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19 DE JULHO DE 1997 3549

Ficaram os seus repetidos escritos dirigidos ao rei dizendo que para conservação do Reino "era necessário admitir nele judeus por serem os que conservam o comércio de que procediam as forças do mesmo Reino, e que enquanto neste, em tempo de certo rei, se permitiram os tais judeus, fora ele muito mais opulento em riquezas e em poder, como agora são a república da Holanda e outras onde os judeus se pousaram depois de serem expulsos de Portugal".
O facto de por isso ter sido expressamente condenado na sentença da Inquisição só aumenta hoje a sua razão e a sua glória, como também Ter sido condenado por afirmar que convinha ao bem deste Reino declararem-se nas inquisições os nomes dos denunciantes e testemunhas, e por dizer que há ainda outro juízo mais terrível , mais rigoroso, mais estreito que o juízo de Deus. "É o juízo que pôs o Baptista em prisões, o juízo dos homens.
Mas já antes a sua severa crítica a outros se tinha dirigido.
Comecemos pelos "pretendentes", personagens sempre actuais. Os que querem honras e cargos, sobretudo quando não há base para a responsabilidade nem mérito para a recompensa. Contra eles proferiu nada menos de três sermões, mas não deixou de verberar os funcionários que retardam os negócios, que resolvem tudo por peitas e respeitos. Não esqueceu, claro, a lentidão dos processos judiciais.
Não posso deixar de lembrar a sua crítica, também actual, da burocracia: "Terrível flagelo do mundo foi sempre o papel, mas hoje mais cruel que nunca! (...).Mas em nenhuma parte tanto como em Portugal, porque em nenhuma se gasta tanto papel ou se gasta tanto em papéis".
Comparou a um pequeno peixe barulhento, o roncador, os ministros, conselheiros, funcionários de muita garganta e poucas obras.
Mas como é também actual a sua crítica à injustiça dos tributos mal repartidos! Como nos deve fazer pensar a premente chamada de atenção para os gravíssimos perigos de os políticos se corromperem num espaço e numa luta onde há "soberbas, ambições, invejas, discórdias, cavilações, enganos, falsidades, traições, violências e tratar cada um de subir, ainda que seja pelas ruínas alheias".
Claro que dedica, perante o rei, a sua mais cruel ironia aos que roubam: "os que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, governo das províncias ou administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os pobres".
Muitas vezes se queixa Vieira das habituais intriga, inveja e ingratidão de que foi vítima. Mesmo o seu maior biógrafo, João Lúcio de Azevedo, não pode deixar de o ver vencido no fim da vida. Vencido como político, ele que era no seu tempo, como é óbvio, politicamente incorrecto. Vencido como profeta que não viu concretizados os seus planos grandiosos.
Mas quantas vezes, Sr. Presidente e Srs. Deputados, a História mostra que os vencidos no seu tempo são, na verdade, os verdadeiros vencedores!
Vieira hoje é um vencedor. Não tanto por estarem totalmente esquecidos os supostos triunfadores de seiscentos. É-o antes por ter passado a barreira multissecular do tempo, por ter permanecido viva e admirada a sua obra oratória e literária, por ter florescido a sua língua portuguesa em todos os continentes.
É vencedor por ter a sua Pátria consolidado a independência por que ele tão denodadamente se bateu. Se perdeu o império temporal, manteve e aprofundou a Fé e os valores espirituais que o Cristianismo aqui trouxe, sem os quais não é possível entender a História e o sentido da comunidade nacional.
Vencedor é, ele que foi em textos célebres o mais virulento crítico do flagelo da guerra, por terem os portugueses e os brasileiros, como outros povos, adoptado a paz como valor inquestionável.
Vencedor também, porque continua a verberar, sarcástico, não só os politicamente correctos, sejam "roncadores", sentenciadores, analistas ou outros, como também os que sobrepõem os seus interesses, as suas ambições, as suas opiniões de circunstância, ao bem comum, aos projectos e às obras do futuro.
Vencedor ainda porque os portugueses mantêm a sua abertura ao universal, levando o seu génio criador a todos os continentes.
Vencedor finalmente e sobretudo pelo Brasil de hoje, que é também um pouco obra sua, onde vive um povo imenso e novo e que contém a maior comunidade católica do mundo.
Por causa dele, Brasil, foi, além de missionário, etnólogo, antropólogo, geógrafo e naturalista; nele percorreu léguas sem fim e descreveu em páginas maravilhosas os seus povos, a terra e os rios, a flora e a fauna. Quando pôde a ele definitivamente regressar exclamou: "Se a alegria de entrar no céu tem na terra comparação, foi esta!"
Razão tem Afrânio Peixoto em reclamar para Vieira a qualidade de brasileiro, já que as suas preocupações de apóstolo e em boa parte de político no Brasil tinham campo e raiz.
Mesmo Darcy Ribeiro, crítico de severidade algo excessiva da acção dos jesuítas na segunda metade do século XVI, louva a sua obra no século seguinte, nomeadamente pelos riscos que assumiram "no resguardo e defesa dos índios, representados por figuras mais capazes de indignação moral como António Vieira".
Ele próprio, Darcy Ribeiro, sem o dizer, acaba por ver, de algum modo, no Brasil presente e futuro a realização de boa parte dos sonhos e esperanças do grande Orador. Depois de considerar os povos latino-americanos "a nova Roma", escreve: "O Brasil é já a maior das nações neolatinas pela sua magnitude populacional e começa a sê-lo também pela sua criatividade artística e cultural (...) Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as nações e todas as culturas e - porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra".
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Deputados: Esta cerimónia de evocação e reconhecimento ao homem genial, passados 300 anos sobre a sua morte, mostra bem que, na escala dos séculos, Vieira venceu. Mais ainda, que permanece vivo.
Na verdade, mesmo os que não acreditam na imortalidade reconhecem que vive e entrou no reduzido grupo daqueles "em quem poder não teve a morte". Continuamos a ouvir hoje a sua voz poderosa, sentimos a sua presença que fortemente nos interpela e nos exige a promoção dos valores do espírito, a atenção ao que é essencial e permanente, o empenho crítico na acção decidida para curar os males do tempo e antecipar também, de algum modo, os desafios do futuro.

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