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1158 I SÉRIE - NÚMERO 32

"A morte de Miguel Torga constitui um infausto acontecimento nacional e europeu. Poeta e intérprete comovido do povo que somos e contista exímio de histórias exemplares da sua vida dura, buscador incansável da nossa maneira de ser e de estar no mundo e dos traços perenes da portugalidade, teimoso apaixonado da liberdade e da ousadia de ser e de agir, inimigo jurado das facilidades e elogios, fino e atento observador da nossa vida pública, Miguel Torga condensou e reelaborou, numa obra literária de rara beleza, a história lusíada dos últimos sessenta anos, ao mesmo tempo que soube ser, para muitas gerações de jovens e de estudantes, o pedagogo da liberdade, o conselheiro literário e o guia exigente para o serviço à arte com rigor e autenticidade.
No momento em que o vemos partir - como ele próprio diria, 'depois de dar o seu recado' -, a Assembleia da República curva-se emocionada perante o Homem e o Português de excepcional envergadura e faz votos de que a leitura dos textos que nos deixa continue a despertar nas gerações vindouras o amor à independência e à liberdade que anima a sua obra e atravessou a sua vida".
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Adriano Moreira.

0 Sr. Adriano Moreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Permitam-me recordar, antes de qualquer outro comentário, que Adolfo Correia da Rocha era transmontano, nascido em S. Martinho de Anta. E tão ligado à terra que escolheu Torga para nome literário, uma palavra que designa a rústica urze que em muitos lugares povoa aquelas serras de torgais, e que talvez mais propriamente se refere à raiz da planta, que se queima e se faz carvão e cinzas, a consumir-se nos lares feitos de pedras, mas a dar luz e calor. Anunciou, deste modo, que assumia o destino dos torgais.
Quando, em 1934, usou pela primeira vez o nome em A terceira voz já estava identificado como um rebelde, talvez antes mais como solitário, que não iria pelos caminhos traçados pelos outros, antes preservando sempre a liberdade estética e a especificidade de todas as formas de arte que praticou, desde a poesia ao teatro. Faz parte da biografia corrente de Miguel Torga a notícia de que, menino, abandonou a casa familiar quase ao nascer, e pelo Brasil andou, ao lado do tio que o acolheu mas sofrendo a vida dura que o moldou, regressando a Portugal pelos 18 anos.
Lembremos o Abade de Baçal, tão profundamente analista de Um Reino Maravilhoso em que Torga nasceu, e recordemos as razões pelas quais autonomizou dois volumes da sua extensa obra dedicando um aos Fidalgos da província que sempre foi do Reino, e outro aos Notáveis em que se transformaram muitos dos emigrantes por necessidade e costume. Deste último registo de honras, constaria Torga, que sofreu a experiência comum a tantos meninos que podiam falar por igual da fidelidade à infância que não tiveram, que pelo Brasil andaram mal amparados, que muitos não voltaram nem mandaram notícias. Repito um pequeno trecho transmontano que escrevi a pensar nesses meninos, já faz anos: "Pelo alto dos montes da minha serra, o que mais impressiona são as fragas. Enormes e cinzentas. Pesadas e solenes. Postas ali desde o começo dos tempos. Ao menos desde o tempo dos homens. Todos as viram e deixaram lembrança. Não houve garoto na aldeia que não projectasse subir até às fragas. As fragas altas, como todos lhe chamam, para se perceber a grandeza. 0 dia da primeira visita era uma maioridade. Trepava-se lá acima. E via-se mais longe. Até às névoas. Para além disso era um mundo que também merecia ser visitado. Chamava-se aventura, e havia de ser corrida". Ele correu esta aventura, andou por outras terras, mas deixou-nos sobretudo a memória das almas por onde também passou. Médico, exercendo no mundo rural que aos transmontanos sempre pareceu pobre mas não subdesenvolvido, avigorou o conceito da "vida que não dá tréguas a nenhum amante", aprendeu a "curar as chagas com pensos de terra", moldando-se a si próprio como uma fonte de autenticidade.
Vitorino Nemésio, que também ficará entre os varões ilustres deste século, cedo anotando-lhe a rudeza, escreveria que ele era "no fundo um dos homens mais simples e sinceros que se podem encontrar". Livros como Pão Ázimo (1931), Bichos (1940), Contos da Montanha (1941), Novos Contos da Montanha (1944), Vindima (1945) atestam como a ligação à terra, a intimidade com a natureza, a batalha para enfrentar o drama que vai do berço à sepultura marcaram de maneira essencial a sua capacidade de compreender o sofrimento, de bradar aos céus e de também se assumir franciscano no comportamento.
Nos volumes do Diário, iniciado em 1941, entende-se a cada linha por que é que nos informou de que "é por dentro que eu gosto que aconteça a minha vida", e que a sua poesia explodia, "abra as portas da prisão". Experiente do poder das palavras, consciente da riqueza e da força da língua portuguesa que tinha ao seu dispor, e que aprendeu a usar com um vigor tal que nenhuma dessas palavras é supérflua nos seus textos, também exercitou a seu modo a cidadania, na época em que lhe aconteceu viver, e que viu nascer e morrer os totalitarismos de direita e de esquerda, duas guerras mundiais, a guerra civil de Espanha, o regime corporativo que detestou, a guerra de África e a amargura que confessou a respeito do processo que conduziu ao ponto final do império português, que teria imaginado multiplicado nos "Brasis" da sua experiência e recordação.
Depois de observar o Norte de Espanha no período da guerra civil, de passar pela Itália de Mussolini, sintetisa a época no conceito dramático das "angústias paradas", clama que "apetece gritar mas ninguém grita", confessa ter em si uma raiz anarquista que não o deixa suportar o poder. A pressão política e a injustiça feita à sua própria mulher, demitida de professora da Faculdade de Letras de Lisboa, tiveram a resposta do fortalecimento da inteireza. Pelas terras transmontanas de onde veio, diz-se que todos fazem bem em ser modestos, mas ninguém deve transigir em ser humilde. Era assim quando fazia justo alarde de intransigente.
Como disse em tempos Jorge Amado, foi o escritor da língua portuguesa, deste século, que mais mereceu o Prémio Nobel, num tempo em que não era costume que o desdenhassem os que são excluídos. Mas poucos terão merecido melhor atenção, enquanto vivos, dos mais autorizados dos seus contemporâneos: Eduardo Lourenço, Oscar Lopes, Pereira de Carvalho, Mourão-Ferreira, Jorge Amado, Vitorino Nemésio, são dos que vêm à lembrança nesta apressada necessidade de lhe prestar homenagem, quando entra na breve fila dos "sepultados insepultos". Aquele que civicamente ensinou que temos nas nossas mãos o temível poder de recusar.

Aplausos gerais.

0 Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Amaral.

0 Sr. Fernando Amaral (PSD): - Sr. Presidente Srs. Deputados: Ao ser-me dada, neste momento, a incum-