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30 DE JUNHO DE 1994 2755

tadistas alemães e suíços a apontar para o carácter inovador de muitas das propostas da gramática dogmática do Código penal português. Cito, a título puramente exemplificativo, trabalhos de Tiedmann, na Alemanha, e de Schultz, na Suíça, que indicam a construção dogmática do Código Penal português como modelo a seguir pela Europa.
Apesar de tudo, há aqui uma certa ambivalência de mesmidade e diferença, algo que é comum e algo que é diferente. E esta ambivalência é particularmente fecunda nos tempos que vivemos, os decantados tempos da construção europeia. É que, na medida da mesmidade, os penalistas portugueses, mercê do esforço dos seus doutrinadores, estão, de há várias gerações a esta parte, preparados para a construção europeia, sem grandes solavancos e sem grandes angústias. Os juristas portugueses falam, hoje, segundo a mesma gramática penal seguida na Espanha, na Itália, na Alemanha, na Áustria e na generalidade dos países do ex-bloco de Leste. Na medida do que é diferente, este nosso património deve ser reivindicado como um contributo de Portugal para a mesma construção europeia. Não resisto à tentação de citar aqui a voz de um poeta, Torga, que, talvez no seu único texto sobre direito penal e reivindicando que também «os clarins da emoção » dos poetas devem pronunciar-se sobre o Código Penal, escrevia, a propósito da abolição da pena de morte por Portugal: «O civismo liberal de um pequeno povo, sem esperar por outros exemplos, adiantou-se corajosamente na senda do espírito e pôs termo à negra tarefa das balas, do baraço e do cutelo. Pos termo ao único gesto absoluto que o homem pode fazer, e não deve fazer. Ao gesto que o transforma num grotesco Deus de arremedo, que, quando fulmina, se fulmina.»

Aplausos do PSD.

Esta exigência é tanto mais pertinente quanto é certo que, mesmo na Europa democrática, desvanecidos os medos e esconjurados os fantasmas do totalitarismo, não emudeceram inteiramente as vozes das Erínias. Que, em nome da reivindicação de law and order, reclamam um endurecimento desmesurado e desproporcionado da punição dos delinquentes. Um endurecimento para além do qual entramos já no domínio do - e cito, de novo, Torga - «crime legal», o crime cometido em nome e a coberto da lei, «que compromete toda a sociedade, que, nessa maciça, fria e desmedida resposta ao agravo dum só, se exautora e condena».
Por isso, repito, na medida do diferente, este diferente deve ser assumido: como bandeira de humanismo, de antropologia optimista na crença da capacidade de ressocialização, de melhoria e de corrigibilidade do Homem. Como bandeira de tolerância e de ressocialização oferecida ao condenado.
3. A reforma começa a afirmar-se e a ganhar fôlego e profundidade a partir do artigo 40.º - do novo e marcante artigo 40.º, só ele a valer por um programa de política criminal - e projecta-se, sobretudo, no regime das penas e das medidas de segurança, por um lado, e na parte especial, por outro.
Cabe indagar, agora, se estas alterações se adequam, ou não, ao paradigma de um direito penal moderno, um direito penal próprio de uma sociedade democrática, de uma sociedade secularizada e plural, não vergada ao peso de representações moralistas monolíticas e ideológicas, e se adaptam às exigências de um Estado de Direito democrático.
O direito penal paradigmático destas exigências pauta-se, sobretudo, por três axiomas fundamentais.
O primeiro é que o direito penal só pode intervir para assegurar a protecção necessária e eficaz de bens jurídicos fundamentais, indispensáveis ao livre desenvolvimento ético da pessoa e à subsistência e funcionamento de uma sociedade democraticamente organizada. Ou seja, o direito penal só tem legitimidade para servir fins imanentes ao próprio sistema social e não fins transcendentes. Isto, de resto, na linha de uma reivindicação, velha de séculos, que os penalistas do iluminismo lançaram sob a ideia de que o Direito Penal deve limitar-se apenas a proteger as condições de vigência e de funcionalidade do contrato social, e que hoje é aceite por todos, mesmo pelos representantes mais credenciados da teleologia tradicional. Teólogos católicos, como Kung, Metz ou Karl Rahner, vêm acentuando que o Direito Penal deve permanecer imanente à própria terra, isto é, não ascender à tutela de coisas transcendentes, atendendo ao funcionamento normal de uma determinada sociedade. Para o Direito Penal dos tempos modernos vale o que diz a canção de uma telenovela: «quanto mais longe da terra, tanto mais longe do céu ».
De acordo com o segundo axioma, a ameaça, aplicação e execução das penas só pode ter como finalidade a reafirmação e estabilização da validade das normas violadas, o restabelecimento da paz jurídica e da confiança nas próprias normas e a ressocialização do delinquente.
Vale isto por dizer que o Direito Penal de um estado moderno, de uma sociedade secularizada e plural, não pode estar ao serviço de valores absolutos, do tipo das kantianas expiação e retribuição. Isto tanto por força de todas as aporias epistemológicas que põem em causa a ideia de retribuição, como por força das próprias aporias de legitimação que denegam ao Estado a legitimidade para, em nome do Direito Penal, servir valores absolutos, como a expiação da culpa.
Por outro lado, a ressocialização há-de ser oferecida ao delinquente e não imposta coactivamente; a ressocialização é um direito do condenado e não um direito da sociedade. A ressocialização como direito da sociedade faria agigantar de novo as temíveis ameaças de um therapeutic state, de um Estado terapêutico, em que o poder absoluto das «batas brancas » se substituísse ao poder controlado das «togas negras » dos magistrados. E pusesse, perante nós, a angústia daquela personagem do bem conhecido filme «Voando sobre um ninho de cucos », ern que um internado pergunta à assistente social: «Mas o meu tempo de prisão não acabou já? ». E assistente social responde: «Tempo de prisão, tempo contado, só há nas prisões aplicadas pela justiça, aqui estamos em tratamento, estamos em ressocialização, aqui não há tempo ». Para evitar estas aporias e estas ameaças é que a ressocialização tem de ser oferecida ao condenado, não lhe podendo ser imposta.
Compreende-se, assim, uma proposta da reforma, que causou algum escândalo, designadamente a exigência de consentimento do condenado para algumas medidas que apontam e que estão pré-ordenadas à ressocialização. A lógica é esta: a ressocialização não pode ser imposta ao delinquente, tem de ser oferecida pela sociedade, sobrando sempre ao delinquente o direito à diferença se e na medida em que o queira exercer.
Esta ideia de ressocialização é também, manifestamente, uma das pedras de toque da nossa cultura e da nossa tradição jurídico-penal. Mergulha as suas raízes mais visíveis e mais expostas na teoria de Levy Maria Jordão; foi assumida com particular ênfase pelo primeiro Ministro da Justiça da República, Afonso Costa; e foi assumida com particular empenho pelo último grande legislador penal português, Eduardo Correia, que foi também o último dos grandes kantianos, mas que aceitava que a ideia de retribuição cedesse em nome da ideia de ressocialização, acreditando

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