2016-(28)
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 100
Este dever jurídico contraposto à liberdade de crenças pode revestir vários aspectos, que mo geral se deixam reconduzir à ideia de que ninguém deve ser coagido ou submetido a pressões ilícitas em matéria de opções religiosas.
No próprio texto da Constituição se enumeram três categorias de abstenções ou omissões exigíveis do Estado, em obediência à liberdade de crenças:
a) A impossibilidade de alguém ser perseguido por causa das suas crenças — disposição que, historicamente, se explica como termo do período de intolerância religiosa, que entre nós vigorou até à época do liberalismo;
b) O dever de não se privar, quem quer que seja, de um direito, por causa das suas convicções religiosas 115 ;
c) A impossibilidade de se ser isento de qualquer obrigação ou dever cívico, com base nas mesmas convicções —preceito que tem real interesse prático quanto ao cumprimento dos deveres militares, pagamento de impostos, prestação de juramento, etc., a que algumas confissões pretendem subtrair os seus membros.
A propósito da liberdade de crenças já se tem afirmado que, não interessando ao direito senão os factos externos da vida dos indivíduos, ela se traduziria, afinal, sobre o plano jurídico, numa liberdade de expressão do pensamento. Proclamar numa lei a liberdade natural da consciência (olhando apenas ao lado interno do fenómeno) seria, por isso mesmo, no dizer de um autor, tão ridículo como proclamar a liberdade de circulação do sangue dentro do organismo humano 116.
Apesar de sugestiva, a observação não é inteiramente exacta.
Por um lado, quando a lei garante (cf. o artigo 8.°, n.° 3.°, da nossa Constituição) a inviolabilidade das crenças religiosas, pretende-se tutelar o pensamento das pessoas em matéria de religião, antes mesmo de elas haverem manifestado exteriormente as suas convicções.
Sabe-se como nos períodos de perseguição e de intolerância religiosa as pessoas eram coagidas a declarar as suas convicções e com que facilidade as autoridades procediam a inquirições ou devassas nesse sentido. A inviolabilidade das crenças, que algumas legislações proclamam em termos explícitos, visa exactamente a defesa das pessoas contra a extorsão de declarações ou confissões em matéria de religião ou contra quaisquer devassas da autoridade pública no mesmo domínio.
A Declaração Conciliar (n.° 3) começa precisamente por salientar o aspecto inicial da liberdade de crenças, quando afirma que «o exercício da religião, por sua própria índole, consiste, primeiro que tudo, em actos internos voluntários e livres, pelos quais o homem se ordena directamente para Deus; e actos deste género não podem ser impostos nem impedidos por um poder (meramente humano».
Por outro lado, não se ignora que a integração das pessoas em certa confissão religiosa, um pouco à semelhança do que sucede com a nacionalidade ou a pertinência a determinada raça, se pode fazer muitas vezes independentemente de qualquer manifestação da sua vontade ou até dos pais nesse sentido. O simples nascimento pode marcar a incorporação da pessoa em certa confissão 117 e a protecção da liberdade religiosa há-de naturalmente estender-se às pessoas nessas condições.
Por último, não deixa de ter algum fundamento a observação feita por Dicey, quando afirma que a supressão ou a limitação da liberdade de expressão acaba por atingir a (própria liberdade de pensamento.
Por todas estas (razões mos parece preferível não confinar explicitamente a liberdade de crenças à livre manifestação do pensamento em matéria de religião, embora se saiba que ó este, realmente, o núcleo fundamental do seu conteúdo.
29. I) A liberdade de crenças, a autonomia e o magistério das confissões religiosas. — Como ajustar a liberdade de consciência, nos termos amplos em que as legislações modernas e a Igreja Católica hoje a concebem, com a autoridade, o magistério e o poder disciplinar que se arrogam as diversas confissões, segundo o princípio da liberdade da sua organização 118?
Como conciliar, por exemplo, a faculdade que a lei civil reconheça aos nubentes de optarem livremente pela celebração do casamento civil ou do casamento religioso com a possibilidade de a Igreja impor sanções aos fiéis que se decidam pela primeira alternativa, sabendo-se de antemão que a cominação destas penas espirituais ó capaz de exercer uma influência ponderosa na decisão dos crentes?
Ou como solucionar o conflito latente entre a legislação civil, que pretenda garantir a plena liberdade dos eleitores na realização de certa votação, e as instruções dadas pelos dirigentes de qualquer confissão religiosa, para que os fiéis não votem em certos candidatos hostis a essa confissão?
Poderá o Estado proteger os crentes contra os abusos dos ministros do culto ou contra as sanções da hierarquia respectiva?
A questão tem sido muito debatida na Itália, a propósito das normas legais incriminadoras dos ministros do culto que, no exercício das suas atribuições, forcem os eleitores a apresentar certas listas de candidaturas, a votar ou deixar de votar em determinadas listas ou candidaturas, ou a abster-se de votar.
Apesar da existência destas normas e (de ser notória, em 'algumas eleições dos últimos anos, a intervenção do oleiro aio sentido de os fiéis não votarem em determinadas
115 Neste preceito se pode inserir a questão, já largamente ventilada em Itália, de saber como deve ser feita a regulação do poder paternal, no caso de não haver acordo entre os pais e de um deles ser crente e o outro não.
O artigo 94.° da nossa Organização Tutelar de Menores manda resolver o dissídio de harmonia com os interesses do menor. À luz deste critério, o facto de um dos cônjuges ser crente e o outro ateu não constituirá, por si só, motivo de preferência na entrega do filho. Já assim não será, se o pai crente tiver melhor formação moral e der melhores garantias quanto à educação do filho, ou se for de presumir, pela formação (religiosa do próprio filho, que este teria um grande choque e sofreria seriamente com a entrega ao pai descrente.
Há na lei civil portuguesa uma outra disposição que, de algum modo, se relaciona com o pensamento expresso na lei constitucional, embora o transcenda. Trata-se da norma (artigo 2232.° do Código Civil) que considera contrárias à lei — e, como tais, não escritas (artigo 2230.°, n.° 2) — as condições restritivas da liberdade (nomeadamente da liberdade religiosa) apostas a disposições testamentárias; cf., quanto às doações, o disposto no artigo 967.°
116 Cf. Pio Fedele, ob. cif., p. 15.
117 Haja em vista o princípio cuius régio eius religio propugnado pelos protestantes nos domínios do império germânico no período das lutas .religiosas (Dr. António Leite, A Proposta de Lei sobre a Liberdade Religiosa, 1970, p. 6).
118 Quanto à forma de conciliar o magistério da Igreja Católica com a liberdade religiosa, à luz do texto da própria Dignitatis Humanae, veja-se o interessante artigo de Tomás Barberema sobre «Magistério eclesiástico y libertad religiosa», na Rev. esp. der. can., 1967, pp. 533 e segs.