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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 122

ANO DE 1959 17 DE JUNHO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VII LEGISLATURA

(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)

SESSÃO N.º 122, EM 16 DE JUNHO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues
Júlio Alberto da Costa Evangelista

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foram aprovadas os n.ºs 118, 119 e 120 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Afonso Pinto, que se referiu aos temporais que têm assolado a região de Bragança e apelou para a intervenção do Governo; Sequeira de Medeiros, para se congratular com diversos melhoramentos recentemente introduzidos no distrito de Ponta, Delgada, e Urgel Horta, acerca da visita da princesa. Margarida, de Inglaterra.

Ordem do dia. - Continuou a discussão na generalidade da proposta e projectos de emenda à Constituição Política.
Falaram os Srs. Deputados Cortês Pinto, Carlos Moreira e Augusto Cerqueira Gomes, que ficou com a palavra reservada para a sessão seguinte.

O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 10 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 55 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Afonso Augusto Pinto.
Agnelo Ornelas do Rego.
Agostinho Gonçalves Grames.
Aires Fernandes Martins.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto da Bocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Finto dos Reis Júnior.
Américo Cortês Finto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Calapez Gomes Garcia.
António Carlos dos Santos Fernandes Lima.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Cortês Lobão.
António José Rodrigues Prata.
António Maria Vasconcelos de Morais Sarmento.
António Pereira de Meireles Rocha Lacerda.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Máximo Saraiva de Aguilar.
Artur Proença Duarte.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Avelino Teixeira da Mota.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Fernando António Munoz de Oliveira.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Jerónimo Henriques Jorge.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.

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João Augusto Dias Rosas.
João Augusto Marchante.
João de Brito e Cunha.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Pais de Azevedo.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Pereira Jardim.
José António Ferreira Barbosa.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José de Freitas Soares.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gonçalves de Araújo Novo.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Hermano Saraiva.
José Manuel da Costa.
José Monteiro da Bocha Peixoto.
José Rodrigo Carvalho.
José Rodrigues da Silva Mendes.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Laurénio Cota Morais dos Reis.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Tavares Neto Sequeira de Medeiros.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Angelo Morais de Oliveira.
Mário de Figueiredo.
Martinho da Costa Lopes.
Paulo Cancella de Abreu.
Ramiro Machado Valadão.
Rogério Noel Peres Claro.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Arantes.
Urgel Abílio Horta.
Venâncio Augusto Deslandes.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Amaro Salgueiro dos Santos Galo

O Sr. Presidente:- Estão presentes 84 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 118, 119 e 120 do Diário das Sessões.

Pausa.

Q Sr. Presidente: - Como nenhum dos Srs. Deputados deseja fazer qualquer reclamação sobre os referidos números do Diário das Senões, considero-os aprovados.

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Vários a apoiar a inclusão do nome de Deus na Constituição Política.

O Sr. Presidente:- Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Afonso Pinto.

O Sr. Afonso Pinto: - Sr. Presidente: Deputado pelo distrito de Bragança, incumbe-me o dever de estar alerta a tudo quanto de maneira relevante possa interessar às gentes desse meu distrito, e que se situe no plano nacional ou, dê uma maneira específica, no próprio plano regional.
E tudo isto tanto para criticar com justiça como porá, com justiça também, louvar ou exaltar, bem como para pedir ou para agradecer com reconhecimento.
Ainda não há muito que me senti no dever de erguer aqui a minha voz: uma das vezes foi para exultar com a viva satisfação em que comunguei com as gentes do meu distrito, aguando da visita honrosíssima que S. Exa. o Chefe do Estado fez a terras de Moncorvo, de Moga-douro e de Miranda, por ocasião da inauguração da grande barragem do Picote, no Douro internacional. Outra foi para agradecer à benemérita Fundação Gulbenkian e ao Sr. Ministro da Saúde e Assistência uma valiosa dádiva de mais de meio milhar de contos para dois hospitais do distrito de Bragança - o de Moncorvo e o de Mogadouro.
É ainda uma viva comunhão de sentimentos com o povo do meu distrito o que me leva a usar da palavra neste lugar e neste momento.
Não venho manifestar nem contentamento ou exultação, nem reconhecimento.
Desta vez o que me domina não é a alegria, mas a tristeza, a amargura, a dor, que amarfanham muitos e infelizes habitantes do meu distrito. A imprensa tem noticiado ultimamente que os temporais desta Primavera vêm causando grandes prejuízos em várias regiões do País, designadamente e com maior gravidade no distrito de Bragança.
Tratando-se, como se trata, de uma região onde se vive, pode dizer-se, exclusivamente da agricultura, essa gravidade torna-se ainda maior, como é evidente, à míngua de actividades produtivas que supram a falha no sector agrícola.
Acontece que ainda esta manhã fui surpreendido com uma notícia dada pelo telefone, em que me comunicavam que ontem, da parte da tarde, se desencadearam várias trovoadas, tendo por epicentro, mais ou menos, a região de Vila Flor, as quais, fuzilar de raios e coriscos, em fortes rajadas de vento e descargas de água e granizo de excepcional dimensão, causaram incalculáveis prejuízos.
Aí, como pouco tempo antes acontecera já noutras partes do distrito, a fúria da tempestade, num fantástico delírio, destruiu sementeiras, arrancou árvores de grandes proporções, demoliu edificações, em suma, numa fúria diabólica, roubou a muita gente o pão, o lar e o trabalho acumulado de tantos anos e semeou a dor, a miséria e o luto.
Para este quadro, que não é de pintura neo-realista, mas que, desgraçadamente, é uma tragédia vivida por milhares de pessoas bragançanas, permito-me chamar daqui a atenção do Sr. Ministro da Saúde e Assistência e do Sr. Ministro das Obras Públicas, confiado, como sempre, no elevado espirito de justiça, de amor do próximo e de bem-servir de que SS. Exas. tom dado magníficas e impressionantes provas em tantas e tão difíceis emergências.
Sr. Presidente: feito o inquérito que os trágicos acontecimentos apontados reclamam, certamente os ilustres membros do Governo, a quem agora me dirijo, não demorarão a tomar as providências urgentes que o caso requer, socorrendo os necessitados e proporcionando a intensificação de certos trabalhos públicos na região, já

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que há fome em muitas bocas e falta de trabalho para muitos braços.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Sequeira de Medeiros: - Sr. Presidente: no sábado passado foi inaugurada da cidade de Ponta Delgada e na presença de um representante do Sr. Ministro dos Comunicações a nova central telefónica automática, para serviço daquela cidade e arredores, que custou 13 800 contos.
Simultaneamente, também foi inaugurada a segunda fase das ligações, por feixes hertzianos, da ilha de S. Miguel com as restantes ilhas do arquipélago dos Açores, o que vem tornar eficientes as comunicações telefónicas entre as ilhas. Orçou a sua instalação por 18 000 contos.
Quer dizer: os CTT despenderam nos Açores 31 800 contos na instalação de comunicações telefónicas, prestando, deste modo, um rèlevantissimo serviço ao arquipélago!

A importância desta obra, quer pelas verbas despendidas, quer pela enorme projecção que terá no futuro progresso da vida açoriana, leva-nos a considerar que seria ingratidão não levantar uma voz, ainda que modesta, para louvar e agradecer ao Governo de Salazar e, em especial, ao antigo e ao actual titulares do Ministério dos Comunicações a efectivação de tão importante beneficio para os Açores, demonstrando assim, uma vez mais, o alto interesse que merecem ao Governo os nossos problemas e que aquela parcela sagrada do território nacional também vai sofrendo a aragem de renovação e modernização que varre este Pais de lês a lês. Bem haja o Governo que assim procede.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:- A nova central telefónica automática de Ponta Delgada está pronta a satisfazer 2600 assinantes e tem capacidade para 5000, sendo de notar que havia em funcionamento 1900 telefones, havendo ainda muitos pretendentes que aguardavam a sua inauguração para poderem dispor de telefone.
.. A entrada em funcionamento desta central há muito que era ambicionada pela população e constitui um melhoramento de grande importância na vida de relação dos habitantes de Ponta Delgada. Até porque o antigo sistema se mostrava obsoleto, funcionava mal e era causador de reclamações permanentes.
Assim fica satisfeita uma velha aspiração da população local, pelo considerável melhoramento e eficiência de um serviço público hoje indispensável na vida moderna, em que é homem se vê prisioneiro do dinamismo, da comodidade, da ânsia de viver e, nessa pressa, não se compadece com demoras nem dispensa comunicações rápidas e eficientes, quaisquer que sejam.
Quando tal não acontece desgasta o sistema nervoso e muitas vezes perde a calma Esperemos que este melhoramento venha calar tanta critica que era formulada e, diga-se de passagem, por vezes não sem razão.
A nova ligação telefónica entre as ilhas por feixes hertzianos é outra realização da mais alta importância na vida colectiva do arquipélago dos Açores, pela projecção no seu futuro progresso, devido a trazer uma maior facilidade de comunicações telefónicas entre os três distritos, aproximando as suas populações, fomentando a sua união e intercâmbio, além de todos os naturais reflexos num útil o necessário desenvolvimento turístico e das relações sociais, económicas e comerciais.
Deste modo ficará mais atenuado o fatalismo geográfico da dispersão do território açoriano por nove ilhas distantes, um dos maiores óbices à imediata valorização do arquipélago.
As vantagens deste empreendimento são a todos os títulos extraordinárias para o futuro progresso e valorização dos Açores! A realização das obras destas instalações telefónicas, além do mais, vem honrar sobremodo os técnicos e a indústria nacionais, pela forma como foram executadas e pelos materiais empregados, o que traduz agradável índice de progresso técnico.
A um pormenor das citadas obras em Ponta Delgada desejamos fazer ligeira referencia, pela justiça que merece quem as orientou, ao ter de instalar as fossas e canais de cabos subterrâneos. A cidade de Ponta Delgada não foi planeada com a visão necessária para o seu futuro desenvolvimento e expansão, donde as ruas serem, demasiado estreitas para a actual viação motorizada.
Por isso, a abertura de vários quilómetros de valas nessas ruas constituía um problema difícil' pelos incómodos que causava ao transito e ao público. A forma competente e inteligente como esse trabalho foi executado, com método e ordem, causando apenas os transtornos mínimos e indispensáveis, merece louvores.
Os serviços dos CTT deram um exemplo de como se trabalha em tarefa tão ingrata, actuando com o devido respeito pelos interesses do público, o que, infelizmente,
nem sempre acontece em serviços do Estado e por vezes da mesma natureza.
Este empreendimento constitui a obra de maior vulto levada a cano pelos CTT nos Açores, o que torna a sua Administração, credora da gratidão dos Açorianos pela montagem de um serviço tão dispendioso e que foi realizado com algum sacrifício, mas que representa uma alta compreensão do valor e importância dos Açores na vida nacional.
Só merece os maiores elogios a Administração dos CTT pela realização desta obra, que fica a atestar mais um grande serviço entre os muitos que devotadamente vem prestando ao País, contribuindo, de forma insofismável, para o engrandecimento cada vez maior da genial política de Salazar, que só os vindouros hão-de julgar na justa medida!
Todavia, o valor incalculável desse empreendimento, com todo o seu cortejo de benefícios futuros a favor do desenvolvimento dos Açores, vai ser em muito diminuído pela actual situação em que se encontram as comunicações marítimas e aéreas daquela região, que já hoje tão deficientes se mostram, e, portanto, incapazes de corresponderem ao ritmo do progresso resultante do melhoramento que foi inaugurado.
A natural consequência de um serviço de comunicações telefónicas fáceis e eficientes é o desenvolvimento dos transportes, por aumento da necessidade de deslocação de pessoas e ampliação das actividades comerciais.
Ora, são do conhecimento geral as más condições dos transportes marítimos e aéreos para e entre os Açores, sendo essa deficiência um dos maiores obstáculos à sua expansão económica e à vida quotidiana da população.
Por isso se torna preocupação dominante e cada vez mais premente a necessidade urgente de se abreviarem os passos já iniciados para a melhoria dos referidos transportes, dando assim possibilidade de uma vida melhor a 350 000 portugueses.
Agora que o Governo e a Nação se preparam paru comemorar tão digna e patriòticamente o centenário do infante D. Henrique - esse insigne príncipe, navegador e glorioso artífice da nossa maior grandeza histórica, que tanto meditou e se preocupou com o descobrimento dos Açores e que os mandou povoar com tamanhas can-

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seiras e carinhos por gente amiga e de sua casa, com o firme propósito de lançar, assim, o primeiro padrão humano no meio do oceano Atlântico, de forma a perpetuar com sangue português, através dos séculos, o destino histórico de Portugal, como povo dilatador da fé e da civilização cristã ousamos sugerir a quem de direito que uma das melhores homenagens que se podia prestar a esse ilustre príncipe da Casa de Avis seria, durante as comemorações henriquinas, verificar-se o melhoramento das comunicações marítimas e aéreas dos Açores, aproximando-os, cada vez mais e melhor, da Mãe-Pátria!
Se assim acontecesse poderia o Governo estar certo de que teria feito obra da mais elevada projecção nacional, atendendo à importância dos Açores na nossa história marítima, antiga e contemporânea!
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Urgel Horta: - Sr. Presidente: nada acusa de estranho o facto de um homem do Norte, seu Deputado, vivendo com a maior intensidade as manifestações e os problemas inerentes a vida da Nação, que desta tribuna e neste instante queira proferir meia dúzia de palavras, simples e expressivas, sobre acontecimento passado, aqui focado já com o brilho de sempre por um ilustre Deputado, o Sr. Alberto de Araújo, acontecimento suscitador do mais reconhecido interesse em todos os recantos da terra portuguesa, desde as cidades da mais alta categoria às pequeninas aldeias e lugares dispersos por todas as províncias de Portugal.
Quero, Sr. Presidente, referir-me à visita, a todos os títulos feliz, que acaba de fazer-nos a princesa Margarida, de Inglaterra, parecendo-me inteiramente justo e cabido o comentário que vou traçar.
E bem o merece a estada da excelsa princesa em terras lusitanas, onde à sua volta soube, como em toda a parte, criar ambiente de invejável simpatia e justa admiração.
Essa visita, revestindo aspectos de extraordinária valia e projecção, marcou na nossa vida social e no coração de todos os portugueses data e recordações que não poderão tão cedo apagar-se, e será lembrada, quer pela sua oportunidade, quer pelo alto significado que lhe é verdadeiramente atribuído. Dias de inexcedível contentamento e comunicativa alegria foram esses em que os Portugueses tiveram a suprema honra de admirar, em todo o seu esplendor, essa encantadora embaixatriz, mensageira viva e idolatrada de um povo que à mocidade inteligente e radiosa, ao sentido e à juventude de uma mulher entregou confiadamente o facho luminoso de uma missão de alta responsabilidade, a todos os títulos delicada e difícil.
Ela soube, porém, fazer frente a todas as dificuldades, resolvendo-as com perfeito conhecimento do problema e através de factores inerentes a qualidades natas: aos primores da sua educação, da singeleza despreocupada e cativante das suas maneiras, da distinção do seu porte invejável, como verdadeira princesa de sangue real, personalidade bem vincada, aureolada por Deus nos seus desígnios, honrando e dignificando o seu pais na tarefa que lhe foi outorgada pela rainha Isabel, sua rainha, e sua irmã, a quem o povo português tanto e tão devotadamente, ama e respeita.
Foi bem a representante ideal de um povo, não lhe faltando qualquer dos predicados indispensáveis ao triunfo da finalidade que aqui a trouxe, avultando em Sua Alteza Real dotes de beleza e simpatia que lhe concederam foros e direitos à carinhosa admiração da gente portuguesa.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:- Inteligentemente primorosas e oportunas foram as afirmações cheias de propriedade contidas na alocução proferida pela princesa no banquete em sua honra e em sua despedida realizado no Estoril, sob o patrocínio da Federação das Indústrias Britânicas, homenagem em que participaram as mais eminentes e distintas personalidades da vida nacional e as mais representativas figuras da colónia britânica.

O Sr. Augusto Simões: - Muito bem!

O Orador: - O conteúdo dessa alocução, magnífica na sua expressiva simplicidade e no sentido em que foi ditada, é um hino de agradecimento, de exaltação, de confiança e de louvor aos laços da indestrutível amizade luso-britânica, mantida sem sombras com toda a firmeza e dignidade através dos séculos; é a história comum de dois povos, sempre unidos na defesa de princípios, associados em tempos difíceis de guerra e de paz; invocação ao passado glorioso das nossas descobertas e conquistas, atravessando os mares em permanente convívio, descobrindo terras, que cristianizámos e civilizámos; é o reconhecimento eterno e sentido da epopeia lusíada iniciada pelo infante D. Henrique, o maior português de todos os tempos, traçando novos rumos e novos destinos à humanidade; é a nossa camaradagem de armas, mantida desde o alvor da nacionalidade até aos dias de hoje, na justa compreensão do seu valor e da sua eficiência; é a evocação meditada è sentida à velha aliança, velha de seis séculos, mas renovada a cada instante pelo querer e pelo sentir das duas nações; é uni apelo à união, à defesa e à colaboração em todos os campos de interesses materiais e morais das duas pátrias, que hoje, mais do que nunca, é forçoso considerar e manter no plano favorecedor mas exigente das nossas actividades em desenvolvimento valioso e progressivo.
É, sobretudo, o coração generoso, agradecido e bem aberto de uma princesa que sente palpitar no mais profundo e Intimo do seu delicado ser a lembrança do passado, a vida do presente e as preocupações e anseios do futuro, numa comunidade de sentimentos, e interesses que ligam inteiramente as duas nações, que é preciso acautelar e defender.
E, Sr. Presidente, há nessa brilhante alocução uma nota verdadeiramente feminina, emocional, de uma delicada ternura, plena de sensibilizante doçura e atenção, que toca fundamente o coração dos Portugueses, quando com a maior simplicidade nos diz não poder esquecer que houve uma princesa portuguesa, Catarina de Bragança, rainha de Inglaterra, pelo casamento com Carlos II, que foi quem ensinou os Ingleses a tomar chá, sua predilecta bebida. E logo a seguir fala-nos do nosso vinho do Porto, com que os Ingleses aprenderam a deliciar-se, mostrando o quanto estes devem às duas excelentes bebidas: o chá e o vinho do Porto.
Que magnifica lição encerra essa espontânea confissão da encantadora princesa!
Louvores bem merece, quer do seu pais, quer do nosso, pela forma verdadeiramente inteligente como soube desempenhar o alto papel que lhe conferiram de embaixatriz extraordinária da sempre nobre e velha Inglaterra.
Bem haja por ter vindo. E Deus lhe conceda o favor da Sua graça, numa vida feliz e venturosa, que do coração todos desejamos para a excelsa princesa Margarida.
Sr. Presidente: e depois de tudo quanto V. Exa. acaba de ouvir, de satisfação e regozijo pela visita dessa adora-

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vel princesa, cuja presença criou novas mas fundas raízes de amizade no coração dos Portugueses, seja-me permitido agora fazer um comentário que, embora não seja do agrado de muitos, justifica arreigado sentimento de amor ao meu pais, à sua gente e ao indeclinável dever de olhar determinadas questões por prisma bem diferente do adoptado por certas entidades e personalidades investidas em funções de alto relevo e merecimento.
Os factos na sua consumação e na sua repetição caprichosa tantas vezes apontados faiam mais alto que as palavras quê me sinto autorizado à proferir, e que prometo alargar, sobre a acção inconveniente de certos organismos, alguns do Estado, logo que a oportunidade se me ofereça.
Não sei, Sr. Presidente, a quem pertence a responsabilidade do traçado programa respeitante à visita da princesa Margarida a Portugal, nem esse conhecimento me interessa, e não curo de sabê-lo. Mas, pertença a quem pertencer, repetiu-se mais uma vez o que se vem praticando ha muito tempo, cometendo-se erros psicológicos que a própria imprensa inglesa anotou.
Portugal parece ser, e não é, para determinadas entidades e pessoas apenas Lisboa. O resto ... não conta para certas manifestações, na observância da vida e dos costumes do seu povo, das belezas que encerra, dos monumentos que possui, bem ligados à história do passado, de tudo quanto existe, e é muito, digno de ser visto e admirado pelos nossos hóspedes, dentro da escala das suas variadas categorias
Veio até nós a princesa, em missão especifica de natureza económica e mesmo cultural; missão de merecido interesse para a Inglaterra e para Portugal, bem documentado através do esforço representativo dessa brilhante exposição, a Feira das Indústrias Britânicas, que nos seus resultados práticos não interessa exclusivamente a Lisboa, mas interessa verdadeiramente a todo o País.
Pois muito bem: a princesa, a quem foram prodigalizadas as homenagens devidas à sua extraordinária categoria, embaixatriz de um povo que pretende garantir o triunfo da Feira através da utilidade das suas consequências, dos seus resultados práticos, abrangendo os sectores de actividade industrial e agrícola, na sua vasta complexidade, foi levada a passar seis dias da sua visita por Lisboa e arredores, observando pouco do muito magnificamente belo e produtivo que possui a nossa terra, a terra portuguesa, que devotadamente se sacrifica e trabalha.
Mas o facto repete-se e há-de continuar, esquecendo conveniências nacionais, negando a certas regiões do Pais a demonstração das suas actividades, dignas de serem vistas e admirados, não faltando por esse Pais além cenários de maravilha terrena espalhados pelas diversas províncias.
Eu não quero trazer à Assembleia Nacional, porque seria supérfluo fazê-lo, um largo descritivo claro e eloquente das prodigalidades com que a natureza nos dotou, e que todos reconhecemos, ou assinalados marcos inextinguíveis de civilização cristã, monumentos sagrados que, através dos séculos, atestarão o valor da nossa capacidade realizadora perante os povos e a história documentada do Mundo Português.
Mas seja-me permitido referir sucintamente, perante a indiferença de muitos, os motivos em que se fundamenta o meu juízo, combatendo com toda a razão o esquecimento a que a região situada ao norte do Mondego tem sido votada neste capitulo de valorização da nossa presença no convívio das nações.
Concretizemos, Sr. Presidente, os nossos queixumes: desde a Beira Litoral, marginando o Atlântico, tendo a velha cidade universitária por centro, terra de tão notáveis como interessantes características na beleza do seu conjunto arquitectónico, de uma disparidade interessante, onde avultam glórias do passado, cidade circundada por cenário de maravilhoso encantamento, tão cantado pelos nossos melhores poetas, tomando vulto a distância relativamente curta essa mata secular de inexcedível beleza e grandeza, o Buçaco, de tão belo historial, e desde Aveiro, com a sua ria, aos contrafortes do Caramulo e da Estrela, abrangendo montes e rios, vales e planuras, extasiantes de luz e de cor, ocupando a zona central dessa região a magnifica cidade de Viseu, terra de Vi-riato, com arredores de forte, expressão paisagística e panorâmica, não poderá encontrar-se motivo digno de ser visto, admirado e visitado?
E o Minho, a província mais extraordinariamente aliciante e bela de Portugal, que na sua zona rústica ou na sua parte urbana deslumbra na luxúria verdejante da sua vegetação e dos seus arvoredos, na suavidade bucólica dos seus rios e das suas pontes, estradas e caminhos marginados por intermináveis maciços de flores, com a cidade de Viana do Castelo, na plenitude da sua majestade, debruçada sobre o Lima, olhando o Atlântico, que Santa Luzia domina; ou Braga, velha, característica e monumental cidade, célebre no mundo católico, com tesouros de arte, capital ide uma região progressiva, ridente, feliz, encimada pelo Bom Jesus do Monte e coroada pelo Sameiro, místico, altaneiro e festivo, tão amados e admirados por todos que têm a felicidade de ali subir; distritos em que vilas e aldeias encerram recantos paradisíacos em toda a sua graça nada valem ou, representam perante entidades a quem faltam naturalmente as indispensáveis condições de independência, visualidade e espirito de selecção que as recomende e as indique como inteiramente merecedoras de serem conhecidas?
E toda essa região compreendendo a zona do Douro Litoral, estendendo-se ao Alto Douro, onde a imponência dos seus montes e a placidez dos seus rios, o verde das encostas cobertas de vinhedos e o dorso nu das suas montanhas se casam em contrastes de beleza e grandeza com os seus povoados graciosos e alegres e com os alcantis de altos e fragosos maciços, mais perto do céu com os seus horizontes de sedativa harmonia, que representa perante o turismo nacional?

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador:-Região centrada e dominada pelo velho burgo tripeiro, o Porto, grande empório comercial e industrial, cidade portuguesa de mais firmado carácter, conhecida no mundo inteiro por múltiplas e destacadas razões, especializando o facto de haver dado o seu nome ao famoso vinho do Porto, tão apreciado, nada vale como unidade turística na conjuntura em que se pretende intensificar a vida comercial e industrial da Nação com a Grã-Bretanha e com outras nações?
Não faltam ao Porto, Sr. Presidente, atractivos e motivos de natureza arquitectónica e monumental, novos e velhos, datando alguns de períodos longínquos. Repositório expressivo da arte em toda a grandeza de outras eras, com vida social intensa, actualizada, progressiva, torra bordejada pelo Douro e banhada pelo Atlântico, burgo de historial magnifico, relicário de um passado e fautor de tudo quanto represente actividade e engrandecimento, é as mais das vezes olvidado perante acontecimentos e perante factos em que tinha direito a participar.
E, Sr. Presidente, a enumerar destes casos e de outros que com eles têm semelhança - e bem resumidamente o fiz - não será bastante para serem revistos com a melhor e a mais requerida atenção e cuidado, quebrando indi-

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ferenças, dando latitude solucionatória a determinações contrariantes ao que acabo de expor?
Sr. Presidente: desculpe V. Ex.ª e a Gamara o tempo precioso que lhes roubei com o comentário que acabo de fazer. Mas outro motivo não tive em vista que não fosse-a demonstração clara do amor que dedico à terra portuguesa e à Pátria que Deus nos entregou e deu, com o voluntário compromisso de a amar e a defender.
Ao terminar esta intervenção, que desejaria pudesse ser completa, seja-me permitido, mais uma vez, saudar essa encantadora figura de mulher, a princesa real Margarida, superando-a noutra saudação muito quente e muito sincera à sua rainha e sua irmã, a rainha Isabel, grande soberana do Reino Unido, que ao Porto deu espontaneamente, com seu marido, o príncipe Filipe, a alegria inesquecível da sua visita, recebendo do povo, em troca, a mais brilhante e a mais majestosa e entusiástica manifestação de simpatia, amizade e respeito de que há memória, tendo por palco a nobre cidade, que devotadamente lhe consagra a maior gratidão e o seu melhor afecto.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem !
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Continua o debate na generalidade sobre a proposta e os projectos de lei de alteração á Constituição Política.
Tem a palavra o Sr. Deputado cortês Pinto.

O Sr. Cortês Pinto: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: os problemas da linguagem envolvem por vezes considerações muito sérias e não devem ser nunca apreciados de ânimo leve. Eles não se limitam aos aspectos filológicos, fonéticos ou mesmo literários, que é como quem diz: científicos ou artísticos.
A simples escolha de um vocábulo pode implicar ainda, além de acepções puramente espirituais, aspectos sociais e políticos capazes de se revestir do maior melindre sob p ponto de vista nacional.
Foi justamente para um problema desta natureza que a revisão da Constituição Política nos conduziu.
Tive a honra de apresentar com mais três Srs. Deputados um projecto de lei - o n.º 25 - que se resumia a propor a substituição da palavra «raça» pela palavra «etnia» no texto do artigo 12.º da Constituição, onde se diz:

O Estado assegura a constituição e defesa da família como fonte de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social e como fundamento da ordem política e administrativa, pela sua agregação e representação na família e no município.

A Ex.ma Câmara Corporativa começa por enunciar:

1.º Que a competência da Assembleia Nacional apenas lhe permite introduzir alterações requeridas por novas exigências da realidade nacional ;
2.º Que as propostas de alteração não devem representar um mero prurido de perfeição;
3.º Que as alterações só devem corresponder a motivos de profunda necessidade política.

E depois de indicar particularmente no 2.º e 3.º enunciados as razões que implicariam a aprovação do projecto - que como veremos não tem pruridos e corresponde efectivamente a motivos de profunda necessidade política - acaba por o rejeitar, aduzindo:

4.º Que o projecto corresponde «tão-só a uma preocupação fora de lugar de exactidão terminológica, se não de mera perfeição estilística».

Podiam os ilustres Procuradores (e a meu juízo deveriam tê-lo feito) limitar-se a fazer a crítica dos dois termos - «raça» e «etnia» - para justificar a preferência que os levaria a optar ou por um ou por outro;
Não o entenderam, porém, assim. E em face das considerações críticas depreciativas e escusadas com que se comentou o projecto de lei, e da leveza com que, a meu parecer, se decidiu, não se pode dizer que os subscritores pudessem sentir-se compreendidos, e muito menos vaidosos, com a apreciação dos Dignos Procuradores - «pruridos estilísticos», propostas sem significado político e (não percebo como) «fora de lugar»!
De qualquer maneira, ao pronunciar-se sobre as possíveis causas que por hipótese atribuiu ao projecto, o parecer abstraiu dos nomes que o assinavam para se referir com inteira imparcialidade à letra do documento. Sigamos o seu exemplo, que, neste ponto pelo meãos, e em princípio, revela um bom método científico.
A digna comissão que subscreve o parecer é composta por individualidades eminentes, cujas pessoas estimo, cujas inteligências admiro e cujas culturas muito considero. Pena é que não possa ligar os mesmos sentimentos ao parecer que subscrevem. Esse, efectivamente, não o estimo, não o considero e de modo algum posso admirá-lo. E vou dizer porquê, justificando u necessidade da emenda.
Se a palavra «raça», no sentido em que se encontra empregada, aplicada ao povo de uma nação, não fosse, no estado actual da ciência e da sociedade, impossível de justificar cientificamente, e a pudéssemos tomar no momento presente naquele sentido lato, ao mesmo tempo antropológico e psíquico, que era possível atribuir-lhe anteriormente, o emprego desta palavra no artigo 12.º da Constituição poderia não merecer reparos sob o ponto de vista cientifico. Mas persistiria erradíssimo e inconveniente sob o ponto de vista nacional. Porém já em 1882 Renan ensinara numa lição na Sorbona, sob o tema «O que é uma nação»: o facto «raça», capital na sua origem, vai perdendo cada vez mais a sua importância».
Já lá vão setenta e sete anos! E desta maneira o emprego do termo está erradíssimo de ambas as formas ! Basta olharmos pura esta Assembleia e considerarmos o seu justo nome de Assembleia Nacional e revermo-nos nos bons portugueses que a tomar parte nela provêm de tão afastados continentes e de grupos autóctones tão diferentes, mas tão intimamente irmanados no amor â pátria comum, para verificar que Portugal tem uma feição gloriosamente ecuménica e que a palavra «raça» nada tem que ver com a Pátria Portuguesa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -É evidente que, ao utilizá-la no artigo 12.º da Constituição, o autor empregou a palavra num sentido vago, tendo em mente o referir-se à população portuguesa. Mas, perante a análise do artigo e em face do projecto apresentado, o que era explicável por superficialidade de currente calamo (quandoque bónus dormitat Homerus) passa a considerar-se como propósito inexplicável e, sob o ponto de vista nacional, condenável, por inconveniente.

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Diz-nos o parecer da Câmara Corporativa, ao rejeitar o projecto, que a competência da Assembleia Nacional apenas deverá ser limitada às alterações requeridas por novas exigências da realidade nacional, e não por um mero «prurido» de perfeição.
Não contento com dizê-lo uma vez e frisar que já o disse em 1951, com o ar de quem dá um puxão de orelhas a discípulos mal aplicados, volta a repetir que a emenda proposta corresponde «tão-só a uma preocupação de exactidão terminológica, se não de mera perfeição estilística», acrescentando que tal preocupação é fora de lugar.
Pelos vistos, a preocupação de exactidão terminológica parece aos ilustres censores coisa despicienda.
Ressalvado o nosso respeito e alta consideração pelos Dignos Procuradores que acharam a proposta fora de lugar, eu perguntarei o mais correctamente possível se SS. Ex.ªs estão dentro do lugar que lhes compete quando pretendem impor, ex cathedra, à Assembleia Nacional, aquilo que entendem tão-somente dever permitir-lhe, não sabemos a que titulo: «só deve ser usada pela Assembleia Nacional (transcrevo novamente) pura introduzir nela alterações requeridas por novas exigências da realidade nacional».
Ora peço licença para achar que também pode haver razões diferentes e imperiosas, e que se devem introduzir não só as novas, mas também aquelas antigas e não atendidas exigências da realidade nacional, como no caso que nos ocupa.
E a verdadeira realidade nacional, embora isto pareça insignificante aos dignos subscritores do parecer, é que a Nação Portuguesa ó constituída por famílias não de uma raça (como, aliás, nenhuma nação europeia ou americana), mas de muito diversos grupos antropobiológicos. E que esta circunstancia torna de absoluta inconveniência a manutenção daquela palavra, que os ilustres censores acham bem e os apresentantes da proposta achara mal; e por consequência necessária, efectivamente, a substituição, no lugar próprio, por aquela outra cujo emprego se classifica de preocupação fora de lugar e ditada por «pruridos de perfeição».
Ora vamos a ver se conseguimos, nus, justificar um lugar próprio para o emprego deste termo «prurido» usado na censura do parecer.
Quanto ao desejo, de perfeição, julgo eu que tal cuidado, ao tratar-se de redigir a lei fundamental da Nação Portuguesa, traduz, não pruridos, mus antes amor à justeza literária e cientifica da expressão.
É que, sem ser jurista, creio que não há lugar nenhum onde o apuro da linguagem seja mais necessário do que na redacção dos artigos de uma lei; e que lei nenhuma exige mais cuidadosa perfeição redactorial do que a lei fundamental, que constitui o mais alto diploma da legislação de um pais.

O Sr. José Sarmento: - Muito bem!

O Orador: -É pois manifesto que a palavra «prurido» não tem aqui, neste sentido, nenhum cabimento.
Porém, em boa verdade, a substituição proposta não trata de aperfeiçoar, como a comissão julgou. Não: trata-se de emendar; não se trata de estilo: trata-se de propriedade e de correcção. E neste sentido a palavra «prurido» tem ainda menos cabimento.
Não vendo, pois, lugar para colocar a palavra «prurido» em referência à letra da proposta, vejo-me obrigado a devolvê-la muito atenciosamente à procedência, para que os Dignos Procuradores, que a aplicaram a este propósito lhe encontrem melhor lugar em qualquer outro sítio.
Na verdade, a acepção que o parecer deseja manter para a palavra «raça» é hoje cientificamente anacrónica.
E até etimològicamente coisa nenhuma de definitivamente apurado. Efectivamente, a sua origem é tão confusa filológica como cientificamente.
Atribuem-se-lhe nada menos do que duas origens latinas: radix, raiz, e ratio, natureza; uma checa: raz, cunho, estampa; outra árabe: ras, origem; e o nosso Morais aponta-lhe ainda uma hebraica: rosh ou rash, cabeça.
O Dicionário Etimológico de Dauzat diz-nos que foi importada do italiano razza. O brasileiro Antenor Nascentes e José Pedro Machado atribuem-lhe a mesma procedência, acrescentando este que «a sua origem é obscura, pois as diversas hipóteses até agora apresentadas não parecem convincentes». Como italianismo, teria sido importada no século XVI.
Deixemos porém a destrinça genealógica do vocábulo e ocupemo-nos do valor social do seu significado, aplicado a este século XX da era cristã. E, ao falar da era cristã, lembraremos que a pretendida roça pura judaica de há vinte séculos é já hoje considerada como um mosaico de povos antropològicamente diferentes. E o mesmo se afirma dos Romanos.
Dêmos a palavra a Renan, na Vida de Jesus: «A própria Galileia era muito misturada. Esta província contava entre os seus habitantes, no tempo de Jesus, muitos não-judeus: fenícios, sírios, árabes e mesmo gregos. É, pois, impossível levantar aqui qualquer questão de raças e procurar saber qual o sangue que girava nas veias d'Aquele que mais contribuiu para apagar na humanidade as distinções do sangue».
Depois dele, Houston Stewart Chamberlain, no célebre e extenso estudo sobre A Génese do Século XIX, contesta que Cristo seja de origem judaica. E o Dr. Lapparent, chefe de conferências da Faculdade de Ciências de Paris, nega a existência de caracteres rácicos específicos aos Judeus, cujos índices cefálicos pertencem a tipos extremamente diversos, entre os quais tão depressa predominam os dolicocéfalos, como na Rússia (80 por cento), como os braquicéfalos, no Sul da Pérsia, terminando por concluir que não há raça judia.
Q que há então?
Lapparent responde: - «um grupo étnico composto de diversas raças». E aqui se encontra bem definida a diferença entre os dois termos.
Da mesma forma se nega que tivesse havido uma raça ariana, pretendida fonte originária de raças privilegiadas. Já Hartmann a considerava «uma invenção de gabinete».
Salomon Reinach classifica a existência de um tipo ariano actual como «um absurdo».
Por seu lado, Charles Ujfalvy, no sen trabalho Les Aryens au Nord et au Sud de
l'Hindou-Koush, conclui que «o termo ária é de pura convenção: - os povos iranianos do Norte e as tribos hindus do Sul do Cáucaso Indiano diferem absolutamente como tipo e descendem sem nenhuma dúvida de duas raças diferentes».
E, mais recentemente, Schreider conclui assim o estudo, da questão: - «o problema ariano, cuja origem é linguística, é biològicamente inexistente: ninguém conhece as características raciais da população ariana primitiva».
Na mesma ordem de ideias, a Enciclopédia Italiana, obra oficial do regímen fascista, como o faz notar Lapparent no seu trabalho sobre A Fragilidade Cientifica do Racismo, escreve: «Não existe (erro gravíssimo entre todos) uma raça ariana, mas sòmente uma civilização e uma língua ariana».
E isto a propósito de um pretenso protótipo de raças puras !
Como vemos, o âmbito do emprego do termo «raça» encontra-se na. época actual singularmente diminuído.
O ilustre relator consultou a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e afirma que, pela leitura do vol. XXIV, p. 187, se reconhece admissível dar à palavra «raça» o

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sentido de «etnia». Ora na realidade o quê a Enciclopédia explica é o seguinte: «Não faltam pessoas cultos que alargam o conceito de raça ao ponto de confundirem (reparem VV. Ex.ªs no termo!), de confundirem o significado desta com os de expressões como «povo», «etnia», etc.
Logo, não acha admissível a equivalência das palavras em pessoas cultas. O que acha é confusão. E como a Constituição se dirige a pessoas cultas, não acha admissível tal emprego, mas sim inadmissível.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -O parecer cita a p. 187. Mas se o ilustre relator virasse a folha e continuasse a leitura na página seguinte, verificaria que no mesmo artigo se acrescenta: «Embora não consideremos a raça uma entidade zoológica puramente física e somática destituída de qualquer correspondência com alguns elementos psicossociais, nem por isso deixamos de reconhecer que na prática a sua definição assenta sobretudo (ou quase) em caracteres físicos e somáticos, e entre estes especialmente em caracteres morfológicos e anatómicos».
Na realidade, há uma grande porção de termos que tom sido criados a partir do século XIX pelas necessidades de introduzir a devida precisão nos estudos em que se subdividiu a ciência antropológica nascida nos fins do século XVIII. Assim é em todas as ciências. Às palavras, que ao princípio abrangem uma certa extensão, passam a perdê-la, ganhando em profundidade o que perdem em amplitude. È os estudos que dentro da ciência se especializam dão origem a novos termos que acabam por modificar, por via de redução, o sentido dos primeiros.
Assim é que, a partir do termo «antropologia», nascido no século XIX para designar a ciência que se começava a desenvolver para o estudo das raças, se foram desdobrando os estudos e multiplicando os termos, precisando os diversos aspectos com as seguintes designações: bioantropologia, antropologia psíquica, sociológica, histórica, linguística, cultural e religiosa; etnografia e etnologia (para abranger e separar todos os aspectos de ordem psicológica); folclore, antropogeografia, biotipologia, etnia...
Notemos desde já que «etnologia», sob o ponto de vista etimológico, é o estudo dos «povos», e não das «raças». E que «etnia» é naturalmente o termo incluído na palavra «etnologia» para designar a substância sobre que incide esta ciência. Não se trata de um termo novo, pois de há muito se encontra incluído nas palavras «etnologia» e «etnografia», que afinal desta raiz são derivadas.
É aceitável que dentro da linguagem comum, que não pode acompanhar a linguagem especializada, os termos permaneçam muito tempo dentro das ideias gerais. Mas não será decerto a uma Câmara Corporativa, cuja razão de ser é o constituir-se por motivos de ordem técnica, que competirá repudiar o vocábulo técnico, impedindo que se dê um significado preciso à linguagem técnica jurídica e evitando interpretações e comentários inconvenientes até sob o ponto de vista sentimental, o que pode ser altamente melindroso em assuntos desta transcendência.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:-Explica o parecer que o termo «etnia» tem o defeito de não ser de uso corrente, que é como quem diz em linguagem comum: um termo difícil. Eu não acho. E em breve direi porquê. Nem me parece de bom critério sacrificar a precisão da linguagem, em documentos desta natureza, em homenagem a insuficiência dos leitores de cultura medíocre, poupando-lhes até o trabalho de se elucidarem consultando um dicionário.

O Sr. José Sarmento: - Muito bem!

O Orador: -Citarei a propósito as palavras de Lapparent, que na obra já citada parece antever esta observação da parte de alguém (que não certamente de uma Câmara Corporativa). É justamente ao definir a palavra «raça» que ele considera a critica feita ao emprego de palavras techniques et díficiles. E explica: «Às vezes abusa-se, concedo. Mas há nisso uma vantagem incontestável: termos precisos, bem definidos, permitem saber de que é que se fala. Portanto, se falamos de «raça», precisamos, absolument, de definir o que entendemos por este termo».
Pode ser que para substituir a palavra «raça» se encontre alguma que se julgue preferível. Pareceu-me, porém, esta a mais naturalmente aconselhável, por ter já existência virtual na nossa língua há tanto tempo como a palavra «étnico», como substantivo essencial e preexistente ao adjectivo. Da mesma maneira se encontra nas palavras «etnografia» e «etnologia», como palavra portuguesa derivada de étimos e designadora do objectivo destas ciências.
Por isso a escolhi como a mais adequada e justificável para designar a comunidade humana que, independentemente dos caracteres antropológicos, cada vez mais variáveis, se constituiu numa unidade política e, mais do que isso, nacional, adoptando sentimentos patrióticos irmanizantes, mercê de uma comunhão de interesses e simpatia afectiva. Acresce ainda a circunstância de já ter sido, depois de Regnault, introduzida na literatura cientifica internacional. Se houvesse, porém, de escolher uma palavra mais saborosamente portuguesa, escolheria «grei».
Este cuidado da definição dos termos poderia aliás deixar de se impor de forma tão premente antes de a palavra «raça» ter dado origem a uma nova doutrina de carácter exclusivista, que pretendeu ser ao mesmo tempo filosófica, religiosa, e criadora de uma nova mística anti-cristã.
Ora, podemos afirmar que, bem vistas as coisas, foi justamente a indiferenciação entre «raça» e «etnia» o que deu lugar ao racismo.
Os seus erros foram estudados desde as suas origens e postos a nu, entre tantos outros, por Ernest Seillière, secretário perpétuo da Academia de Ciências Morais e Políticas de França, no seu trabalho Les Origines Philosophiques et Religieuses du Racisme, e por Robert d'Harcourt, professor da Faculdade de Letras de Paris, em Le Racisme dans la Vie, L'Ame de la Jeunesse e La Religion du Sang. Isto para não citar muitos outros trabalhos que se ocuparam do racismo e através dos quais se pode verificar que, no fundo da questão, foi o confundir-se o valor da palavra «etnia» com o da palavra «raça» o que levou às concepções do racismo.
A mística racial principiara com o francês conde de Gobineau, em 1854, e com o inglês Houston Stewart Chamberlain, autor daquela notabilíssima e sedutora obra sobre A Génese do Século XIX. Foram eles quem introduziu as concepções racistas na Alemanha, apesar de toda a prudência de Chamberlain no que respeitava ao valor da antropologia somática, e até da sua descrença no valor das raças puras. De resto, a ideia de raça é nele muito sui generis, pois elas se sucederiam num devir de raças neoformadas no próprio corpo da nação, enquanto as primeiras se abastardariam, dissolvendo-se no caos étnico.
De 1854, data em que surgiu ô racismo de Gobineau, até Hitler e ao Prof. Gunther, designado por «papa do Rassenkund» (ciência das raças), e a Rosenberg, vão

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cerca de noventa anos. Mas foi no último decénio deste período que o ovo de Gobineau foi completamente chocado, e a palavra «raça» se tornou, menos devido a razões de ordem científica do que social, imprópria para ser usada num diploma político, nos termos em que imprevidentemente se encontra empregada no artigo 12.º da nossa Constituição. E essa impropriedade persiste, porque o racismo contínua a influir poderosamente na política internacional.
Nós bem sabemos, aliás, quanto determinada palavra, aplicada o mais correctamente possível sob o ponto de vista cientifico, é por vezes considerada ofensiva por aqueles a quem se aplica, sem outras razões do que as de ordem sentimental. E nesse caso nem as discutimos; Evitamo-las.
O parecer da Câmara Corporativa acha que de minimis non curat proetor. E despicientemente resolve em definitivo o assunto por forma que, se de facto não revela aqueles pruridos de perfeição de que tanto se defende, não deixa de se revestir de certo aspecto sugestivamente anedótico. E diz assim: (Basta porém que as duas expressões («raça» e «etnia») se empreguem com o mesmo sentido, para que não seja imperioso optar pela segunda, como no projecto se pretende».
Lá isso é verdade! E confesso quê me não tinha lembrado ! Lembra-me agora, porém, a história de um bom regionalista de uma das nossas áreas vinícolas, habituado a dessedentar-se e alegrar-se com o bom néctar das vinhas da sua terra, que, encontrando-se por mal dos seus pecados num pais do Norte onde o preço do vinho não estava ao alcance da sua boca e a bebida nacional era a cerveja, de que ele não gostava, se neurastenizava tristemente cora a forçada privança. Abre-se com um amigo que lhe diz: «Homem ! Passa a chamar vinho à cerveja e tens o caso resolvido !» Bem. O homem experimentou. Mas, por mais ,que lhe chamasse vinho, a cerveja amargava-lhe sempre !
Não. A escolha do vocábulo não pertence à categoria das coisas descabidas, deslocadas e meramente estilísticas. No momento que passa e num pais como o nosso, cujo carácter é ser profundamente ecuménico, semelhante palavra, nos termos em que é empregada, implica de facto com a própria noção do pátria.
Esta noção não pode restringir-se, sob o ponto de vista nacional, a um conceito de família cuja estreiteza se limite ao âmbito de uma raça, como se encontra na redacção do artigo 12.º, titulo III, da Constituição.
É que também esta palavra «família» se foi restringindo na sua amplitude. Na antiguidade não se limitava à consanguinidade e afinidade consanguinizante, mas abrangia todos os elementos que compunham uma organização de interesses mútuos, vivendo em comum sob a chefia hereditária de um pater famílias. Era o que também se denominava uma pátria, termo que mantém um significado muito mais próximo.
Ora uma pátria cujo corpo se prolonga actualmente por quatro continentes: Europa, Ásia, África e Oceânia (para não falar no prolongamento consanguíneo do Brasil), compreendendo autóctones de todos estes continentes e em cuja alma participam, dentro e fora da metrópole, portugueses de tão diferentes origens e até religiões, irmanados através de tudo por afinidades profundas de simpatia humana e de civismo, não poderá licitamente usar de termos de tal forma restritivos.
Uma nação desta maneira constituída há-de abranger famílias que, ultrapassando a consanguinidade e as próprias afinidades psicoculturais, situam as suas afinidades naquele campo social e espiritual que participa ao mesmo tempo do humano e do sagrado, abrangendo não um, mas vários grupos antropológicos, que em diversos pontos do Mundo se integram na constituição espiritual de uma pátria comum.
É por isso que mais uma vez me pesa não poder estar de acordo com a Ex.ma Câmara Corporativa quando nega a este projecto motivos de profunda necessidade política. Na verdade, creio que ao empregar a palavra «política» os Ex.mos Autores do parecer pecaram mais uma vez por darem um significado limitadamente metropolitano a este vocábulo, em referência à um pais com tão largas extensões territoriais. E este valor da palavra também não é despiciendo.
É preciso ter bem presente que a sugestão de racismo provocada na actualidade pela palavra «raça», num diploma desta natureza, pode ser tendenciosamente explorada, prestando-se-lhe um sentido que a sua intenção não comporta. E isto porque o racismo não se extinguiu com o desaparecimento do racismo nazi.
Não morreu. Emigrou. Outro surgiu. E vai rondando as parcelas ultramarinas da nossa terra. Fora da etnia portuguesa surge cheio de ódio racial na Conferencia de Bandung, onde o nome de Portugal foi nomeadamente visado, em 1955. E ainda recentemente o vimos em ebulição à volta dos nossos territórios.
Como muito bem o fez notar o ilustre Procurador Prof. Adriano Moreira no seu trabalho sobre Política Ultramarina, que constitui o primeiro volume dos «Estudos de Ciências Políticas e Sociais», o racismo afro-asiático foi quem ditou a palavra de ordem na Conferência de Bandung, em Abril de 1955. E logo cinco meses depois, em face do problema antieuropeu da Argélia, se verificou - transcrevo - que no centro da questão internacional se encontra o problema conhecido pela expressão «a questão racial».
Já o malogrado estadista Prof. Manuel Rodrigues, e primeiro do que ninguém, se referira coetâneamente à Conferência de Bandung, pondo a nu a finalidade racista daquele conclave contra as etnias ocidentais.
Ainda no seu último discurso nos disse o Prof. Oliveira Salazar, com a sua grande sensibilidade de todas as vivências nacionais: «Há uma obra de compreensão e afectividade humanas que através dos tempos e das gerações vai criando uma convivência inter-racial de valor inapreciável, convivência que é a base da resolução dos problemas africanos, e sem ela nenhum terá solução capaz».
Ora é esta convivência assimiladora e fecunda, nascida entre as múltiplas raças que constituem antropològicamente, quer os elementos brancos da metrópole e das províncias ultramarinas, quer os elementos autóctones dos continentes asiáticos e do continente negro, o que constitui a «etnia» e o que nega a propriedade da palavra «raça» no texto da nossa Constituição Política

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: -O mesmo corolário se poderia tirar das palavras do Prof. Paulo Cunha, o ilustre Ministro que tão superiormente conduziu a questão de Goa e que há poucos dias, na Semana do Ultramar, se referiu à solidez da comunidade nacional plurirracial quo através dos tempos pudemos constituir.
Como se coadunam as expressões «inter-racial», do Sr. Presidente do Conselho, ou «plurirracial», do estadista Paulo Cunha, com a letra da Constituição, que apenas conhece uma raça?

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador:-Também o Ex.mo Ministro do Ultramar, numa mensagem expedida em 1 corrente, em Luanda, ré refere «particularmente a essa incomparável obra de associação de raças fraternalmente sólida que temos sabido realizar».

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E volto a perguntar: como se coadunam estas palavras do S. Ex.ª o Presidente do Conselho, do Prof. Paulo Cunha e do Ministro do Ultramar com a insistência em deixar a nossa Constituição a falar numa raça única?
Depois disto, creio que se não poderá negar que a substituição proposta seja de necessidade política, pois é sobretudo política a inconveniência de a manter, dando lugar a que se. façam explorações desleais, que não estão certamente no espirito do artigo 12.º, mas que infelizmente a sua letra pode provocar. Chamar «raça» à «etnia» portuguesa é pormo-nos em contradição com a afirmativa, autenticada por quatro séculos de história nacional, de que Portugal não tem colónias no sentido pervertido com que as novas mentiras convencionais democráticas desprestigiaram a nobreza da palavra. Que as terras de além-mar não são colónias, mas sim províncias ultramarinas, que, em união nacional com a metrópole, formam a pátria única de uma comunidade portuguesa. Não se trata, pois, de uma «raça», mas de uma «etnia» plurirracial.
Resumindo: estamos em face de um dilema: ou a palavra não está bem empregada - e nesse caso deve ser substituída, porque um diploma legislativo de tão magna importância se não pode prestar a confusões ou ilações perigosas - ou tem na verdade o significado que lhe é próprio desde que se inventaram novas palavras para lhe restringir o significado, e nesse caso deve ser repudiada por aqueles motivos de profunda necessidade política de que nos fala o parecer. Política, acrescentarei, não apenas metropolitana, mas o mais extensivamente nacional.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -Tenho, na verdade, muita pena de me ver obrigado a discordar dos tão ilustres signatários do parecer, que muito admiro e prezo; mas em primeiro lugar foram eles, aliás, quem discordou; e em segundo lugar eu não podia deixar de defender as minhas razões num projecto que se acusa de deslocado e de motivado por cansas que se classificaram apressadamente de inoportunas e até, mais ou menos eufemisticamente, de ridículas.
Creio ter demonstrado suficientemente que são, pelo contrário, oportunas e muito sérias. E é por isso que insisto em considerar absolutamente necessário que a palavra «raça» seja substituída no texto do artigo 12.º da Constituição Política do Estado, agora em revisão.
E como é isto o que sobretudo politicamente importa, se a palavra «etnia» não obtiver a concordância a que parece ter jus - tanto por motivos de ordem filológica como pela razão não menos importante de ter já existência no vocabulário internacional dos estudos etnológicos -, reservar-me-ei para, na discussão na especialidade, propor à consideração da Assembleia as palavras «comunidade» ou «grei».
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem !
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Carlos Moreira: - Sr. Presidente: ao subir pela primeira vez, na presente legislatura, a esta tribuna e antes da entrar no debate da proposta e projectos em discussão, quero cumprir um dever que é ao mesmo tempo um desejo vivo de expressão de sentimento: é o de saudar V. Ex.ª e reiteirar-lhe os protestos da alta consideração devida à presidência digna de V. Ex.ª e à sua pessoa.
Tenho para isso uma especial autoridade, que me advém da circunstância de acompanhar nesta Casa, há mais de duos dezenas de anos, a actuação de V. Ex.ª, primeiramente como leader do Governo, depois como presidente da Assembleia Nacional. Permita-me V. Ex.ª que ao respeito pela dignidade com que tem exercido as suas altas e meticulosas funções eu possa juntar a admiração pela distinção e afabilidade do seu trato pessoal.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: julgo que, antes de mais, terão especial cabimento algumas considerações prévias.
Não sou parlamentarista, mas tenho a consciência do valor dê uma autêntica e eficaz representação nacional. Se assim não foro, julgo que não teria o direito dê estar aqui. Parece-me desnecessário dizer o que entendo por parlamentarismo, tão concordes são as opiniões sobre o sentido fundamental que ganhou a palavra: função dominante do Parlamento na vida política e sua influência decisiva na vida do Poder Executivo.
Adiantei, no entanto, a explicação para que não surjam, dentro ou fora desta Casa, interpretações inexactas ou equívocas.
E ainda, para que não haja confusão ou interpretações falsas, relevem-me VV. Ex.ªs que eu faça a afirmação inequívoca de ter vivido uma vida, já relativamente longa, sempre ao serviço do mesmo ideal doutrinário e da mesma ansiedade política. Nunca hesitei ou receei afirmar esse ideal, nascido de um sentimento e firmado nas razões de inteligência a que o meu espírito aderiu; também jamais escondi a ansiedade por uma solução política que julgo a mais propícia à realização de uma reintegração nacional.
E que ao serviço dessa reintegração tem de estar forçosamente uma compreensão de deveres e de direitos de todos os que, compondo a comunidade nacional, põem ao alto os sagrados interesses da Nação.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Só dentro de um regime de autoridade justa e forte, que não o Poder aos acasos e tis improvisações, por isso mesmo defensora e protectora das liberdades, moderadora dos interesses, acalentadora das ansiedades da grei, se contém a possibilidade de um largo entendimento e paz entre os Portugueses.
Isto basta, segundo creio (tanto mais que não é este o momento nem o lugar azado para expor diversas e largas razões), isto basta, dizia eu, para explicar desde já a minha atitude na crítica e conclusões sobre a matéria em discussão.
Tal atitude deriva ainda, necessária e logicamente, de uma posição que vem já dos tempos do 28 de Maio. Desde então que venho servindo a Revolução Nacional e a política que traduziu e estruturou os seus anseios, que eram os. do Exército e da Nação. Anseios em que se continha e se contém a luta contra os fraquezas ou os excessos do Poder, o esmagamento das liberdades, o predomínio da plutocracia, os escândalos dos políticos, os desmandos da adesivagem, erva daninha de todos os tempos - e as conveniências dos que sornamente se aquietaram no mar estagnado e viscoso «de não fazer ondas», males em que se vivia e em que ainda infelizmente se vai vivendo em certos sectores e aspectos da vida nacional.
E aqui fecho as minhas considerações prévias.
Sr. Presidente: vai-se tornando coda vez mais evidente a inviabilidade constitucional do actual regime.

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E que o mal é mais do regime que dos homens se comprova pelo facto de que não pôde evitar-se o malogro constitucional, não obstante as boas intenções daqueles e, sobretudo, o excepcional génio político do seu chefe.

O Sr. Cortes Pinto: -Muito bem!

O Orador: - Hoje em dia já é forte o contraste entre um Estado arrastado na dupla tendência socializante e plutocrática e a mossa cada vez mais seduzida pela ideologia comunista ou de frente popular, por não se lhe terem dado as verdadeiras liberdades pessoais, familiares, municipais e profissionais.
Aliás, vê-se também que essas liberdades não podiam ser facilmente concedidas por um regime sem legitimidade própria e tradicional, por isso mesmo suspicaz e cioso da sua autoridade e incapaz de descentralizar.
Por outro lado, não parece que as dificuldades constitucionais possam ser resolvidas reconquistando a opinião pública péla benemerência das grandes realizações materiais, dos planos de fomento, com o seu muito de falíveis e incapazes por si só de ganhar a alma da Nação, ao mesmo tempo que em muitos casos desviam o Estado da sua função própria.
Tão-pouco essas dificuldades podem ser resolvidas pela proposta governamental de revisão constitucional em discussão.
A adopção do princípio da eleição do Chefe do Estado exclusiva ou parcialmente pelo voto corporativo directo ou indirecto, além de poder ser interpretada como uma implícita confissão de medo a que deram lugar as últimas eleições presidenciais, parece ser contrária à própria natureza da representação corporativa.
A representação orgânica é, por sua natureza, incompetente para deter a soberania; pode. dizer-se que só é competente para designar de uma só vez o órgão exterior a ela, em que reconhece e consente essa competência e essa- detenção da soberania; ...

O Sr. Cortês Pinto: -Muito bem!

O Orador: - ... pode tão-sòmente apelar para a dinastia, como o árbitro dá pluralidade da nação orgânica, autárquica e profissional, ela própria personificação do ofício especializado de reinar; isto não exclui, aliás, quo a representação orgânica, não sendo o poder supremo, fique muito perto dele, na mesma função representativa, como força mais poderosa do que todas as representações parlamentaristas, a fim de prevenir e evitar os desvios graves do Poder.

O Sr. Cortês Pinto: -Muito bem!

O Orador: - Ainda há dias, em artigo no jornal O Debate, Pequito Rebelo, o esclarecido e firme doutrinador do integralismo lusitano, dizia:

Incorre-se no equívoco grave de não ver que o princípio corporativo não é um princípio- de autoridade, mas sim um princípio de liberdade; não é o Estado que deve ser corporativo, mas sim a Nação. Querer dar à representação orgânica ou corporativa a soberania eleitoral será cair em plena utopia, na falta maior de realismo político.

E acrescentava, como solução concreta, citando a frase de Tour du Pin: «democracia no município, aristocracia na província, monarquia na nação».
De facto, só a monarquia, facultadora de um plano de união de todos os portugueses, plano em que assenta â possibilidade de harmonia entre certa autoridade e autênticas liberdades, pode resolver definitivamente as crises constitucionais como a presente; seja qual venha a ser o voto desta Assembleia, julgo, para mim, ser dever dos Deputados que sejam monárquicos proclamar esta verdade. A monarquia, antes de ser um facto, é um princípio. Como princípio será também um facto, desde que proclamado desassombradamente, sem imposições nem arrogâncias, pelos que o vivem e afirmadas as suas consequências em relação aos vários problemas de governo em crítica construtiva e benévola, que pode ter grande influência na consecução do bem comum.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Esta monarquia de um desinteressado magistério moral tem, através da história dos últimos tempos, dado o seu apoio sacrificado a várias tentativas de boas repúblicas, cujos sucessivos malogros são a indicação cada vez mais eloquente no sentido de ir sendo tempo de abandonar ilusões e concluir o único remédio.
O princípio monárquico deve a si mesmo, à Nação e ao Governo a verdade que professa, não sendo de admitir a existência de qualquer veto que proíba à Nação pronunciar-se sobre ele.
Aliás, é sempre lícito ao Presidente da República alterar os prazos previstos no artigo 176.º, referentes à revisão constitucional, desde que o bem público imperiosamente o exija, tanto no que respeita aos poderes constituintes a atribuir à Assembleia Nacional, como à submissão a plebiscito nacional de determinadas alterações, segundo o preceituado no artigo 177.º da Constituição.
O remédio poderá ser doloroso e difícil. O preconceito antimonárquico, sem razões que o justifiquem, continua subsistindo em muitos espíritos; o sucessivo adiamento de medidas tendentes a preparar a conveniente solução do problema constitucional, especialmente o da continuidade, com uma acção gradual e contínua, tem deixado recair muitos espíritos na ideologia pseudo-democrática ou na opinião da indiferença sobre as formas de Governo.
Ainda há poucos dias um ilustre Deputado nesta Assembleia, o Dr. Carlos Lima, jovem ainda e de vigorosa inteligência, afirmava não lhe interessar o problema monarquia ou república. Sintoma bem significativo de como não tem sido olhado a sério o grave problema de doutrinação do èscol.
Já alguém escreveu que a monarquia nunca foi tão necessária e também nunca foi tão difícil. Mas pode ser útil esta dificuldade, que implica um grande esforço colectivo nacional para a sua instauração e, portanto, a adesão e a aclamação geral do povo, sem as quais preferível era continuar como até aqui: um princípio exercendo, fora do Poder e sobre o Poder, a sua autoridade moral.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: -Sr. Presidente: a difícil obra de restauração da secular e gloriosa monarquia portuguesa pode ser ajudada por duas considerações - uma de bom senso, outra de sentimento nacional.
Vai-se tornando evidente estar o Mundo a ser governado monàrquicamente de facto: governo de poder pessoal, de poder de um só l Neste sentido podemos citar os governos de Salazar, de Franco, de De Gaulle, de Eisenhower.
Esta a consideração de bom senso. Referirei agora a de sentimento nacional.
Nunca se deve esquecer que o duplo regicídio de 1908 estabeleceu uma profunda perturbação moral na linha da história portuguesa, a qual só poderá ser reparada

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pelo esforço colectivo da Nação para a reinstauração das instituições depostas. Seria a pior das abominações consentir-se que o sucessão gloriosa das dinastias na história se devesse, para todo o sempre, considerar encerrada pelo martírio de dois reis, negando ao sangue desses mártires que possa ser a fonte de novas glórias de Portugal!

O Sr. José Sarmento: - Muito bem !

O Orador: - Em face do que deixo dito, concluo logicamente estar apontado o caminho para surgir em devido tempo uma proposta de alteração constitucional inspirada nos princípios da filosofia e no desígnio de assegurar um regime de máxima unidade, autoridade e liberdade, combinando as normas da tradição com as exigências do presente.
Impõe-se determinar condições adequadas de preparação para que a Nação muito livremente se pronuncie sobre a reinstauração das suas instituições tradicionais, mediante providências que assegurem o mais largo exercício das liberdades constitucionais, tanto das de natureza pessoal, como das que constituem a genuína representação dos municípios e das profissões organizadas.

Para tal preparação se deve determinar ainda um período suficientemente largo, a fim de que todos os elementos constitutivos da Nação, a opinião pública e em especial a opinião das forças armadas possam mostrar aquela unanimidade de consentimento necessária para nele se fundar um regime de união de todos os portugueses, sem sobressaltos inesperados ou periódicos, e de permanente legalidade, o qual permita encetar o período de responsabilidades patrióticas de emergência assumidas desde o 28 de Maio.
Desde logo há que interpretar a palavra «república» tal como é empregada nos textos constitucionais, isto é, no seu sentido próprio e tradicionalmente português de significar a ordenação do Estado ao bem comum, sem que lhe seja implícito qualquer juízo de condenação da obra secular da monarquia, ou da exclusão da possibilidade de um dia a Nação readoptar esse regime. Aliás, o Sr. Presidente do Conselho, que tem a responsabilidade da chefia da Revolução Nacional, por mais de uma vez tem aludido nos seus discursos ao problema e, com a sua especial e acatada autoridade, já afirmou «serem felizes os povos que não têm de escolher». Julgo, pois, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que estou tratando oportunamente da matéria que interessa a felicidade do povo português.
Sr. Presidente: sei, no entanto, que alguns se agastarão, porque tive a ousadia de defender o regresso, embora sem prazo, às instituições tradicionais.
Quanto a esses, limitar-me-ei a dizer-lhes que me assiste, pelo menos, igual direito ao deles quando defendem o novel regime republicano, atribuindo-lhe carácter de definitivo e considerando-o, em seu entender, como o melhor, se não o único, que convém ao País.
Outros hão-de ter considerado inoportuna, e não sei se impertinente, a sugestão, porque lhes desagrada o diálogo e preferem o adiar sucessivo da realização de uma esperança, se para alguns sequer de uma esperança se trata. Com esses não vale a pena gastar tempo: são o peso morto e a base de decomposição de todos os regimes em que se incrustam, dominados exclusivamente pela ânsia de manutenção dos interesses criados à custa, inclusive, de algumas ilicitudes. São os que, no seu comodismo e quase indiferença, não querem renovação nem mudança.
A muitos outros, porém, merecerá justo apoio a minha atitude, e tanto maior quanto mais perfeito e seguro for o conhecimento de que o rei não pode ser de
alguns, nem sequer dos monárquicos, mas de todos os portugueses, qualquer que seja a sua condição e as suas convicções; quer dizer: rei da Nação. E não só da Nação de hoje, mas dos mortos e dos vindouros, como é da essência de sua alta magistratura: natural, e por isso vivo, protectora, continuada e permanente, a melhor garantia, em suma, da unidade e da segurança, especialmente relevantes (não devemos esquecê-lo) nas terras do ultramar longínquo, mau sujeito às cobiças e à dispersão das distâncias e dos homens.
Sr. Presidente: na proposta que estamos apreciando verifica-se ser única matéria com relevo suficiente para fundamentar uma revisão constitucional o problema do artigo 72.º e aquilo que ao mesmo se encontra directamente ligado. O mais não passa de pequenas correcções aconselhadas ou impostas pelo decurso do tempo.
Sem embargo, pois, de atitude de total ou parcial concordância com estas últimas, alterações, não posso, sem que traísse a minha consciência política, dar o meu voto de aprovação à matéria dos artigos 4.º e 5.º da proposta em discussão.
Não porque entenda ser a forma actual da eleição melhor ou pior do que que aquela que agora se preconiza. Confesso que me não foi necessário aprofundar o assunto, pelo simples motivo de que a eleição para a chefia do Estado é processo de que discordo in limine, seja qual for a sua forma.
Ao fim e fundamentalmente, os processos de designação do Chefe do Estado parece-me poderem reduzir-se a dois: o da hereditariedade dinástica e o da eleição. Assegura o primeiro a continuidade e a evolução natural sem crises graves; e se estas surgem, é bem evidente que a solução é mais fácil; o segundo é passível, como a experiência o demonstra, de crises periódicas ou intermitentes.
Não discutindo o essencial, o primeiro processo defende a unidade nacional; abrindo discussão à volta do essencial, o segundo processo é motivo de preocupações graves para quem detém as responsabilidades do Poder, fonte de dissídios e malquerenças, génese de ódios e desunião.
E atrevo-me a citar aqui a conhecida, mas nunca de mais lembrada, frase de Vieira: «Ó Deus! Ó homens ! que só a vossa união vos há-de conservar e só a vossa desunião vos pode perder».
Se entrasse no caminho de discutir os diversos processos de eleição, sempre aduziria as razões que me levam ti adiantar que, dentro da doutrina dos seus sequazes (e parece-me ser à luz dela que o problema se deve encarar), se apresenta como a mais conforme aos seus princípios a forma de eleição de natureza mais universal. Não foi em nome do princípio de sufrágio universal, de expressão democrática, que estes processos surgiram?
Mas, como já afirmei, o assunto em tais termos é para mim praticamente matéria alheia.
Rejeitarei, pois, Sr. Presidente e Sra. Deputados, pelas razões expostas, os artigos 4.º e 5.º da proposta do Governo em discussão.
Quero, porém, deixar bem vincado que a minha atitude não pode significar nem significa a mais leve sombra no respeito que devo e tributo ao ilustre português que preside, com indiscutível prestígio, aos altos e sagrados destinos da Nação.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Sr. Presidente: passarei agora a uma análise do projecto de lei que tive a honra de subscrever em companhia de dez ilustres colegas nesta Assembleia. Pouco precisarei, no entanto, de dizer, em vista das notáveis intervenções que precederam a minha e que

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trataram do assunto, especialmente as dos Srs. Deputados Aires Martins, Cortês Finto, Abranches de Soveral, Agnelo do Rego, Agostinho Gomes, Franco Falcão, Pinto de Mesquita, Castilho de Noronha, Nunes Fernandes, Paulo Cancella de Abreu e Sócrates da Costa.
Principiarei por afirmar que não deixa .de ser digna de relevo a circunstância de, tratando-se no projecto de lei n.º 23 de assuntos de ordem espiritual e moral, não ter sido convocada nem ouvida a respectiva secção da Câmara Corporativa, pois, como se vê de pp. 726 das Actas da referida Câmara, o parecer foi emitido pela secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e Política e economia ultramarinas), a que foram agregados alguns Dignos Procuradores.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - Esta a primeira estranheza, a que se seguem outras, como terei ocasião de referir no desenvolvimento da discussão.
Não deixa de ser oportuno referir desde já uma nota curiosa de ordem estatística. Sobre a revisão constitucional que se está operando foram apresentados oito projectos de lei e uma proposta de lei. Contém a proposta do Governo vinte e dois artigos e somam os oito projectos de lei trinta e cinco artigos.
Apreciadas as matérias na Câmara Corporativa, esta conclui da seguinte forma:
Quanto à proposta do Governo:

A Câmara Corporativa submete à ponderação da Assembleia Nacional a seguinte redacção para alguns dos artigos da proposta de lei:

Projecto n.º 19, da autoria do Sr. Deputado Carlos Lima:

A Câmara Corporativa é de parecer que devem ser rejeitadas todas as alterações e adicionamentos projectados, com excepção dos respeitantes tis alíneas g) e h) do artigo 93.º da Constituição, referidos no artigo 1.º do projecto.

E propõe uma redacção diferente. Projecto n.º 20, da autoria do Sr. Deputado Duarte do Amaral:

A Câmara Corporativa é de parecer que não é de aprovar o projectado no artigo 4.º e a redacção projectada no artigo 7.º. E de aprovar a redacção projectada no artigo 3.º, o adicionamento projectado no artigo 5.º e a sugestão, feita no artigo 6.º

Projecto n.º 21, da autoria do Sr. Deputado Homem de Melo:

A Câmara Corporativa é de parecer que só merece aprovação a inovação sugerida na alínea 1) do artigo 3.º, só a primeira parte da redacção proposta no artigo 4.º o o adicionamento ao artigo 176.º da Constituição, mus com a redacção indicada pela Câmara Corporativa. Tudo o mais é abrangido pelas fórmulas «não deve merecer aprovação» e «deve ser rejeitado».

Projecto n.º 22, da autoria do Sr. Deputado Afonso Pinto:

A Câmara Corporativa pronuncia-se pela não aprovação de qualquer dos seus preceitos.

Projecto n.º 23, da minha autoria e de outros Srs. Deputados:

A Câmara Corporativa não vê razões para recomendar a sua aprovação.

Projecto n.º 24, da autoria do Sr. Deputado Duarte Silva:

A Câmara Corporativa não adere ao projecto.

Projecto n.º 25, da autoria do Sr. Deputado Américo Cortês Pinto e outros Srs. Deputados:

A Câmara Corporativa não recomenda a aprovação do projecto.

Projecto n.º 26, da autoria do Sr. Deputado Augusto Cerqueira Gomes:

A Câmara Corporativa não recomenda a aprovação do projecto.

Depois desta fastidiosa, mas conveniente, enumeração que conclusões tirar?
Que assistem à proposta do Governo todas as razões atendíveis; que não têm razão, de uma maneira geral, os vinte Deputados que subscreveram os oito projectos de lei.
Peço a VV. Ex.ªs que atentem ainda no seguinte: na proposta do Governo, pode dizer-se, como atrás já referi, que de essencial apenas há a considerar a matéria que toca ao artigo 72.º; nos projectos de lei, de uma maneira geral, há reforma ou inovação de matérias que a evolução aconselhou ser de justiça ponderar e. introduzir no texto constitucional.
O parecer mal tocou nos vinte e dois artigos da proposta do Governo; ao contrário, nada ou quase nada deixou de pé relativamente, aos trinta e cinco artigos que os oito projectos de lei perfazem. Deve haver uma explicação ou diversas implicações, para tal atitude. Partindo do princípio de que a Câmara Corporativa agiu, como não podia deixar de ser, em plena liberdade de apreciação e crítica, somos levados a tirar uma de duas conclusões:

a) Ou só o Governo teve o bom senso e a medida necessária das alterações que se impunha fazer;
b) Ou a Câmara Corporativa está possuída, salvo o devido respeito, de um espírito de estatismo, nada de harmonia com um regime político ao qual os seus principais responsáveis atribuem a feição fundamental de regime em evolução, distante ainda de atingir a sua estruturação definitiva.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - Ainda há dias, numa jornada triunfal ao Porto, o ilustre Ministro ida Presidência, Pedro Teotónio Pereira, afirmou, com a sua qualificada autoridade de estadista, e de doutrinador, o seguinte: «Procuraremos aperfeiçoar e completar as nossas instituições».
Salvo o devido respeito por melhor opinião, não vejo, pois, Sr. Presidente e Srs. Deputados, explicação para uma tão estranhável posição de diferença em relação à proposta do Governo e aos referidos projectos de lei.
O caso presta-se, na realidade, a surpresa, a interrogações e a dúvidas.
Sr. Presidente: diz a Câmara Corporativa, a pp. 726 e seguintes das suas Actas sob o n.º 58, de 12 de Maio de 1959, que «o projecto de lei n.º 23, apresentado

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por um grupo de onze Srs. Deputados, caracteriza-se por pretender reforçar ou vincar um certo número de afirmações programáticas daquela parte da Constituição referente à metrópole e ao ultramar a que a doutrina costuma hoje chamar constituição social».
Por agora paremos aqui e analisemos:
Em primeiro lugar, os onze Deputados que subscreveram o projecto, e a cujo número me honro de pertencer, não formam nem pretendem formar um grupo.
Em segundo lugar, vê-se, com a própria concordância da Câmara, Corporativa, que, embora alguns já tenham muitos anos no calendário da vida, podem considerar-se novos quanto à actualização da sua doutrina e do entendimento das necessidades...

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - ... da hora presente, pois subscreveram um projecto de lei tendente a modificar a Constituição com um sentido social.
E porque não?
Assim o reconhece o parecer. Pois não é verdade que, embora às vezes com sentido demasiadamente generalizante, estamos na chamada época do social?
Se assim é, e creio não haver lugar a dúvidas, em nome de que razões o parecer repudia os meios propostos no projecto em discussão?

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: -Muito bem !

O Orador: - Ou não concorda a Câmara Corporativa em que se impõe irremissivelmente uma larga e profunda acção de carácter social?
Onde está, por exemplo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, a observância fiel da doutrina das encíclicas na acção prática de tantos sectores?
Não vou entrar agora na apreciação de cada uma das matérias que constituem o objecto do projecto n.º 23.
Durante a discussão na especialidade explicarei à Assembleia a razão de ser de cada uma das disposições propostas à sua consideração. Não devo, porém, deixar e fazer referência à conclusão com que a Câmara Corporativa fechou o seu parecer sobre o projecto, conclusão assim concebida: «Não vê razões para recomendar a sua aprovação». Ora não ver não significa propriamente não haver.
(Risos).
Procurarei demonstrar que há razões, independentemente de o parecer as ver ou não ver. Por agora limitar-me-ei a considerações muito gerais, visto que nos encontramos em discussão na generalidade. Apresentarei na especialidade as razões atinentes a cada uma das disposições contidas no projecto de lei, se tanto se tornar necessário. Do seu contexto vê-se que o projecto tem, à parte uma melhor expressão de algumas matérias, fins de ordem espiritual, moral e social.
Pretende-se fundamentalmente:
A invocação de Deus;
A defesa eficiente das liberdades, estabelecendo-se sanção expressa para os responsáveis pela inobservância do respectivo preceito;
A atribuição, em lei, à imprensa, constituída como é por empresas e profissionais do jornalismo, de direitos e deveres, por forma a salvaguardar a independência e a dignidade de umas e outros, na medida em que a imprensa exerce função de carácter público;

O Sr: Cortês Pinto: -Muito bem!

O Orador: -O reforço da doutrina (o que não deve estranhar-se numa Constituição, como a nossa é, de tipo doutrinário) respeitante às acumulações de empregos, à justa remuneração do trabalho, à adopção de medidas destinarias a impedir que a técnica, os serviços e o crédito se desviem das finalidades sociais e humanas para cuja satisfação existem;

O Sr. Cortês Pinto:-Muito bem!

O Orador: - A obrigatoriedade inadiável de serem tomadas providências necessárias e eficientes para impedir os lucros exagerados do capital, restituindo este ao seu sentido humano e cristão.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem !

O Orador: - Uma mais clara afirmação de íntima solidariedade entre o continente e as províncias portuguesas do ultramar.
Limito-me a perguntar, neste momento, se há especiosismos ou logicismos (à falta de razões lógicas) capazes de negar importância ao que acima fica enunciado.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: todo o poder vem de Deus - omnis potestas a Deo, diz S. Paulo. Porque somos representantes da Nação, ao revermos a sua lei fundamental, definidora da soberania e dos seus órgãos, é perfeitamente justo que no seu pórtico se invoque Deus, fonte do poder, da ordem e da paz.

Vozes: - Muito- bem!

O Orador: - O assunto, creio eu, não precisa de qualquer justificação. Está na lógica do nosso passado e da doutrina informadora do Estado Novo, que se proclama fiel às nossas tradições.
Crer em Deus e afirmar o Seu nome é sentimento arreigado na alma do nosso povo.
Vive a humanidade, como muito bem anota, no seu magnífico editorial de 7 do corrente mês, o jornal Novidades, uma hora decisiva. Pela primeira vez na história aparece já a informar os destinos de algumas nações um sistema totalitário que exclui e combate Deus.
E, pois, bem oportuna a invocação que se propõe, seja sob a forma de preâmbulo, seja em artigo novo ou em modificação de disposição já existente.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Quanto às outras modificações do projecto que estou apreciando, diz-se no parecer da Câmara Corporativa que umas são inovações, outras simples reafirmações.
Pressupõe-se, assim, que em coisa alguma se acrescenta a sua eficiência, e por isso se não justificam as aludidas alterações contidas no projecto.
Mas então ouso perguntar: se as actuais disposições são suficientes, porque não têm sido verdadeiramente eficientes?
Ou não serão evidentes e fundamentadas algumas queixas sobre desvios, irregularidades, faltas de equidade?
Ou tão cegos estarão os que não querem ver que o País está contra os desmandos plutocráticos, as acumulações imorais, certos desvios cio capital do seu predominante fim social e humano?
Ao falar no País não me refira ao país doente; não aceito intriga ; mas abro os olhos às realidades e apresto os ouvidos aos queixumes justos e às ansiedades e preocupações, que não podem deixar de ser sérias quando são isentas e traduzem a justa interrogação sobre o dia de amanhã.
É necessário que nos aprestemos para as batalhas do futuro, tanto mais duvidosas no seu desfecho quanto

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menos aptas são as instituições políticas e menos forte a coesão nacional.
Sr. Presidente: pretendo agora anais directamente tratar, em sentido genérico, da matéria contida nos artigos 2.º, 3.º e 4.º do citado projecto de lei n.º 23.
Quanto ao § 2.º do artigo 8.º considera a Contara Corporativa não haver necessidade da alteração de redacção, visto ser o texto actual mais lógico s mais completo que o proposto no projecto e não se compreender muito bem a inovação a que alude a última parte do texto em referência.
Vamos por partes.
Em primeiro lugar, não se trata, quanto à primeira parte da disposição, de uma simples alteração de redacção, coroo pretende o parecer.
O actual contexto da disposição em causa restringe o dever de impedir, preventiva ou repressivamente, a perversão da opinião pública ao «exercício da liberdade de expressão do pensamento», quando diz «quanto à primeira».
Segundo o contexto proposto no projecto de lei, tendo em mente a forma mais importante de expressão do pensamento - a imprensa e o livro -, quis-se criar uma limitação ao uso, pelo menos, do direito de exercer o impedimento preventivo, e significou-se o projecto com o acrescentamento da expressão apor fornia a tão-sòmente».
Ninguém dirá, mesmo os que não estejam no conhecimento doutrinário e na aplicação prática das leis, que estas palavras não têm um mil e efectivo sentido, pois, bem ao contrário, exprimem claramente uma limitação ao exercício, quantas vezes excessivo e injusto, como se tem visto, do referido poder de impedimento preventivo.
E agora é lícito perguntar-se: tem razão a Câmara Corporativa quando atribui à alteração de que venho tratando simples natureza de redacção?
Passemos à segunda parte da disposição em referencia.
Achou a Câmara Corporativa que não se compreende muito bem a inovação. Por mim basta, que se compreenda bem, mesmo sem o superlativo de clareza que pretende a Câmara Corporativa.
E, realmente, parece que foi bem compreendido o sentido de inovação.
O jornal O Século de 4 do corrente mês, no seu editorial, a que outros órgãos da imprensa prestaram concordância, traduz em termos claros essa compreensão quando escreve, referindo-se precisamente a esta matéria: «a segunda parte tem evidente interesse, pois a inobservância a que se alude implica a responsabilidade do Governo ou da Assembleia Nacional quando editem leis especiais que não tenham em conta o exercício da liberdade de expressão de pensamento, ensino, reunião e associação».
Nada é preciso acrescentar para se ver, até exemplificadamente, como foi compreendida a inovação em causa.
Passo, Sr. Presidente, a analisar o artigo 3.º do projecto de lei. Comparando o contexto actual do artigo 23.º da Constituição com o que se propõe no projecto, resulta logo com evidência uma diferença fundamental.
Tal como está, define-se Apenas o carácter público da função exercida pela imprensa, e, em consequência desse carácter, a obrigatoriedade que sobre a mesma imprensa impende de, em assunto de interesse nacional, inserir notas oficiosas que lhe sejam enviadas pelo Governo ; no contexto que para o mesmo artigo se propõe no projecto acrescenta-se que «lei especial definirá os direitos e deveres, quer das empresas, quer dos profissionais do jornalismo, por forma a salvaguardar a independência e dignidade de umas e outros».
Diz a Câmara Corporativa que a directriz proposta é, para uma lei constitucional, imprudente.
Vejamos se à gravidade da afirmação correspondem razões graves.
As razões da imprudência são, segundo a opinião expressa no parecer, a as interpretações inadmissíveis a que poderia conduzir, em contradição com o pensamento geral do actual título vi da primeira parte da Constituição» (sic).
Fala-se, como se vê, em «interpretações inadmissíveis», mas não se diz quais são. Em súmula, apenas se menciona uma contradição (não sei se possível se necessária) com o pensamento do actual título VI.
Ora o pensamento geral do citado título, com dois artigos, apenas tem a simples rubrica «Da opinião pública». Um dos artigos é precisamente o que se discute. Neste, o pensamento geral e o de que «a imprensa» exerce uma função de carácter público.
No artigo precedente - o 22.º- o pensamento geral é o de que «a opinião pública é elemento fundamental da política e administração do País».
Na rubrica creio que, mesmo como muito boa vontade, não se pode descobrir um pensamento geral, pelo menos definido.
Sendo assim, para existir a tal contradição, será preciso demonstrar (visto não bastar afirmar) que pretender ver definidos em lei os direitos e deveres, quer das empresas, quer dos profissionais do jornalismo, por forma a salvaguardar a independência e dignidade de umas e outros, vai contra o facto de a imprensa exercer uma função de carácter público. Parece-nos até que é precisamente a natureza pública da sua função que aconselha a que se salvaguarde a independência e a dignidade dos elementos que a compõem - empresas e profissionais do jornalismo.
Por aqui não vejo caminho de contradição.
Também me não parece que a circunstância de a opinião pública ser elemento fundamental da política e administração do País se oponha à referida salvaguarda
da independência e da dignidade das empresas e dos profissionais do jornalismo.
E até a consequência que no citado artigo 22.º se tira do facto de a opinião pública ser elemento fundamental da política e administração do País, no sentido de incumbir ao Estado defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum, tudo isso conduz a ser considerado como mais uma razão para definir direitos e deveres e salvaguardar a independência e a dignidade da imprensa.
Aliás, julgo ser essa a opinião generalizada de todos os que dedicam o seu esforço a uma vida árdua e do mais alto relevo nas sociedades contemporâneas, como ó o jornalismo.

O Sr. Cortês Pinto: -Muito bem!

O Orador: - Permita-me, Sr. Presidente, que comprove objectivamente com depoimento categorizado algumas das considerações que acabo de produzir.
Contém-se esse depoimento nas seguintes palavras do editorial que atrás citei: a nenhum jornalista ou empresário de imprensa quer outro direito que não seja o de exercer livremente a sua missão, embora sujeito às correspondentes responsabilidades. A lei deve fixar com precisão as formas de exercício desse direito e as comunicações a que se sujeita quem por qualquer modo falseie a verdade ou agrave injustamente qualquer cidadão ou entidade colectiva».
Onde está, Sr. Presidente e Srs. Deputados, a imprudência de directriz com que termina o texto proposto para o artigo 23.º?

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Onde a contradição com o pensamento geral do título da Constituição em que se integra?
Em qua é que a definição de direitos e deveres, de forma a salvaguardar a independência e dignidade de imprensa, na medida em que esta exerce função de carácter público, como presentemente se define já, pode ser «imprudente», como pretende o parecer da Câmara?
Deixo a resposta à consciência de VV. Ex.ªs
Sr. Presidente: vou agora entrar na apreciação genérica da matéria do artigo 4.º do projecto de lei que estou discutindo, em que se propõe a substituição do corpo do actual artigo 27.º da Constituição.
A respeito do assunto diz o parecer:

1.º Que o projecto de lei «sugere apenas uma modificação de redacção, nina alteração de simples forma»;
2.º Que, além desta modificação puramente formal, o projecto consigna uma alteração de fundo.

Entende a Câmara Corporativa que é puramente formal a diferença entre estas duas expressões: «Não é permitido acumular, salvo aias condições previstas na lei» e «Salvo em casos excepcionais a prever em lei, é expressamente proibido acumular».
Pondo de parte a diferença de força de expressão entre «não é permitido» e «é expressamente proibido», a ninguém pode oferecer dúvidas, penso eu, que a expressão do projecto «salvo em casos excepcionais a prever em lei» não é apenas formalmente diferente da expressão actual «salvo nas condições previstas na lei». Nesta não se aponta qualquer direcção ou medida na enumeração das condições a prever em lei; bem ao contrário, na expressão do projecto impõe-se um limite fundamental à enumeração de tais condições - «salvo em casos excepcionais».
Quer dizer: ao a título excepcional é que a lei deve prever a possibilidade de acumulação.
Julgo ter respondido com argumentos à afirmação despida de quaisquer razões produzida no parecer da Câmara Corporativa.
Este processo de pura afirmação está muito na corrente dos tempos. Pode ser cómodo, mus não convence.
Quanto à segunda parte da disposição que se discute, usou-se já de processo diferente. Apontaram-se no parecer algumas razões, umas de ordem geral, outras de natureza específica.
Principia o parecer em análise por reconhecer que o especifico alcance prático do projecto neste assunto, vem u ser o de considerar inacumuláveis os empregos das empresas que exploram serviços de interesse público ou destas com os empregos do Estado, das autarquias locais, dos organismos corporativos e de coordenação económica e das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa. E, efectivamente, assim mesmo, em vista de o artigo 4.º do projecto apontar para a enumeração do artigo 25.º da Constituição.
Acrescenta o parecer que «este ponto tem o seu melindre» e entende, por isso, que deve ser ponderado.
E pondera-o, efectivamente, com a apresentação de algumas razões.
Porque estamos na generalidade, limitar-me-ei a expor o sentido geral dessas razões.
Ora esse sentido é o de que não há razão para, a propósito de acumulação com empregos públicos, distinguir entre empresas de interesse público e empresas privadas em geral. Quanto a estas, ao interesse privado opõe-se, em princípio, o interesse do serviço em que o agente está empregado.
E continua o parecer:
Por outro lado, do ponto de vista social, pode dizer-se que é necessário pôr entraves sérios a que alguns já colocados absorvam as ocupações disponíveis, em prejuízo dos valores que não encontram o emprego necessário.
E seguindo esta ordem de ideias, o parecer põe em relevo a questão de saber se é admissível que os funcionários beneficiados com a acumulação acabem por receber mais do que os Ministros.
Mas, ou eu não entendo, ou são essas precisamente as razões essenciais que contra-indicam, em regra, os acumulações.
Pretende a Câmara Corporativa que isso aconteça só com as empresas privadas?
E porque não com os entidades enumerados no artigo 25.º?
É claro que o alargamento da disposição às empresas privadas não está em causa, nem as regras a aplicar-lhe, em boa doutrina, por sua natureza e função, podem ter o mesmo rigor das que devem vigorar quanto os empresas que, tanto na sua constituição como nos seus fins, exploram serviços de interesse público.
É que, acima de tudo, e servindo-me, com a devida, vénia, da própria expressão contida no parecer da Câmara Corporativa, entendo que é necessário pôr entraves sérios a que alguns já colocados absorvam as ocupações disponíveis, em prejuízo dos valores que não encontram o emprego necessário, ou que, de qualquer modo, não gozam das complacências das empresas que exploram serviço de interesse público ou do próprio Governo.
São palavras do parecer.
Que (diz ainda o parecer) uma política demasiado rígida neste domínio seria susceptível de levar muitos dos melhores e mais categorizados funcionários a preferirem os empregos privados aos seus cargos oficiais, abandonando estos, com todos os prejuízos que daí adviriam para os serviços públicos, que não poderá facilmente prescindir da experiência e do saber dos seus melhores servidores.
Mas é evidente, digo eu, que estas considerações do parecer apenas significam que as remunerações ao pessoal estão, quanto ao Estado e em comparação com essas actividades extra-estaduais, em grau inferior.
O problema, pois, não é de competências nem do acumulações, mas de remuneração justa do trabalho; resolvê-lo por meio de acumulações, privando outros das possibilidades de emprego, não é razoável, nem moral nem socialmente.
Conclui o parecer por considerar útil uma regulamentação do assunto que ponha limites à liberdade do Governo e que procure assegurar sempre e só a primazia do interesse público.
Pois é precisamente por isso que o projecto de lei n.º 23 propõe a substituição do artigo 27.º de forma a ficar bem expresso:

1.º Quais as entidades em que não deve ser permitida acumulação de empregos com os do Estado ou delas entre si;
2.º A permissão de acumulações em casos excepcionais, a prever, porém, em lei, de maneira a furtar à decisão do respectivo Ministro, por simples portaria ou despacho, a autorização para acumular.

Em face do que por aí se vê, alguém terá dúvidas sobre a conveniência e a justiça de que tal doutrina seja consignada constitucionalmente?
Sr. Presidente: vou terminar.
Já em 1951, aquando da anterior revisão constitucional, tive ocasião de afirmar na discussão das propostas de alteração do artigo 72.º da Constituição que, «à parte a criação de mais algumas condições tendentes a evitar o chamado golpe de Estado constitucional, em nada se vê que seja facilitada a natural e indispensável evo-

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lução do Estado até atingir na sua cúpula a independência e estabilidade institucionais necessárias».
E, continuando, tive oportunidade de citar a opinião do grande e saudoso mestre ide Direito Constitucional que foi o Prof. Doutor Domingos Fezas Vital, opinião expressa nus seguintes palavras:

Os princípios informadores do Estado Novo - unidade, independência e continuidade do Poder, corporacionismo, antipartidismo, etc. - são princípios que, em República, nunca se verão plenamente institucionalizados, mas, quando muito, substituídos no domínio dos factos por uma realidade de índole mais ou menos, pessoal, transitória por natureza.

Julgo bem, Sr. Presidente, que as considerações transcritas têm plena actualidade.
António Sardinha, o infatigável obreiro de reintegração histórica e operoso doutrinador, vão passados trinta e cinco anos, em notável prefacio à nova publicação das Memórias para a História e Teoria das Cortes Gerais, esse precioso trabalho do 2.º visconde de Santarém, escreveu palavras que traduzem um verdadeiro sentido de lição da história e com as quais fecharei estas minhas considerações. Escreveu António Sardinha:

Como homens de tradição, somos assim renovadores, e, como tal, revolucionários.

E mais adiante:

Não pensamos numa ressurreição arqueológica - trabalho de arquitecto alheio às modificações e aos acréscimos do tempo - do que foram os três Estados do Reino. Mas estabelecendo como fundamento do Estado histórico e racional a representação das pessoas morais e dos interesses permanentes, se a instituição se não reproduz nos seus lineamentos primitivos, reproduzir-se-á, na sua essência, no conteúdo vital que a animou.

Palavras de ontem que têm em si o profundo sentido de aspiração actual.
Elas constituem, julgo eu, a verdadeiro linha de rumo. Aquela mesma linha de rumo que se contém marcada na proclamação do heróico marechal Gomes da Costa, na arrancada de 28 de Maio, nos seguintes termos:

A Nação quer um Governo forte, que tenha por missão salvar a Pátria e concentre em si todos os poderes, para na hora própria os restituir a uma verdadeira representação nacional, ciosa de todas as liberdades, representação que não será de quadrilhas políticas, mas sim dos interesses reais, vivos e permanentes de Portugal.

Prossigamos, pois, no bom caminho que a .Revolução Nacional abriu e, sob a protecção de Deus, que desejamos se invoque na lei fundamental, chegaremos ao porto de salvamento. Quer dizer: alcançaremos uma consciente e desejada unidade e um firme sentimento de segurança, condições essenciais de um ambiente de justiça e de um trabalho fecundo na alegria e na paz!

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - Ouçamos a voa da Nação, que em tantos séculos de história selou e viveu a íntima aliança entre o seu chefe natural e a grei - aliança que foi a poderosa alavanca da nossa obra e da nossa grandeza! Acatemos, uns e outros, a sua vontade, que é a melhor expressão, quando bem manifestada e bem ouvida, da consecução e defesa do bem comum.
Seja, Sr. Presidente e Srs. Deputados, sob esse signo que se realizem, efectivamente, em espírito de larga Compreensão e deliberada aceitação, os anseios de todos os portugueses de boa vontade.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem !
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Augusto Cerqueira Gomes: - Sr. Presidente: são muitos e de vária índole, e ainda de mais vário alcance, os assuntos abrangidos na proposta e projectos de alteração do estatuto constitucional apresentados à Câmara e, nesta hora, aqui, em apreciação de conjunto.
E muitos são também os pareceres, os votos, as exortações que este grave debate tem suscitado no seio da Nação e onde não raro transparece, de par com uma viva consciência política, o amoroso zelo do bem público e a inquietação de um ardente portuguesismo ante a gravidade dos tempos que atravessamos.
De tudo politicamente analisado e ponderado à luz das realidades dois problemas, dois grandes desígnios avultam, a meu parecer, com destacado relevo, pela sua importância, e tanto no plano ideológico como na ordem prática. No plano ideológico, porque se tem em vista conciliar certos aspectos da estrutura constitucional com princípios basilares da nossa doutrina política, nesta hora- alta de renovação ainda em desacordo flagrante, para, não dizerem escandalosa contradição. Na ordem prática, porque à solução dessas questões está decisivamente vinculado o destino do País e do regime. De um lado: a autenticidade, a normalidade, a eficácia, a evolução natural do regime e -digamos tudo - a sua continuidade e sobrevivência. Do outro: a ordem e a paz, a unidade e a concórdia nacional, a dignidade da nossa vida pública, a prosperidade e o futuro do País. Coisas, com a maior evidência, paralelas e indissociáveis, porque, pela força das realidades, interdependentes e solidárias.
Um desses problemas é o da mais estreita convivência e colaboração entre o Governo e a Assembleia Nacional, ou seja entre o Poder Público e a representação do País, aspecto do problema muito mais vasto, problema vital e decisivo - da mais íntima comunicação e mais vivo diálogo entre governantes e governados, entre o Estado e a Nação.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - O outro problema é o da adopção de um processo de sufrágio eleitoral que, por um lado, assegure a expressão tão fiel quanto possível dos sentimentos e dos interesses vivos, autênticos e duradouros da Nação e, por outro, não lance o País na inquietação e na desordem, na discórdia e na guerra civil; não degrade a nossa vida pública convertendo-a, antes do mais, em baixo jogo de lutas pelo Poder; não incline o Estado à corrupção e a Nação à indisciplina; não seja fonte malsã de disputas e de paixões, de ódios e divisão entre irmãos.
Verdadeiramente há, ainda, outro problema e de grande interesse político, a sobressair de entre as sugestões apresentadas nos projectos de revisão aqui trazidos à Câmara. E é o da tendência a dar maior relevo às funções da Assembleia Nacional, alterando, de algum modo, na letra e, mais ainda, no espírito a posição hierárquica dos órgãos da soberania. É um tema que, a

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seu tempo, também, há-de ser considerado e com toda a atenção que julgo merecer.
Direi algumas palavras sobre a primeira das questões enunciadas.
Numa recente intervenção parlamentar o Sr. Deputado Dr. Antão Santos da Cunha proferiu aqui uma sentença que, sem demasia, reputo verdadeiramente lapidar: «Não basta governar paca o País; é preciso governar com ele».
É um conceito do mais profundo sentido político, válido para todos os tempos e todos os lugares; mas válido, sobretudo, para as realidades do nosso mundo - a psicologia do homem, a mentalidade política, o clima social do nosso tempo.
É quase a fórmula que de lia muito adoptei e proclamo como expressão do que penso ser fundamento e espírito do bom governo: governo para o povo, não pelo povo, mas com o povo.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: -Povo, esta bem de ver, tomado aqui, não no sentido de aglomerado amorfo de indivíduos autónomos, das concepções individualistas e ainda menos de classe e fracção social, mas no de sociedade organicamente considerada na sua constituição natural e histórica.
Governo para o povo, certamente, porque para benefício dos povos existem os governos, porque é essa a missão específica do poder político - o cuidado e a consecução do bem comum, entendido como bem de todos e de cada um, bem em que todos cooperam e de que todos participam. E é precisamente pelos serviços prestados à comunidade, é pela sua aptidão para realizar o bem comum que se há-de medir e julgar o valor dos regimes. O seu valor político, como instrumento dos interesses da cidade, e, em plano estreitamente- relacionado, o seu valor moral, diga-se a palavra própria - a sua legitimidade.
Governo para o povo, portanto. Mas não pelo povo, que é, em princípio, absurdo e redunda, na prática, em sofisma e mistificação.
Absurdo porque governar implica competência, e o povo - a grande maioria do povo - é, sem evasiva possível, politicamente incompetente.
Absurdo porque multidão a um tempo soberana e súbdita, governante e governada, representa grave contradição. Governo e povo certificam a razão e a história, são conceitos e realidades distintas, e esta dualidade, ou - se quiserem - esta polaridade, está inscrita na natureza dós coisas.
Na prática, o que se tem visto com nome e, por vezes, a aparência de governo do povo é, no fundo, uma impostura, ou, quando menos, um equívoco. Porque, no lugar do povo e em seu nome, governam outras realidades - certas oligarquias, certas engrenagens, certos interesses, certos poderes, que dispõem de artes e possibilidades para urdirem ou captarem a opinião pública e manobrarem as grandes massas, suscitando ou atraindo ambições, anseios, conveniências, sentimentos, paixões e até ideias e boas intenções.
Não, o governo do povo pelo povo não pode ser uma lei natural, porque a natureza não pode prescrever o que por natureza é antinómico e irrealizável.
Não pode constituir um direito o que é inconsequente e impraticável. E se, por outro lado, o governo é para o homem necessidade insuperável, porque o homem não pode viver sem a sociedade e a sociedade é impossível sem governo, lia que concluir, como tantos, que o povo o que tem -isso sim- é necessidade de ser governado.
Necessidade vital, insanável, decorrente da sua natureza, da própria essência humana, e, portanto, um direito.
Direito mais ainda que n ser governado. Inequivocamente: direito a ser bem governado.
Direito do povo, dever para os grandes, a quem incumbe, logicamente, esse encargo tutelar.
E então, se temos realmente respeito pelo povo, não ludibriemos o povo, iludindo-o com as roupagens de uma falsa realeza, para, em seu nome, e não raro com desprezo dos seus interesses profundos, governarem, irresponsavelmente, uns tantos maires du palais.
E, se temos verdadeiramente amor ao povo, em vez da ilusória soberania do povo, proclamemos como lema de governo a soberania, do bem comum e do interesse nacional; porque assim é que efectivamente serviremos o povo nos seus interesses autênticos. E servir, bem servir, é ainda a melhor maneira de amar.
Governo para o povo, não pelo povo, mas sim com o povo.
Governo com o povo, que tem sentido bem diferente do governo pelo povo das falácias da democracia. Governar com o povo não é reduzir o Poder a mero instrumento do arbítrio caprichoso das massas - negação de toda a ideia, de governo, porque o governo implica necessariamente uma autoridade que comanda e uma multidão que obedece.
Não é deixar a sorte do Estado, guardião e promotor supremo do bem público, à mercê das paixões, da incompetência e da versatilidade do maior número. Governar com o povo significa efectivamente governar, mandar com autoridade e independência verdadeiramente soberanas. Mas significa também que o Poder que governa há-de estar em contacto amplo e permanente com o povo governado. Que entre dirigentes e dirigidos deverá manter-se convívio franco e desassombrado, diálogo sincero e construtivo.
E assim, por um lado, a Nação exprima livremente as suas opiniões, os seus sentimentos, os seus anseios, os seus desabafos e até -porque não?- as suas críticas e os seus ralhos. E, do outro, o Poder acolha paternalmente a sua voz para lhe dar satisfação, quando possível e quando não, para a esclarecer, certificando-a da inviabilidade ou inconveniência das suas pretensões, da injustiça ou inexactidão das suas críticas. E mais: que o Poder, atento, aos movimentos e correntes da opinião pública, intervenha oportunamente a repor a verdade, quando gravemente alterada por obra da ignorância ou indústria dos agentes de perturbação.
Que o País seja largamente informado da obra que se faz e da política que se desenvolve. Da obra material e espiritual - das suas realizações e do seu alcance. Da política interna s internacional - das suas realizações, dos seus métodos, dos seus objectivos.
Que se prepare o espírito da Nação para as grandes tarefas colectivas e se lhe incuta a noção, o amor e o zelo do bem público e o dever de cooperar activamente coxa os governantes.
Que se não ocultem mesmo as dificuldades que se atravessam, os perigos que se correm, as más perspectivas que se antolham e a serenidade, a constância, a firmeza de ânimo, os sacrifícios que impõem ou podem vir a impor a todos.
Quando o governo, como é no caso português, tem tão alto sentido da sua missão, tão segura doutrina a nortear-lhe o caminho, tão adequados métodos a servir-lhe os propósitos, tão grandiosa obra realizada e tão vastas perspectivas de futuro, esta íntima e rasgada comunicação com o povo valoriza a sua posição e alarga e fecunda em grandes proporções às suas possibilidades de acção e os benefícios e alcance do seu labor.

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Assim se evita que nasçam e medrem ressentimentos e amuos na alma do povo, que se corrompa e extravie a opinião pública.
Assim se dará ao povo a noção verdadeira das grandes realizações que documentam uma era histórica altamente criadora e da elevação e sentido nacional e humano da política dos governantes.
Assim se educa, dignifica e tempera virilmente a alma do povo, se lhe dá o sentimento da sua participação no destino colectivo e a consciência das suas responsabilidades.
E assim se conquista o povo, o seu aplauso e a sua cooperação e se associa o povo ao esforço, à obra e ao desígnio dos governantes.
Assim se assegura a estabilidade do Poder, se aumenta o seu rendimento e garantia da sua projecção no espaço e no tempo.
Portanto - e miais uma vez - governo para o povo e, se não pelo povo, abertamente com o povo.
Tenho para mim que a primeira causa da crise interna que há pouco atravessámos e que se traduziu, nalguns sectores do País, em incompreensão e menosprezo do esforço realizado, da capacidade criadora do Regime e da alta intenção e fecundos resultados da política s administração destas três décadas, se deve, sobretudo, exactamente, a algum abandono da opinião pública, à frouxidão de informação e de esclarecimento do povo - numa palavra, a um certo divórcio entre o Poder e a Nação. E, assim, por nossa incúria, se deixou muito boa gente à mercê dos demagogos, dos agitadores e dos envenenadores das almas desprevenidas.

O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!

O Orador: - Este contacto e este diálogo do Poder com o povo não pode, é bom de ver, estabelecer-se nem todo nem a maior parte directamente pelos altos governantes, que seria sacrificar-lhe o tempo que devem às suas altas funções. Mas, para isso, estão aí os serviços, alguns dos quais, como o Secretariado Nacional da Informação, designadamente criados para esse fim.
E estão também as organizações políticas, destacadamente a União Nacional, e todo o escol dirigente da política nacional e, até, todos os que, sem mesmo deterem lugares oficiais, têm a consciência das responsabilidades que lhes cabem, nesta hora alta de renovação, na orientação do espírito público.
E muitos são os meios e recursos de comunicação entre o povo e os que devem esclarecê-lo e orientá-lo. Além dos meios mais simples e de sempre, que são, por exemplo, o contacto directo com os governados, esse entre nós largamente usado -e bem - pelos Ministros nas suas andanças pelo País, os discursos e notas oficiosas, temos a imprensa, a fotografia, o cinema e as duas últimas dádivas da técnica moderna na matéria - a rádio e a televisão.
Para os governados há também o recurso constitucional do «direito de representação ou petição, de reclamação ou queixa, perante os órgãos da soberania ou quaisquer autoridades» e de que se devia ensinar o povo a utilizar mais largamente. E poderia ainda ser criado, à ilharga do Ministério da Presidência ou do Secretariado Nacional da Informação, um serviço no género Gallup, para sondagens à opinião pública.
Deixo para o fim o meio que a todos sobreleva em competência, em dignidade, em regularidade: o da representação nacional - vínculo institucional entre a Nação e o Poder. E é, especificadamente em relação à Assembleia Nacional, neste particular, que quero demorar-me um pouco, porque é assunto que entra directamente no campo do primeiro problema abrangido nos projectos da revisão constitucional.
Através desta Câmara se faz ouvir a voz da Nação e, ao mesmo tempo, pelas suas intervenções e debates, do domínio público e pela imprensa largamente difundidos, se esclarece também a Nação sobre a vida política e administrativa.
Mas não há dúvida de que, se não nas atribuições - que me parecem certas e bastantes-, em alguns aspectos da sua constituição e do seu funcionamento se talhou- com excessiva escassez e reserva, porventura dilatadas pela lição, ainda fresca, da desordem parlamentar. É assim, pelo menos, relativamente ao número de Deputados e muito mais à duração das sessões legislativas.
E é assim também no respeitante às relações entre a Câmara e o Governo; embora, neste particular, a posição inicial, de separação absoluta, seja compreensível e, ainda agora, o problema haja de rever-se com todas as cautelas.
Também não parece que o seu sistema de eleição seja o mais conveniente, nem de ânodo nenhum concordo com as imposições mais inequívocas da nossa doutrina política.
E é sobre estas disposições que nalguns passos dos projectos de revisão se fazem sugestões, ainda que modestas, para benefício da actividade e rendimento da Câmara, tudo tendente a melhorar o seu modo de designação e o seu contacto, em amplitude e intimidade, com o sector governamental.
Assim se propõe, para a sua designação, um processo de eleição que pretende dar à escolha maior competência e, possivelmente, mais independência, em relação ao Poder, vantagens que viriam a reflectir-se na qualidade dos eleitos e no desempenho da sua função representativa. Este é um ponto que será esmiuçado mais adiante.
Relativamente à duração das sessões legislativas sugere-se, pelo menos em dois dos projectos, que se alargue de três para cinco meses, com possibilidade de mais um mês por disposição do seu presidente. Parece-me de todas as propostas a que mais razoadamente se impõe, tão escasso é o período de actividade deste órgão político e tão conveniente o exercício da sua função.
Não há dúvida de que aqui se levantam e debatem questões que interessam altamente à política nacional e se fazem críticas úteis, por desassombradas e, ao mesmo tempo, construtivas, à marcha da nossa vida pública e aos desvios e deficiências da Administração.
O número dos Deputados é elevado na proposta da Presidência do Conselho dê cento e vinte pára cento e trinta e em dois dos projectos de alteração para cento e cinquenta. Neste particular não vale muito questionar, e a sugestão governamental pode satisfazer plenamente.
Relativamente ao contacto directo entre a Assembleia e o Governo, afigura-se-me problema mais delicado e a ponderar com prudência. Avesso decididamente a toda a demagogia e com a anais desenganada relutância a tudo o que possa representar regresso à degradante irreverência dos costumes parlamentares, não considero, ainda assim, de modo nenhum, em princípio, que o Poder se diminua entrando em contacto, e até em diálogo, com a representação nacional.
Os nossos reis - e mais eram os reis, pais e criadores da Pátria - sentavam-se nas Cortes Gerais em frente dos representantes da Nação. E sempre atenciosamente, até paternalmente, ouviam tanto os privilegiados como os homens bons e rudes dos concelhos. Mas certo é também que em nosso tempo os costumes são outros e grandes as tentações demagógicas. E por isso se há-de considerar o problema com a maior prudência e só rasgar novos caminhos passo a passo e cautelosamente.
No parecer da Câmara Corporativa todas estas sugestões são desaconselhadas, com excepção do aumento de

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Deputados para cento e trinta, conforme a proposta governamental.
Mas não me parece que no seu douto parecer se vejam as alterações propostas à luz com que foram concebidas e que -penso bem- as justifica, plenamente, nem encontro grande peso nas razões aduzidas para discordar. Destacadamente a validade do alvitre para alongamento das sessões legislativas fica de pé e bem de pé. Porque nada desmente a inconveniência da sua curta duração, limitada a três meses ou quando muito quatro - o que quer dizer que durante dois terços ou três quartos do ano a representação nacional fica sem voz. Mesmo sem alargar as atribuições legislativas da Câmara - com que também não concordo, aliás-, fica-se num silêncio s num divórcio demasiadamente longo.
A questão, por outro lado, não s somente de tempo para o exercício das funções da Assembleia Nacional. E também de oportunidade. E a oportunidade passa para muitos casos em que seria proveitoso e até necessário intervir para a satisfação da nossa consciência de representantes dos interesses e sentimentos da Nação, para esclarecimento e desengano da opinião pública ou mesmo para conveniência do Poder.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Cerqueira Gomes: a hora já vai adiantada e como as considerações de V. Ex.ª ainda se devem prolongar reservo-lhe a palavra para a sessão de amanhã.
Vou encerrar a sessão.
Amanhã haverá sessão, com a mesma ordem do dia.
Antes de encerrar a sessão quero prevenir os Srs. Deputados de que é minha intenção concluir-se amanhã a discussão na generalidade. Isso poderá forçar-me a prolongar um pouco mais s sessão e, para que tal não aconteça em excesso, seria bom que a sessão pudesse começar às 16 horas.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 10 minutos.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Adriano Duarte Silva.
Alberto Cruz.
Alberto Pacheco Jorge.
Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior.
Américo da Costa Ramalho.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Bartolomeu Gromicho António Gaiteiros Lopes.
António Jorge Ferreira.
Armando Cândido de Medeiros.
Belchior Cardoso da Costa.
Carlos Coelho.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Maria Porto.
João Pedro Neves Clara.
José dos Santos Bessa.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel José Archer Homem de Melo.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Tarujo de Almeida.
Purxotoma Ramanata Quenin.

O REDACTOR - Luís de Avillez.

Proposta enviada para a Mesa no decorrer da sessão:

Proposta do substituição apresentada pelo Deputado Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães à alteração proposta pelo Governo dos artigos 125.º e 126.º da Constituição:

Art. 125.º O território do continente divide-se em concelhos, que se formam de freguesias e se Agrupam em circunscrições ou autarquias regionais e eventuais zonas urbanas a regular em lei especial.
Art. 126.º Os corpos administrativos são os câmaras municipais, as juntas de freguesia e os organismos dirigentes das autarquias regionais ou zonas urbanas previstas no artigo 125.º

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 16 de Junho de 1959. - O Deputado, Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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