2016-(26)
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 100
Se o Estado, no intuito de encontrar o denominador comum aos filhos de famílias com diferente formação, que podem frequentar os seus estabelecimentos escolares, imprimisse ao ensino oficial uma feição neutral em matéria de religião, como fazia, aliás, a nossa Constituição de 1933 na primitiva versão do § 3.° do artigo 43.°, não faltaria apenas a um imperativo da consciência nacional, como violaria um estrito dever de justiça.
Para completar a educação dos filhos, a grande maioria dos pais ver-se-ia forçada a integrar o ensino oficial com o recurso ao ensino particular, ou a substituir, pura e simplesmente, um pelo outro, somando no passivo do orçamento familiar à contribuição imposta para sustento do primeiro os pesados encargos do segundo. Como a maior parte deles estaria materialmente impossibilitada de o fazer, os filhos acabariam por receber, contra a vontade dos pais, uma educação diferente da que estes, principais contribuintes do fisco, quereriam que lhes fosse ministrada.
Na qualidade de principal responsável pela medida, o Estado não só sacrificaria a vontade da esmagadora maioria das famílias, como se demitiria de um dos seus mais altos deveres em face dos supremos interesses da Nação.
E o raciocínio desenvolvido a propósito do ensino colhe de algum modo, feitas as necessárias adaptações, em relação a tudo quanto respeita à constituição e defesa da família, à fixação dos dias feriados, ao .estabelecimento do descanso semanal, à fiscalização dos espectáculos, à repressão da literatura licenciosa, à formação da opinião pública, especialmente através da rádio e da televisão oficiais, e a tantos outros aspectos da intervenção do Estado na vida dos particulares 101.
Não faltará quem alegue, no que respeita ainda ao caso particular, mas especialmente significativo, do ensino oficial, que é perfeitamente dispensável a referência confessional aos princípios da doutrina e moral cristãs, uma vez que esses princípios, no que têm de essenciais à formação moral dos jovens, são comuns ao cristianismo e a outras tábuas de valores, de carácter não confessional 102.
Mas não parece difícil refutar a objecção.
Começa por não haver perfeita identidade entre os princípios dá doutrina e moral cristãs, pelos quais a nossa Constituição manda pautar as virtudes morais dos jovens educandos, e os difames da moral positiva aceites por outros sistemas.
Depois, também há boa diferença emocional entre os valores morais enraizados no húmus vivificante da fé cristã e as proposições éticas de igual expressão verbal, frouxamente ancoradas no porto inseguro da razão humana. E a distinção não pode ser indiferente às entidades responsáveis pela formação moral das novas gerações.
As considerações precedentes resumem-se na afirmação de que os vários cultos praticados em cada Estado podem ter, e assumem, de facto, na generalidade dos casos, uma repercussão muito diferente, como valores sociais, como ideias-força efectivas, na vida da respectiva comunidade populacional.
Trata-se de uma realidade sociológica incontestável, com reflexos de vária ordem no ordenamento jurídico colectivo, que o Estado (mesmo não confessional) não deve nem pode ignorar no exercício das suas atribuições.
Essencial, segundo as concepções dos novos tempos, é que o Estado, ao atender a esse condicionalismo especial, não negue aos particulares nem às confissões minoritárias, dentro dos limites gerais impostos pela ordem pública, a liberdade religiosa de que necessitam nem a igualdade dos cidadãos perante a lei, tal como o princípio deve ser entendido 103. «Quando o Estado, escreve Ruffini, tiver garantido a todas as confissões a plena liberdade de culto, terá dado tudo quanto dele se pode exigir em matéria de liberdade religiosa.»
27. Conteúdo da liberdade religiosa: A) Considerações de ordem geral. — (Mas qual ó o conteúdo preciso da liberdade religiosa?
Não se torna fácil responder à pergunta formulada.
São muitos os corolários que os autores extraem do princípio da liberdade em matéria de religião e variadas as faculdades que as leis dos diferentes países, à sombra dela, outorgam concretamente às pessoas.
E, apesar disso, há sempre aspectos que escapam, tanto ao exame da doutrina como à previsão do legislador. Não falta, aliás, quem entenda (na sequência de uma concepção muito divulgada entre os constitucionalistas acerca da génese e conceito das liberdades fundamentais dos indivíduos) que o direito da liberdade religiosa tem por conteúdo, não as diversas faculdades em que a doutrina positivamente o desdobra, mas a omissão, por parte das autoridades, de todas as acções que possam contrariar o exercício da livre actuação das pessoas.
Contra essa concepção, porém, o menos que pode dizer-se é que ela enferma de um vício semelhante àquele de que padece, no campo do direito civil, a teoria obrigacionista ou personalista dos direitos reais.
Tal como esta, toda debruçada sobre o lado externo das relações reais, se não dá conta dos poderes fundamentais que caracterizam cada direito tipificado, através da ligação do titular com a res, também da concepção negativa dos direitos de liberdade, aplicada ao nosso tema, se pode
101 Assim se compreende ainda, atento o valor social muito particular que a religião católica constitui no seio da comunidade, que as associações católicas gozem de determinados benefícios fiscais não concedidos a outras confissões, que os ministros do culto católico prestem o serviço militar em condições especiais (cf. artigo XIV da Concordata), que o Estado nomeie ou contrate sacerdotes desse culto para a prestação de assistência religiosa às forças armadas ou em estabelecimentos hospitalares, penitenciários ou de reeducação, etc.
102 Cf., a propósito, a caracterização que A. Carlo Jemolo (Premesse ai rapporti tra, chiesa e stato, 1965, p. 13) faz do contraste entre a posição do Estado e da Igreja nos tempos modernos: «E este o contraste: entre a Igreja, para quem a salvação dos homens está ligada à adesão a certa fé religiosa, e o Estado que não nega o ensinamento da Igreja, mas proclama que aos seus olhos não há senão cidadãos e que nas suas leis imporá apenas a adesão aos princípios morais que forem comuns a crentes e a não crentes, não às regras que os segundos não aceitam.)
103 Em sentido diferente do exposto no texto, Jemolo (est. cit., n.° 7), por entender que, na prática, a ideia do tratamento especial de qualquer confissão acaba por afectar o princípio da liberdade religiosa. «Sempre que há uma religião com posição dominante em face das outras, e a consciência pública entende que ela deve ter um tratamento de que as outras não devem gozar — concessão de autonomia, falta de fiscalização estadual, prerrogativas concedidas aos seus ministros, subsídios por parte do Estado— são possíveis retornos ofensivos, senão contra a liberdade religiosa das minorias, pelo menos contra a igualdade política concedida aos seus membros.»
No mesmo sentido, porém, da doutrina do texto, o seguinte trecho da Declaração Conciliar: «Se, atendendo a circunstâncias peculiares dos povos, uma comunidade religiosa for especialmente reconhecida na ordenação jurídica da sociedade, é, ao mesmo tempo, necessário que se reconheça a todos os cidadãos ô comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa e que tal direito seja respeitado.»