Página 9
II Série — 2.° suplemento ao número 32
Quarta-feira, 22 de Dezembro de 1982
DIÁRIO
da Assembleia da República
II LEGISLATURA
3.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1982-1983)
SUMÁRIO
Proposta de lei n." 137/11 (grandes opções do Plano para 1983):
Recurso para o Plenário da decisão de admissão da proposta de lei (interposto pelo PCP).
PROPOSTA DE LEI N.° 137/11 GRANDES OPÇÕES DO PLANO PARA 1983
Recurso
Ex.mo Sr. Presidente da Assembleia da República:
Ao abrigo do disposto no artigo 137.°, n.° 2, do Regimento da Assembleia da República, os deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP impugnam a admissão da proposta de lei n.° 137/11, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1 — Sob a designação «Grandes opções do Plano para 1983», a proposta de lei n.° 137/11 dispõe no seu artigo 4.°:
Fica o Governo autorizado a modificar a Lei n.° 46/77, de 8 de Julho.
e no artigo 5.°:
Fica o Governo autorizado a legislar sobre o estatuto das empresas públicas, alterando as respectivas bases gerais.
Da proposta de lei consta a menção de aprovação no Conselho de Ministros de 15 de Dezembro, sob a presidência do Vice-Primeiro-Ministro Freitas do Amaral, na ausência do Primeiro-Ministro.
Trata-se, ao contrário do que indica a designação que encima a iniciativa governamental, de uma proposta de lei de grandes opções do Plano para 1983, de autorização legislativa para alterar a actual Lei de Delimitação de Sectores e de autorização legislativa para rever as bases gerais das empresas públicas.
2 — A insólita amálgama numa única proposta de lei de três matérias de diversa natureza, autónoma configuração e inclusivamente processo legislativo distinto é inconstitucional e ostenta as marcas de um expediente de última hora.
Na verdade, até 15 de Dezembro todas as declarações governamentais pressupunham e apontavam explicitamente para a apresentação de propostas de lei autónomas sobre cada uma das matérias. Para além do que foi afirmado, abundante e reiteradamente, sempre que membros do Governo procuraram justificar o inconstitucional atraso na apresentação das propostas de lei do Orçamento e do Plano para 1983, basta registar, a título de exemplo, que:
a) O comunicado do Conselho de Ministros de
2 de Dezembro referia explicitamente que o Governo decidira remeter à Assembleia da República um pedido de autorização legislativa para emitir um decreto-lei que regulamente a organização económica do Estado, delimitando os sectores público e privado em termos semelhantes aos constantes de diploma auteriormente vetado na sequência da deliberação do Conselho da Revolução;
b) Na sua comunicação televisiva de 26 de No-
vembro o Primeiro-Ministro anunciou inequivocamente:
Em paralelo com a apresentação do Orçamento do Estado e das grandes opções para 1983, o Governo enviará para a Assembleia um conjunto de medidas que visam modificar a estrutura económica e social do nosso país. Entre elas quero destacar a lei dos sectores e medidas em matéria agrícola. (Povo Li' vre, n.° 436, de 1 de Dezembro de 1982.)
Mas melhor prova ainda de que estamos perante um expediente de última hora, de duvidosa e obscura origem e com claros contornos inconstitucionais e ilegais, é o facto de haver uma diferença material entre o texto das grandes opções do Plano enviado ao Conselho Nacional do Plano e por ele aprovado e o texto que acompanha a proposta de lei n.° 137/11, sem que haja qualquer nota de ter havido expressa modificação do texto e muito menos a justificação governamental dessa alteração. Antes se torna nítido, por comparação dos dois textos, que se trata, no caso da matéria referente ao artigo 4°, como na referente ao artigo 5.°, da proposta de lei, de uma excrescência, aditada sub--repticiamente, e, até prova em contrário, de má-fé!
Página 10
470-(10)
II SÉRIE — NÚMERO 32
Assim, onde o Governo referia ao Conselho Nacional do Plano ter pronto «um projecto de delimitação dos sectores público e privado que permitirá assegurar a contribuição da iniciativa privada e cooperativa com vista à concretização de projectos de investimento que não tenha lógica reservar ao sector público», foi aditada, para uso da Assembleia de República, a frase «para o qual solicita autorização legislativa» (p. 78, 1. 5.a). E, a p. 80 do mesmo texto, foram claramente aditados dois novos parágrafos às considerações sobre política de investimento do sector público, nos quais se anuncia à Assembleia da República aquilo que se ocultara ao Conselho Nacional do Plano «o Governo preparou também um projecto de modificação das bases gerais das empresas públicas, para emissão do qual solicita a necessária autorização legislativa»!
As discrepâncias entre os dois textos, o silêncio do Governo sobre as alterações e a forma como os deputados puderam verificá-las são de tal gravidade que não fica sequer excluída a hipótese de se estar perante uma contrafacção. Entretanto, não se tendo conhecimento de qualquer clarificação emanada do Governo ou da reconsideração dos termos em que se encontra até ao momento formulada a proposta de lei n.° 137/11, importa desde já extrair conclusões da conduta governamental.
3 — Ê, na verdade, significativo que, três dias após a pesada derrota eleitoral sofrida pela sua política e poucos dias antes da demissão do Primeiro-Ministro Pinto Balsemão, tenha sido remetida à Assembleia da República pelo Conselho de Ministros, nas circunstâncias que ficaram atrás apontadas, uma proposta tendente a aproveitar o debate e a votação das leis do OGE e do Plano para 1983 para fazer passar, sub-rep-ticiamente, duas peças fundamentais do seu plano de liquidação das nacionalizações e do sector público e de restauração do poder do grande capital.
Em quaisquer circunstâncias, já seria escandaloso que o Governo pretendesse aprovar nova legislação sobre a delimitação de sectores e o estatuto das empresas nacionalizadas mediante autorização legislativa, furtando-se a um debate amplo e público na Assembleia da República. Mas o expediente a que o Governo acaba de lançar mão representa um colossal escândalo.
Através dele, o Governo e a AD procuram, obviamente, reduzir o impacte público da nova operação subversiva contra as nacionalizações e munir-se rapidamente dos instrumentos jurídicos necessários para a levar a cabo, antes que sejam varridos do poder. Mas ta] procedimento, que ofende gravemente as regras e os princípios democráticos do funcionamento das instituições e rebaixa a Assembleia da República, visa também desencadear novas e perigosas confrontações entre órgãos de soberania.
4 — Que se trata de um subterfúgio ilegítimo ao serviço de um plano subversivo tendente à intensificação do assalto às nacionalizações não sobram dúvidas, examinado que seja o teor concreto das propostas que o Governo pretende emanar ao abrigo das autorizações legislativas contrabandeadas na proposta de lei n.° 137/11. Na verdade:
4.1 — As propostas anunciadas pelo Governo no tocante à revisão da lei de delimitação de sectores visam:
a) Abrir a banca e os seguros ao grande capital, facultando ao Governo a livre fixação das
condições de exercício das respectivas actividades (nova redacção prevista para o artigo 3.° da Lei n.° 46/77);
b) Garantir a plena libsrdade de acesso do capi-
tal privado às indústrias adubeira e cimen-teira (nova redacção prevista para o artigo 5.°, n.° 1);
c) Permitir o acesso do capital privado à indús-
tria de refinação de petróleo, em condições a definir livremente pelo Governo (nova redacção do artigo 5.°, n.° 4), que poderá também autorizar o exercício da actividade dos transportes por empresas privadas (nova redacção do artigo 4.°, n.° 2);
d) Manter reservada ao sector público apenas
a prestação de serviços essenciais não rentáveis, abrindo, mesmo assim, ao capital privado subsectores do saneamento básico, como a recolha de lixos em aglomerados populacionais e o saneamento básico fora dos aglomerados populacionais [nova redacção da alínea d) do artigo 4.°}.
4.2 — Quanto às propostas relativas ao estatuto das empresas, elas revelarem toda a sua dimensão, o plano governamental de desmantelamento do sector público e a liquidação do seu papel motor da actividade e do desenvolvimento da economia.
O Governo pretende consagrar legalmente a privatização do estatuto das actuais empresas públicas, abrir caminho à sua cisão, extinção e passagem, no todo ou em parte, para o sector privado, permitir a gestão de empresas públicas pelo capital privado, destruir todos os mecanismos de gestão unificada do sector público e viabilizar a formação de um conjunto de autênticos grupos económicos, com capitais públicos, mas submetidos às normas e critérios de gestão do sector privado e aos interesses da reconstituição do poder do grande capital. Para isso, a proposta agora revelada:
a) Determina a transformação em sociedades anónimas de responsabilidade limitada (e consequente sujeição às regras de direito privado) de todas as actuais empresas públicas, ainda que directa e integralmente nacionalizadas, que não tenham por objecto principal a exploração de serviços públicos ou quaisquer actividades em regime de exclusivo, bem como das que, tendo embora tal objecto, não sejam consideradas pelo Governo «instrumentos directos da sua política» (artigo 45.°). Deixaria de estar assegurada, em relação a tais empresas, a subordinação ao Plano (constitucionalmente obrigatória!), a respectiva gestão passaria a reger-se por padrões que postergam a prossecução do interesse público, poderiam ser livremente vendidas as participações financeiras que detenham, nenhum direito constitucionalmente reconhecido aos trabalhadores ficaria assegurado, poderiam ser cindidas, extintas ou ver modificado o seu estatuto por mera deliberação de assembleia geral (que, estando representado o Estado, poderia funcionar e deliberar validamente sem que se exija número mínimo de asso-
Página 11
22 DE DEZEMBRO DE 1982
470-(ll)
ciados ou representação de qualquer percentagem mínima de capital — artigo 53.°, n.° 2);
b) Prevê que, quando não sejam transformadas
em sociedades anónimas de responsabilidade limitada, as empresas públicas possam ser extintas, com vista à divisão e passagem ao sector privado «da parte do seu património não afecto a áreas reservadas em absoluto ao sector público» (artigo 39.°), distinção inteiramente inconstitucional;
c) Permite ao Governo, por portaria, entregar
a entidades privadas a gestão de todas ou parte das actividades das empresas que ainda sejam qualificadas como empresas públicas. Tal possibilidade abrangeria as próprias EPs situadas nos sectores básicos da economia, uma vez que, nos termos da lei de delimitação que o Governo pretende aprovar, estes deixariam de ser vedados ao capital privado (cf. artigo 35° do articulado referente ao estatuto das EPs);
d) Altera radicalmente as estruturas e os princí-
pios de gestão do núcleo de empresas que no quadro do plano de desmantelamento do sector ainda houvessem de ficar submetidas ao estatuto de direito público. O Governo aponta para a presidencialização da gestão, concentrando no presidente/comissário governamental vastos poderes, incluindo o de escolha dos restantes gestores. O regime de tutela permite uma intervenção governamental casuística e avulsa na vida das empresas, podendo culminar com a declaração de estado de sítio empresarial (artigo 17.°, n.° 6). A «adaptação da oferta à procura economicamente rentável» é erigida em princípio básico de gestão de empresas que têm por objecto principal a prestação de serviços públicos [artigo 22.°, n.° 1, alínea a)]! E se em algumas situações o Estado fica obrigado a compensar as empresas pela realização de investimentos ou pela prestação de serviços em condições não rentáveis, a atribuição da compensação só é exigível quando os lucros das restantes actividades da empresa não permitam assegurar a cobertura das obrigações contratadas (artigo 21.°)!
e) Representaria um golpe profundo nos direitos
dos trabalhadores das empresas públicas. A proposta governamental visa: impedir que os trabalhadores designem quaisquer representantes nos órgãos de gestão e fiscalização das empresas públicas que passem ao regime de sociedades anónimas; suprimir o direito dos trabalhadores a serem ouvidos na nomeação dos órgãos de gestão; atribuir aos gestores eleitos pelos trabalhadores (no escasso número de empresas em que tal possibilidade subsista) um estatuto diminuído em relação aos administradores designados pelo Governo; eliminar a participação dos trabalhadores na reestruturação, fusão, cisão ou liquidação das empresas públicas.
5 — Tais propostas são frontalmente inconstitucionais.
Na verdade, não só não sofreram qualquer diminuição as disposições constitucionais respeitantes à garantia das nacionalizações [designadamente os artigos 83.°, 80.°, alínea c), e 290.°, alíneas e), {) e g)] como foi completado o elenco das normas de protecção constitucional dos direitos dos trabalhadores e das suas organizações (v. artigos 54.° e 55.°). Por outro lado, a redacção do artigo 89.°, n.° 2, decorrente da revisão constitucional veio eliminar quaisquer dúvidas sobre a proibição constitucional de gestão de empresas do sector público por entidades privadas, tornando inequívoca a inconstitucionalidade do artigo 9.° da actual Lei de Delimitação de Sectores, que previa, a título excepcional, a possibilidade de concessão de exploração e gestão de empresas nacionalizadas cujas actividades se exercessem fora dos sectores fundamentais da economia.
Torna-se claro que a AD pretende obter, por contrabando, na lei das grandes opções do Plano, aquilo que comprovadamente não conseguiu na revisão constitucional e quer recuperar, através de uma só lei ordinária, tudo o que perdeu na alteração do artigo 89.° da Constituição.
6 — O Regimento veda, porém, a admissão de projectos e propostas de lei ou propostas de alteração que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados [artigo 130.°, n.° 1, alínea a)]. Ê precisamente o que sucede no caso da proposta de lei n.° 137/11.
6.1 —Desde logo a designação da proposta, longe de traduzir sinteticamente o seu objecto principal, antes dolosamente o encobre e oculta, em violação do disposto no artigo 135.° do Regimento.
6.2 — Mas é materialmente inadmissível a iniciativa governamental, como se passa a demonstrar:
a) Na verdade, discutiu-se, sob a vigência da
redacção originária da Constituição de 1976, se as grandes opções do Plano e o Orçamento Geral do Estado deveriam constar de um único instrumento jurídico. Discutiu-se qual o alcance a atribuir à disposição do então artigo 93.°, alínea c), que previa que o plano anual integrasse o Orçamento do Estado para esse período. Mas o que nunca suscitou controvérsia é que cabe à Lei do Plano aprovar as grandes opções globais e sectoriais correspondentes ... a cada plano (artigo 94.°, n.° 2), não podendo ser outro nem diferente o seu objecto;
b) Não pode, por outro lado, ser posto em causa
que a delimitação de sectores só pode ser objecto de processo legislativo autónomo. Trata-se de uma importante peça do nosso ordenamento jurídico, destinada a regulamentar directamente um específico artigo da Constituição (o artigo 85.°, n.° 3), na sua inter-relação com os artigos 80.°, alínea c), 83.°, 54.°, 55.° e 290.° da Constituição. Não é admissível que possa ser contrabandeada mediante inclusão de autorização legislativa numa lei do Plano cuja vigência se circunscreve ao período anual;
c) Trata-se, com efeito, de leis com natureza,
objecto e regime processual completamente distintos.
Página 12
470-(12)
II SÉRIE — NÚMERO 32
Desde logo, só ao Governo (e não aos deputados) cabe a iniciativa das propostas de lei do O GE e do Plano, cujo debate e votação gozam de prioridade regimental e obedecem a processo especial, caracterizado pela celeridade, dados os prazos constitucionalmente assinalados à actividade estadual nesses domínios.
As leis respeitantes às bases gerais das empresas públicas e à delimitação de sectores obedecem ao regime geral, quer quanto à iniciativa, quer quanto ao debate e votação, e não gozam de prioridade, salvo se for expressamente solicitada (e concedida). É mesmo sabido que, em caso de veto, a promulgação dos diplomas respeitantes à delimitação de sectores depende de confirmação parlamentar por maioria qualificada de dois terços.
Ora, a proposta de lei governamental afasta-se claramente destes parâmetros. Mais ainda: ao meter no mesmo saco três matérias de natureza, objecto e regime processual diversos, acobertando-as sob designação que não revela o seu real conteúdo, a proposta pretende impor uma óbvia e inconstitucional restrição ao exercício dos poderes dos outros órgãos de soberania, que assim ficam impedidos de emitir um juízo diferenciado sobre cada uma das três componentes autónomas) abusivamente incluídas no mesmo instrumento jurídico.
6.3 — E não se diga que se trata de aditar à Lei do Plano duas meras autorizações legislativas que teriam de ser julgadas exclusivamente quanto à sua extensão, duração e cabimento na área de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Tal argumentação só poderia ter um de dois significados: ou os textos do projectados decretos-leis que
acompanham as autorizações não têm qualquer valor ilustrativo nem representam as verdadeiras intenções do Governo — e nesse caso é desconhecida a extensão da autorização solicitada, pelo que não pode ser concedida— ou os textos reproduzem a intenção legi-ferante do Governo — e nesse caso são de tal forma e tão frontalmente contra a Constituição que é expressamente vedada à Assembleia da República a concessão de autorização legislativa.
Não pode ser outro o sentido a atribuir ao disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 168.° da Constituição da República. A apreciação da extensão e duração das autorizações legislativas ficaria desprovida de sentido útil se não assentasse num juízo sobre conformidade da legislação a emanar ao abrigo de autorização legislativa com a Constituição.
6.4 — ?or outro lado, enquanto a Lei do Plano teria a sua vigência por 1 ano, independentemente de queda ou demissão do Governo, ou de termo de legislatura ou dissolução da AR, as autorizações legislativas caducam com a verificação de qualquer dos eventos citados. Tal facto é mais uma comprovação de que se trata de matérias insusceptíveis de junção no mesmo instrumento jurídico e de que a Lei do Plano é forçosamente autónoma, devendo ser discutida e aprovada e poder vigorar independentemente de quaisquer alterações no restante quadro jurídico.
7 — Por tudo o exposto se há-de ter por inconstitucional a proposta de lei n.° 137/11 e inadmissível, como determina o artigo 130.°, n.° 1, do Regimento da Assembleia da República.
Assembleia da República, 20 de Dezembro de 1982. — Os Deputados do PCP: Veiga de Oliveira — Octávio Teixeira — Jerónimo de Sousa.
PREÇO DESTE NÚMERO 8$00
Imprensa Nacional - Casa da Moeda