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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES

N.° 88 ANO DE 1940 23 DE MAIO

II LEGISLATURA

(INTERVALO DAS SESSÕES)

CÂMARA CORPORATIVA

Parecer sôbre a Concordata e o Acôrdo Missionário assinados na Cidade Vaticana, em 7 de Maio de 1910, pelos Plenipotenciários de Sua Santidade e de Sua Excelência o Presidente da República

Consultada pelo Govêrno acerca da Concordata e do Acôrdo Missionário negociados entre Portugal e a Santa Sé, a Câmara Corporativa, por intermédio das secções de Política e administração geral, Justiça, Política e economia coloniais e Interesses espirituais e morais, emite o seguinte parecer:

1. A Concordata e o Acôrdo Missionário, que, assinados no Vaticano, constituem objecto deste parecer, reatam a nossa tradição concordatária, interrompida em 1910 com manifesto prejuízo para a Ordem social, que não deve ser considerada apenas nas suas revelações externas: ordem nas ruas, e antes o deve ser também na sua essência, na sua substância: a ordem, a paz nas consciências, única verdadeira paz e única verdadeira ordem 1.
É certo que as relações entre o Estado e a Igreja entraram de há anos a esta parte numa fase de mais cordial entendimento, mas sem que no aspecto jurídico-religioso tivessem desaparecido todas as arestas, todos os mal-entendidos, todas as queixas.
Mas se o Estado Português se reconhece limitado pela moral e se as virtudes morais dos cidadãos - um dos fins visados pelo ensino - devem ser orientadas pelos princípios da doutrina e moral cristas, tradicionais do País (Constituição Política, artigos 4.° e 43.°, n.° 3.°), como manter o statu quo religioso sem que no espírito da mocidade nascesse, porventura, a convicção de que os princípios formulados eram uns e a realidade outra, ou, melhor, de que a verdade constitucional era uma e outra a verdade real?
Ora, Política de Verdade é o lema do Estado Novo e nunca, como hoje, deveu este em tudo obedecer-lhe, ainda que não seja senão para que a atitude portuguesa sirva de exemplo ao Mundo, cuja vida social parece querer construir-se, toda ela, sobre a falsidade e a mentira, como meios sistemáticos de luta e de triunfo.
Demais, a obra de restauração nacional não atingiria a sua plenitude emquanto, de novo, o espiritual e o temporal, pondo termo a uma indesejável situação de recíproca desconfiança e empregando cada um os meios que lhe são próprios, sem abusivas ingerências nos domínios privativos do outro, em boa harmonia não tentassem alcançar o fim comum: a perfeição dos homens, no culto da Pátria e na fraternidade das almas.
Tornava-se assim necessário resolver o problema religioso. Mas a situação jurídica vigente jamais a Igreja a aceitaria como situação definitiva e a situação anterior

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1 São quatro as concordatas celebradas pela Santa Sé com Portugal: a concordata de 20 de Julho de 1778, celebrada entre Pio VI e a Rainha D. Maria I, que tem por objecto a apresentação de alguns benefícios, tanto curados como simples; a concordata de 21 de Outubro de 1848, celebrada, com o nome de convenção, entre Pio IX e a Rainha D. Maria II, sôbre a Bula da Cruzada, seminários, cabidos, tribunal da Nunciatura, conventos de freiras, venda de bens eclesiásticos e circunscrição das dioceses; a concordata de 21 de Fevereiro de 1857, celebrada, com o nome de tratado, entre Pio IX e D. Pedro V, acêrca dos limites e extensão do nosso direito de padroado no Oriente; a concordata de 23 de Junho de 1886, celebrada, com o nome de convénio, entre Leão XIII e D. Luiz, sôbre circunscrição diocesana e exercício do direito de padroado na Índia Oriental.
Indicaremos ainda o Acôrdo de 15 de Abril de 1928, que regulou a circunscrição das dioceses, a nomeação dos bispos e a dupla jurisdição de que trata a Concordata de 1886, e o Acôrdo de 11 de Abril de 1929, que fixou os limites e a jurisdição da diocese de S. Tomé de Meliapor, nas Índias Orientais, em cumprimento do artigo 4.° do Acordo anterior. A ambas se refere a Concordata no artigo 29.°

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a 1910 revelava-se, pelos mais variados motivos - de ordem religiosa uns e de ordem política outros -, de impossível restauração.
Restava o caminho das negociações, do mútuo acôrdo, da Concordata, emfim.
Por ele seguiu o Governo, e com brilhante êxito, facilitado, sem dúvida, pelo desejo comum de se atingir, através de recíprocas concessões e em tanto quanto a essência doutrinal, por um lado, e o interêsse nacional, por outro, o consentissem, a ambicionada meta: a plena paz religiosa, coroamento lógico da nossa restauração.

2. Não apreciará a Câmara Corporativa quer a Concordata quer o Acordo Missionário à luz da sua harmonia ou desharmonia com o Bem moral, como Valor Supremo, nem mesmo à luz dos benefícios espirituais deles resultantes, sobrepondo ao juízo da Igreja o seu próprio juízo.
A Santa Sé, que perante a consciência católica se apresenta como representante divina dos interesses religiosos e guia inspirada do bem das almas, por certo contemporizou, aqui ou além, com as exigências do bem comum nacional, a que, no domínio da acção e das realidades contingentes, sempre haverá que atender, mesmo quando se pense, acima de tudo, na defesa do bem espiritual.
A prudência é virtude, e virtude primária em quem dirige.
De resto, sob êste aspecto fácil será sempre ao Estado evolucionar, querendo e podendo, no sentido de uma sua maior obediência aos princípios cristãos. Nada na Concordata o impede, e seria absurdo supor que viria a impedi-lo a ... Igreja, tentando invocar para isso a ... Concordata.
Não é, aliás, a Câmara Corporativa órgão consultivo da Santa Sé, a quem caiba dar o seu parecer em nome dos interesses supremos da Igreja, mas órgão consultivo da Assemblea Nacional e do Governo e, portanto, órgão cujos pareceres devem ser orientados pelo bem comum, da Nação, posto que sem esquecimento da dependência deste do bem espiritual da pessoa humana, fim último de tudo o que é ... humano.

I

Apreciação na generalidade

1) Concordata de «separação» e Acôrdo Missionário Complementar

3. Estamos perante uma «Concordata de Separação» e nem perante outra poderíamos estar.
Sem prejuízo do preceituado pelas concordatas na esfera do Padroado, lê-se no artigo 46.° da Constituição Política, o Estado mantém o regime de separação em relação à Igreja Católica e a qualquer outra religião ou culto praticado dentro do território português . . .
Ora a Constituição de 1933 é uma Constituição rígida ou, para alguns, semi-rígida, uma Constituição cujos preceitos só podem ser revogados pelos processos especiais de revisão constitucional referidos nos artigos 134.° e seguintes.
E assim, para que a Concordata não fôsse de separação, dever-se-ia revogar primeiro o artigo 46.°
Mas não tem a Câmara Corporativa de pronunciar-se sobre esse ponto: não estamos diante de um projecto de revisão constitucional, mas de uma concordata que, emquanto a Constituição não for revogada, só poderá ser, repetimos, de separação, isto é, concordata pela qual ao Estado e a Igreja reconhecem mutuamente os seus direitos e legítimos interêsses; em que à consciência religiosa da Nação são garantidos os seus inalteráveis direitos, sem ferir as legítimas susceptibilidades dos que não comungam na mesma crença; em que, a benefício da sociedade e do prestígio nacional, se restaura da tradição espiritual toda a essência, sem a prender a velhas fórmulas do passado, nem todas dignas de veneração e respeito».
Portanto, só haverá que optar ou pela separação unilateral ou pela concordata de separação.
E, pôsto assim o problema, a resposta, no pensamento da Câmara Corporativa, não consente dúvidas.. A superioridade do regime concordatário, sobretudo no actual momento histórico, aparece-lhe com indiscutida evidência, e isto mesmo sem recordar que as nossas mais profundas e substanciais tradições só por si a evidenciariam.
É a Igreja Católica - ninguém hoje o desconhece, católicos e não católicos - a mais elevada potência espiritual, o mais prestigioso poder moral do Mundo, e, por isso mesmo, todos os Estados, ainda que não católicos, mas que pretendem manter-se fiéis à hierarquia dos valores cristãos e na moral cristã vêem a base, o princípio fermentador da nossa milenária civilização, ou, melhor, da Civilização, todos, dizíamos, procuram relacionar-se com a Santa Sé e todos, reconhecendo-a, pelo menos nos factos, como sujeito de direito internacional, como pessoa jurídica internacional, tentam tomar, ainda que por vezes só aparentemente, atitudes internacionais susceptíveis de merecerem a sua aprovação doutrinal.
E até Estados cuja ideologia mais longe vive da verdade católica desejam obter a sua complacência, certos como estão de que a força espiritual da Igreja nunca, sem desvantagem, próxima ou longínqua, Estado algum a desprezou.
Mas se isto assim se passa com Estados cuja população não é na sua maioria católica ou cuja ideologia bem pode dizer-se anticristã, como deverão proceder os Estados, como o nosso, cuja população na sua quási totalidade se confessa católica e cuja ideologia é da mais pura essência cristã?
Mesmo no ponto de vista exclusivamente político - único que nos interessa agora - as relações de franca amizade com a Igreja, e, como conseqüência, a perfeita paz religiosa, devem ser hoje ambicionadas por todos quantos, sem preconceitos e sem sectarismo, pensem no interesse de Portugal e só no interêsse de Portugal, como Pátria comum de todos os portugueses.
E que dizer então daqueles que, conhecendo o Passado, sabem que a grandeza nacional viveu sempre indissolùvelmente unida ao proselitismo cristão e que missionária se revela, no mais íntimo do seu ser, a nossa vocação histórica?!
Acresce que à defesa do património ultramarino interessa sobremaneira que a acção religiosa e missionária nele actue em moldes nacionais. E como assegurar essa finalidade fora de um acôrdo com a Autoridade Religiosa Suprema?
Sucede ainda que, lançando-se na corrente concordatária, o Estado Português mais não faz do que seguir na esteira de tantos outros, alguns até de população na sua maioria não católica: Letónia, Polónia, Lituânia, Checo-Eslováquia, Itália, Roménia, Alemanha e Áustria.
E com tanta intensidade e rapidez esta corrente se desenvolveu que justamente se chamou já ao pontificado de Pio XI «a era das concordatas», em oposição ao dito de Cavour: «a era das concordatas findou» 1.

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1 Andrea Piola, Introduzione al diritto conaordatário comparato, 1937, p. 180.
Até 1935 celebraram-se durante o Pontificado de Pio XI as seguintes principais concordatas, acordos, modus vivendi ou convenções: concordata com a Letónia, concluída em 3 do Março de 1922 e ratificada em 3 de Novembro; concordata com a Ba-

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É que, sem dúvida, questões há cuja solução satisfatória se torna impossível sem acôrdo dos dois poderes: espiritual e temporal.
E por isso não bastaria que mediante leis internas o Estado procurasse harmonizar-se com as exigências fundamentais da consciência cristã; sem concordata, a paz religiosa, no verdadeiro, no puro sentido desta expressão, seria um mito e os nossos interêsses de potência colonizadora não ficariam, no domínio religioso, inteiramente salvaguardados.

4. No juízo da Câmara Corporativa sempre teria sido portanto de aconselhar a celebração da Concordata e do Acôrdo Missionário, mas não se pode deixar de reconhecer que aparecem êles num momento particularmente oportuno, quer pelo que se passa no Mundo, quer pelo que se passa em Portugal.
Na verdade, se é sempre útil ao interêsse do Estado o auxílio das forças espirituais, demonstrando que a elas, sobretudo, se obedece, mesmo no domínio da vida internacional, essa utilidade sobe de ponto quando aquele, pela sua modéstia territorial e demográfica, não pode sentir-se em segurança, se defendido apenas pela fôrça material.
E poucas vezes no decurso da história o prestígio da Santa Sé terá atingido tam elevado grau como no momento presente.
Mas nem só a oportunidade internacional sobressai neste caso com singular realce.
É depois de alguns anos de árduos esforços e difíceis negociações, disse S. Ex.ª o Presidente do Conselho, que se torna possível levar à prática esta política de confiante reconciliação e de paz religiosa, e a oportunidade não -podia ser melhor do que ao abrir êste ano das festas centenárias da independência nacional. Um pacto com Roma presidiu à fundação da nacionalidade portuguesa; de um novo pacto pode esperar-se auspicioso impulso para a sua comemoração solene e para a renovação das prosperidades e glórias que à mesma queremos e devemos associar.
Com estas palavras concorda em absoluto a Câmara Corporativa.

Reconhecida a vantagem geral do regime concordatário e a oportunidade do seu estabelecimento, focaremos agora alguns aspectos mais salientes da Concordata e do Acôrdo, abstraindo, em regra, de tudo quanto neles - e é muito, sobretudo na Concordata - representa mera consagração do regime legal vigente ou simples corolário lógico de princípios constitucionais ou legais.

II

Apreciação na especialidade

1) Concordata

A) Personalidade jurídica internacional da Igreja Católica

5. A República Portuguesa reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica, lê-se no artigo 1.º da Concordata.
E nem poderia, negá-la quem, aceitando o conceito de personalidade jurídica internacional, com a Igreja celebra concordatas e junto dela acredita e dela recebe agentes diplomáticos.
Muito os internacionalistas têm discutido se a Igreja é, ou não, sujeito de direito internacional, se tem ou não personalidade jurídica internacional.
Hoje, porém, pode dizer-se que a questão perdeu todo o interesse prático.
A tendência é, de resto, no sentido afirmativo, notando-se que aqueles divergem, e muito, quanto a saber se a personalidade pertence à Igreja, como sociedade universal, sendo a Santa Sé e o Papa apenas seus órgãos, ou se, pelo contrário, é ela atribuída à Santa Sé ou mesmo ao Sumo Pontífice, como Chefe da cristandade.
Esta questão, no campo puro dos princípios jurídicos e dos princípios religiosos, tem de facto interêsse; mas no domínio que agora nos preocupa nenhum lhe descobrimos.
Sob o ponto de vista exclusivo do Estado, que importa atribuir a personalidade internacional à própria Igreja Católica ou à Santa Sé ou ao Sumo Pontífice?
Aceite-se esta ou aquela solução, será sempre com a mesma autoridade que os tratados, que as concordatas se celebram e será sempre junto da mesma autoridade que os embaixadores e os ministros plenipotenciários são acreditados e a mesma será também a autoridade que junto dos Estados acredita os núncios, internúncios ou delegados apostólicos.
O interêsse prático para o Estado português das regras indicadas no artigo 1.° encontra-se, portanto, somente na afirmação de que a as relações amigáveis com a Santa Sé serão asseguradas na forma tradicional por que historicamente se exprimiam, mediante um Núncio Apostólico junto da República Portuguesa e um Embaixador da República junto da Santa Sé».
É que, após o reatamento das relações diplomáticas, quebradas em 1910, se a Santa Sé continuou a acreditar um Núncio Apostólico junto da República, esta passou a enviar-lhe um Ministro Plenipotenciário, e não um Embaixador, como na vigência da Monarquia.
Ora, não só os núncios são agentes diplomáticos de 1.ª classe, mas até, nos países católicos, de direito, e nos países não oficialmente católicos, por cortesia, se lhes atribue a qualidade de decanos do corpo diplomático.
Quere dizer, o princípio da reciprocidade, só por si, exigiria que a nossa representação junto da Santa Sé se fizesse por intermédio de uma Embaixada.
E, procedendo assim, não fará o Governo mais do que dar cumprimento ao espírito do artigo 46.º da Constituição, segundo o qual «. . . o Estado mantém ... as relações diplomáticas entre a Santa Sé e Portugal, com reciproca representação».
Vai, portanto, fazer-se agora aquilo que já há muito poderia ter sido feito.

B) Liberdade ou regalismo?

6. Sendo a Concordata uma «Concordata de separação» - e outra não consentiam, neste momento, como vimos, o nosso Direito Constitucional, nem, porven-

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viera, concluída em 20 de Março de 1924 e ratificada em 24 de Junho de 1925; concordata com a Polónia, concluída em 10 de Fevereiro de 1925 e ratificada em 2 de Junho; acôrdo com a França, concluído em 4 de Dezembro de 1928; concordata com a Lituânia, concluída em 27 de Setembro de 1927 e ratificada em 10 de Dezembro; modus vivendi com a Checo-Eslováquia, de 2 de Fevereiro de 1928; convenção com Portugal, concluída em 15 de Abril de 1928 e ratificada em 8 de Maio; acordos e concordata com a Itália, concluídos em 11 de Fevereiro de 1920 e ratificados em 7 de Junho; convenção com Portugal, concluída em 11 de Abril e ratificada em 20 de Junho; convenção com a Roménia, concluída em 10 de Maio de 1027 e ratificada em 7 de Julho de 1920; concordata com a Prússia, concluída em 14 de Junho de 1920 e ratificada em 18 de Agosto; acordo com a Roménia, de 30 de Maio de 1982; concordata com Baden, concluída em 12 de Outubro de 1932 e ratificada em 11 de Março; concordata com a Alemanha, concluída em 20 de Junho de 1939 e ratificada em 10 de Setembro; concordata com a Áustria, concluída em 6 de Junho de 1933 é ratificada em 1 de Maio de 1934. Estas concordatas podem ler-se, com notas elucidativas do Padre Restrepo S. J., em Concordats conclus durant le Pontificat de Sa Sainteté le Papa Pio XI, edição francesa da Pontifícia Università Gregoriana, 1934.

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tara, as realidades político-sociais -, seria pura ilusão pensar no restabelecimento das antigas prerrogativas da Coroa, só compreensíveis em regime de Estado confessional, isto é, em regime de religião oficial, de Igreja de Estado, quando os nossos reis se apresentavam como seus protectores e defensores, como seus padroeiros, e nessa qualidade intervinham, de certo modo, na sua vida.
Mas - repete-se - pensar que a Santa Sé restauraria a intervenção do poder temporal na vida da Igreja, conservando-se porém este separado dela para tudo o que representasse reconhecimento expresso da religião católica como religião do Estado, com todas as suas consequências, corresponderia ao desconhecimento absoluto dos dados do problema e ao alheamento completo das realidades presentes nos domínios religioso e político.
Nem, de resto, no momento actual o Estado retirava qualquer vantagem de semelhante intervenção, que só contribuiria para a formação de um clero de feição mais política do que religiosa e para uma sua correspondente maior interferência nos negócios temporais, por ninguém hoje desejada: nem pelo Estado, nem pela Nação, nem pela Igreja.
Acresce que todas as concordatas celebradas durante o pontificado de Pio XI negam ao Estado competência para invadir a esfera da Igreja, tam ciosa da sua independência no domínio espiritual como o Estado justamente o e no domínio temporal.
For isso, crente está a Câmara Corporativa de que, mesmo no caso de o Estado Português haver reconhecido a religião católica como religião do Estado, a Santa Sé recusaria a este quaisquer poderes que de qualquer modo se assemelhassem ao antigo Beneplácito régio ou à nomeação régia dos bispos, com simples confirmação apostólica.
Demais, àquela havia já o Estado renunciado expressamente no decreto n.° 3:856, de 22 de Fevereiro de 1918, artigo 12.°, segundo o qual «as bulas, pastorais ou outras determinações escritas da Cúria Romana, dos prelados ou outras entidades que tenham funções dirigentes em qualquer religião não ficam dependentes da prévia aprovação do Estado para se publicarem e correrem dentro do País; mas os abusos ou delitos que elas contenham serão punidos nos termos das leis penais e da imprensa» 1.
Exigi-lo agora corresponderia, por sem dúvida, ao fracasso absoluto das negociações e ao sacrifício da ambicionada e inestimável harmonia dos dois poderes - espiritual e temporal - a autênticos preconceitos ou a sonhos tradicionalistas, alheios às realidades religiosas do mundo contemporâneo.
Bastará recordar que a livre nomeação dos bispos pela Santa Sé é hoje preceito expresso do Código de Direito Canónico, can. 329, § 2.º
Neste domínio concedeu a Igreja a Portugal o máximo que tem concedido nas concordatas celebradas com outros Estados:
1.° Nacionalidade portuguesa dos arcebispos e bispos residenciais, dos seus coadjutores cum jure successionis e auxiliares, dos párocos, dos reitores dos seminários e, em geral, dos directores e superiores de institutos ou associações dotados de personalidade jurídica, com jurisdição em uma ou mais províncias do País (artigo 9.°);
2.º Obrigação, antes de proceder à nomeação de um arcebispo ou bispo residencial ou de um coadjutor cum jure successionis, de comunicar o nome da pessoa escolhida ao Governo Português, a fim de saber se contra ela há objecções de carácter político geral, ficando porém secretas todas as negociações 1.
E trata-se de verdadeiras concessões e não, como poderia pensar-se, de restrições, pois actualmente, após a denúncia das antigas Concordatas, o regime era o da inteira liberdade de nomeação 2.
E assim, não se poderá negar que, confrontada com o regime vigente, a Concordata atribue ao Estado regalias que este não tinha.

C) Bens da Igreja

7. Quanto a bens, qual é o regime da Concordata?
Sua Eminência o Sr. Cardeal Patriarca sintetizou o aspecto pecuniário desta nas seguintes frases:
1.ª Se alguém, quer pensando no antigo regime concordatário, quer mesmo no dos modernos regimes concordatários, pregunta quanto pesa a Concordata no Orçamento português, desde já se responde francamente com esta seca palavra: nada!
2.ª Temos, pois: nem subsídio cultual, nem indemnização. A Igreja em Portugal continuará a viver exclusivamente da generosidade espontânea dos fiéis.
Mas dir-se-á: não entrega o Estado à Igreja os bens que anteriormente a 1910 lhe pertenciam?
Em princípio, sem dúvida, mas exceptuando-se:
a) Os bens que já não estejam na posse do Estado;
b) Os bens que se encontrem actualmente aplicados a serviços públicos;
c) Os bens que estejam classificados como monumentos nacionais ou como imóveis de interesse público, os quais, no entanto, ficarão afectados ao serviço da Igreja.
Quere dizer: pràticamente, e salvo possíveis raras excepções, o Estado reconhece à Igreja a propriedade dos bens que ela de facto ainda conserva.
Trata-se, portanto, mais de transformar em situações de direito certas situações de facto dó que de criar uma situação jurídica contrária aos factos actuais, salvo, é claro, a diferença jurídica que existe entre propriedade e mero uso da propriedade de outrem, diferença esta que, no caso presente, a bem pouco se reduz.
Neste domínio não é de admirar a generosidade do Estado, mas antes o alto espírito de renúncia que por parte da Igreja a Concordata revela.

1 O beneplácito - também conhecido pelas denominações de exequatur, pareatis, litterae patentes e cartas do publicação e que consistia na aprovação concedida pelo Estado às leis da Igreja, a fim de que pudessem produzir efeitos no reino - já existia em Portugal no reinado de D. Pedro I e em vigência se conservou até à sua revogação por D. João II, em 1497, para ser restaurado temporariamente no reinado de D. João V e definitivamente no reinado de D. José.
Quanto a designação dos bispos, escreve Borges Carneiro (Elementos de direito eclesiástico português, p. 142):

«O provimento das nossas sés seguiu a marcha geral.
Os bispos, a princípio, ou os nomeava directamente o soberano ou os elegia o cabido, só ou junto com o clero o povo da diocese; e o soberano, havendo por boa a eleição, apresentava o eleito ao metropolita para êste o confirmar. Até que no tempo de El-Rei D. Afonso V começou a exercitar-se o método que ainda hoje se guarda: a nomeação régia é a confirmação apostólica».

Proclamada a Republica este regime desapareceu porém, surgindo o da livre nomeação dos bispos pela Santa Sé.

1 Preceito semelhante se encontra nas concordatas com a Baviera, artigo 14.º, § 1.°; Polónia, artigo 11.°; Lituânia, artigo 11.°; Checo-Eslováquia, artigo 4.°; Itália, artigo 19.°, alínea 2); Roménia, artigo 5.°, § 2.°; Prússia, artigo 7.°; Baden, artigo 8.°, n.° 2.°; Alemanha, artigo 14.°, n.° 2.°; Áustria, artigo 4.º
2 No decreto n.° 3:856, de 22 de Fevereiro de 1918, artigo 12.º, dispõe-se, como vimos, que «as bulas, pastorais ou outras determinações escritas da Cúria Romana, dos prelados ou noutras entidades que tenham funções dirigentes em qualquer religião não ficam dependentes da prévia aprovação do Estado para se publicarem e correrem dentro do País...

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E é êste especialmente digno de admiração, porque em nenhuma outra concordata que esta Câmara conheça ele se revelou em tam elevado grau como na que constitue objecto do nosso exame.
Por onde se vê que, uma vez salvos os princípios, só a vida pura do espírito guiou a Igreja ao celebrá-la. Quanto ao regime de aquisição de bens e situação dos bens afectos ao culto pode dizer-se, de um modo geral, que a Concordata se limita a sancionar o regime vigente, pouco innovando, e, quando innova, fazendo-o em termos de não exigir qualquer justificação 1.

D) Assistência religiosa em campanha

8. As garantias quanto ao clero e o regime das pessoas eclesiásticas, de que tratam os artigos 9.º a 11.°, bem como as disposições respeitantes à prática e assistência religiosas, de que tratam os artigos 16.º a 19.º, limitam-se, na sua maior parte, a sancionar o existente 2.
Referência especial merece, todavia, o que se dispõe sobre assistência religiosa, em campanha, às forças de terra, mar e ar.
Para a assegurar organizar-se-á um corpo de capetãis militares, que serão considerados oficiais graduados, sendo o bispo que desempenhar as funções de Ordinário Castrense - bispo que exerce jurisdição sobre os capetãis militares e forças armadas - nomeado pela Santa Sé de acordo com o Governo, como o Vigário Geral, quando o haja, será nomeado pelo Ordinário Castrense, também de acordo com o Governo.
Para as expedições coloniais poderá ser nomeado Ordinário Castrense um bispo que tenha sede na respectiva colónia.
Os capetãis militares, esses, serão nomeados, de entre os sacerdotes apurados para os serviços auxiliares, pelo Ordinário Castrense, igualmente de acordo com o Govêrno,
Reata-se assim, em parte, a velha tradição dos capetãis militares, sempre, ou pelo menos quási sempre, tam queridos dos nossos oficiais e soldados.
Crê esta Câmara que não existirá militar, mesmo não católico, mas que tenha feito a guerra de 1914-1918, que não veja com agrado êste «ressurgimento.
E não se toma necessário haver sentido alguma vez a força de ânimo e a coragem que a assistência religiosa em campanha presta aos crentes, para compreender a sua vantagem, ainda quando se abstraia do aspecto puramente espiritual, que o Estado não tem, aliás, o direito de descurar, sem esquecimento de que católica é a grande massa do bom povo português. O interêsse da defesa nacional basta paira, justificar a disposição concordatária, que nas Cruzes de Guerra e nas Tôrre e Espada possuídas e galhardamente usadas por alguns dos antigos capetãis da Grande Guerra encontra a mais decisiva e brilhante das justificações.

E) Ensino

9. Contém a Concordata disposições referentes ao ensino, mas pode dizer-se que, na essência das cousas, nada innovam, ou, se innovam, as innovações aparecem como consequência lógica de disposições constitucionais 1.
Se, como se lê no artigo 43.°, n.° 3.°, da Constituição, o ensino ministrado pelo Estado visa à formação de todas as virtudes morais, orientadas pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País, sem dúvida ao Estado cabe fornecer aos estudantes o ensino da doutrina e moral católicas, única maneira de alcançar com êxito o fim proposto.
Por isso, com verdade a Concordata viu no ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, complementares e médias, aliás já em parte existente, mera consequência de o ensino ministrado pelo Estado dever ser orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País (artigo 21.°).
E até, se alguma cousa houvesse de estranhar-se, em face do preceito constitucional, seria antes a excepção aberta para os filhos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, tenham feito pedido de isenção do ensino do que a concessão deste aos que o desejem ou, pelo menos, o não repilam.
Obedeceram aqui a Igreja e o Estado ao princípio cristão que ordena o máximo respeito pela autoridade familiar, anterior à do Estado e, como esta, de direito natural: a educação dos filhos deve ser orientada pelos pais, em nome da sua própria autoridade, que só, deverá ser-lhes retirada em casos excepcionais.
E o Estado obedeceu, por sua vez, ainda:
1.° Ao preceito constitucional que nos diz que «a educação e instrução são obrigatórias e pertencem à família e aos estabelecimentos oficiais ou particulares em cooperação com ela» (Constituição Política, artigo. 42.º);
2.º Ao princípio de que o Estado Português, não sendo totalitário, não impõe uma doutrina, e antes a propõe, «orientando a educação, por forma a despertar na alma de todos uma ideologia idêntica à sua própria ideologia.» 2, mas respeitando a autoridade paternal, para êle tam legítima, no seu domínio, como a autoridade política o é no seu: o bem comum nacional.

F) Casamento e divórcio

10. Nos termos dos artigos 23.° é 24.° da Concordata, o Estado Português obriga-se a reconhecer «efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas, desde que a acta do casamento seja transcrita nos competentes registos do estado civil», produzindo o casamento todos, os efeitos civis desde a data da celebração, se a transcrição for feita no prazo de sete dias; se não o fôr, só produzirá efeitos, relativamente a terceiros, a contar da data desta, e isto sem que obste à transcrição a morte de um ou ambos os cônjuges.

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1 Veja-se, por exemplo, Constituição Política, artigos 45.° e 47.°; Código Administrativo, artigo 887.°; decretos-leis n.º 11:887, de 15 de Julho de 1926, artigo 14.º, e n.° 12:485, de 13 de Outubro de 1926, artigo 12.°, § 2.°
Para tudo o que se refere a bens matérias e interêsses económicos, vejam-se as concordatas com a Baviera, artigo 10.°; Polónia, artigos 14.° a 16.° e 24.°; Lituânia, artigos 16.° e 17.°; Itália, artigos 2.°, parte final, 9.º, 10.°, 29.°, alínea b), e 30.- ; Roménia, artigos 9.° e sgs.; Prússia, artigo 5.°; Alemanha, artigos 13.º e 17.°; Áustria, artigo 13.°
Constituição Política, artigos 8.°, n.° 3.°, e 45.°; Lei de Separação, de 20 de Abril de 1911, artigos 11.°, 12.°, 15.º e 16.°; decreto n.° 3:856, de 22 de Fevereiro de 1918 (decreto Moura Pinto), artigo 2.°; decretos-leis n.º 11:887, de 15 de Julho de 1926, artigos 4.°, § único, e 18.°, 12:485, de 13 de Outubro de 1926, artigo 00.°, e 26:643, de 28 de Maio de 1936, artigos 285.° a 290.°; lei n.º 1:961, de 1 de Setembro de 1987, artigo 18.°, alínea a).

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1 Constituição Político, artigos 8.°, n.° 5.°, 48.°, n.º 8.° e 4.º, e 44.º; decretos-leis n.ºs 3:856, de 22 de Fevereiro de 1926, artigo 6.°; 11:887, de 15 de Julho de 1926, artigo 17.°; 19:244, de 16 de Janeiro de 1931, artigos 4.°, 5.° e 9.°, § 2.°; 27:084 e 27:085, de 14 de Fevereiro de 1936; 27:426, de 81 de Dezembro de 1986.
Encontram-se disposições semelhantes às da Concordata nas concordatas com a Itália, artigos 35.° a 40.°; Áustria, artigos 5.° e 6.°; Alemanha, artigos 19.° a 25.°; Roménia, artigos 19.° e 20.°; Lituânia, artigo 13.°; Baviera, artigos 8.° a 9.°; Polónia, artigo 13.º
2 Professor Mário de Figueiredo, Princípios essenciais do Estado Novo Corporativo, p. 23.

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E para que esta transcrição se realize rapidamente, impõe-se ao pároco a obrigação de enviar dentro de três dias cópia integral da acta do casamento à repartição competente do registo civil, para ser aí transcrita no prazo de dois dias, e pune-se aquele com as penas de desobediência qualificada quando, .sem graves motivos, não a envie.
Nem o Estado Português poderia dispensar-se da exigência, pois, segundo o disposto no artigo 15.° da Constituição Política, «o registo do estado civil dos cidadãos é da competência do Estado».
Veio a Concordata, neste domínio, ao encontro de uma das mais instantes reclamações da consciência católica: atribuir-se eficácia civil ao casamento religioso.
O casamento que, satisfazendo às exigências do direito canónico, veja a respectiva acta transcrita no registo civil, ver-se-á ao mesmo tempo validado perante as leis portuguesas desde a data da celebração, se aquela for feita dentro do prazo de sete dias.
Harmonizam-se assim as duas exigências: a da Igreja e a do Estado. A da Igreja, reconhecendo-se validade ao casamento-sacramento, e a do Estado, exigindo-se, para efeitos civis perante terceiros, que este conste do competente registo civil.
A êste respeito, escreveu-se já, em pareceres desta Câmara:

«É perfeitamente legítimo que, tendo em vista a circunstância de que uma grande parte ou a maioria da população professa uma religião determinada, que bem possa dizer-se a religião dominante ou a religião nacional, e em harmonia com ela costuma celebrar a união conjugal, o legislador atribua efeitos civis ao casamento religioso, confiando embora a funcionários próprios os serviços do registo do estado civil.

Ora, na lógica destas considerações, afigura-se à Câmara Corporativa que poderia e deveria mesmo ir-se agora até ao ponto de reconhecer efeitos civis ao matrimónio religioso, realizado em harmonia com os preceitos da religião católica, isto é, das leis canónicas que o disciplinam.

Mas a verdade é que, se para os católicos o casamento é mais do que o acto jurídico, criador das relações de família, que constituem os seus efeitos civis, não há razão para que a lei civil não reconheça como acto civil uma união que, segundo a lei religiosa daqueles que a contraem, é também destinada a produzir aquelas relações sociais que estão inerentes à constituição da família, e que só são jurídicas porque a lei as tutela, garantindo os interesses a que elas correspondem.

Com razão se tem, pois, observado que «a lei do casamento civil obrigatório constitue uma violação dos direitos da consciência, obrigando os fiéis à contrair matrimónio por uma forma que repugna à sua crença, e que, sendo feita a sério, implicaria a negação da identidade do contrato e do sacramento que a Igreja ensina».
Acresce que, como também nota o escritor cujas palavras ficam transcritas, a duplicidade de consentimentos matrimoniais, conjugada com a dissolubilidade do casamento civil, leva muitas vezes a situações absurdas e altamente inconvenientes.
Havendo dois actos distintos, com regimes jurídicos e condições de validade diferentes, pode subsistir um, dissolvendo-se ou anulando-se o outro. É o que sucede quando um dos esposos obtém o divórcio e ainda, por exemplo, quando se anula o casamento civil depois de realizado o casamento religioso, e por fundamentos que não podem ser invocados perante o juízo canónico para
a anulação do casamento-sacramento. Não raro acontece também que, depois de celebrado o casamento civil, o marido se recusa a contrair o casamento religioso que antes prometera realizar. E se o divorciado, que casara também religiosamente, tiver contraído novo casamento civil, ainda que queira voltar a convivência com a consorte a quem, no seu arrependimento, se considera perpetuamente ligado pelo vínculo religioso, a lei civil opõe um obstáculo, porventura «removível, a que essa união, que ele reconhece em sua consciência, seja uma realidade em face do direito.
Não deixaremos porém de notar que, se o sistema da dualidade de casamento, religioso e civil, sendo este facultativo, foi já uma realidade em Portugal, tendo-o consagrado, como vimos, o Código Civil, ainda hoje o praticam grande número de Estados que se pode bem dizer que caminham na vanguarda da civilização.
Adoptam efectivamente, e de há muito, o sistema de casamento civil facultativo, atribuindo efeitos civis ao casamento religioso, a Inglaterra, com os seus Domínios, as nações escandinavas, a Áustria, a Polónia, a Letónia, a Sérvia e a América do Norte. Mais recentemente foi 'ele adoptado na Itália, que em 1929 o sancionou pela Concordata de Latrão, e no Brasil, que o consagrou na sua nova Constituição política, como se referiu já no citado parecer desta Câmara sobre o projecto do Deputado Sr. Braga da Cruz, embora o Brasil não fosse tam longe como a Itália, nos termos em que reconhece efeitos ao acto religioso.
Mas é particularmente digno de registo o caso da Itália, pois neste país pode hoje dizer-se que o casamento está sujeito a um tríplice regime: o casamento civil, regulado no Código Civil e sua lei sobre o registo do estado civil; o casamento católico, celebrado perante o ministro da religião católica, nos termos da Concordata e da lei de 27 de Maio de 1929, que lhe dá execução; e o celebrado perante os ministros de outros cultos admitidos no país, que esta última lei também regulamenta, sendo, porém, o casamento católico aquele a que é assegurado o regime de mais perfeito e mais amplo reconhecimento, confiando a lei civil no rigor com que a lei canónica estabelece a disciplina da validade do matrimónio e na seriedade com que as autoridades eclesiásticas a fazem observar.
Não deixaremos tampouco de pôr em relevo os termos em que no texto da Concordata de Latrão se consagra o princípio do reconhecimento dos efeitos civis do casamento católico, pelo alto significado que para nós tem semelhante afirmação:
«O Estado italiano - diz-se no artigo 34.° da Concordata -, querendo restituir à instituição do matrimónio, que é a base da família, dignidade conforme às tradições católicas do seu povo, reconhece ao sacramento do matrimónio, disciplinado pelo direito canónico, efeitos civis» 1.
11. A mais importante novidade da Concordata não está, porém, na atribuição de efeitos civis ao casamento católico, mas no artigo 24.°, segundo o qual, «em harmonia com as propriedades essenciais do casamento ca-

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1 Pareceres sôbre o projecto de lei n.º 25, apresentado pelo ilustre Deputado Dr. Braga da Cruz, e sobre o projecto de lei n.° 111, dos ilustres Deputados Dr. Luiz da Cunha Gonçalves o Ulisses Cruz de Aguiar Cortês, publicados no Diário das Sessões de 22 de Março de 1935, suplemento ao n.° 82, e 29 de Abril de 1937, 4.° suplemento AO n.° 127, respectivamente.
O facto do se transcreverem passagens dêstes pareceres não envolve adesão integral a toda a sua doutrina - que alguns dos signatários, aliás, não perfilhariam -, mas somente à parte transcrita.

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tólico, entende-se que pelo próprio facto do casamento canónico os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pêlos tribunais civis aos casamentos católicos ... ».
Nada impede o Estado, deve notar-se, de decretar a indissolubilidade matrimonial, trate-se de casamento canónico ou de casamento civil, de casamento anterior ou posterior à respectiva lei ou decreto-lei.
Não estamos diante de situações que, por subjectivas, devam ser respeitadas, sob pena de retroactividade, mas de meras situações legais que, por o serem, a lei poderá alterar, sem retroactividade.
A Câmara Corporativa, quanto à dissolução do casamento, nada tem a acrescentar ao que a respeito do princípio da indissolubilidade matrimonial consta dos seus pareceres sobre o projecto de lei n.° 25, apresentado pelo ilustre Deputado Dr. Braga da Cruz, e sobre o projecto de lei n.º 111, dos ilustres Deputados Drs. Luiz a Cunha Gonçalves e Ulisses Cruz de Aguiar Cortês, referidos na nota anterior.

Aí se escreveu:

«Apreciando o problema da indissolubilidade, no campo dos princípios, pronunciamo-nos então (no primeiro parecer acima referido) aberta e decididamente pela doutrina da indissolubilidade do matrimónio, mostrando que, se o divórcio tinha de ser repelido por considerações de carácter político-social, como elemento dissolvente, que era, do agregado familiar, tampouco se podia justificar, no campo puro da técnica jurídica, com base no conceito do casameuto-contrato, pois a este conceito antiquado, fruto da viciosa ideologia individualista dos séculos XVIII e XIX, devia substituir-se a noção mais racional e realista do casamento-instituição, a única que correspondia à verdadeira natureza das relações jurídicas que no casamento têm a sua origem.
Acentuámos mais que a indissolubilidade representava até um corolário ou uma exigência dos novos princípios constitucionais em que assentava o Estado Novo, que proclama a família como a unidade social base da organização político-jurídica da Nação.

Uma vez que os princípios informadores do Estado Novo - escrevemos no já citado parecer -, como organização política da unidade social - a Nação -, representam a condenação do individualismo que imperou no século XIX, e, nesta ordem de ideas, a nossa Constituição Política de 1933 consagra a família como unidade social por excelência, proclamando no seu artigo 11.° o princípio de que o Estado assegura a sua constituição e defesa, como fonte de conservação e desenvolvimento da raça e como base primária da educação, da disciplina e harmonia social, e consigna ainda nos artigos 12.° e 13.° diversos preceitos concretos, inspirados sempre no intuito afirmado de defesa da instituição familiar, impõe-se como corolário lógico a condenação do divórcio, como elemento de dissolução, que é, desse mesmo organismo social.
Não podemos conceber dúvidas sôbre a acção dissolvente do divórcio via família, se atendermos às condições em que ele nos aparece no direito moderno, e aos resultados sociais que produziu no período subsequente à sua promulgação, no final do século XVIII.

E condenado a instituição do divórcio, especialmente no nosso País, olhando ao seu condicionalismo peculiar, ético, político é social, acentuámos também que a condenação do divórcio, nos termos em que ficava pronunciada, se apresentava, não propriamente como solução de um problema religioso, mas sim como solução de um problema social.

Se se afirma o princípio da indissolubilidade do casamento - lê-se ainda no referido parecer -, êle é proclamado, não como um atributo do casamemto-sacramento, ou como princípio de uma religião, para com a qual a lei e a governação se mostram mais tolerantes, mas antes como uma afirmação no campo da pura sociologia, reconhecendo-se essa indissolubilidade como condição primária de existência e conservação da família como organismo social e requisito indispensável para que nela possa assentar o aperfeiçoamento moral da sociedade. Não é necessário atermo-nos ao conceito religioso do casamento para proclamar na lei civil a sua indissolubilidade, assim como não carecemos de nos escudar nos preceitos da religião para condenar nas leis penais o roubo ou o homicídio».

Em face do exposto, que a Câmara Corporativa de novo perfilha, ressalta clara a sua já antiga adesão ao princípio da indissolubilidade.

12. E que pensar do regime dualista a que ficará possivelmente submetido entre nós o casamento: o regime da indissolubilidade, para o casamento católico e o regime da, dissolubilidade, para o casamento civil?
Não exigirá a unidade do direito que se conclua sempre ou pela indissolubilidade de iodos os casamentos ou pela sua dissolubilidade, e nunca pela existência cumulativa de casamentos juridicamente indissolúveis e de casamentos juridicamente dissolúveis. E, sendo assim, não deveríamos pronunciar-nos pela não aprovação da Concordata, emquanto não seja publicada uma lei interna que generalize p regime da indissolubilidade? E, se esta lei fosse reputada inoportuna, não seríamos forçados a reconhecer também a consequente inoportunidade da Concordata neste ponto?
Antes de mais nada, notar-se-á que, reconhecendo a indissolubilidade do casamento católico, o legislador não «faz mais do que sancionar a vontade dos próprios nubentes, que, além de um acto civil - acto jurídico, produtor de certos efeitos de direito -, querem praticar um sacramento, sublimando dêsse modo a sua união conjugal. Nenhum princípio de direito, nenhuma razão de política social poderá levar neste caso o Estado, o poder civil, a impor a dissolubilidade do casamento mesmo que se pretenda justificá-lo» pela invocação de um princípio de liberdade: de «violência e de negação da liberdade poderá ser acusado o Estado que teimar em declarar dissoível uma união que, por exigências da consciência religiosa, alguns cidadãos querem que sei a indissolúvel». Dir-se-á, porém:

«Se os nubentes são católicos, a lei não os impede hoje de realizar a união religiosa ; e se esta é indissolúvel, a lei, admitindo a dissolução pelo divórcio, não a impõe todavia aos católicos».

Ora «se a vontade dos nubentes católicos é contrair uma união indissolúvel, embora seja certo que a lei lhes não impõe a dissolução, certo é igualmente que se não concebe porque não possa ou não deva a lei reconhecer esta indissolubilidade, que é da natureza da união contraída; tanto mais que com isso só tem a ganhar socialmente a Nação.
Não poderá certamente negar-se o significado que no campo dos princípios tem o reconhecimento pelo Estado da natureza indissolúvel que ao matrimónio atribuem os católicos que o contraem, e que constituem ainda a grande massa da Nação».

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Mas «a verdade é que - note-se ainda - anomalia, e bem mais grave, é a que hoje consagra a lei impondo aos católicos, com violência da sua consciência religiosa, um estranho dualismo de actos matrimoniais, com a dupla manifestação de vontade que tal prática envolve».

De tudo o que acabamos de escrever, ou transcrever de antigos pareceres, já citados, conclue-se:

1.º Que a Câmara Corporativa, dando o seu voto à indissolubilidade, do casamento católico, único visado na Concordata, não faz mais do que manter-se fiel a si própria;
2.º Que mesmo aqueles que, perante um projecto ou proposta de lei interna sôbre casamento, não votariam pela indissolubilidade de todos os casamentos, religiosos ou civis, não poderão ter dúvidas, e antes deverão dar o seu voto à Concordata, entre outras razões, porque a indissolubilidade do casamento católico nenhum óbice sério levanta o facto de o casamento civil continuar dissolúvel.
De resto, quanto a esta dissolubilidade - a dissolubilidade do casamento civil - nenhuma das secções desta Câmara até hoje ouvidas a defendeu - as que a defenderam - senão por motivos transitórios de oportunidade - que, aliás, o reconhecimento da indissolubilidade do casamento católico contribuirá para destruir, pela criação de uma mentalidade propícia ao casamento indissolúvel, mesmo quando celebrado entre nubentes não católicos - e, pois, como vimos, à indissolubilidade vivem ligadas vantagens de ordem social independentes da natureza religiosa ou não religiosa do casamento, que, nem por ser civil, deixará de ser casamento-instituição, e não casamento-contrato.

G) Padroado e Semi-Padroado

13. A referência aqui feita ao Padroado e Semi-Padroado destina-se exclusivamente a focar a inalterabilidade do seu regime, constante das Concordatas de 21 de Fevereiro de 1857 e 23 de Junho de 1886 e de Acordos posteriores, designadamente os de 15 de Abril de 1928 e de 11 de Abril de 1929, em tudo quanto não seja atingido pela Concordata, a que, aliás, no artigo 29.° se dá o nome de Convenção 1.
E esta não reduz de qualquer modo as regalias de que tradicionalmente o Estado Português goza nos territórios do Padroado e do Semi-Padroado.

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1 A respeito do padroado - direito de apresentar pessoa idónea para uma igreja ou ofício vagos - lê-se em Borges Carneiro, ob. cit., pp. 249 e sgs.:

«Nasce do reconhecimento que a Igreja entendeu dever testemunhar àquelas pessoas que, com o seu próprio dinheiro, fundaram, edificaram ou dotaram alguma igreja ou ofício. Adquire-se por modos originais, extraordinários e derivados; e perde-se por delito e sem delito .. . Consente varias divisões:
A principal é em eclesiástico, se pertence, a um clérigo em razão da sua dignidade ou ofício sagrado, ou por ter sido fundado com bens da Igreja; e secular se provém a pessoa eclesiástica ou leiga, não por alguma dessas causas, mas pela do seu património.
Depois é pessoal, por não se referir a mais que ao título da fundação; familiar, se nunca passa para fora dos parentes do fundador: e real, se, instituído para comunidade dos moradores de algum prédio, estabelecimento ou lugar, segue sempre a posse dos bens, a que está unido, para quaisquer mãos que eles forem por contrato ou herança.
Dá direitos e impõe obrigações ao padroeiro; e conforme as espécies assim variara as regras do seu exercício e sucessão. Entre nós houve-os de todas as espécies. Ao presente não: dados por abolidos todos os outros, só subsiste o da coroa.
Ao rei compete apresentar e prover todos os empregos e benefícios eclesiásticos.
Visto o padroado proceder da fundação e dotação, a origem do padroado da coroa portuguesa é das mais puras, tanto dentro do reino como lá fora nas nossas possessões.
O nosso reino foi todo conquistado com as armas e palmo a palmo aos mouros; e, começando no Conde D. Henrique, os nossos soberanos, achando muitos templos destruídos, ou convertidos em mesquitas, cederam ao seu espírito religioso e ao mesmo tempo político: reedificaram, repararam e dotaram à sua custa uns e levantaram outros de novo.
Assim se fizeram padroeiros; e Leão X confirmou-lhes todos os direitos resultantes destas acções de piedade.
Nas nossas possessões de além-mar é eminentemente brilhante a história do nosso padroado.
Custou-nos mais de cento e cinqüenta anos de conquistas e os maiores sacrifícios de sangue e do tesouro nacional.
É o padrão mais glorioso do valor e religião com que nossos avós souberam fazer tam invejado e respeitado o nome português, levando as quinas lusitanas e (com elas) a luz do Evangelho a países e povos tam diferentes e distantes, e de crenças tam diversas.
Comprámo-lo tam caro que não havia nesse tempo quem tivesse, ou pelo menos se afoitasse, a dar por ele o preço que nós demos.
Os pontífices, apreciando e reconhecendo toda a valia e importância destes nossos feitos, garantiram perpetuamente aos reis de Portugal o direito de padroado em todas as igrejas erectas e fundadas nas terras dessas regiões.
Por abranger muito nas costas da África e imenso na Ásia, divide-se em padroado na África e padroado nas terras da Ásia.
E este o que ordinariamente se chama o Padroado do Oriente.
Subdivide-se em padroado da índia e da China.
Ato aos princípios do século XVII ninguém se lembrou de nos perturbar no exercício de um direito que, sobre ser fundado nos mais valiosos títulos segundo os cânones, estava, por assim dizer, santificado por tantos documentos pontifícios.
De então para cá, sim: entrámos a decair do nosso grande poder na Ásia.
Com o fundamento da impossibilidade de satisfazer o real padroeiro às precisões, exigências e condições de um padroado tom amplo, começou Roma por mandar para muitas doe terras Da Ásia vigários apostólicos, sujeitos imediatamente a Conde propaganda fide; e acabou por declarar extinto o direito do padroado português em todas os igrejas e terras não compreendidas dentro dos limites das nossas actuais possessões.
Sendo, como era, não dizemos urgente, mas urgentíssimo reparar ou prevenir as funestas consequências dêste estado, celebrou-se em Lisboa a Convenção de 21 de Outubro de 1848 entre a Santa Sé e o real padroeiro.
Mas nesta convenção pouco se fez a este respeito. Atendendo-se principalmente à resignação do actual arcebispo de Goa, só se estipulou que a sua vagatura seria preenchida; e que na expedição das bulas se mencionariam as innovações, em que se acordasse, sobre os limites da sua jurisdição local.
Afora isso, unicamente se tomaram em separado lembranças ad referendum, para cada um dos plenipotenciários levar ao conhecimento do seu respectivo governo.
Reduzida assim esta convenção a um como acto preparatório do outras, continuaram as negociações e apareceu o Tratado de 21 de Fevereiro de 1857.

Opondo-se porém várias dificuldades à sua inteira execução, propôs-se por parte da Santa Sé a alteração e revisão da mesma concordata, acordando-se com o Governo português em outra nova, que tornou exequível a antiga, modificando algumas das suas disposições».
E assim se chega à concordata de 23 de Junho de 1888.
Por esta concordata concedeu-se aos arcebispos de Goa o título honorífico de patriarca das índias orientais e o privilégio de presidir aos concílios nacionais das mesmas Índias (artigo II).
A província eclesiástica de Goa compõe-se, além da sede metropolitana das dioceses de Damão e titular de Cranganor, de Cochim e de S. Tomé de Meliapor, com os limites e lugares designados nos respectivos anexos (artigo III).
Alguns dos grupos principais das cristandades, denominados goanesas, não compreendidos nos limites das três referidas dioceses, ficam agregados a elas, atendendo-se aos elementos materiais e morais de homogeneidade, devendo nas missões goanesas das outras dioceses o respectivo ordinário confiar de preferência a cura de almas a sacerdotes goaneses ou portugueses dêle dependentes (artigo V).
As cristandades de Maloca e Singapura, sujeitas à jurisdição extraordinária do arcebispo de Goa, ficam encorporadas no bispado de Macau (artigo IX).
Nos quatro dioceses de Bombaim, Mangalor, Quilon e Maduré, salvo a primeira nomeação, a coroa portuguesa apresentará no prazo de seis meses à Santa Sé um candidato escolhido em lista tríplice, formada pelo metropolita com os sufragâneos, ou por estes, e enviada por intermédio do arcebispo de Goa».
Resta-nos acrescentar que actualmente o Semi-Padroado é constituído pelas dioceses de Bombaim, Mangalor, Coulão e Trichinopolis.

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Mas o simples facto de por um acto solene, como o é a Concordata, se reconhecer a permanência da nossa situação privilegiada, pondo termo a todas as possíveis dúvidas sobre a sua sobrevivência convencional após a separação da Igreja e do Estado, tem um significado cujo alcance não se torna necessário demonstrar, já não dizemos perante a Assemblea Nacional, mas perante portugueses.
Há só que louvar e nada mais.

2) Acôrdo Missionário

14. Em complemento da Concordata assinou-se «um acôrdo destinado a regular mais completàmente os relações entre a Igreja e o Estado no que diz respeito à vida religiosa no ultramar português, permanecendo firme tudo quanto tem sido precedentemente convencionado a respeito do Padroado do Oriente».
Nesta Convenção particular desenvolvem-se os princípios formulados nos artigos 26.° e 28.° da Concordata, respeitantes ao «regime das missões e dioceses no ultramar».

A) Considerações históricas

15. Ninguém de mediana cultura hoje ignora o contributo dado pelas missões à acção civilizadora da Nação portuguesa, como potência colonial.
E dizemos que ninguém hoje o ignora, porque o seu reconhecimento, ainda que por vezes expresso à contre coeur, encontramo-lo nas confissões de alguns dos mais intransigentes adversários da Igreja . . ., para efeitos metropolitanos.
É que o missionário não é somente evangelizador, mas também, porque evangelizador, pregoeiro insubstituível da nossa civilização e, quando português, da nossa soberania.
E sempre assim foi.
Quem desconhecerá, por exemplo, que à exploração da Ásia pelos portugueses vive ligado indissoluvelmente o nome de S. Francisco Xavier? Quem ignorará a acção dos jesuítas na China, no Japão, no Brasil? Quem não enaltecerá o apostolado português na Etiópia, a obra de Frei João dos Santos em Moçambique, no século XVI, e a missão do padre Gonçalo da Silveira, no mesmo século? Quem negará que todas as nossas leis eram acompanhadas de religiosos de diversas ordens ou que Timor foi durante mais de um século administrada por dominicanos, ou, ainda, que a cooperação dos religiosos regulares na conquista de Angola se revelou essencial à política portuguesa na mesma colónia, nos séculos XVI a XVIII? Quem não se curvará diante da figura de Frei Alexandra de Gouveia, bispo de Pequim nos fins do século XVIII, cuja influência na China chegou até ao ponto de garantir Macau, por duas vezes, contra ataques estrangeiros? Quem não relembrará, para os tempos modernos, a obra missionária de D. António Barroso? E quem, finalmente, não reconhecerá que a abolição da ordem dos jesuítas e das demais ordens religiosas, bem como a quebra de relações diplomáticas com Roma, acarretaram consequências graves para a administração das nossas colónias? As igrejas, conventos, seminários, etc., espalhados pela África, pela Ásia e pela América não atestarão de modo insofismável a base religiosa e missionária da influência portuguesa nestes continentes?

16. Mas nem só no passado a acção evangelizadora das missões adquiriu foros de auxiliar indispensável da nossa acção ultramarina.
O mesmo sucede hoje, só podendo desconhecê-lo quem nunca haja conversado sobre o caso com qualquer colonial, mesmo que não católico.
Por isso à data da proclamação da República subsistia o mais íntimo entendimento entre a Igreja e o Estado sobre assuntos religiosos coloniais, tendo sido criados vários estabelecimentos de preparação eclesiástica para o ultramar e gozando os padres e missionários de várias regalias, como passagens, pensões, etc. l
Tratados internacionais tinham, além disso, tornado obrigatória a tolerância religiosa em certas zonas de África e a liberdade de ensino e de propaganda constituiu objecto de diversas convenções, com nem sempre favoráveis consequências políticos. As conferências de Berlim, de 1385, e de Bruxelas, de 1890, bem como o tratado luso-britânico de Junho de 1891, criaram em África um novo estado de cousas, a que era urgente atender.

17. Proclamada a República e separada a Igreja do Estado cessaram os auxílios aos seminários e demais estabelecimentos de preparação religiosa, bem como as pensões e outras pequenas regalias de que gozava o pessoal eclesiástico no ultramar, tendo Sernache do Bomjardim deixado de funcionar para fins eclesiásticos.
Daí o desaparecimento de algumas missões, por falta de dinheiro e de pessoal, e, como consequência, a crítica situação de Moçambique em 1919.
As missões eram na sua maioria protestantes, com todos os correspondentes efeitos desnacionalizadores, e das missões católicas só subsistiam as servidas por ordens religiosas. De resto, o decreto de 22 de Novembro de 1913, que separou a Igreja do Estado em África e em Timor, provocara também a substituição dos missionários portugueses por missionários estrangeiros.
Esta política antinacional era, no entanto, de certo modo atenuada pela oposição que, de facto, as colónias lhe levantavam, subsidiando praticamente as missões.
A reacção metropolitana contra semelhante retrocesso, essa, só em 1918 se inicia verdadeiramente com o decreto n.° 5:239, de 8 de Março de 1919, que atribuiu personalidade jurídica às missões; mas tam efémera foi a sua vigência que nem chegou a ser aplicado, retomando o decreto n.º 5:778, de 10 de Maio de 1919, os princípios do decreto de 22 de Novembro de 1913.
Em 1917 é criado o Instituto de Missões Coloniais, para o pessoal leigo das missões chamadas civilizadoras, e instalado em Sernache do Bomjardim. Idêntico regime foi pelo decreto n.° 5:778 instituído para as mis

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1 Citaremos, para exemplo: decreto de 17 de Dezembro de 1868, - que concedeu vantagens aos sacerdotes da Índia e do continente que fôssem missionar em África; decreto de 3 de Dezembro de 1884, que aprovou os estatutos do Colégio das Missões Ultramarinas, e que é precedido de um interessante relatório de Luciano Cordeiro; decreto de 12 de Agosto de 1880, que criou o Colégio das Missões em Sernache do Bomjardim; decreto de 6 de Dezembro de 1886; que melhorou a situação dos missionários de África; decreto de 24 de Dezembro de 1880, que concedeu certas melhorias aos cónegos e outras dignidades de Luanda; portaria de 13 de Agosto de 189G, que reconheceu a Procuradoria das Missões do Espirito Santo; decreto de 4 de Agosto de 1898, que incumbiu os missionários da instrução pública em S. Tomé e Príncipe; portaria de 18 de Outubro de 1901, que aprovou os estatutos da Associação Missionária Portuguesa, destinada a facilitar as requisições de missionários; decreto de 18 de Abril de 1901, que regulou a forma como podiam constituir-se as associações religiosas; portaria de 26 de Fevereiro de 1902, que declarou compreendidas nas Missões do Espirito Santo, para os efeitos da jurisdição do Padroado, tanto as associações compostas de missionários pertencentes a associações reconhecidas como as constituídas por missionários de outras associações, contanto que funcionassem em território português; portaria de 18 de Outubro de 1901, que aprovou os estatutos das Missões do Espirito Santo; portarias provinciais de Moçambique de 4 de Dezembro de 1907, que obrigaram as missões religiosas que quisessem estabelecer-se em Moçambique a empregar ou a língua portuguesa ou a indígena no ensino religioso, tendo-se, depois, criado em Lourenço Marques cursos de língua portuguesa para os missionários.

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soes religiosas. A sua impraticabilidade rapidamente, porém, se evidenciou, e os decretos n.° 6:322, de 24 de Dezembro de 1919, e n.° 8:351, de 26 de Agosto de 1922 (decreto Rodrigues Gaspar, a quem, por êste facto, prestamos aqui a devida homenagem), declaram nacionais as missões subsidiadas pelo Estado e criam dotações destinadas a assegurar os vencimentos dos missionários.
Graças aos prelados de Angola e Moçambique, o descalabro não havia sido, é certo, completo, mas, sem casas de habitação, como atrair os sacerdotes?
Fundou-se então, sob os auspícios dos Bispos e da Santa Sé, o Instituto de Tomar, tendo a doação da Casa de Cucujãis facilitado a realização da obra empreendida. Os meios de que se dispunha eram, porém, demasiado escassos.
Chega, por fim, o decreto n.º 12:485, de 13 de Outubro de 1926, que, honrando sobremaneira o seu autor, comandante João Belo, conferiu às missões católicas o seu estatuto legal.
E a que regime ficaram estas submetidas?
Essencialmente, o seguinte:
a) As missões católicas portuguesas, constituídas de acordo com o Governo, são pessoas morais, representadas pelos prelados ou seus delegados (vigários gerais superiores distritais de missões, superiores de missões, párocos e procuradores) e sujeitas à sua jurisdição espiritual e vigilância;
b) O pessoal das missões é formado por missionários e auxiliares educados nos seminários e casas de formação, ou colégios, situadas estas em Tomar e Cucujãis, e o Ministério das Colónias inscreverá verba no orçamento para ser por elas dividida;
c) No orçamento haverá dotação para as missões, e os templos, escolas, oficinas, residências, bens mobiliários e imobiliários eclesiásticos e missionários são isentos de impostos e contribuições;
d) O Estado fornecerá residência para o prelado e terrenos necessários para o desenvolvimento das missões;
e) Estas terão fundos constituídos por legados, livres de impostos;
f) Além da dotação do Ministério das Colónias, haverá nos orçamentos coloniais verba para as fundações existentes ou a criar;
g) Os prelados, como directores das missões, são equiparados a chefes de serviço provincial, para efeito de vencimentos, ajudas de custo e outras regalias, e gozam do direito de aposentação ao fim de dez anos de serviço;
h) Os sacerdotes estão inteiramente subordinados aos prelados, aos equiparados a certos funcionários e têm direito a pensão vitalícia;
i) Quanto ao ensino, será ele religioso, profissional e agrícola, e terá por fim a defesa dos interesses do Império e o seu progresso moral, intelectual e material;
j) As missões classificam-se em centrais, sucursais, filiais, em estações de propaganda nacional, sendo as paróquias por sua vez classificadas de harmonia com a sua importância missionária.
Tal é presentemente o regime jurídico das missões católicas portuguesas.

B) O regime concordatário

18. Tudo isto se fizera, porém, à margem da Santa Sé e, conseqüentemente, sem a garantia de que as missões católicas seriam todas portuguesas ou, pelo menos, todas viveriam submetidas à jurisdição espiritual de bispos portugueses.
Mas as exigências da nossa soberania e os nossos legítimos receios patrióticos, apoiados, para se justificarem, na reconhecida vocação missionária nacional, não podiam contentar-se com esta situação 1.
Daí as negociações que conduziram ao Acôrdo Missionário, cujo alcance seria por si só bastante para glorificar o Governo negociador da Concordata, se outros méritos nesta não houvéssemos descoberto.
Assim como Pio XI afirmava não se podar apreciar o Tratado de Latrão sem o aproximar da Concordata com a Itália, do mesmo modo não poderemos valorizar a nossa Concordata sem a ligar ao Acordo Missionário.
É, de facto, o Acordo dominado por êste pensamento fundamental: reintegrar a Nação na sua vocação evangelizadora « fazer reflorir a actividade missionária nas províncias do ultramar.
À luz dêste pensamento, obteve-se que a organização missionária católica seja essencialmente nacional.
Na verdade, as dioceses e as circunscrições missionária» - elementos básicos desta organização (artigo 1.°)- serão sempre governadas por prelados - bispos, vigários ou prefeitos apostólicos - de nacionalidade portuguesa (artigo 3.°) e os próprios missionários serão, em princípio, portugueses.
E quando a sua falta imponha a admissão de estrangeiros, estes só de acôrdo com a Santa Sé e com o Governo poderão ser chamados (artigo 2.°) e só mediante declaração de que se submetem às leis e tribunais portugueses poderão ser admitidos (artigo 2.°).
Além disso, o território ultramarino será todo êle dividido em dioceses e circunscrições missionárias e todos os missionários católicos, portugueses ou não, estarão subordinados a autoridades eclesiásticas de nacionalidade portuguesa.

19. Fará bem se apreender o alcance dêste regime bastará transcrever o artigo XI da Convenção de Saint-Germain-en-Laye, assinada em 10 de Setembro de 1919, aprovada para ratificação pela lei n.º 1:265, de 15 de Maio de 1922, e ratificada em 7 de Outubro deste ano, e que é a revisão do Acto Geral de Berlim de 26 de Fevereiro de 1885 e do Acto Geral e Declarações de Bruxelas de 2 de Julho de 1890.
Diz assim, na parte que interessa: «As potências signatárias protegerão e favorecerão, sem distinção de nacionalidade ou de culto, as instituições ou empresas religiosas, científicas ou de caridade, criadas ou organizadas pelos súbditos das outras potências signatárias e dos Estados membros da Sociedade das Nações, que aderirem à presente Convenção, que tendam a guiar os indígenas na senda do progresso e da civilização . . .».
A liberdade de consciência e o livre exercício de todos os cultos são expressamente garantidos a todos os súbditos das potências signatárias e dos Estados, membros da Sociedade das Nações, que se tornarem partes na Convenção.
Nesta ordem de ideas, os missionários terão direito de entrar, circular e residir no território africano, com a faculdade de aí se estabelecerem para levar a cabo a sua obra religiosa.
Pois, em face do Acordo e não obstante manter-se a obrigação internacional que assumimos, os missionários católicos serão em princípio portugueses e, mesmo quando não o sejam, estarão sujeitos a autoridades eclesiásticas portuguesas.

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1 Deva, no entanto, notar-se o interesse que Pio XI manifestou pela evangelização feita por missionários portugueses nas nossas colónias.
E assim instituiu, em 1930, a Sociedade Portuguesa das Missões Católicas, cujo fim especial «é a assistência religiosa e a evangelização nas dioceses portuguesas do ultramar; e, também, quando seja possível, em outras partes e regiões a que possa estender-se a sua benéfica acção».

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Quere dizer: todos os missionários católicos hão-de estar dentro da organização missionária católica portuguesa.
Que mais retumbante demonstração de confiança nas nossas faculdades colonizadoras poderia obter-se no domínio religioso? E que maior triunfo seria legítimo esperar nas negociações entabuladas?
A Câmara Corporativa não hesita em afirmar: há séculos que, no domínio das relações internacionais, a Nação portuguesa não conta, no activo dos seus triunfos diplomáticos, êxito mais completo.
E não vá supor-se que é ele devido apenas às qualidades invulgares dos negociadores: a Santa Sé não se deixa facilmente iludir nas suas decisões.
Traduz, sim, o reconhecimento, pelo mais elevado Poder espiritual do mundo, do nosso valor missionário e, com ele, do nosso mérito de pioneiros da civilização, do nosso génio colonizador.

20. As dioceses e as circunscrições missionárias são, já o dissemos, os elementos da organização missionária portuguesa, não representando aquelas mais do que a continuação no ultramar da divisão eclesiástica continental.
São elas intermissionárias. Quere isto dizer que os territórios que abrangerem e que ainda não estiverem em condições de se dividir em paróquias, devendo, por isso, submeter-se ao regime de missão, serão atribuídos pelos bispos respectivos a missões formadas por missionários seculares ou religiosos pertencentes a uma ou mais corporações.
As circunscrições missionárias serão em princípio atribuídas a uma única corporação religiosa, responsável pela sua evangelização. A experiência parece ter, de facto, demonstrado que êste regime conduz a uma actividade mais eficiente. Sobretudo se a Santa Sé usar da sua autoridade junto das corporações religiosas no sentido de intensificarem a sua acção evangelizadora. E a Santa Sé compromete-se a isso aio artigo 19.° do Acôrdo.
Mas, para quê continuar?
O que fica dito não será bastante para convencer os mais intransigentes defensores da nossa soberania?
Em resumo: crê a Câmara Corporativa que quer 3 Concordata quer o Acordo Missionário devem não só ser aprovados, mas saüdados com entusiasmo e com fé, vendo neles o símbolo da paz interna e da soberania externa, o coroamento, no domínio do Espírito, da nossa restauração nacional.
E só lamenta que o curto prazo de quatro escassos dias, em que se viu obrigada a elaborar êste parecer, não tenha permitido dar-lhe o relevo que seria mester.

Palácio de S. Bento e Sala das Sessões da Câmara Corporativa, 22 de Maio de 1940.

Eduardo Augusto Marques (presidente).
Domingos Fezas Vital (relator).
Álvaro da Costa Machado Vilela.
Afonso de Melo Pinto Veloso.
João Baptista de Almeida Arez.
José de Almada.
Abel Pereira de Andrade.
José Gabriel Pinto Coelho.
Gustavo Cordeiro Ramos.
João Serras e Silva.
D. Maria José de Novais.
Alberto Carneiro de Mesquita.
Amadeu Guerreiro Fortes Ruas.
Aurélio Augusto de Almeida.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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