiros alegados.
Para o problema entendemos, pois, dever chamar em especial a atenção da Assemblea Nacional.

c) Conversão da separação em divórcio

56. O decreto de 1910, no artigo 46.º, dispõe, como é sabido, que, se no prazo de cinco anos, a contar do trânsito em julgado da sentença que decretou a separação de pessoas e bens, os cônjuges se não reconciliarem, qualquer deles poderá obter a conversão da separação em divórcio, bastando para isso que assim o requeira nos autos da separação.
Tem êste preceito, importado do direito francês, sido alvo de severas e justificadas criticas, e já no parecer emitido sôbre o projecto de lei do ilustre Deputado Sr. Braga da Cruz afirmamos a necessidade de repelir a estranha doutrina que nêle se consigna e que representa um dos mais nefastos processos de facilitar e provocar o divórcio.
Podendo representar o meio traiçoeiro de um dos cônjuges impor ao outro um divórcio, que, quando requerido directamente, êle se esforçaria por evitar a todo o transe, o principio da conversão e até contraditório com a regra de que a separarão e o divórcio reciprocamente se excluem, devendo por isso o cônjuge inocente optar entre uma e outra das duas acções.
Requerida a conversão, não tem o juiz a liberdade de a conceder ou recusar, conforme a apreciação das provas produzidas para obter a separação. E é bem de admitir que nesta apreciação, especialmente na da gravidade das sevicias ou injúrias, os juizes se revelem menos rigorosos e exigentes perante um pedido de separação, do que se mostrariam em face de um pedido de divórcio. No entanto, decretada a separação, pode ela transformar-se num divórcio, com surpresa do cônjuge requerido e do juiz que decretou a separação.
A conversão depende, pois, do puro arbítrio do requerente, não tendo o outro cônjuge meio legal de se lhe opor.
Que posição tomou neste ponto o projecto?
Dispõe o artigo 33.º que a separação «será conversível em divórcio no caso de adultério posterior da mulher, mas é somente a requerimento do marido».
Daqui resulta que a conversão não tem a natureza que apresenta no regime do decreto de 1910, pois depende de um facto superveniente, de nova culpa do cônjuge - o adultério posterior; e só o adultério da mulher a pode provocar, sendo por isso o marido apenas que a pode requerer.
Não obstante estas restrições que na faculdade de converter a separação em divórcio se estabelecem no projecto, e cuja importância não pode deixar de se reconhecer, não julgamos justificada a doutrina da nova disposição.
Em primeiro lugar, a conversão apresenta-se assim com o aspecto de uma cumulação de acções, de separação e de divórcio. Com efeito, o marido, que pode até ter sido o réu na acção de separação, requerida porventura com qualquer dos fundamentos menos graves que no sistema do projecto acrescem aos do divórcio, terá agora de alegar e provar um facto novo, que passa a ser o verdadeiro fundamento do divórcio - o adultério posterior da mulher.
Além disso, ainda que se entenda que a separação não faz cessar o dever de fidelidade dos cônjuges, pondo apenas termo a obrigação de viver em comum -doutrina que parece abonar-se especialmente com o que se dispõe no artigo 1209.º, § 1.º, do Código Civil, hoje revogado -, é forçoso reconhecer que o adultério nestas circunstãncias tem um aspecto completamente diverso e provoca muito menor reprovação por parte da sociedade do que o cometido durante a vida em comum dos cônjuges. Não faltará mesmo quem diga que moral e socialmente perde o direito a exigir fidelidade à mulher o marido que dela se separou de pessoa e bens.
Por outro lado, há uma certa inconsequência na disposição do projecto. Baseando-se afinal o divórcio numa culpa nova, superveniente, não se apreende com facilidade a razão por que só o adultério da mulher pode determinar a «conversão», e não o do marido (igualmente vinculado pelo dever da fidelidade) ou ainda outro facto, dos referidos no n.º 2.º, de que a existência da separação não exclue a possibilidade, tais como ofensas corporais e injúrias.
Finalmente é de notar que, admitindo nos termos referidos a «conversão» da separação em divórcio, o projecto não contém, qualquer disposição indicando o processo a seguir para a obter, o que agora cumpria fazer, visto que o requerente tem de produzir prova do facto que alega, e a mulher não pode recusar-se o direito de se defender e fazer oposição ao novo pedido do marido.
Em vista das considerações feitas, pronuncia-se a Câmara Corporativa pela supressão pura e simples do artigo 33.º do projecto.

d) Efeitos da separação de pessoas e bens e seu regime jurídico

57. No parecer desta Câmara sôbre o projecto de lei do ilustre Deputado Sr. Braga da Cruz observou-se que muitas vezes os cônjuges - que, tendo crenças religiosas ou sentindo por outras razões os inconvenientes do divórcio, desejariam acudir a situação de irredutibilidade que lhes perturba o lar, limitando-se a separação de pessoas e bens - são impelidos para o divórcio unicamente pelo desejo ou necessidade de beneficiar, no que respeita aos bens, do regime jurídico da dissolução do matrimónio que êste importa.
Interessa-os sobretudo ficar com a livre disposição de todos os bens que lhes tocarem na partilha do casal, não ficando presos, quanto a disposição dos bens imobiliários, pela necessidade da outorga do outro cônjuge, que o artigo 1216.º estabelece na separação de pessoas e bens.
Por isso, como novo meio indirecto de reduzir os casos de divórcio, no seu já citado parecer referiu esta Câmara a conveniencia que haveria em se permitir aos cônjuges separados de pessoas e bens a livre disposição de todos os seus bens, tanto mobiliários como imobiliários 1.
A esta aspiração corresponde e dá inteira satisfação o projecto, com o preceito do seu artigo 34.º Não pode,

1 Cf. Diário das Sessões, Suplemento ao n.º 32, de 22 de Março de 1935, p. 12, l.ª coluna.

Página 87

29 DE ABRIL DE 1937 632-LLLL

portanto, esta Câmara deixar de lhe dar o seu inteiro aplauso.

58. Procurando definir de um modo geral os efeitos da separação de pessoas e bens, diz-se no corpo do artigo 35.º do projecto que

«A separação de pessoas e bens não afecta o vinculo matrimonial, mas liberta os cônjuges da obrigação de vida em comum e dissolve a sociedade conjugal quanto aos bens».

Salvo o devido respeito, entende a Câmara Corporativa que o artigo não pode manter-se.
Não é necessário dizer-se que a separação de pessoas e bens não afecta o vinculo matrimonial. O projecto não tem por fim regular inteiramente o instituto da separação de pessoas e bens, que se encontra definido e regulado já no Codigo Civil; destina-se ou deve destinar-se apenas, como era o caso do decreto de 1910, a modificar em certos pontos o regime jurídico estabelecido nêste Codigo, como no que diz respeito as causas de separação, à faculdade de disposição dos bens, efeitos quanto aos filhos, etc.
Ora o Codigo Civil define já a separação de pessoas e bens como um instituto que apenas determina a interrupção da sociedade conjugal quanto as pessoas e quanto aos bens dos cônjuges.
Não modifica esta doutrina a circunstância de os cônjuges, por efeito da nova disposição do projecto, poderem dispor livremente, ou sem necessidade de outorga do outro, dos bens imobiliários que pela separação lhes ficarem pertencendo, pois não é a dispensa da outorga que pode dissolver o vinculo matrimonial.
Por isso não julgamos rigoroso, e parece-nos até contraditório, depois de acentuar que a separação não afecta o vinculo matrimonial, declarar que ela dissolve a sociedade conjugal quanto aos bens.
Compreende-se a idea dos autores do projecto, mas a formula e inadmissível, por contrária aos principios gerais de direito; e além disso é desnecessária, pois o que no final do artigo se quere acentuar e o que resulta já, do preceito anterior do artigo 34.º

59. Quanto ao preceito do § 1.º do artigo 35.º, em que se dispõe que a mulher pode deixar de usar o nome do marido, devendo todavia fazer-se o averbamento deste facto no assento do casamento, nada temos a observar, parecendo-nos inteiramente razoável a doutrina que nele se consigna.
Sendo o uso do nome do marido um direito da mulher, e não uma obrigação que a lei lhe imponha, é natural que se lhe reconheça, no caso de separação, a faculdade de renunciar a êsse direito, e contra tal renúncia nada terá que opor o marido, que não tem, como se disse, o direito a que a mulher use o seu nome. Esta renúncia da mulher, por via de regra, só agradará ao marido, a quem será penoso ver o seu nome usado por quem não tem já o seu afecto ou desmereceu a sua estima e respeito.

60. O preceito do § 2.º do artigo 35.º leva-nos a retomar o fio das considerações que estavamos fazendo sôbre o corpo do mesmo artigo.
Como dissemos, o projecto, no que respeita a separação de pessoas e bens, não representa uma regulamentação completa do instituto; e, se fosse êsse o seu alcance, estava incompleta nas suas disposições, pois nele se não consignam certos principios que cumpriria enunciar, como são os que resultam das disposições insertas no Codigo Civil regulando o processo da separação, em que se estabelece a necessidade de intervenção do conselho de família, se determina e regula a composição dêste, os pontos a decidir no caso de ser decretada
a separação - alimentos dos cônjuges, destino dos filhos -, a faculdade de reconciliação e direitos de terceiros no caso de esta ter lugar. Deve ter-se em vista que o projecto não contém quaisquer disposições reguladoras do processo a seguir para obter a separação de pessoas e bens, ao passo que nele se consignam diversos preceitos relativos ao processo de divórcio; tampouco se faz agora, como de resto se fez no artigo 42.º do projecto, qualquer remissão genérica para as disposições de novo Codigo do Processo Civil, de cujo projecto, aliás, se eliminou o processo especial de separação de pessoas e bens.
Além disso, tenho o decreto de 3 de Novembro do 1910, que agora se pretende revogar por completo, declarado nos artigos 50.º e 51.º que ficava revogado para todos os efeitos o § único do artigo 1209.º do Código Civil - que abria uma excepção ao principio de que da separação de pessoas deriva necessariamente a separação de bens - e que ficava proibida para o futuro a separação temporaria de pessoas, autorizada polo artigo 469.º do Codigo do Processo Civil, nada se dispõe a êste respeito no projecto; e todavia são assuntos a considerar na definição do regime jurídico da separação, mesmo sob o aspecto de direito substantivo. O decreto de 1910, no artigo 43.º, declarando que era permitida aos cônjuges a separação de pessoas e bens, pelos mesmos fundamentos do divórcio litigioso, acrescentou: «mas nos termos e com os efeitos e forma do processo previstos no Codigo Civil e Código do Processo Civil, salvas as modificações constantes do n.ºs 1.º, 2.º e 3.º do artigo 8.º e as dos artigos seguintes».
No § 2.º do artigo 35.º do projecto manda-se aplicar a separação «as disposições reguladoras dos efeitos do divórcio quanto aos filhos, aos bens e aos alimentos, excepto as que pressupõem a dissolução do matrimónio».
São, por efeito deste paragrafo, aplicáveis a separação, além das disposições da secção III, quanto aos filhos, e da secção IV, quanto a alimentos dos cônjuges, a do artigo 13.º, na parte em que preceitua que se procedera a partilha do casal, adquirindo cada um dos cônjuges a livre disposição e administração dos que lhe ficarem pertencendo, a do § único deste artigo, quanto ao modo de fazer a partilha ou separação, e a do artigo 16.º, que estabelece a sanção para o cônjuge culpado, privando-o dos benefícios assegurados pelo outro cônjuge e das vantagens da comunhão. Os bons principios levariam igualmente a respeitar, no caso de restabelecimento da sociedade conjugal, os direitos adquiridos por terceiros sôbre os bens dos cônjuges no período em que estavam separados, se bem que a formula do § 2.º do artigo 35.º não seja de molde a permitir a aplicação da doutrina da parte final do artigo 15.º do projecto.
É porém claro que a dispositivo dêste § 2..º não corresponde no seu alcance ao preceito do artigo 43.º do decreto de 1910.
Nestas circunstancias, e como resultado das observações que ficam expostas, e a Câmara Corporativa de parecer que os artigos 34.º e 35.º do projecto deveriam ser substituídos e alterados da seguinte forma:
O actual artigo 34.º do projecto seria substituído por novo preceito, em que se consignasse apenas a doutrina contida no § 1.º do artigo 35.º, sôbre o uso do nome do marido:

«Artigo 34.º A mulher separada judicialmente de pessoas e bens pode deixar de usar o nome do marido; devera, porém, quando usar dessa faculdade, requerer que, por averbamento, se mencione o facto no respectivo assento de casamento».

Página 88

632-MMMM DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

No artigo 35.º enunciar-se-ia, na essência, a doutrina do seu actual § 2.º; e, finalmente, em nova disposição se remeteria, em tudo o que não estivesse especialmente regulado no novo diploma, para as disposições dos Códigos Civil e do Processo Civil. E, assim, os novos artigos fiariam redigidos nos seguintes termos:

«Artigo 35.º São aplicáveis a separação de pessoas e bens as disposições das secções III e IV da presente lei, bem como a do § único do artigo 13.º e a do artigo 16.º».
Artigo ... Em tudo o mais não especialmente regulado na presente lei observar-se-ão as disposições do Codigo Civil e da legislação processual vigente».

No capitulo «Disposições gerais» se consignaria a matéria dos actuais artigos 50.º e 51.º do decreto de 1910, que se nos afigura dever ser mantida.

§ 9.º - Disposições processuais

61. O projecto que estamos analisando não se limita a consignar preceitos de direito substantivo relativos ao divórcio. Nele se consignam também algumas disposições relativas ao processo de divórcio, em que se propõem certas innovações na estrutura do processo actual.
É êste o objecto do capitulo V do projecto, que abrange os artigos 36.º a 42.º
No último dêstes artigos preceitua-se, porém, que o processo de divórcio será, em todos os casos omissos, regulado pelo Codigo do Processo Civil e incluído na reforma dêste.
Sendo assim, parece que o melhor caminho seria o de deixar a determinação dos tramites processuais do divórcio ao cuidado dos que tem a seu cargo a reforma completa da nossa legislação processual, e que não deixarão por certo de considerar o problema.
No novo projecto do Codigo do Processo Civil (edição de 1930) não se estabelece um processo especial para o divórcio litigioso, o que importa como consequência imediata que a respectiva acção segue os termos do processo ordinario. E esta também, ao que parece, a doutrina que se consigna no artigo 36.º do projecto que estamos analisando, onde se dispõe que a acção de divórcio seguira os termos do processo ordinário. Mas o artigo acrescenta : «com as alterações da presente lei». E nas disposições subsequentes indicam-se diversas derrogações as regras do processo ordinario, que levam a concluir que o projecto se propõe organizar um verdadeiro processo especial, sobretudo se atendermos ao texto do artigo 42.º, onde se diz que «o processo de divórcio» será regulado em todos os casos omissos pelas disposições do Código do Processo Civil e incluído na reforma dêste».
Vejamos em que consistem as alterações as regras do processo ordinario que no projecto se propõem e se representam innovações aceitáveis.

62. No § 1.º do artigo 36.º proíbe-se a reconvenção no processo de divórcio, e a êste respeito fizemos já as nossas observações nos n.ºs 21 a 23 deste parecer, mostrando-nos adversos ao ponto de vista do projecto.
No § 2.º dispõe-se que não é admitido o depoimento pessoal de qualquer das partes.
Tambem não julgamos aconselhável a doutrina deste paragrafo, não vendo motivos sérios para proibir nos processos de divórcio o depoimento pessoal das partes.
Que não se obrigue o cônjuge a depor sôbre factos criminosos ou torpes que lhe sejam atribuídos, compreende-se e é razoável. Mas para tanto basta a disposição
geral do § único do artigo 493.º do projecto do Codigo do Processo Civil. E cremos bem que não será preciso ir mais longe em materia de divórcio.

No § 3.º do referido artigo prescreve-se o julgamento secreto, suprime-se logicamente o relatorio da sentença e limita-se esta a indicação do nome das partes e da disposição legal aplicável.
No § 4.º determina-se que, uma vez transitada em julgado a sentença que decretou o divórcio (considera-se apenas o caso de a sentença decretar o divórcio) e feito o averbamento deste no registo civil, sejam inutilizados os documentos e os quesitos.
Julgamos aceitáveis estas disposições, mas entende-mos que elas não são de molde a justificar, só por si, a criação de um processo especial de divórcio. Podem perfeitamente inserir-se no projecto do Codigo do Processo Civil, sem que haja de organizar-se um processo especial.

63. O artigo 37.º determina que nas acções de divórcio seja sempre ouvido, com voto consultivo, o conselho de familia, que será composto de três parentes de cada uma das partes. Referindo-se o § 1.º a designação desses vogais, dispõe-se no § 2.º que ao conselho competira intervir na tentativa de conciliação dos cônjuges (cf. artigo 5.º, § 1.º) e emitir parecer sôbre a conveniência do divórcio e procedência do fundamento alegado, e bem assim sôbre as providencias a adoptar quanto ao destino e alimentos dos filhos menores.
A êste respeito estamos em plena discordância com a orientação dos autores do projecto, pois, como atrás deixamos dito, somos abertamente contrários à intervenção do conselho de familia nestes processes, como também no processo de separação de pessoas e bens. E isto pela razão simples de que a larga experiencia recolhida quanto a êste ultimo processo mostra a saciedade que a acção do conselho de familia e inteiramente inútil e a sua intervenção converte-se num verdadeiro elemento perturbador do processo, que mais agrava a situação delicada que a existência da própria acção já cria.
Com efeito, duas hipóteses se podem dar: ou o réu contesta a acção a sério, ou não contesta.
Se não contesta ou se deduz apenas uma oposição pro forma, com conselho de familia ou sem ele, chega-se sempre ao mesmo resultado - a procedência da acção, desde que o autor faça prova concludente.
Se a oposição e seria e o réu se empenha em evitar a procedência da acção, a intervenção do conselho não tem utilidade alguma, porque os vogais oferecidos pelo autor votam, por via de regra, no sentido favoravel ao autor, e os oferecidos pelo réu votam com êste.
O resultado certo, ou que é legitimo prever, e o de o conselho de familia empatar e não fornecer subsidio algum util para a resolução do pleito ou das questões submetidas à sua apreciação, que terão, em ultima analise, de ser decididas pelo critério exclusivo do tribunal.
Mas não é só inútil, é também prejudicial a intervenção do conselho de familia, porque complica e demora extraordinariamente a decisão da causa. Com efeito, a constituição do conselho dá lugar a incidentes longos e irritantes, com impugnações, escusas e recusas.
Nesta orientação temos a nosso lado o voto autorizado do douto autor do novo projecto do Codigo do Processo Civil, o professor Doutor Jose Alberto dos Reis, que no referido projecto suprimiu o processo especial de separarão de pessoas e bens, em que, como se sabe, a separarão era julgada com a intervenção do conselho de familia. E temos conhecimento de que foram razões identicas às que ficam expostas que levaram

Página 89

29 DE ABRIL DE 1937 632-NNNN

o sábio processualista a submeter as acções de separação de pessoas e bens aos termos do processo ordinario.
Ora, se é desaconselhada a intervenção do conselho de familia nas acções de separação de pessoas e bens, desaconselhada é ela igualmente nos processos de divorcio.
Dir-se-á que o conselho tinha nos processos de separação funções deliberativas, quando e certo que o artigo 37.º do projecto do divórcio só lhe atribue funções consultivas.
Mas nem assim se afastam as criticas que opusemos à sua intervenção, parecendo claro que o conselho de familia há-de, como entidade consultiva, revelar os mesmos vícios e acusar os mesmos defeitos que manifestava como orgão deliberativo, pois se trata, na verdade, de vícios de origem que resultam da sua própria constituição.
Atenda-se, com efeito, a que o conselho é formado «por três parentes de cada uma das partes». E, se parece certo que a sua acção praticamente será nula ou apagada pelas razões já indicadas, a verdade é que nem por isso serão menos agitados e apaixonados os incidentes da sua constituição, mostrando a experiência que as partes não se dispõem facilmente a renunciar a qualquer posição que julguem possa vir a ser-lhes vantajosa no processo.
Além disso, não se compreende bem a vantagem do voto consultivo. Se os factos hão-de ser julgados pelo tribunal colectivo, em harmonia com as provas produzidas, a consulta do conselho do familia apresenta-se como pura excrescência.
Não julgamos pois que deva conservar-se a doutrina do artigo 37.º do projecto. Acresce que nêle se dispõe simplesmente que o conselho e composto por três parentes de cada uma das partes, limitando-se o § 1.º a dizer que os nomes dos vogais são indicados, por parte do autor, na petição inicial, e, por parte do réu, na contestação, ou, na falta desta, em simples requerimento.
Ora, a manter-se a intervenção do conselho de familia, mesmo com voto consultivo, cumpriria então regular conveniente e completamente a sua constituição, prevendo o caso de não ser possível constituir o conselho só com parentes, regulando a materia das impugnações, escusas e recusas, momento em que deveriam ser deduzidas, consignando, emfim, disposições correspondentes às que hoje se encontram, para o processo de separação de pessoas e bens, nos Códigos Civil e do Processo Civil.

64. O artigo 38.º do projecto declara obrigatória a intervenção do Ministerio Publico nas acções de divórcio como parte principal, dizendo mais que lhe compete a representação do réu quando o divórcio fôr requerido com fundamento na ausência ou desaparecimento do cônjuge.
Julgamos desnecessária esta disposição, em vista do que se preceitua de um modo geral no n.º 3.º do artigo 192.º e no n.º 9.º do artigo 254.º do Estatuto Judiciário.
Dispõe, com efeito, o n.º 3.º do artigo 192.º que ao Ministerio Publico compete:

«Intervir em todos os processos e actos em que seja interessado o Estado ou alguma das pessoas a quem êle deva protecção, e velar pelos seus direitos».

É pois manifesto que o Ministerio Publico teria de intervir como representante do ausente quando contra êle fosse requerido o divórcio.
E o n.º 9.º do artigo 254.º preceitua que compete aos delegados do Procurador da Republica:

«Intervir nas causas sôbre o estado das pessoas ...».

Mas - advertir-se-á - o artigo 38.º do projecto prescreve a intervenção do Ministerio Publico como parte principal.
De facto, não e indiferente que o Ministerio Publico intervenha como parte principal ou como parte acessória. No primeiro caso tem todos os direitos processuais concedidos ao litigante que representa, ao passo que no segundo exerce uma função de mera assistência.
Compre-nos então observar que não vemos razão alguma para alterar, quanto à acção de divórcio, o que está estabelecido no n.º 3.º do artigo 192.º do Estatuto Judiciário. Se o Ministerio Publico intervém para representar o réu ausente, a sua intervenção exerce-se a titulo de parte principal; em todos os outros casos intervirá como parte acessória.
Com efeito, não vemos que vantagem possa haver em que o Ministerio Publico intervenha como parte principal, se o autor e o réu estão em juizo, constituíram advogado e tomam parte activa na instrução e discussão. A experiência da intervenção do Ministerio Publico leva, na verdade, a concluir que, quando as partes interessadas estão em juizo, é apagado e nulo o papel daquele; nunca o agente do Ministerio Publico traz ao processo qualquer elemento util, eficaz.
Se o réu é revel, também o Ministerio Publico, que não conhece os factos, não pode suprir a falta de defesa.
A verdade e que a intervenção do Ministerio Publico nas acções sôbre o estado das pessoas mantém-se mais por motivos de ordem histórica do que por considerações de utilidade real. Nenhum inconveniente haveria, a nosso ver, em a suprimir; mas a manter-se, não se deve ampliar a sua acção, mesmo nominalmente.
Por isso entendemos que se não deve estabelecer a êste respeito, relativamente à acção de divórcio, doutrina diferente da que consta, de um modo geral, do Estatuto Judiciário.

65. Quanto ao artigo 39.º, observaremos apenas que a materia desta disposição é regulada nos artigos 1027.º e seguintes do projecto do Codigo do Processo Civil, e em termos diversos, em parte, daqueles que se estabelecem no referido artigo. Parece pois razoável eliminá-lo do presente projecto de lei.

A disposição do artigo 40.º, que impõe ao escrivão do processo de divórcio a obrigação de enviar oficiosamente a certidão da sentença que o decretar a conservatória do registo civil onde tiver sido lavrado o assento do casamento, para que o divórcio seja averbado, não a julgamos necessaria, visto que, determinando o artigo 390.º o Codigo do Registo Civil (decreto n.º 22:018) que a sentença que decretar o divórcio seja averbada e o officio a margem do assento de casamento, preceitua o artigo 391.º do mesmo Codigo que, para execução de tal preceito, e «enviará o chefe da secretaria judicial a certidão da sentença no prazo de quinze dias após o transito em julgado, independentemente de qualquer preparo ou de prévio pagamento de custas, ao funcionário em cuja área tiver tido lugar o registo de casamento».
É ao chefe da secretaria judicial, e não ao escrivão, que incumbe a remessa da certidão da sentença de divórcio, e não vemos razão para alterar o que está estabelecido já no Codigo do Registo Civil.
E, quanto as despesas com as certidões destas sentenças, determinou a portaria n.º 8:146, de 21 de Junho de 1935 (Diário do Governo n.º 141, 1.º serie), que as

Página 90

632-OOOO DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

certidões das sentenças de divórcio a enviar nos termos do artigo 391.º do Codigo do Registo Civil, bem como outras para fins semelhantes enviadas pelos conservadores, sejam passadas em papel comum e o respectivo imposto do selo pago por verba juntamente com o dos processes, de harmonia com o artigo 135 da tabela geral do imposto do selo. Quanto aos emolumentos devidos pelos averbamentos de divórcio, determina a mesma portaria que serão liquidados sem qualquer dedução e os cheques passados, nos termos do artigo 75.º da tabela de emolumentos e salários judiciais, remetidos pelos chefes das secretarias judiciais aos funcionários do registo civil, devendo as percentagens legais e selos correspondentes ser pagos das competentes guias mensais.

66. No artigo 41.º do projecto atribue-se a qualquer dos cônjuges o direito de requerer, em qualquer altura da causa, imposição de selos e arrolamento dos bens mobiliários comuns ou proprios do requerente que se encontrem em poder do outro, quando haja justo receio de extravio.
O § 2.º do artigo 20.º do decreto de 1910 atribue já êste direito à mulher que, tendo pedido o deposito judicial, tenha por isso de abandonar o domicílio conjugal.
São, pois, muito mais amplos os termos em que o projecto agora consigna o direito de pedir o arrolamento.
Mas a matéria é regulada nos artigos 279.º e seguintes do novo projecto do Codigo do Processo Civil, e julgamos suficientes os preceitos que ai se contem. Se, porém, se entender que há necessidade de providencias especiais para o caso da acção de divórcio, e o Codigo do Processo Civil, agora em estudo, o lugar proprio para as formular.

§ 10.º - Disposições gerais

a) Renúncia ao divórcio e à separação.
O divórcio e a separação como causas resolutivas de liberalidades a favor dos cônjuges

67. No capitulo VI do projecto, sob a epígrafe «Disposições gerais», consigna-se em primeiro lugar, no artigo 43.º, o principio de que não é valida a renuncia ao divórcio ou separação de pessoas e bens».
Trata-se evidentemente da renuncia ao direito de acção, isto é, a faculdade de, nos termos legais, - requerer o divórcio ou a separação de pessoas e bens.
Nada temos a opor a esta disposição, que é conforme aos principios, pois o direito de propor a acção de divórcio ou de separação é um simples poder objectivo ou poder legal, como tal irrenunciável.
De resto, o principio estava já consagrado no decreto de 1910, quanto ao divórcio (artigo 54.º), e o projecto apenas o amplia a separação de pessoas e bens. Em boa doutrina a disposição e até desnecessária, sendo da própria natureza dos direitos desta especie, correspondentes a poderes objectivos reconhecidos de um modo geral e abstracto pela lei, não poderem ser renunciados. A disposição aparece, pois, no projecto, certamente porque figura já no decreto de 1910.
Acrescenta-se, porém, no citado artigo 43.º do projecto que são todavia validas a quaisquer clausulas resolutivas no contrato antenupcial, bem como nas doações e nos testamentos, quer dos nubentes ou cônjuges, quer de terceiros».
Quere-se certamente significar nesta ultima parte do artigo 43.º que é licita e produzirá todos os seus efeitos qualquer clausula inserta nas convenções antenupciais, nas doações e nos testamentos, pela qual os nubentes, os cônjuges ou terceiros estipulem que a disposição ou liberalidade feita a um dos cônjuges ficará sem efeito no caso de divórcio ou de separação.
Modifica-se assim a doutrina que se contem no artigo 54.º do decreto de 1910, que, declarando nula a renuncia ao divórcio, proibia igualmente que, em convenções antenupciais, disposições testamentárias ou doações, se estipulasse qualquer restrição a faculdade de divórcio ou se impusesse qualquer penalidade para quem o requeresse.
Concordamos com a doutrina do projecto, que se inspira num principio justo e representa mais um obstáculo a opor ao divórcio ou à separação.
Poderia parecer que o preceito está de certo modo em oposição com o principio que nos revela o artigo 1808.º do Codigo Civil, declarando que se haverá como não escrita a condição que iniba o herdeiro ou legatário de casar-se ou deixar de casar-se, isto é, em oposição com o principio de que a realização ou não realização do matrimonio não deve nunca subordinar-se a motivos de caracter económico ou relativos a interêsses materiais. Se assim é quanto a realização do matrimónio, poderia dizer-se que o mesmo deve acontecer quanto à sua subsistência, ou quanto á modificação da sociedade conjugal.
Mas a verdade e que já o Codigo Civil consignava restrições ao principio, considerando valida a condição referida, quando imposta ao viuvo ou viúva com filhos pelo cônjuge falecido ou pelos ascendentes ou descendentes destes. E o decreto n.º 19:126 veio ainda restringir mais o principio, estabelecendo no § único do artigo que não estão abrangidas no preceito deste, e são portanto validas, as disposições testamentárias que limitam a duração de benefícios ao estado de solteiro, casado ou viúvo.
Por outro lado há a considerar que é a própria lei - e nesta orientação segue o projecto (cf. artigos 16.º e 35.º, § 2.º) - que, na falta mesmo de qualquer disposição convencional, preceitua, quanto ao cônjuge culpado, que o divórcio e a separação importam a perda de quaisquer benefícios que lhe tenham sido assegurados, quer no contrato antenupcial, quer posteriormente, e tanto pelo outro cônjuge como por terceiros (artigo 27.º do decreto de 3 de Novembro de 1910 e artigo 1213.º do Codigo Civil).
Consideramos, pois, inteiramente aceitável a doutrina do artigo 43.º, mas entendemos que a sua redacção deverá com vantagem ser modificada nos seguintes termos:

«Artigo 43.º Ninguem pode validamente renunciar ao direito de obter o divórcio ou a separação de pessoas e bens.
São validas as condições ou clausulas dos contratos antenupciais, doações ou testamentos, pelas quais se estipule que as disposições ou liberalidades feitas a favor das cônjuges, por um deles ou por terceiros, ficarão sem efeito no caso de divórcio ou de separação de pessoas e bens, ou que os seus efeitos cessarão na data da sentença que decretar o divórcio ou a separação de pessoas e bens».

b) Convenções sôbre a partilha do casal

68. No artigo 47.º do projecto declara-se que serão nulas todas as estipulações ou acordos que acerca da partilha de bens, que houver de realizar-se de futuro em consequência do divórcio ou da separação, fizerem os cônjuges, entre si ou com terceiros, fora da respectiva escritura antenupcial ou do respectivo processo. A disposição e a simples reprodução, com ligeiríssimas alterações de redacção, do preceito que se encontra consignado no artigo 62.º do decreto de 1910. Nada temos que observar a seu respeito.

Página 91

29 DE ABRIL DE 1937 632-PPPP

c) O adultério como crime

69. No artigo 44.º do projecto consigna-se o princípio de que o adultério de qualquer dos cônjuges, hoje incriminado pelo artigo 401.º do Código Penal, deixa de ser punível como crime.
O problema só indirectamente interessa ao objecto do presente projecto de lei - a regulamentação do divórcio e da separação de pessoas e bens. É que, sendo o adultério de qualquer dos cônjuges fundamento de divórcio ou de separação, necessário se torna regular, desde que o divórcio constitua um delito, as relações entre a acção civil de divórcio ou de separação e a acção criminal por adultério.
O Código Penal de 1852, punindo como crime tanto o adultério da mulher como o adultério do marido, quando êle tenha manceba teúda e manteúda na casa conjugal, permitia a cumulação das duas acções, dispondo o artigo 403.º que a sentença proferida sem causa de divórcio por adultério, sendo absolutória, produzia todos os efeitos na causa criminal, e que sendo condenatória não prejudicava a causa criminal. O «divórcio», porém, de que se falava nêste preceito, que passou sem alteração para o Código de 1886, era a separação de pessoas e bens 1.
Dispondo, porém, posteriormente o Código Civil, no artigo 1209.º e § 1.º, que, nos casos de adultério, era lícito ao cônjuge ofendido recorrer ao conselho de família (acção civil de separação) ou intentar contra o outro cônjuge a competente acção criminal, e acrescentando que se, porém, o cônjuge ofensor reincidisse, poderia o cônjuge ofendido intentar a acção criminal, «não obstante ter recorrido ao conselho de familia», havia, ao que parece, oposição de principios entre esta disposição do Código Civil e a do artigo 403.º do Código Penal, sobretudo se considerássemos o «divórcio» de que falava o Código Penal como significando a separação perpétua ou definitiva dos cônjuges.
Com efeito, a disposição do Código Civil parece levar à conclusão de que o cônjuge não podia intentar a acção criminal pelo adultério que serviu de base a acção de separação, mas podia intentá-la pelo adultério posterior.
E assim julgou o Supremo Tribunal de Justiça 2.
No entanto havia quem entendesse não haver oposição entre os preceitos do Código Civil e do Código Penal, afirmando que, segundo aquele, podia intentar-se a acção criminal tanto pelo facto anterior como pelo facto posterior à causa civil de separação de pessoas e bens, pois no § 1.º do artigo 1209.º do Código Civil, quando se permitia ao cônjuge ofendido instaurar a acção criminal, «não obstante ter recorrido ao conselho de familiar, não se queria fazer referencia senão ao facto anterior, porque o posterior não podia ser prejudicado pela disposição geral do artigo, que só se referia aos factos anteriores. Quere dizer, segundo esta interpretação, o § 1.º permitia a cumulação da acção criminal pelo mesmo facto de adultério que baseava a acção de separação, embora a subordinasse a condição de o adúltero ter reincidido.
Era esta a opinião do Sr. Alexandre Seabra, e nêste sentido julgou também o Supremo Tribunal de Justiça 3.
Parece-nos especiosa a interpretação, que levaria ao absurdo de subordinar a acção criminal por determinado crime a circunstância de o seu autor ter cometido... outro, posteriormente!
Mais razoável parecia pois a opinião da Revista de lei e de Jurisprudência, que afirmava essa oposição, observando que o § 1.º do artigo 1209.º estabelecera doutrina nova com relação ao Código Penal de 1852, e que a lei de 14 de Julho de 1884, mandando inserir no Código apenas as modificações feitas pela nova reforma penal, de novo sancionou as restantes disposições do Código de 1852, e portanto a doutrina oposta do artigo 403.º
Pôs têrmo a êste confuso estado de cousas o decreto de 1910, dispondo, no § 4.º do artigo 61.º, que:

«O cônjuge ofendido tem de optar pela acção criminal de adultério ou pela civil de divórcio, ou de separação, com base em adultério, não podendo cumulá-las em caso algum, nem servir-se numa delas de elementos obtidos em diligências administrativas ou judiciais, preparatórias da outra».

O decreto de 1910 manteve a incriminação do adultério, dispondo embora que êle só seria considerado criminoso quando ocorresse durante a vida dos cônjuges em comum. Codificando nalguns pontos as disposições dos artigos 401.º a 404.º do Código Penal, reduzindo, designadamente, a penalidade até ao máximo de prisão correccional, preceitua no § 1.º do citado artigo que o adultério do marido é equiparado em caracter e gravidade ao da mulher.
Vem agora o projecto, rompendo em absoluto com esta orientação, proclamar o principio de que o adultério deixa de constituir um crime. E desta forma fica afastado o problema da cumulação das duas acções, a criminal e a civil de divórcio ou de separação.
Mas que pensar da doutrina do projecto nêste ponto?

70. Não sendo nosso desejo discutir agora largamente, nêste parecer já tam longo, um problema que pertence propriamente ao direito penal, não deixaremos de dizer que a Câmara Corporativa discorda em absoluto da orientação do projecto, quanto a eliminação do adultério do quadro das infracções penais.
Basearam-se certamente os autores do projecto no facto de que na pratica o cônjuge ofendido, desde que se lhe oferece a sanção do divórcio, despreza a sanção penal e deixa de recorrer a acção criminal, optando sistematicamente pela acção civil, que lhe permite por têrmo à sociedade conjugal com o adúltero.
Apesar disso, porém, não julgamos justificada a supressão do caracter criminoso do adultério. A incriminação dêste não deriva somente da indissolubilidade matrimonial; os seus fundamentos subsistem no regime do divórcio. Todas as razões levam a essa incriminação: a necessidade de conservar a ordem e a moralidade da familia, que tam fielmente se reflecte na organização moral da sociedade; a oportunidade de sancionar o dever jurídico da fidelidade o aspecto mais interessante da honra sexual -, que deve ser garantido com uma sanção; o dever legislativo de não deixar impune tam grave facto antijurídico.
Num diploma que se destina a defender e revigorar a instituição da familia, parece inconsequente preceituar que o adultério deixa de ser punível.
A incriminação do adultério apresenta-se além disso como um corolário da doutrina do Estado Novo, que assegura a constituição e a defesa da família como base primaria da educação, da disciplina e da harmonia social, e que, pelo ensino que ministra, pretende modelar

1 Cf. entre outros o acórdão da Relação do Porto, de 6 de Maio de 1891 (Gazeta da Relação do Lisboa, 5.º, p. 287).
2 Vide acórdão de 13 de Julho de 1877 (Diário do Govêrno n.º 243 e Direito, ano X, p. 411). Cf. Dr. Luiz Osório da Gama e Castro, Notas ao Código Penal Português, p. 740.
3 Cf. O Direito, ano X, p. 412, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Março de 1906 (Colecção Oficial, p. 209), e acórdão de 3 de Abril de 1903 (Gaseta da Relação de Lisboa, 17, p. 605).

Página 92

632-QQQQ DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 127

o carácter e todas as virtudes morais e cívicas pelos princípios da doutrina e moral cristas.
A punição do adultério representa indiscutível condição de defesa da sociedade.
Se os cônjuges por via de regra não recorrem à acção criminal, que se mantenha o carácter criminoso do adultério, ao menos como afirmação de princípio.
Na reforma da legislação penal alemã, actualmente em preparação, o adultério é considerado como crime público, e punido com penas variáveis, graduadas pelo prudente arbitrio do juiz, que podem todavia atingir considerável gravidade.
O repúdio do adúltero não se efectiva apenas pelo divórcio ou pela separação judicial. Evitando de facto todo e qualquer contacto com o adúltero, bem pode conceber-se que o cônjuge ofendido queira evitar o divórcio para não assegurar ao ofensor a possibilidade de se ligar legalmente ao seu cúmplice, ou de obter em nova união materialmente vantajosa o premio da sua falta. A condenação penal será em tal caso a forma de punir a ofensa que recebeu.
Acresce que a acção criminal é a única que assegura ao ofendido a punição do cúmplice do cônjuge adúltero; a negação do carácter criminoso do adultério tem, pois, ainda o inconveniente de assegurar a impunidade aquele, que nunca pode ser atingido pela acção civil de divórcio ou separação.
Mantendo-se, pois, o carácter criminoso do adultério, haverá que resolver então, o problema da punibilidade do adultério do marido : se êle deve ser punido em todo e qualquer caso, «equiparando-se em carácter e gravidade ao adultério da mulher - sistema do decreto de 1910 -, ou se deve exigir-se para tal que êle seja qualificado, isto é, acompanhado de circunstâncias especiais - sistema do Código Penal, que só o punia quando com concubina teúda e manteúda na casa conjugal.
Embora se trate de um crime particular, dependente de querela e acusação do ofendido, como o crime só e punido pelo abalo que produz à sociedade na ordem moral, afigura-se-nos que não poderá deixar de se considerar, ainda quanto ao aspecto da repressão penal, a forma diversa por que a moral social reage contra o adultério de um ou outro dos cônjuges, sendo indiscutível que provoca muito menor reprovação e produz menor alarme social o adultério do marido do que o da mulher.
Justificado parece, pois, tornar a incriminação dêste dependente do concurso de certas circunstâncias, como fazia o Código Penal vigente; e a logica exigirá até que essas circunstâncias sejam as mesmas que atribuem ao adultério do marido a gravidade suficiente para o qualificar como fundamento de divórcio ou de separação.
O artigo 44.º do projecto poderá, pois, quando se perfilhe a doutrina que deixamos exposta, ser substituído por uma disposição baseada no actual preceito do artigo 61.º do decreto de 1910, modificado de forma a consagrar a nova orientação, quanto ao adultério do marido, e suprimindo-se, é claro, as disposições que continham a doutrina repudiada quanto aos efeitos da absolvição na acção criminal por adultério.
O novo artigo ficaria, pois, redigido nos seguintes termos:

«Artigo 44.º O adultério do marido ou da mulher só será considerado criminoso quando ocorrer durante a vida dos cônjuges em comum e será punido nos termos dos artigos 401.º a 404.º do Código Penal, com as modificações constantes dos parágrafos seguintes.
§ 1.º O adultério do marido só será punível quando praticado com escândalo público, ou completo desamparo da mulher, ou concubina teúda e manteúda na casa conjugal. A pena nunca poderá exceder, para qualquer dos cônjuges e respectiva co-réu, o maximo da prisão correccional, ficando assim alteradas as incriminações dos artigos 401.º e 404.º
§§ 2.º, 3.º e 4.º (Os do artigo 61.º do decreto de 3 de Novembro de 1910).
§ 5.º Ficam assim revogadas as disposições do artigo 1209.º e seus parágrafos do Código civil.

d) Disposições diversas

71. Nos artigos 45.º e 46.º consigna o projecto preceitos relativos respectivamente à punição do homicídio do cônjuge adúltero cometido pelo outro quando o surpreenda em flagrante, a reclamação de alimentos pela mulher abandonada pelo marido, e ao chamado delito de «abandono da família», que consiste na recusa ou falta de pagamento pontual dêstes alimentos, delito que em França foi especialmente punido pela lei de 7 de Fevereiro de 1924. Esta última disposição corresponde a uma das reclamações formuladas pelo Doutor Cunha Gonçalves no seu trabalho Reformas necessárias da legislação civil e comercial portuguesa, onde acentua a necessidade de completar as disposições já consagradas, quanto a alimentos, no decreto n.º 20:431 1.
Julgando embora justo o pensamento que inspira as citadas disposições, entende a Câmara Corporativa que o diploma de que se trata não é o lugar próprio para as consignar. A primeira é um preceito de direito penal, que nem directa nem indirectamente se relaciona com o divórcio ou com a separação de pessoas e bens. A segunda, respeitando aos deveres do marido na constância do matrimonio, teria o seu lugar adequado no diploma regulador do casamento, e portanto só poderia ser inserta no decreto n.º 1 de 25 de Dezembro de 1910.
Por isso a Câmara Corporativa entende que devem ser eliminadas do projecto.

Domingos Fezas Vital (presidente).
José Gabriel Pinto Coelho (relator).
Afonso de Melo Pinto Veloso.
Abel Pereira de Andrade, com a declaração de que não aprova o parecer na parte em que admite o casamento mero acto civil, com o carácter de dissolubilidade que lhe foi atribuído na legislação actualmente em vigor.

1 Cf. pp. 39 e segs.

Rectificação

No parecer da Câmara Corporativa acerca da proposta de lei sôbre a organização geral do exercito (2.º suplemento ao Diário das Sessões n.º 127), na 1.º linha da p. 632-J, onde se lê: «Consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição,...» deve ler-se: «Consultada, nos termos do artigo 105.º da Constituição,...».

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×