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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
SUPLEMENTO AO N.° 87
ANO DE 1947 12 DE FEVEREIRO
CÂMARA CORPORATIVA
IV LEGISLATURA
PARECER N.º 17
Projecto de lei n.° 142
Reorganização do parcelamento da serra de Mértola
A Câmara Corporativa, pelas secções de Cereais e pecuária, Produtos florestais, Justiça e Finanças e economia geral, tendo agregado à secção de Cereais e pecuária os dignos Procuradores Afonso de Melo Pinto Veloso e Armando Jacques Favre Castelo Branco, emite o Seguinte parecer acerca do projecto de lei da reorganização do parcelamento da serra de Mértola, apresentado pelo Sr. Deputado José Martins de Mira Galvão:
Infere-se do relatório do projecto de lei que seis séculos (desde antes do reinado de D. Dinis até agora) não bastaram para se definir e pôr em efectivação a maneira regular do aproveitamento da serra de Cambas, no concelho de Mértola.
O aumento dá população obrigou a passar da simples exploração apícola e da pastorícia para a cultura cerealífera cada vez por maior superfície, especialmente no fim do século passado.
Durante a guerra de 1914-1918, e depois desta, alastrou-se o corte e o arranque do arvoredo restante na serra, para lenha e carvão, e logo a sementeira do trigo em cultura seguida, sem rotações apropriadas, para os utentes não perderem o direito à terra que cultivavam. Assim se esgotou rapidamente a fertilidade do solo, tornando-se este de lavoura não lucrativa. A erosão completara os prejuízos do mau sistema agrícola.
Então surdiram a arte do açambarcamento das courelas por exploradores e a disputa do regime social dos baldios.
No auge da discussão, a ordem directa do Ministro da Agricultura e o decreto n.° 10:552, de 14 de Fevereiro de 1925, tentaram fazer a partilha em glebas da serra de Cambas. Mas só depois de 1928 se aplicou o decreto. Este consignava, no artigo 7.°, como desígnio primário, que «os baldios serão divididos em glebas que tenham rapacidade produtiva equivalente ou suficiente para a sustentação de uma família de cultivadores, no caso da instituição do casal de família, nos termos da legislação em vigor, variando a superfície destas conforme a topografia e a natureza agrológica do solo o forma quanto possível geométrica regular, com acesso fácil e independente, podendo uma parte dos terrenos ser destinada para a arborização ou para conservação em novo logradouro comum, ou simultaneamente para estes dois fins, se as condições mesológicas e económicas assim o indicarem»; mas exceptuou pelo § único do artigo 3.º: «A divisão do baldio da serra de Cambas ou Mértola, considerado o direito tradicional dos povos, que com o mesmo confinam, será praticada distribuindo os lotes ou glebas por todos os indivíduos de nacionalidade portuguesa, de qualquer sexo, idade ou estado, que na data em que for feito o recenseamento definitivo
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tenham direito, em harmonia com a legislação vigente, o direito tradicional e os costumes locais, a usufruí-lo de qualquer dos modos que, segundo o disposto no $ único do artigo 1.º, constituem o logradouro comum».
O resultado foi caber apenas cerca de 1 hectare a cada pessoa com direito ao baldio: a parcelarão dos 9:660 hectares em 2:617 glebas, com áreas variáveis de 1 a 10 hectares por família, conforme o número de pessoas de cada uma. Assim a impossibilidade de se constituir logo casas agrícolas normais. E muitas glebas foram entregues a pessoas, e famílias que não tinham interesse na agricultura.
Por isso a obrigação consignada no § 1.° do n.° 2.° do artigo 18.° - «as glebas são inalienáveis por quinze anos, contados do registo predial da adjudicação» - foi sofismada por compra e arrendamento das famílias dedicadas à agricultura.
No entanto, as más colheitas dos últimos anos e o defeituoso sistema de cultura, no epílogo do desmerecimento da fertilidade, tornaram embaraçosa a vida dos cultivadores, alguns não podendo pagar as quotas dos empréstimos contraídos na Caixa Geral de Depósitos. Outros, possuidores de glebas, não puderam pagar os impostos. Assim, muitas parcelas foram vendidas por inteiro ou em parte.
Por todos estes desfavores está em situação crítica a vida agrícola e social apegada às glebas da serra de Cambas, no concelho de Mértola.
É necessário aplicar ali, na máxima escala possível, o critério da partilha dos baldios em casas agrícolas de auto-suficiência para cada família cultivadora, tendo-se determinado previamente o melhor destino da terra pela sua adaptabilidade agrícola e florestal. Problema específico para cada região.
Há sempre as questões do alcance máximo da água e da arborização indispensável para o gasto da população, para a correcção do ambiente geográfico e para a defesa da erosão, o que influi no destino das parcelas e na grandeza das casas de lavoura, que podem ir de 4 a 5 hectares agrícolas, quando houver cerca ou mais de 2 irrigáveis e mercados para os produtos hortícolas e de pomar, como em Montijo, Vendas Novas e Gafanha, até mais de 100 hectares quando forem exclusivamente de sequeiro.
O relevo do terreno, «e não permitir a cultura cerealífera sem forte erosão, imporá por alguns tractos a arborização, com revestimento arbustivo e herbáceo e o traçado de combros e socalcos apropriados. Poderá até ser necessário fazer reservas florestais nas eminências orográficas (como aconteceu no projecto de colonização da Mata Nacional da Gafanha e prevê o artigo 7.º do decreto n.º 10:552) e um sistema «lê pára-ventos paru maior garantia das culturas.
A área distribuída, maior que 9:000 hectares, e a viabilidade talvez de mais de cinquenta casas agrícolas a arrumar por ela, obrigarão a definir, pelo menos, um lugar de aldeia relacionado com as eu sãs de lavoura e as povoações de em torno, desde já com o seu rossio apropriado ao futuro crescimento da população. Em complemento da pesquisa e alcance da máxima quantidade de água para cada casa agrícola surdirá o problema do abastecimento de água potável para o pequeno centro urbano. E um dia chegará a electricidade, tão útil para a vida doméstica e social e para os trabalhos agrícolas individuais ou em cooperação (debulha, corte de silagem, etc).
Também deve ser ponderada e resolvida a correcção torrencial dos ribeiros e regatos que nascem na serra e por ela correm, para sustar a erosão o os danos nas terras marginantes.
Sincronamente estudar-se-á qual a área florestal necessária a cada casal e que espécies de árvores, arbustos e ervas, se devem semear para lenha, madeira e mato, de modo a assegurar-se a comodidade doméstica e um quinhão suficiente de matéria orgânica, arbustiva i? herbácea para as camas do gado e o estrume de curral, que proporcionariam uma parcela valiosa de fertilização hetero-sítica, assim como a defesa da erosão.
Enfim, a prática e os estudos que for realizando a Junta de Colonização Interna permitirão definir a reorganização do parcelamento da serra de Cambas, em sequência da correcção da Colónia dos Milagres e dos projectos de povoamento da Herdade de Pegões e da Mata Nacional da Gafanha, com as sugestões dos pareceres respectivos da Câmara Corporativa.
E o campo experimental de Vale Formoso, ampliado dos actuais 50 hectares para área bem suficiente e adequada às rotações em folhas normais, para modelo das casas agrícolas, poderá facultar a escola prática dos lavradores. Para estímulo destes nas plantações e sementeiras, ali se devem fazer viveiros de árvores frutíferas (oliveiras, figueiras, nogueiras, ameixieiras, etc.) e florestais.
O projecto de lei propõe, pelo artigo 1.°, a venda e a troca livres das glebas, para o efeito do agrupamento destas em unidades maiores susceptíveis de boa exploração económica. Pode, porém, suceder que tal liberdade redunde em agravamentos locais da desordem do arranjo das glebas. Por isso, a Câmara Corporativa julga prudente submeter-se ao parecer da Junta de Colonização Interna todas aquelas operações, salvo quando haja contiguidade: sem grave melindre dos direitos de propriedade, porque - importa não esquecer - trata-se de conceder faculdades que actualmente não existem. Concedê-las, mas condicionar o seu uso, é pois perfeitamente legítimo.
A Câmara Corporativa concorda com a orientação dos §§ 1.° e 2.° do artigo 1.° do projecto de lei.
Para a boa reorganização do parcelamento da serra de Cambas, a Câmara Corporativa propõe que a faculdade do § 4.° do artigo 2.° do projecto de lei seja generalizada como novo artigo 2.°
Concorda com a orientação do projecto de lei quanto ao processo de constituição do campo experimental de Vale Formoso: a troca de parcelas para tal fim é indispensável e, quando tiver de ser forçada, corresponde a lima expropriação por utilidade pública, em modalidade especial, compensada integralmente por terreno de superfície equivalente em valor, sem prejuízo para o cedente. Processo, aliás, já adoptado na expropriação para caminhos de ferro. Mas só se deve recorrer a troca forçada no caso de não ter sido possível a contratual em condições razoáveis.
A respeito da troca forçada, que, como se disso, representa um caso de expropriação por utilidade pública em modalidade especial, pode pôr-se o problema de saber se essa modalidade não envolverá ofensa da Constituição. Na verdade, o § 1.º do artigo 49.º da Constituição estabelece a doutrina de que os direitos adquiridos pêlos particulares podem ser objecto de expropriação mediante justa indemnização, ao passo que no caso do campo experimental de Vale Formoso se propõe a expropriação mediante a atribuição de glebas equivalentes. Esta atribuição corresponderá à justa indemnização prevista no texto constitucional?
Entende a Câmara Corporativa que sim. A o justa indemnização» não existe só quando haja a entrega de uma quantia em dinheiro, mas também quando haja a atribuição de cousa equivalente à cousa expropriada, se as circunstâncias do caso tornarem justa essa atri-
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buição. Ora é o que acontece no caso vertente: as glebas foram entregues, há poucos anos, à propriedade particular, não para o mero interesse privado dos adquirentes, mas para bem da colonização da serra de Cambas. Essa origem da propriedade particular não pode ser aqui esquecida. Se, para a organização do campo experimental, ha agora necessidade de expropriar algumas glebas, a substituição delas por glebas de valor não inferior, capazes de desempenharem a mesma função, parece ser a melhor maneira de indemnizar o expropriado, dentro da ideia fundamental que presidiu à formação da (propriedade individual neste caso.
Outro ponto a considerar. Desde que a troca de glebas, para ampliação do campo experimental, é do interesse do Estado e não do interesse dos proprietários atingidos; torna-se de elementar justiça que estes não tenham de fazer quaisquer desembolsos por causa dessa troca. Seja contratual a troca, seja forçada, deve a lei providenciar para que o proprietário veja a sua nova situação inteiramente definida (incluindo a inscrição no registo predial) sem necessidade de suportar quaisquer encargos ou despesas. Daí a disposição do § 6.° do artigo 3.°, segundo o texto adiante sugerido pela Câmara Corporativa.
O artigo 2.° do projecto, ao regular a ampliação do campo experimental, refere-se às «glebas que...ainda existam na posse da Câmara Municipal de Mértola, em conformidade com o disposto no § 2.° do artigo 10.° do decreto n.° 10:552». Vê-se, do relatório que precede o projecto de lei, que o seu autor interprete este passo como significando «glebas que ainda forem propriedade da Câmara Municipal de Mértola». Ora este entendimento não está de harmonia com a lei. O que o § 2.° do artigo 10.° do decreto n.° 10:552 estabelece não é que as glebas sejam propriedade da Câmara Municipal enquanto os adjudicatários não pagarem a sua quota--parte nas despesas resultantes da divisão do baldio, mas sim que as glebas serão detidas pela Câmara Municipal enquanto tal não acontecer. Trata-se de detenção, não de propriedade.
A expressão «posse» do artigo 2.° do projecto, considerada num dos seus sentidos técnico-jurídicos, poderia servir para traduzir a situação de detenção. Mas, dado o referido entendimento que lhe foi atribuído no relatório do projecto, melhor será limitar-se a lei a adoptar a própria terminologia do decreto de 1925.
Para além das soluções propostas, há que referir certos aspectos de técnica jurídica. Com efeito, alguns pontos do projecto merecem crítica sob este ponto de vista: fala-se nele em «prova da capacidade de compra», quando o problema não é de capacidade; refere-se que os donos das glebas «são obrigados a consentir na troca», quando a verdade é que não há consentimentos forçados e o efeito que se pretende é apenas abrir a possibilidade de consumar a troca por acto unilateral da Administração; menciona-se a velha terminologia de «secretaria de finanças», que está hoje substituída por «secção de finanças».
De outro lado, a redacção de alguns preceitos presta-se a dúvidas de interpretação, que facilmente podem ser evitadas com redacção diversa
Para obviar a tudo isto sugere-se nova redacção para o projecto de lei.
Concluindo, à Câmara Corporativa exprime o seu voto de que rapidamente, pela Junta de Colonização Interna, o Governo realize a reorganização do parcelamento da «erra de Cambas, no concelho de Mértola, em bom conjunto de casas de lavoura normais e de hortas e pomares das casas de operários e de trabalhadoras agrícolas, para proveito local e nacional.
Texto novo, sugerido pela Câmara Corporativa
Artigo 1.° É permitida a venda e a troca das glebas em que foi parcelada a serra de Cambas, no concelho de Mértola, por força do decreto 11.° 10:552, de 14 de Fevereiro de 1925, para efeito de agrupamento em unidades maiores, susceptíveis de boa exploração económica.
§ 1.° A compra ou a troca de glebas não contíguas a outra já pertencente ao adquirente e por ele explorada depende de prévio parecer favorável da Junta de Colonização Interna.
§ 2.° Qualquer colono só pode adquirir glebas, por compra ou troca, até constituir um núcleo de exploração com área não superior a 100 hectares, sejam ou não contíguas. A Junta de Colonização Interna, pode autorizar que a área seja elevada até 150 hectares, atendendo às condições especiais do caso.
§ 3.° A contiguidade das glebas demonstrar-se-á por certidão passada pela Câmara Municipal de Mértola ou pela Junta de Colonização Interna; e a prova de não ser excedida a área máxima far-se-á por certidão da secção de finanças, de onde constem as glebas que o pretendente tem na serra, seus números e letras ou área em hectares, e, com a mesma pormenorização, as glebas a adquirir.
Art. 2.° Fica a Junta de Colonização Interna encarregada de proceder ao estudo das condições económico-sociais da colonização da serra de Cambas e de propor ao Governo as medidas que julgar necessárias e convenientes para bem dessa colonização.
Art. 3.° As glebas que à data da entrada em vigor desta lei ainda estejam detidas pela Câmara Municipal de Mértola, em conformidade com o disposto no § 2.° do artigo 10.° do decreto n.° 10:552, por não terem sido os títulos pagos pêlos respectivos adjudicatários ou por qualquer outra circunstância, ficarão destinadas à ampliação do campo experimental de Vale Formoso.
§ 1.° Para a efectivação do disposto neste artigo será nomeada, por portaria do Ministro da Economia, uma comissão, composta por dois engenheiros agrónomos, uni da Direcção Geral dos Serviços Agrícolas e outro da Junta de Colonização Interna, e pelo presidente da Câmara Municipal de Mértola.
§ 2.° Esta comissão fará, no prazo máximo de um ano, o estudo das glebas que estão nas condições previstas neste artigo e, em relatório dirigido ao Ministro da Economia, proporá as que devem ser anexadas ao campo experimental e as que devem ser trocadas por outras que, por ficarem contíguas ou mais próximas desse campo, mais convenha anexar-lhe.
§ 3.° Se o Ministro da Economia, em conformidade com a proposta da comissão, julgar necessária a troca de glebas para ampliação do campo experimental, caberá ainda à comissão procurar chegai- a acordo com os proprietários acerca das condições da troca.
§ 4.° Se, porém, a troca contratual não puder realizar-se em condições julgadas razoáveis, o Ministro da Economia poderá determinar a troca forçada, que se efectuará por despacho seu, publicado no Diário do Governo. Este despacho constituirá título da transmissão, para todos os efeitos.
§ 5.° Nos casos dos dois parágrafos anteriores os proprietários das glebas abrangidas pela troca têm o direito de escolher, das glebas disponíveis, as que mais lhes convierem e o de ser compensados com maior área a receber, se as glebas a entregar ao Estado forem de valor superior.
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§ 6.° A troca é isenta de sisa e de quaisquer outros encargos para o proprietário das glebas trocadas, incluindo as despesas de registo predial.
Palácio de S. Bento, 11 de Fevereiro de 1947.
Paulo António Viríssimo Cunha, assessor com voto.
Albano de Sousa.
Alberto Ventura da Silva Pinto.
António Jacinto Ferreira.
Eduardo Araújo Parreira Dezonne Fernandes de Oliveira.
Gaspar Malheiro Pereira de Castro.
Jaime Rodrigues da Silva.
João Baptista Nunes Malta.
José de Andrade Lopes.
Armando Jacques Favre Castelo Branco.
António Feliciano Branco Teixeira.
António Mendes Gonçalves.
David Faria de Matos Viegas.
José Luís Maria de Almeida Calheiros e Meneses.
José de Sousa Machado Fontes.
Álvaro Machado Vilela.
Rui Enes Ulrich.
Albino Vieira da Rocha.
Fernando Emídio da Silva.
Ezequiel de Campos, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA