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II Série — Suplemento ao número 84

Quarta-feira, 8 de Fevereiro de 1984

DIÁRIO

da Assembleia da República

III LEGISLATURA

1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1983-1984)

SUMÁRIO

ACTA DA REUNIÃO DA COMISSÃO DE ASSUNTOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS DE 7 DE FEVEREIRO DE 1984

O Sr. Presidente (Lino Lima):—Srs. Deputados, está aberta a sessão.

Eram 15 horas e 45 minutos.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, está em apreciação a nova redacção que o artigo 1.° do projecto de lei n.° 265/III dá aos n.M 2 e 3 do artigo 140.° do Código Penal.

£ a seguinte:

2 — A verificação das circunstâncinas que excluem a ilicitude do aborto, no caso previsto na alínea a) do número anterior, deve ser atestada em relatório subscrito, sempre que possível antes da intervenção, por dois médicos diferentes daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

3 — A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto, nos casos previstos nas alíneas 6) a d) do n.° 1, deve ser atestada em documento escrito e assinado, antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

O Sr. Presidente: — Entretanto, deram entrada na Mesa duas propostas apresentadas pelo Sr. Deputado Octávio Cunha do Agrupamento Parlamentar da UEDS, uma no sentido da eliminação do n.° 2 e outra de substituição do n.° 3 do artigo 140.°

Solicitava ao Sr. Deputado Octávio Cunha que, como proponente desta alteração, indicasse qual a redacção final sugerida para o novo n.° 2 deste artigo.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS):—Sr. Presidente, propomos que o n.° 2 passe a ter a seguinte redacção:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto nos casos previstos no ponto 1 deve ser atestada em documento escrito e assinado, sempre que possível antes da intervenção, por mérito diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, gostaria que me informasse se esta proposta já foi distribuída.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): — Ela acaba de ser feita, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: — Portanto, Srs. Deputados, propõe-se que seja suprimido o n.° 2 e o n.° 3, que assim passaria a n.° 2, com a seguinte redacção:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto nos casos previstos no ponto 1 deve ser atestada em documento escrito e assinado, sempre que possível antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Presidente, em primeiro lugar solicitava-lhe a distribuição desta proposta que acaba de ser feita, para que a possa examinar.

O Sr. Presidente: — A proposta vai ser distribuída, Sr. Deputado.

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O Sr. José Luís Nunes (PS): — Muito obrigado, Sr. Presidente.

Este problema que estamos a abordar suscitava-me algumas hesitações, simplesmente perdia-as, pois penso que esta proposta do Sr. Deputado Octávio Cunha é mais limitativa do que aquela que está prevista na lei, e não há motivo para se consagrarem dois regimes diferentes. Ê que, enquanto nas alíneas b) e c) na proposta originária,*a pessoa que dava o parecer e a pessoa que executava o aborto normalmente seriam médicos da especialidade, já na proposta constantes da alínea a) a pessoa que executava o aborto era, normalmente e dentro das regras da experiência, um médico da especialidade, mas o que se exigia é que o? dois médicos fossem diferentes. Ou, isto afigura--se-me que seria um contra-senso por contrapor em relação a uma especialidade dois médicos diferentes.

Nesta medida, parece ser de uniformizar os dois conceitos —no fundo, ficam dois médicos— e permitir que um dos médicos seja sempre aquele que melhor conhece a mulher, que é o médico que executa o aborto e em quem ela tem confiança.

Nesse sentido, e cora esta explicitação, vamos votar favoravelmente a proposta apresentada pelo Sr. Deputado Octávio Cunha.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Cunha.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS):—Além destas explicações do Sr. Deputado José Luís Nunes, com que aliás estou de acordo, penso que mesmo em termos da prática habitual da medicina me parece mais correcto não ter que exigir um segundo atestado médico, por todas as razões e mais alguma. Aquela, porém, que me parece fundamental é a seguinte: a mulher tem o seu médico assistente, que é aquele que a conhece. E se ele tem dúvidas do ponto de vista profissional em relação à indicação conforme o que está explicitado no projecto de lei, ele dirá, como é hábito entre nós, aos colegas de outras subespecialidades

— por exemplo, ao geneticista — a sua opinião, como o dirá não só a um, mas a dois, a três, a quatro ou a cinco médicos se assim o entender.

Quando a situação é clara, ele próprio assume a sua responsabilidade e por isso, não se entende que se esteja a desconfiar da sua autoridade profissional exigindo uma rectificação por um outro colega. Ele próprio irá, seguramente, perguntar ao geneticista se, por exemplo, a amniocíntese que executou deu, depois de estudada, um resultado indicador de que se trata de uma má formação de determinado tipo, assim como decerto que perguntará aos técnicos de laboratório de virulogia se houve ou está a haver naquela altura uma infecção com as consequência que são conhecidas sobre o feto. Enfim, temos de admitir

— e não podemos partir de outro princípio — que o médico que vai assinar um documento destes irá certamente assegurar todas as condições legais para o fazer, por isso, tenho de admitir —e ninguém me pode obrigar a pensar de outra maneira— que é um médico responsável e que irá certamente assegurar, por todos os meios possíveis, a correcção do documento que vai assinar.

Assim, estar a exigir um segundo médico, para além de complicar extraordinariamente uma situação, tornando-a mais morosa —provavelmente até tendo

como possível consequência a passagem do tempo em que seria praticável a interrupção da gravidez — parece-me, e isso é mais grave para mim, que é pôr em causa a decisão pessoal do médico assistente da mulher.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.a Deputada Helena Cidade Moura.

A Sr.a Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Em princípio parece-me que é de aceitar esta proposta de alteração apresentada pelo Sr. Deputado Octávio Cunha. Queria apenas certificar-me se o n.° 1 inclui todas as alíneas que aqui estão.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): — Exactamente. Sr.a Deputada.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Com o devido respeito pelo Sr. Deputado Octávio Cunha, e também com o merecido apreço pelas suas propostas de eliminação e de alteração, creio que corremos o risco ce simplificar de tal forma o processo de controle da licitude que, eventualmente, poderemos entrar por um caminho em que efectivamente nada é controlado.

Chamo a atenção da Comissão para o facto de a alínea a), por um lado, e as alíneas b), c) e d), por outro, preverem hipóteses que são totalmente distintas. A alínea a), como todos os Srs. Deputados tiveram jc oportunidade de reparar — e isso é bastante importante— ao criar, nomeadamente, um regime que a distingue daquele que está previsto nas restantes alíneas, não tem prazo para a interrupção voluntária de gravidez, isto, numa proposta que o próprio Partido Socialista entende que é restritiva, significa e traduz, objectivamente, uma gravidade acrescida na situação aí prevista.

Efectivamente, a situação prevista na alínea a) é, em termos objectivos, extraordinariamente mais grave. E de tal forma o é que nem se estabeleceu prazo de limitação, pelo que a mulher que se encontre nas situações ali descritas pode, em qualquer momento — e nada na lei nos impede até que seja na véspera de um eventual parto— interromper ou sujeitar-se a uma intervenção cirúrgica para fazer terminar esta situação que põe em perigo irreversível a sua vida física e psíquica.

Por outro lado, as alíneas b), c) e d), que contemplam hipóteses que serão eventualmente mais correntes no dia-a-dia — e nesse aspecto pediria o auxílio técnico do Sr. Deputado Octávio Cunha no sentido de o confirmar ou não— deverão efectivamente levar a uma maior facilidade, como aliás o Sr. Deputado defende. Mas não creio que esta simplificação deva ser estendida à hipótese prevista na alínea a), que á profundamente grave, e cujo regime é substancialmente diferente daquele que consta das outras alíneas.

Portanto, nesse aspecto, e sempre com o muito respeito devido ao Sr. Deputado Octávio Cunha — e até particularmente pelo conhecimento mais próximo que tem destas realidades— creio que não deveríamos eliminar o n.° 2. E embora desde o início tenha dito que vou votar contra todos estes números.

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isto não me impede de mostrar uma preferência no sentido de manter os n.os 2 e 3 tal como estão.

Se a situação prevista na alínea a) do n.° 1 do artigo 140." é substancial e objectivamente mais grave, o seu regime de controle deve ser, também ele, substancial e objectivamente acrescido. E é nesse sentido que aqui está previsto um relatório por dois médicos, enquanto nas hipóteses figuradas nas outras alíneas basta apenas um médico.

No fundo, não sei se VV. Ex.as reparam, a alteração proposta pelo Sr. Deputado Octávio Cunha limita-se praticamente a reduzir os dois médicos para um, facilitando ou simplificando afinal o controle da situação, o que não parece justificar-se visto que a situação prevista na alínea a) é profundamente grave.

Chamaria, por isso, a atenção dos Srs. Deputados para esse aspecto, e faço-o no sentido de, sem prejuízo da minha posição final sobre a matéria, prestar uma colaboração para melhoria deste diploma.

O Sr. Presidente: —Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Deputado Correta Afonso, o que aqui me choca é que neste caso, que é gravíssimo, há duas coisas que creio que não estão bem: uma é a expressão «sempre que possível»; a outra refere-se à indicação de «dois médicos diferentes». Quer dizer, o que aqui se vai buscar não é uma opinião avalizada. O médico que vai fazer o aborto, em princípio, será um especialista, mas ele chega ao pé de um ortopedista ou de um dentista e diz-lhes assim: façam favor de me dar uma declaração! Ora bem, isto é que me parece altamente errado.

Há, porém, um ponto em que as suas objecções não caíram em «saco-roto» e em relação ao qual penso que é possível chegar aqui a uma solução de justo equilíbrio. Ê que nesta ideia de uniformização dos regimes, enquanto o primeiro dá lugar a um tempo mais lato —e fala-se em «sempre que possível» — no segundo, o das alíneas 6), c) e d) — e sobretudo na alínea c) que é fundamental — não se refere tal expressão.

Portanto, e dentro das objecções que o Sr. Deputado colocou, se o Sr. Deputado Octávio Cunha estivesse disposto a manter a sua proposta de eliminação do n.° 2 e a manter em relação ao n.° 3 a sua proposta de alteração, nós iríamos eliminar a expressão «sempre que possível», uma vez que ela é aqui perfeitamente destituída de sentido, Porque repare, nesta proposta do n.° 2 exige-se dois médicos «sempre que possível», médicos que podem ser, como lhe digo, um dentista, um ortopedista ou um médico de pulmões; enquanto aqui em baixo, em que as coisas como disse são menos graves, exige-se só um médico e não se acrescenta o «sempre que possível».

Portanto, parece-me ser de uniformizar os regimes e de retirar do texto a expressão «sempre que possível».

O Sr. Presidente: —Tem a palavra o Sr. Deputado Octácio Cunha.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): — Agradeço as objecções postas pelo Sr. Deputado Correia Afonso e evidentemente que entendo as suas preocupações, só que

penso que o Sr. Deputado também deve ter de compreender as minhas.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Pelo menos faço o possível, Sr. Deputado!

O Orador: — O facto é que eu parto sempre do pressuposto que o médico que vai assinar um atestado c uma pessoa responsável, que não está propriamente a fazê-lo como quem preenche um boletim do totobola. Trata-se de uma situação extremamente complexa, que pressupõe uma ou várias conversas demoradas com a mulher, provavelmente com o casal, que pressupõe muitas vezes exames relativamente complexos praticados em centros especializados, que não são muitos, que implica também uma conversa prévia e também posterior, assim como uma boa ligação entre este clínico que é, digamos assim, o médico de família e o instituto de genética ou o serviço especializado de vi-rulogia — portanto, implica uma boa ligação entre serviços—, por forma que, finalmente, a posição que o médico vai tomar é assumida depois de ouvidos outros especialistas.

Agora o que não acho necessário é que a lei obrigue a mulher, depois de ter todos estes exames que confirmam, por exemplo, que há uma má formação ou de ter, inclusive, uma apreciação de um colega psiquiatra que acha que aquela gravidez conduz a danos irremediáveis no psiquismo daquela senhora, etc, não me parece que seja necessário haver um segundo médico, que até está fora de tudo isto, e a quem apenas cabe reassinar o que o médico assistente já confirmou. Creio, de facto, que isso não vem facilitar absolutamente nada, vem sim responsabilizar mais ainda o médico que toma a decisão de propor uma interrupção de gravidez tia base de critérios que estão definidos pela lei e que ele confirmou cientificamente com os meios que tem à sua disposição.

Em relação à supressão da expressão «sempre que possível», acho que efectivamente posso retirá-la. Essa referência tinha uma intenção, mas, de qualquer maneira, a expressão «sempre que possível» nos casos em que estava a pensar quando a introduzi no texto está ultrapassada de certo modo pela própria realidade das situações. Estava a pensar, concretamente, nos casos das mulheres que chegam a um serviço de urgência numa situação dramática, em que é efectivamente necessário em muitas alturas interromper não apenas a gravidez, mas ir mesmo mais longe —como já aqui disse várias vezes — e fazer uma estreptomia total, sob pena de a senhora morrer. Ora, é evidente que, numa situação dessas, não andamos à procura de um médico para assinar um documento, pratica-se imediatamente o acto cirúrgico necessário para salvar a vida da mãe.

Mas estou de acordo e aceito a proposta que o Sr. Deputado José Luís Nunes fez.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Creio, Srs. Deputados, que, independentemente das posições de princípio em que cada um se coloca, nós vamc-nos aproximando. Mas vamo-nos aproximando em termos de linguagem, embora me pareça que ela não tem a su£-ciente expressão no texto. Ê que, em termos de linguagem, estamos, efectivamente, muito próximos.

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Estou perfeitamente de acordo com a sugestão do Sr. Deputado José Luís Nunes de retirar a expressão «sempre que possível», pois acho que é uma alteração no sentido da melhoria do texto. Até estou igualmente de acordo com o que disseram os Srs. Deputados José Luís Nunes e Octávio Cunha, ao referirem que efectivamente não são precisos dois médicos porque — e vou usar expressões do Sr. Deputado Octávio Cunha — «o médico que segue normalmente a mulher está em condições de ver o que é que deve ser feito». Falou-se no «médico de família» e, repito, estou a citar expressões que não são minhas e que são, concretamente, ou do Sr. Deputado José Luís Nunes ou do Sr. Deputado Octávio Cunha.

Porém, tudo isto, que em termos de linguagem nos aproxima, não tem qualquer tradução no texto, já que este fala apenas no médico, que inclusivamente pode ser o médico que vê pela primeira vez a senhora. E cai pela base toda a argumentação do Sr. Deputado José Luís Nunes, quando diz «para que é que são precisos 2 médicos, se pode ser até que um médico seja oftalmologista?». Ora, em relação a isto gostaria de responder ao Sr. Deputado o seguinte: então se se determinar apenas a necessidade de um médico, não é verdade que ele pode ser também um médico oftalmologista? Há qualquer restrição, quando se refere apenas um médico, no sentido de que ele seja — e vou repetir as expressões — o «médico de família», o médico assistente, aquele que segue normalmente a mulher grávida?

Daí eu dizer que, em termos de linguagem, estamos de acordo e se puserem isso no texto até compreendo e aceito! Agora não está nada disso no texto. É que na verdade pode, de facto, ser um médico oftalmologista, só que, em lugar de serem 2, é bastante mais grave que seja só um.

Portanto, se esta nossa preocupação for levada ao texto, no sentido de consagrar que é o médico que conhece a mulher grávida, aquele que a tem acompanhado, que se deve pronunciar, porque é ele que conhece a fundo o problema de maneira que lhe é possível sozinho decidir, e se isso tiver expressão de texto, perfeitamente de acordo. Mas isso não está cá, Srs. Deputados! Nós estamos a conversar apenas para a acta, mas não para o texto legislativo! Não há nada no texto que traduza isto e, portatnto, se não há nada, prefiro que estejam lá 2 médicos — e podem ser os 2 oftalmologista, mas fazem mais garantia 2 médicos oftalmologista do que só um.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Acho, de facto, que já nos aproximámos bastante e, no fundo, acabo por lhe dizer Sr. Deputado Correia Afonso que se trata de uma dificuldade insuperável em que há que confiar no bom senso. Aquilo que me chocava neste texto era a expressão «sempre que possível». Porque é que esta expressão tinha de estar aqui? Em segundo lugar, por que é que se fazia uma exigência deste tipo — «sempre que possível» —, que parece ser uma coisa dimi-nuidora e depois se acrescenta a necessidade de 2 médicos? Ê contraditório!

De modo que a solução que aponta para a necessidade de um médico para além daquele que realiza o aborto, compensada, digamos, pela retirada da dita

expressão «sempre que possível», será uma orientação que cabe melhor dentro da própria limitação que a lei visa. Quer dizer, retirando-se a referida expressão e ficando apenas a impor-se a necessidade de um médico, é mais lógico — é mais lógico — porque evita-se esta necessidade de 2 médicos que não está certa e que, como noutro dia me chamavam à atenção, não atende à realidade de a cobertura de clínicos pelo País ser extremamente escassa. Numa grande cidade não será difícil arranjar 2 médicos, mas por exemplo, mesmo numa capital de província há zonas em que será difícil evitar a repetição mecânica dos actos.

De modo que, tirando um médico e compensando essa saída de um médico pela retirada da expressão «sempre que possível», penso que chegaríamos a uma solução mais equilibrada, embora ela não possa ser, obviamente, aquela que o Sr. Deputado Correia Afonso quereria e na qual penso que me integraria também.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.a Deputada Zita Seabra.

A Sr.a Zita Seabra (PCP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Queremos dizer que estamos de acordo com esta proposta do Sr. Deputado Octávio Cunha e, porque conhecemos um pouco o que é a realidade dos serviços de saúde, entendemos perfeitamente a razão de ser desta expressão «sempre que possível» que figura no texto. Ê que estamos aqui a discutir 2 situações diferentes: uma situação que será a de uma mulher que tem uma doença detectada, ou por o «médico de família» ou por aquele que habitualmente a acompanha, daí resultando a impossibilidade de prosseguir a gravidez — uma mulher cardíaca, por exemplo; outra situação é a da mulher que aparece com um acidente no banco de urgência do hospital, caso em que a intervenção tem de ser imediata sem esperar pelo atestado. Daí a razão por que entendemos que a expressão «sempre que possível» figure no texto.

Claro que penso que, mesmo que não esteja lá escrita essa expressão, isso vai funcionar assim, porque já funciona! Nessas situações limites, quando se dá um caso de uma mulher entrar de urgência no hospital e quando a intervenção tiver de ser decidida de imediato, evidentemente que não se hesita e salva-se--lhe a vida. Portatnto, tenho ideia que a supressão da expressão resulta depois na prática e no âmbito dos serviços de saúde, numa situação idêntica àquela que ocorreria se, de facto, ela se mantivesse, isto é, penso que nesses casos limites em que já hoje a vida da mulher é salva, se continuará a proceder da mesma maneira.

Também me parece importante, e sobretudo lógico, que r.ão se consagre a exigência dos 2 médicos, ou, melhor, dos 3, porque neste caso seriam 3. E isto por uma razão muito simples: é que faz igualmente parte da deontologia médica —e nós sabemos um pouco como isso funciona —, que quando um médico atesta uma coisa e outro não vai contestar, salvo invocando objecção de consciência, mas isso fará funcionar outro mecanismo. Agora, quando um médico faz um determinado diagóstico e o apresenta a outro, este subscreve o atestado. Isso é o normal e o comum, em qualquer serviço de saúde ou junta médica, salvo quando se trata de funcionamento em equipa. Não é, porém, a esses casos que nos estamos a referir, mas aqueles em que há ura atestado passado por um roé-

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dico e depois a mulher tem de ir a outro médico buscar um outro atestado para finalmente ter a intervenção praticada por um terceiro.

Ora, quando isto tem em vista um número tão limitado de casos —ou seja, aqueles em que a vida da mulher está em perigo—, não vejo razão para realmente se obrigar à participação dos dois médicos e não apenas de um, mais aquele que faz a intervenção. Isso será mais do que suficiente, quanto a mim, para verificar o mínimo de certeza do diagnóstico que é feito.

Por isso, estamos de acordo com o fundamental da proposta apresentada, embora no nosso texto inicial o sentido fosse outro. Mas, tendo em conta o texto base que estamos a seguir, estamos de acordo.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: Compreendo a dificuldade que estamos a ter em traduzir no texto as preocupações que vamos aqui exprimindo pouco a pouco. E, numa tentativa de aproximação daquilo que parece ser um consenso que está no ar, sugeria o seguinte. Antes, porém, devo dizer que não vou fazer a proposta a menos que se verifique, da parte dos Srs. Deputados, um mínimo de abertura consensual para justificar que eu a faça.

Segundo estou a depreender, e pela proposta com a sugestão do Sr. Deputado José Luís Nunes, o texto do Sr. Deputado Octávio Cunha teria agora a seguinte redacção:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser atestada em documento escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por que, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

A sugestão que, neste momento, estava a referir tra-duzir-se-ia pela introdução da expressão «notarialmente autenticado», que seria colocada entre a palavra «documento» e a palavra «escrito». Isto em termos de 9Ugestão, porque, como disse há pouco, não vou formalizar esta rainha proposta se não houver um mínimo de abertura consensual. Se verificar que os Srs. Deputados não estão de acordo, não vale a pena estar a formalizá-la.

A redacção final deste número ficaria, portanto, a ser a seguinte:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser atestada em documento, notarialmente autenticado, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

Portanto, mantinha-se a exigência que já está no texto de que o acto da escrita e da assinatura seria antes da intervenção, mas, na medida em que era aqui intercalado o «notarialmente autenticado», isto pressupunha que essa autenticação poderia ser posterior à intervenção. E seria assim porque me parece, realmente, um bocado exagerado exigir que, para além do escrito assinado, também tenha de ser obrigatoriamente autenticado antes da intervenção. Agora em termos de

processo parece-me que ele só deveria ficar completo quando, mesmo depois da intervenção, fosse autenticada a escrita e a assinatura.

Ê esta a sugestão que deixo e que formalizarei se, por acaso, os Srs. Deputados entenderem que ela é aceitável.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Sr. Deputado Correia Afonso, penso que nos estamos a aproximar bastante e se o Sr. Deputado votasse uma proposta contendo tal sugestão, acho que nos poderíamos entender sobre ela.

A expressão «notarialmente autenticado», se inclui a expressão letra e assinatura, não pode ser usada aqui. E não o pode ser, porque a expressão letra e assinatura significa reconhecimento presencial, portanto, está liquidado! Agora penso que, com a expressão «notarialmente autenticado», o Sr. Deputado Correia Afonso não pretende simplesmente um reconhecimento de assinatura, mas sim, como agora explicitou, num reconhecimento presencial da letra e da assinatura. Só que isso tem de ser feito perante o notário.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Não é isso que pretendo.

O Orador: — Mas o Sr. Deputado falou em letra e

assinatura.

O Sr. Correia Afonso (PSD): —Foi apenas referido em explicação, porque no texto que sugeri não digo

isso.

O Sr. Deputado está a perceber perfeitamente a minha preocupação.

O Orador: — Exacto, creio que o que o Sr. Deputado pretende é que este documento não possa ser um documento falso.

Por outro lado, o Sr. Deputado admite inclusive que este documento possa ser autenticado, através do reconhecimento da letra, depois da intervenção.

Ora bem, há duas maneiras de um documento não ser considerado falso: uma, quando ele é apresentado perante o notário, embora ele só ateste as percepções do que lá está escrito ...

O Sr. Correia Afonso (PSD): —Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Eu admito que a letra e a assinatura sejam reconhecidas depois, na medida em que compreendo que estas situações, por vezes, são urgentes e, portanto, incompatíveis com essas demoras. Para mim, o ideal é que essa autenticação seja feita antes da intervenção, mas admito que fique no texto uma redacção que permita que esse acto de reconhecimento seja posterior, numa com-prensão por situações de emergência que poderão surgir-

O Orador: — Bom, então pergunto: o Sr. Deputado votaria a favor de uma proposta nesse sentido?

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O Sr. Correia Afonso (PSD): — Oh, Sr. Deputado, a minha posição de rejeição em relação a esta proposta mantém-se. Estava apenas a tentar colaborar de uma forma leal, no sentido de um melhor apuramento da redacção deste número, embora já tenha ressalvado que a minha posição face a esta matéria é decididamente contra.

O Orador: — Muito obrigado, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr." Deputada Helena Cidade Moura.

A Sr.a Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — Queria dizer que fui muito sensível aos argumentos apresentados pelo Sr. Deputado Octávio Cunha quando falou das situações de urgência, assim como à referência que também a esse assunto foi feita pela Sr.a Deputada Zita Seabra. Penso que ao lermos a expressão «sempre que possível», fizemos uma leitura diferente da que é feita pelos médicos. «Sempre que possível» para a pessoa que propôs a substituição destes números queria dizer «em caso de ser possível por causa do estado da grávida», e nós vimos «sempre que possível» relacionado com as circunstâncias de haver um outro médico que assinasse, tratando-se neste caso de algo que poderíamos dominar. Daí, o outro significado da expressão «sempre que possível».

Não sei se o Sr. Deputado Octávio Cunha está de acordo, mas propunha que se fizesse uma pequena modificação à sua proposta de substituição e ficasse:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser atestada, salvo em caso de urgência, em documento escrito e assinado [...], etc.

Dá-me a impressão que isso corresponderia àquilo que o Sr. Deputado disse e ficavam assim salvaguardados os casos de urgência.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.a Deputada Zita Seabra.

A Sr.a Zita Seabra (PCP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Só gostaria de dizer o seguinte ao Sr. Deputado Correia Afonso. Se se exige a verificação notarial da assinatura, a única coisa que o notário pode atestar é que a assinatura do médico é verídica, e não a veracidade do atestado. E isto porque o notário não pode evidentemente, dizer que aquele atestado médico tem razão de ser e que se trata efectivamente de um perigo de vida para a mulher. Portanto, a única coisa que o notário verifica é a assinatura verídica do médico, mais nada!

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Grande vocação jurídica, Sr.a Deputada! É isso mesmo!

A Oradora: — Em segundo lugar, a consequência que isso tem para a mulher, é que em relação a uma situação limite para a sua saúde, que põe em perigo a sua vida — porque é disso que se está a tratar—, além do médico e do serviço de saúde que irão intervir no seu caso ficarem no conhecimento de algo que é obviamente traumatizante para ela, isso vai igualmente passar a ser do conhecimento do no-

tário, das dactilógrafas do cartório do notário e de todas as outras que aí prestam serviço, o que, num meio pequeno, é extremamente traumatizante para quem tem de recorrer a uma situação dessas.

Porque, das duas uma: ou o atestado diz para que é, ou não diz. Portanto, a certa altura, temos o notário, mais os serviços de saúde, a intervirem numa situação que é sempre uma situação limite — situações de cancro, cardíacas ou desse tipo. Ora, exactamente pela delicadeza da situação, penso que é extremamente penalizador para a mulher ela ter de ir com o atestado médico ao notário, mesmo que seja depois de o acto de intervenção ter sido praticado. Creio que isso será sempre extremamente traumatizante e, portanto, nunca poderíamos subscrever uma posição dessas.

Estamos de acordo que se tomem medidas e que se encontrem fórmulas —e os juristas poderão encontrá-las — de garantir a veracidade do atestado, isto é, que a assinatura do médico é mesmo a sua assinatura. Agora não no sentido de encaminhar a mulher para o notário, por forma que, a certa altura, além do serviço de saúde, ainda haja mais o notário a saber a posteriori que foi feita uma interrupção da gravidez para salvar a vida daquela mulher.

Acho que isso nem sequer está no espírito da legislação apresentada, e creio que há outras maneiras de controlar a veracidade do atestado sem ser esta solução de encaminhar a mulher para o notário. Estamos a ver o que isto significa, por exemplo, numa cidade de província, ou mesmo numa capital distrital, em que toda a gente se conhece.

É por tudo isto que não poderíamos nunca estar de acordo com essa proposta.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado )osé Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Creio que as sugestões do Sr. Deputado Correia Afonso são de acolher, apesar dos problemas que elas realmente nos puseram. Por outro lado, aquilo que a Sr.a Deputada Zita Seabra disse também é verdade.

Pelo Código Civil, o funcionário público só atesta as percepções do que foi dito. De qualquer forma, também um papel qualquer não serve. E esta é que é a verdade! Se eu pegar num pedaço de papel qualquer e disser «fica autorizado fulano tal a fazei isto, ou aquilo», obviamente que estou a abrir caminho a toda a espécie de abusos.

Portanto, para além da posição genérica de rejeição do Sr. Deputado Correia Afonso — posição que nós compreendemos e aceitamos — se o Sr. Deputado fizer como proposta de alteração, e só nesse ponto, uma proposta em que se diga que isto deve ser feito em papel timbrado do clínico, que é uma forma importante, nós votaremos a favor dessa proposta.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): —Sr. Deputado José Luís Nunes, agradeço muito a sua compreensão e, pelo menos, tenho esta satisfação: Ê que os Srs. Deputados presentes não ficaram completamente imunes â minha preocupação, que não é no fundo no sentido de dificultar, mas de assegurar, pelo menos, a possível

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autenticidade a todo um processo. E isto porque, na medida em que estamos a funcionar colectivamente como legisladores, teremos de atender a que o processo não 6 só o acto material do aborto. Ele começa antes com a análise da mulher, desenvolve-se depois com o certificado, continua com a intervenção e não acaba aí, pois tem de haver uma autenticação, uma segurança, de que tudo o que se passou está em conformidade cem aqueles casos de licitude que a lei vai prever.

ê evidente que também sou sensível àquilo que a Sr.* Deputada Zita Seabra acabou de dizer. Sou sensível e, efectivamente, tenho uma certa dificuldade em responder-lhe, quando me fala em casos de terras pequenas em que tudo se sabe quando perante o notário certas questões são apresentadas. Devo dizer que estou, neste momento, «cambaleando» entre o sigilo que convém e a segurança necessária. É que são 2 valores que estão aqui um pouco em contradição, se considerarmos uma terra pequena. Agora, e pensando melhor, julgo 6 que a sugestão do Sr. Deputado José Luís Nunes não chega. Ê, efectivamente, um bom contributo, na medida em que se trata de mais um passo tendo presente a preocupação pela segurança de todo este processo. Mas não chega, Sr. Deputado, porque efectivamente não existem garantias nenhumas em termos de emissões de papel ou de timbres de papel. Eu posso timbrar um papel em nome de qualquer pessoa, posso ter no meu escritório papel timbrado com o nome de Albert Einstein e qualquer tipografia mo faz! De modo que não quereria ajudar a criar uma forma mais de possível falsificação.

Portanto, o papel timbrado como sugeriu o Sr. Deputado José Luís Nunes, embora reconheça que é um esforço da sua parte no sentido da aproximação, não chega e não satisfaz as minhas preocupações.

Por outro lado, em relação à objecção levantada pela Sr.a Deputada Zita Seabra, aliás muito bem feita, devo dizer que, neste momento, não estou preparado para lhe responder, porque efectivamente não sei como resolver essa preocupação, que é uma preocupação séria.

A Sr.1 ZáJa Seabra (PCP): — Dá-me licença, Sr. Deputado.

O Orador: — Faça favor, Sr.a Deputada.

A Sr." Zita Seabra (PCP): —Queria-lhe fazer uma pergunta, Sr. Deputado: não está juridicamente definido o que é um atestado médico? Isto é, quando um médico passa um atestado, não há já uma definição jurídica do que é um atestado médico?

Creio até que há vários tipos de atestados médicos!

O Orador: — Então, nessa altura, Sr." Deputada — e devo dizer-lhe que V. Ex." tem demonstrado uma vocação jurídica sensacional —, sugeria-lhe uma alteração: em lugar de estar aqui «a ilicitude do aborto deve ser atestada em documento escrito [...]», poria «a ilicitude do aborto deve ser certificada em atestado médico», porque se puser atestado médico preenche isso tudo. Mas, por enquanto, não está cá isso!

O Sr. Çosé Luís Nunes (PS):—Sim, senhor, da nossa parte aceitamos perfeitamente essa proposta.

O Orador: — Acho, de facto, que é uma boa sugestão, mas precisamos de recolher o acordo do Sr. Deputado Octávio Cunha, que é o autor do texto. A redacção deste número ficaria a ser do seguinte teor:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

Essa sugestão, Srs. Deputados, preenche as minhas preocupações.

A Sr. Zita Seabra (PCP): — Oh, Sr. Deputado, se me dá licença, queria apenas dizer que isso significa que o médico faz um relatório, um atestado médico, mas isso não implica que esse documento seja levado ao notário para ser reconhecido notarialmente.

O Orador: — Neste momento, Sr.a Deputada, posso dar-lhe mais um contributo para esclarecer esse ponto. É que se trata de um documento que fica em carteira ou em mão da mulher grávida, que ela reconhecerá quando quiser e se for necessário. Não é obrigada a reconhecê-lo, guarda-o, mas se amanhã surgir qualquer preocupação, se ela for suspeita de ter extravasado os limites da licitude, ela tem um documento que pode transformar em atestado médico.

O Sr. José Luís Nunes (PS):—Exacto.

O Orador: — Acho muito hábil a sua sugestão e estou de acordo com ela.

O Sr. Presidente: — Então, Srs. Deputados, como fica a redacção final deste n.° 2 do artigo 140.°?

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Se o Sr. Deputado Octácio Cunha estiver de acordo, uma vez que é ele o proponente deste novo n.° 2, ficaria assim:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser certificada em atestado médico escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

julgo que esta redacção satisfaz as nossas principais preocupações.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Exactamente, Sr. Deputado.

O Orador: — Srs. Deputados, peço mais uma v^z que comprendam que vou votar contra. Estou a dizê-Io lealmente, assim como é com igual disposição que estou a tentar colaborar no sentido da melhoria do texto.

O Sr. Presidente: — Evidentemente, Sr. Deputado.

Srs. Deputados, passamos portanto à votação da proposta de eliminação do n.° 2 do artigo 140.°, na redacção que lhe dava o projecto de lei n.° 265/III.

Submetida à votação, foi aprovada, com 13 votos a favor, do PS, do PCP, do MDPJCDE e da UEDS, 1 voto contra, da ASDl, e 1 abstenção, do PSD.

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O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos passar à votação da proposta de substituição do n.° 3 do artigo 140.° apresentada pelo Sr. Deputado Octávio Cunha do Agrupamento Parlamentar da UEDS.

O Sr. Octávio Cunha deseja intervir?

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): — Sr. Presidente, apenas para que tudo fique muito claro. Os médicos passam atestados que não têm de ser obrigatoriamente em folhas de papel selado reconhecidas pelo notário. Ê preciso que fique claro que um atestado médico é um documento habitualmente em papel timbrado, que para efeitos, por exemplo, de faltas ao trabalho será em papel selado, porque tem de ser reconhecido pelo notário — inclusivamente, nesta altura, nem tem de ser reconhecido, porque a apresentação do bilhete de identidade do médico é suficiente. De qualquer maneira, quero que fique bem claro que um atestado médico é ura documento que fica na posse da senhora que vem requerer a interrupção da gravidez e que ela usará posteriormente, se entender, reconhecendo a assinatura do médico que nele figura.

O Sr. Presidente: — Bom, acho que não vamos discutir aqui o que é um atestado médico.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Deputado Octávio Cunha, salvo o devido respeito, a sua explicação de agora não tem razão de ser.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): — Queria apenas que tudo ficasse claro.

O Orador: — Trata-se de uma questão de distinção, nos termos do Regulamento de Selo e do Papel Selado ou papel com selo. Em princípio, admite-se que obrigatoriamente deve ser o papel selado. Em 1956 o Regulamento do Papel Selado ou o Regulamento da Lei do Selo do Estado da índia admitiu a introdução do chamado «papel com selo», papel esse que era extensível a qualquer parcela do ex-ultramar português, desde que fosse devidamente selado. Hoje em dia, o Código de Processo Civil admite, por exemplo, o uso nas peças processuais de fotocópias, para evitar os duplicados, desde que sejam devidamente seladas com um selo igual a meia folha de papel selado no valor de 60$. Portanto, isso está mais do que incluído.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): — Agradeço esta explicação do Sr. Deputado José Luís Nunes, porque, de facto, precisava dela.

O Orador: — Mas quando me quiser consultar, estou ao seu dispor no meu escritório.

E há mais uma coisa que o Sr. Deputado talvez não saiba: é que V. Ex.* não pode, em teoria, inutilizar um selo com rubrica. E isto porque essa inutilização do selo só pode ser feita pelo funcionalismo público. Apenas os funcionários públicos podem inutilizar os selos com rubrica, embora toda a gente o faça. ê um regulamento de 1912, mais ou menos.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, a proposta'de substituição que vamos votar é do seguinte teor:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser certificada em ates-

tado médico escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, está correctíssimo o que V. Ex.a acabou de ler, mas permitia-me sugerir que a pontuação fosse a seguinte, para que o sentido resulte mais claro:

A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser certificada em atestado médico, escrito e assinado, antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

Isto parece-me importante, porque, com estas vírgulas, fica perfeitamente claro que só o escrito e assinado é que é antes da intervenção. Daí a importância de sinalizar os locais das vírgulas, pois como elas estão em oposto ou continuado em relação às expressões escrito e assinado e antes da intervenção, fica perfeitamente resolvida a dúvida do Sr. Deputado Octávio Cunha e, portanto, só o escrito e assinado é que é antes da intervenção.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar esta nova redacção do n.° 2 do artigo 140.°

Submetida à votação, foi aprovada, com 13 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS, e com 2 votos contra, do PSD e da ASDl.

O Sr. Presidente: — Para uma declaração de voto, tem a palavra a Sr.0 Deputada Helena Cidade Moura.

A Sr.a Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não quis estar a interromper a votação, mas, de facto, penso que o Sr. Deputado Octávio Cunha tinha concordado comigo no sentido de se fazer um aditamento ao texto da expressão «salvo em caso de urgência». Pelo menos, das suas palavras depreendi que de um ponto de vista clínico era, de facto, importante que isso ficasse.

Só que o Sr. Presidente pôs o texto à votação e achei que não a deveria interromper. Em todo o caso, não sei se poderíamos talvez remeter isto para um outro parágrafo, embora seja um pouco complicado, ou então fazer uma proposta de aditamento.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Em guisa de declaração de voto, apenas algumas considerações sobre o caso da urgência. Ele não só está definido pelas regras gerais do direito, como está expressamente previsto no artigo 2." da nossa proposta:

O médico que por dolo se não premunir, nem os obtiver posteriormente a uma intervenção para interrupção voluntária e lícita da gravidez, conforme os casos, com os documentos comprovativos da verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto, exigidos por lei, será punido como se não ocorressem as causas de exclusão não documentadas.

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Esta expressão «em caso de urgência» que a Sr." Deputada queria ver figurada na alínea que acabamos de votar já está aqui consagrada.

A Sr.3 Helena Cidade Moura (MDP/CDE): -Depois, quando lé chegarmos, voltamos a ver esta questão, Sr. Deputado.

O Orador: — Está aqui, Sr.° Deputada! Ficou escrito e previsto na lei. Devo dizer-lhe, no entanto, que a expressão «salvo o caso de urgência» ou de força maior, por exemplo, era uma expressão que eu não queria ver metida aqui, porque, como qualquer jurista pode di2er, a expressão «urgência» pode ser considerada como sendo diferente da de «força maior».

Aquilo que a Sr.8 Deputada pretende está perfeitamente definido no n.° 2 do artigo 2.°

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Cunha.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não estou muito preocupado com esse aspecto porque, quando há urgência, ninguém olha a atestados.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, passamos à apreciação do n.° 4 do artigo 140." segundo o projecto de lei era apreço e que passa a ser o n.° 3 por força da eliminação de um número anterior, entretanto já aprovado.

É o seguinte:

A verificação da circunstância referida na alínea d) do n.° 1 depende ainda da existência de participação criminal da violação.

Tem a palavra a Sr." Deputada Zita Seabra.

A Sr.a Zita Seabra (PCP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Apenas para chamar a atenção que o PCP tinha uma proposta para o n.° 3 deste mesmo artigo, proposta que, entretanto, está obviamente prejudicada pela votação que acabamos de fazer.

No entanto, vale a pena referi-la, uma vez que está na Mesa, e dizer que, quanto a nós, essa proposta corresponderia muito mais ao sentido daquilo que pretendíamos ver consagrado na lei, pois procurava-se evitar toda esta questão do atestado médico —com todos os perigos de fraude que aqui mesmo já foram salientados—, colocando a decisão na mulher.

Uma vez que ficou consagrado como solução que a decisão é do médico, nós votámo-la para viabilizar essa proposta mas unicamente com o sentido de a viabilizar, não porque seja esse o nosso conceito.

O Sr. Presidente: — Sr.a Deputada, pedia-lhe què me identificasse a proposta.

A Sr." Zita Seabra (PCP): — Ê uma proposta que diz «substituição do n.° 3 do artigo 140.°», e faz parte daquele leque de propostas apresentadas pelo meu partido.

Pensamos que no caso previsto no n.° 3 a decisão deveria pertencer, efectivamente, à mulher. E, como longao&tv& tTç\\cá.mos no Plenário, pensamos que a lei não deve estabelecer um limite até à 12." semana,

com ameaças de medidas repressivas, de uma gravidez que não é desejada. Daí o sentido da nossa proposta.

Simplesmente ela está prejudicada e votámos a favor da proposta do Partido Socialista apenas para a viabilizarmos.

O Sr. Presidente: — Então, Srs. Deputados, dado que esta proposta está prejudicada, penso que poderíamos passar à votação do n.° 3, que já foi lido.

O Sr. Deputado José Magalhães pede a palavra para que efeito?

O Sr. José Magalhães (PCP): — Queria fazer uma curta intervenção sobre este assunto.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP):—Srs. Deputados, já tivemos ocasião em plenário de chamar à atenção para a gravidade de que se revestia o facto de o PS ter incluído no seu projecto uma cláusula como esta que, neste momento, está em debate.

O facto de se exigir a participação criminal da vio-. lação, como requisito fundamental para que se verifique a circunstância de exclusão da ilicitude, é grave dada a natureza que o crime de violação tem em geral e tendo em conta aquilo que a criminologia nos ensina sobre este tema. Isto é, sabe-se que o crime se caracteriza por uma baixíssima taxa de participação ou de queixa, sabe-se que frequentemente a confusão entre o autor e a vítima é terrível, assim como igualmente se sabe da quantidade de tratamentos degradantes que o processo participativo origina e como é particularmente débil a participação da mulher nesta circunstância.

Portanto, e dado que a participação se verifica apenas num número ínfimo de casos, exigir-se, como aqui se pretende, a participação criminal é até insólito. Inclusivamente, a experiência internacional revela-nos que nos processos já ocorridos de legalização da interrupção voluntária da gravidez, tem sido característico, por parte das forças mais retrógradas, esta so-breexigência de participação criminal. Sabemos, porém, que as legislações têm vindo a rejeitar este requisito, bastando-se com os aspectos médicos, seus indícios e formas de prova característicos, não exigindo, portanto, este sobrerrequisito que significa obrigar a mulher que foi vítima de violação a ir à esquadra sofrendo tudo o que está inerente ao processo de participação.

Quero lembrar que, por exemplo, no caso espanhol, que ainda há pouco foi discutido, o projecto que fez vencimento e que neste momento está no Senado para apreciação não incluía este requisito, tendo sido, aliás, a Fuerza Nueva que o propôs sem êxito, não o conseguindo, e quanto a nós ainda bem!

£ isso que é geral em relação às legislações que despenalizaram o aborto ético — neste caso com fundamento em violação — e em nossa opinião seria muito grave a consagração de um requisito deste tipo.

Apelamos, por isso, aos proponentes para que reflictam ainda, uma vez que estamos a tempo, no sentido de se não consagrar esta alínea, tal como não consagrámos há bocado o sobrerrequisito da intervenção de 3 médicos para o aborto terapêutico, nos casos em que ele se justifica.

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Cremos que valia a pena ter, também aqui a mesma Oexibilidade, pois no fundo trata-se de uma abertura ao bom senso e a tudo àquilo que a criminologia nos ensina sobre esta matéria.

Gostava de vos citar, a este propósito, um extracto de uma conferência pública feita recentemente por uma professora de Direito Penal das nossas faculdades, que sublinhava que as cláusulas que, em matéria de vitimologia, enfatizam a necessidade de participação criminal enfermam, no fundo, de uma concepção em que à mulher é atribuído o papel tristemente conhecido da «Eva tentadora».

No fundo, há concepções que, assentes numa visão profundamente machista da realidade e das relações homem/mulher, não conseguem conceber os casos de violação sem uma maior ou menor participação da vítima.

Afinal, acaba por se distinguir, de entre as violações, aquelas em que há participação da vítima —e presume-se que será esse o maior número de casos— das outras, que seriam «raríssimas», em que essa participação não existe.

A vitimologia e a criminologia modernas rompem com preconceitos deste tipo e tendem a rejeitar este aparato de requisitos que penaliza, no fundo, duplamente a mulher.

Nesse sentido, deixamos aos Srs. Deputados proponentes o apelo de que reconsiderem isto, que se traduz numa inutilidade penosa e muito grave para a mulher.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr." Deputada Helena Cidade Moura.

A Sr.a Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — Queria corroborar aqui o que foi dito pelo Sr. Deputado José Magalhães, porque penso que esta obrigatoriedade de participação criminal vai contra os nossos hábitos, os nossos costumes, o próprio pudor e a própria intimidade da vida que são assegurados pela Constituição.

A participação criminal ou policial é uma coisa de uma tal violência que penso mesmo que vai contra os direitos da pessoa, contra os direitos constitucionais.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS):— Nós não vamos aceder ao apelo do Sr. Deputado José Magalhães por variadíssimos motivos.

Em primeiro lugar, o conceito de violação não é um conceito médico, mas sim um conceito jurídico, e, por isso, não é susceptível de análise.

Em segundo lugar, o que aqui se exige é a participação criminal da violação e não o seu julgamento.

Em terceiro lugar, não se trata de nenhuma violação dos direitos constitucionais, Sr." Deputada Helena Cidade Moura, até porque a violação é um crime semi-público e, portanto, insusceptível de perdão.

Em quarto lugar, se não se exigisse esta simples participação criminal isto ficava sujeito ao perigo de qualquer pessoa poder dizer que .tinha sido violada num sítio qualquer e entrava-se, pura e simplesmente, no livre arbítrio.

Em último lugar, penso que a argumentação que usaram se volta imediatamente ao contrário. Penso que

se deve incitar a que este tipo de crimes sejam participados, se vençam esses preconceitos, que sei que existem, e que as pessoas sejam punidas como tal.

Não só faço questão em como isto aqui esteja, como considero a participação criminal da violação um dos pontos fundamentais. Se uma pessoa não é capaz, tem pudor de participar criminalmente um acto desses, isso é, para mim, muito suspeito.

No entanto sei que há probiemas. Nalguns países latinos sei que se invoca em tribunal, como método de defesa, que foi a própria vítima que se colocou nessas circunstâncias, etc.

É verdade que isso acontece, mas o que é bom é que isso aconteça cada vez menos. Neste caso, a participação criminal torna-se absolutamente necessária para evitar que isto se torne num livre arbítrio.

Gostaria ainda de dizer uma coisa ao Sr. Deputado José Magalhães. Foi certamente por lapso que o Sr. Deputado falou na Fuerza Nueva. Não foi a Fuerza Nueva que propôs isto, porque, por acaso, ela nerr. sequer está representada no actual Parlamento espanhol. Perdeu o único deputado que tinha.

Quem propôs isto foi o Fraga Iribarne que não é da Fuerza Nueva, mas da Aliança Popular Independente, que é, apesar de tudo, uma coisa diferente.

Em muitos aspectos não temos dúvidas nenhumas em votar as propostas do Fraga Iribarne, do Sr. Deputado José Magalhães, do Santiago Carrillo, do Dr. Álvaro Cunhal, se forem, de facto, justas. ê essa a diferença.

Agora, quanto à Fuerza Nueva, o Sr. Deputado enganou-se, porque a Fuerza Nueva não está representada. Perdeu o único deputado que tinha.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr." Deputada Zita Seabra.

A Sr.a Zita Seabra (PCP):—Sr. Deputado José Luís Nunes, a minha intervenção é neste sentido: creio que se uma mulher que deseja uma interrupção da gravidez numa situação que não esteja no quadro desta lei não vai, certamente, invocar a violação, porque ir a um serviço de saúde e dizer que foi violada é qualquer coisa que não acredito que alguém faça.

Isso é de tal maneira aviltante e violento que a mulher nessa situação vai invocar que teve rubéola ou outra coisa qualquer, vai arranjar mil e uma maneiras para arranjar o atestado médico e a fraude será íeita com a outra alínea e não com esta.

Ê por isso mesmo que nos países que despenalizaram o aborto, num sentido mais restritivo, não exigiram neste campo concreto da violação a participação criminal.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Dá-me licença que a interrompa, Sr.a Deputada?

A Oradora: — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Sr.a Depu*.atía o seu argumento prova de mais. O seu argumento, kvaâo até às suas últimas consequências, provaria que devíamos eliminar este ponto aqui. Tal ideia não me passa pela cabeça, mas o seu argumento, levado até às últimas consequências, isto é, a mulher que quer cometer uma fraude não vai invocar uma coisa destas, sig-

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nifica que isto é uma questão tão-pouco importante que não deve ser colocada aquí.

Para mim, uma das questões mais graves é esta. E já agora, se me permite, o conceito de violação na jurisprudencia inglesa, francesa, e creio que já na portuguesa — embora nunca tenha sido invocado a não ser num ou noutro caso —, é um acto que pode existir licitamente entre casados, e que em Inglaterra é fundamento de divórcio desde que a cópula se pratique entre adultos casados não consentantes. Desde o sé-culo passado que a jurisprudencia inglesa admite a cópula entre adultos casados e não consentantes como fundamento de divórcio e nada impede, embora não conheça nenhum caso em que isto tenha sido invocado a não ser um que um colega me informou ter-se passado em mil novecentos e carqueja. Mas apesar disso este fundamento pode ser invocado.

Portanto, o conceito de violação é um conceito jurídico que tem evoluído através dos tempos e que aqui deve ser entendido como violação que deu causa a gravidez.

Nestes casos, penso que a participação criminal é absolutamente essencial, por dois motivos: assim como a Sr.a Deputada salientou que isto também ajudava a combater o aborto clandestino, esta lei, ao fazer esta exigência, também ajuda a combater a violação.

Hoje em dia as associações feministas francesas — pelo menos num processo de que tenho conhecimento e em que fizeram grandes e justas parangonas com isso— incentivam as mulheres a fazer a participação da violação, apesar das humilhações, dos ataques e das críticas que às vezes são feitos durante o processo. Neste sentido, penso que os nossos tribunais são muito melhores do que os outros, porque nós, em Portugal, somos muito melhores do que a maioria, apesar de se continuar a utilizar como meio de defesa a provocação. Quer dizer, foi a senhora violada que provocou o crime.

Mesmo assim considero isto muito importante, mas não podemos corresponder ao apelo que foi feito por parte da Sr.a Deputada, em linguagem extremamente urbana, e que me apraz salientar.

Vamos manter a nossa posição em relação à necessidade da participação criminal.

A Oradora: — Só para teminar a minha intervenção queria dizer que mesmo cá em Portugal, e também as organizações feministas, fazem uma grande batalha no sentido de que, perante um crime de violação, haja participação.

Mas a realidade social é outra. Normalmente, e isso é sabido e conhecido, não há participação criminal. }sto é, a mulher, por pressões sociais várias, não faz essa participação criminal.

Bom, eu penso que o atestado médico que já está previsto no número anterior é suficiente para resolver estas situações, até porque estamos a falar de um número extremamente reduzido de casos. E por ser suficiente, a lei não devia obrigar a que, num caso tão grave e chocante como este, a mulher vá a uma esquadra da polícia, onde, normalmente cá em Portugal, é maltratada. Por isso mesmo é que ela não vai, por ser objecto da tal pressão social, para não correr esses trâmites todos, que têm custos sociais graves.

Daí, pensamos que seja mais do que suficiente o atestado médico.

Estou de acordo em que esteja previsto o caso da violação, que é dos casos mais extremos, até porque o nosso próprio projecto o previa.

Agora, pensamos é que o atestado médico é suficiente e que o médico pode perfeitamente certificar esse meio.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Dá-me licença que a interrompa mais uma vez, Sr.a Deputada?

A Oradora: — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr." Deputada o atestado médico não pode atestar rigorosamente nada que se caracterize com o fundamento jurídico de vioalção, a não ser em casos extremos e no momento imediato.

Não tenho aqui o manual de medicina lega! acerca dessa matéria, mas o médico legista só poderia atestar uma série de aspectos que não vêm ao caso, mas são conhecidos, e que agora, inclusive, foram postos em causa. Mas, 2 ou 1 hora depois da verificação da violação, o médico não pode atestar nada senão em casos extremos, como seja o de mulher virgem e, mesmo assim, em casos extremamente caracterizados. Ou se vincula a pessoa que foi violada a apresentar a queixa na polícia e a assumir, pelo menos, a responsabilidade dessa queixa — violada por fulano, nestas e nestas circunstâncias —, ou não se vincula.

Como se sabe, a igreja católica — isto é um pequena faits divers que tem o seu interesse— condenou, nos termos mais violentos, não só o aborto como a homossexualidade entre adultos consentantes.

Pois, este novo Código Pena!, sem que ninguém levantasse o mínimo problema — que aliás acho muito bem —, despenalizou a homossexualidade entre adultos consentantes, sendo certo que, após essa despenalização, o crime de violação já é tipificado muito para além das relações homem-mulher. Isto não vem aqu: ao caso, mas é só para dizer que, apesar de tudo, em 2 pontos quentíssimos da chamada morai vigente, um deles foi posto imediatamente em causa e não houve uma voz que se levantasse contra ele. Esse ponto foi essa coisa altamente progressista da despenalização da homossexualidade, que entre nós era, pelo menos, objecto de uma medida de segurança, por ser considerada um estado de perigosidade. Através do novo Código Penal foi despenalizada a homossexualidade, e no entanto, não obstante os nomes que certas autoridades morais lhe chamam, como pecado horribile, ovt «vício contra a natureza», o facto é que isso passou e ninguém falou nisso.

Em relação ao aborto, que foi equiparado durante muito tempo ao mesmo acto e considerado contra a natureza, falou-se.

Portanto, se a mulher objecto de violação engravida e quer, efectivamente, obter o aborto, deve co-respon-sabilizar-se com uma participação na polícia e sofrer as consequências.

A Oradora: — Para terminar, queria dizer que só conheço um caso destes que se passou com a filha de um meu camarada médico. Foraim raptadas e violadas 2 jovens no Chiado, em Lisbos, e os jornais deram a notícia, evidentemente sem citar cs r.omes a pedido das pessoas interessadas, Uma dessas jovens engravidou.

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Bom, os pais não participaram criminalmente, apesar dc terem havido numerosas testemunhas do rapto em pleno Chiado. E porquê?

Porque se tratava de uma jovem de 15 anos, menor, que, além de todo o traumatismo de um crime objecto de que tinho sido alvo, da gravidez consequente, da ida a Londres para impedir a evolução dessa gravidez, teria ainda que ir à esquadra da polícia e depois ao tribunal. Desistiram.

Creio que isto é o que normalmente fazem as pessoas.

Ê neste sentido, e não no sentido jurídico do termo, porque isso não estou em condições de discutir, no sentido humano da questão, que apelava para o Partido Socialista.

Creio que, na verdade, estamos a falar em casos muito extremos, muito concretos, e eles são muito poucos. Os únicos elementos que temos dizem respeito à RFA e revelam que apenas 0,1 % dos casos de aborto praticados são, de facto, com fundamento na violação, e eles não exigem a participação criminal. É, portanto, um número extremamente reduzido este dos casos em que da "violação resulta a gravidez e creio que, obrigarmos ao atestado médico, cria situações humanas num caso jé tão limite e tão extremo como este.

E só neste sentido que queria apelar. E não é que isto tenha grandes repercussões, porque se trata de um número reduzido de casos. Agora, nesse número muito reduzido de casos, creio que, na verdade, as consequências são rão graves e tão violentas para a mulher — e os casos mais frequentes passam-se com menores — que é muito traumatizante obrigá-la a ir a uma esquadra e a sentar-se, depois, no tribunal.

Penso que não há o perigo de por aqui vir a fraude e se alargar o número de abortos praticados, porque creio que uma mulher não vai invocar isso. Vai invocar, sim, o aborto terapêutico, alínea a) do n.° 1 do artigo 140.°, se quiser procurar fazer um aborto que não esteja nos casos previstos da Lei. Não vai invocar que foi violada, porque isso é sempre traumatizante, chocante, e tem uma carga social demasiado grande, pelo que, por aqui, penso que não possa haver fraude.

O Sr. Presidente: — Vamos passar à proposta do PCP de eliminação do agora n.° 3.

Submetida à votação, foi rejeitada, com votos contra do PS e da UEDS, com votos a favor do PSD e do PCP e a abstenção do MDP/CDE.

O Sr. Presidente:—Srs. Deputados, está em discussão a proposta de substituição referente ao n.° 3 do artigo 140.°, que visa substituir a «participação criminal da violação» por «atestado médico comprovativo de que havia violação».

Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): —Sr. Presidente, estamos, efectivamente, a discutir conceitos, a traduzir figuras através de palavras que têm, no fundo, que prefigurar a nossa discussão.

Não me parece possível discutir e votar uma proposta que não está escrita.

Solicito à Srv' Deputada Zita Seabra que ponha em escrito aquilo que dizem que propôs, porque só assim c que se pode discutir.

Estamos a legislar e isso é, realmente, uma coisa importante.

A proposta deverá ser reduzida a escrito se a Sr." Deputada estiver de acordo.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr." Deputada Zita Seabra.

A Sr.a Zita Seabra (PCP):—Sr. Presidente, nós não fizemos essa proposta, porque ao propormos a eliminação do n.° 3 esta proposta ia automaticamente recair na alínea anterior que tínhamos votado, isto é, o n.° 2.

Fizemos a proposta de eliminação para que o número anterior sobre a violação caísse também no trâmite legal previsto para os números anteriores.

O Sr. Correta Afonso (PSD): —Então não há proposta de substituição.

Eu tinha percebido, através da Sr.° Deputada Helena Cidade Moura que haveria uma proposta.

Daí, me parece que é, efectivamente, vantajoso que haja sempre proposta escrita para não haver esta confusão.

A Sr.0 Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — Desde que o PCP, por votar contra, não quer assumir a proposta, o MDP/CDE assume-a porque nos abstivemos.

Vou escrevê-la, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado fosé Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — A proposta do MDP/CDE não pode ser utilizada nem votada porque ninguém pode pedir a um médico que diga que houve ou não violação, porque a quem compete decidir isso é a um tribunal, através de um julgamento e de provas.

O conceito médico-legal da violação continua a obedecer a uma série de pressupostos e quem os julga é um tribunal. O tribunal é que diz que houve violação, enquanto o médico é ouvido como perito. O médico vai dizer que em determinadas circunstâncias verificaram-se determinados factos, verificaram-se determinados pontos. Depois o tribunal diz: «Em face disto verificaram-se os pressupostos do crime ie violação.»

Agora, permitir, pura e simplesmente, que um médico venha dizer que houve um crime de violação é um contra-senso. De resto não se especule muito com isto porque existe uma alínea em que pode caber com verdade e sem violar as coisas o problema das pessoas que, por hipótese, sejam violadas e não queiram participar criminalmente — o que acho muito mal. Esse ponto é aquele em que se fala na saúde física e psíquica. Uma pessoa que tenha sido violada e não queira participar criminalmente por medo, por respeito social ou pelo que quiser, confere ao médico 0 direito de invocar que essa gravidez provoca problemas psíquicos. Então aí está bem.

Mas quando se invoca a violação tem que se ter pelo menos a exigência de assumir um mínimo de responsabilidade com esta invocação. Essa assumpção

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aparece na participação criminal e, mais ainda, é perfeitamente inconcebível que uma mulher invoque a violação num serviço público e o médico lhe provoque o aborto, pura a simplesmente, nessa base, sendo certo de que existe também uma função social da lei, ou seja, quando se exige a comunicação da violação é para meter pessoas na cadeia e para evitar que outras mulheres possam sofrer esse tipo de coisa praticada pelo mesmo agente que às vezes é especialista em actos criminosos desse tipo.

Dentro deste sentido votaremos contra porque não se pode exigir que um atestado médico opine sobre conceitos jurídicos.

0 Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): —Com o devido respeito pela proposta da Sr." Deputada Helena Cidade Moura e sobre o que acerca disso referiu o Sr. Deputado José Luís Nunes, só penso dizer o seguinte: Ê evidente!

Nem é preciso dizer mais nada.

O médico não pode, sob pena de. subversão do enquadramento jurídico-penal, declarar se houve ou não violação.

Não digo mais nada. O Sr. Deputado José Luís Nunes disse tudo o que havia para dizer. Só posso acrescentar: É evidente!

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.° Deputada Helena Cidade Moura.

A Sr." Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — Peço desculpa de estramos a tirar este tempo à Comissão, mas não estou de acordo com a interpretação que o Sr. Deputado José Luís Nunes faz daquilo que está escrito aqui no Código Penal.

Parece-me, realmente, um assunto demasiado grave a exigência da participação criminal.

Também é grave que seja pura e simplesmente eliminado este número.

Daí a nossa abstenção quanto à eliminação e a nossa preocupação de contribuir para que esta coisa fique mais justa com esta proposta de substituição.

Não sei em que é que se vai basear o tribunal para dizer que houve violação, mas, se calhar é, com certeza, no atestado médico.

Esse é que vai dizer se houve violação ou não. Não é a justiça que o vai fazer.

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Dá-me licença que a interrompa, Sr." Deputada?

A Oradora: — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Luís Nunes (PS):—Sr." Deputada, o tribunal vai-se basear em 3 coisas para dizer se houve ou não violação: em prova testemunhal; nas declarações da ofendida, que nos termos da nossa jurisprudência são especialmente relevantes no crime de violação, e numa perícia médico-legal que tem que ser feita em circunstâncias especialíssimas e que se, por acaso, nuns casos é relativamente fácil, noutros é extremamente difícil.

ÇortMYto, baseta-se nestes 3 pontos; prova testemunhal; declarações da vítima, e perícia médico-legal.

Pode haver, em certos casos, a confissão ou cartas trocadas, o que não é muito vulgar.

A nossa jurisprudência considera especialmente relevantes as declarações da vítima.

Não sei se resumi bem o que é que diz o Supremo Tribunal de Justiça acerca disto.

A Oradora: — Sr. Deputado, penso que está a lar razão àquilo que eu digo.

De facto, as declarações da ofendida não poderão, muito possivelmente, ser testemunhadas, a não ser em casos raros.

Ora, o que vai dar veracidade a essas declarções é a perícia médico-legal. Perece que isso seria suficiente num caso destes.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luis Nunes (PS): — A perícia médico--legal, na realidade, não representa muito. Inclusive, o modo de fazer a perícia era perfeitamente definido por lei, mas não vale a pena entrarmos nesse campo.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar a proposta de substituição do n.° 3 do artigo 140.°, do MDP/CDE, que reza o seguinte:

A verificação da circunstância referida na alínea d) do n.° 1 depende ainda da existência de atestado médico comprovativo de que houve violação.

Submetida à votação, foi rejeitada, com 9 votos contra, do PS e do PSD, 1 voto a favor, do MDPJ CDE, e 4 abstenções, do PCP.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): — ê para uma curtíssima declaração de voto.

Votámos contra a introdução deste requisito com os fundamentos já expressos.

Ê lição geral da criminologia — e sublinhava ainda recentemente a Dr.* Teresa Beleza numa comunicação pública, que a violação é um crime com baixíssima taxa de descoberta, queixa e punição. Uma das razões das resistências à queixa por parte da vítima, que é necessária para haver instauração do procedimento criminal, é o tratamento degradante da ofendida por parte da polícia e tribunais que já levou alguém a dizer que parece ser a vítima e não o autor do crime que está a ser julgado.

O Sr. Deputado José Luís Nunes, e muito bem, acrescentou que as declarações da ofendida, quando as há, são particularmente relevantes, que é necessário peritagem médica.

Os requisitos, a adiar ao traumatismo da violação, são traumáticos e, portanto, a exigência de participação criminal é um sofrimento inútil a adicionar aquilo que já era bastante traumatizante por ii.

Ê lamentável que esta solução tenha sido consagrada e, infelizmente, nem se pode dizer que tenha sido muito coerente, porque o próprio deputado José Luís Nunes salientou que quando não se possa, ou não queira invocar esta cláusula por não ter sido

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feita participação criminal — que, permita-se que sublinhamos, não vai incentivar de forma nenhuma o acréscimo das participações criminais —, a mulher pode dizer que está traumatizada, afectada na sua saúde psíquica e invocar, portanto, outra das alíneas que lhe permitam a interrupção da gravidez.

O atestado psíquico, mais uma vez, funcionaria aqui para se obter por outra via aquilo que os Srs. Deputados do PS não ousaram consagrar de forma expressa e directa.

Quanto a nós perdeu-se uma boa ocasião para sanar aquilo que no projecto do PS merecia bem uma correcção.

Temos pena que não tenham sido sensíveis ao apelo que fizemos e que procurámos demonstrar.

Q Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos proceder à votação do texto do n.° 3 do artigo 140.°.

Submetido à votação, foi aprovado, com 8 votos a favor, do PS, e 6 votos contra, do PSD, do PCP e do MDP/CDE.

Ê o seguinte:

A verificação da circunstância referida na alínea d) do n.° 1 depende ainda da existência de participação criminal da violação.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.a Deputada Helena Cidade Moura.

A St.' Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — ê para fazer uma declaração de voto muito breve.

Nós achamos que os valores sociais são muito importantes na execução das leis.

De facto, até acredito que a participação criminal seja um valor saudável sob o ponto de vista das relações democráticas. Mas, na realidade, é um valor que não existe.

Como isto foi suficientemente insistido pelo Sr. Deputado fosé Luís Nunes, queria lembrar um conto de Anatole France, no fim do século xix, em que uma porteira se deixa incriminar em tribunal por violação de correspondência, só porque não quis admitir em público que era analfabeta.

Ê uma situação um pouco estranha para nós, mas, de facto, penso que, fazendo os ajustamentos à nossa maneira de ser, hoje, este artigo é uma violência contra as pessoas.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Deputado Raul Rego.

Q Sr. Presidemíe: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso também para uma declaração de voto.

Q Sr. Correis Afonso (PSD): — O PSD votou, mais uma vez, contra este número pelas razões éticas que constam da declaração feita no início do debate.

Esta posição de princípio não impede que sintamos a obrigação de contribuir para a melhoria da redacção e para o aperfeiçoamento técnico do texto ora debatido.

O Sr. PresÈdeixíe: — Srs. Deputados, está agora em discussão o n.° 1 do artigo 141.°

Lembro mais uma vez aos Srs. Deputados que estamos muito atrasados.

Como não há inscrições, vamos votar.

Submetido à votação, foi aprovado, com 14 votos a favor, do PS, do PCP e do MDP/CDE, e / voto contra, do PSD.

E o seguinte:

O consentimento da mulher grávida para a prática do aborto deve ser prestado, de modo inequívoco, em documento por ela assinado, ou assinado a seu rogo, nos termos da lei, com a antecedência mínima de 3 dias relativamente à data da intervenção.

Q Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos passar ao n.° 2, que é o seguinte:

Quando a efectivação do aborto se revista da urgência, designadamente nos casos previstos nas alíneas cr) e b) do n.° 1 do artigo anterior, é dispensada a observância do prazo previsto no número anterior, podendo igualmente dispensar-se o consentimento da mulher grávida se ela não estiver em condições de o prestar e for razoavelmente de presumir que em condições normais o prestariam, devendo, em qualquer dos casos, a menção de tais circunstâncias constar de documento subscrito, sempre que possível antes da intervenção, por dois médicos.

Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Num esfoço de uniformização do que já foi votado favoravelmente, creio que o texto do n.° 2 do artigo 141.° deveria sofrer, no final, duas alterações.

Estou-me a circunscrever, fundamentalmente, à parte deste número que começa com «[...] devendo, em qualquer dos casos [...]» e vai até ao fim.

Creio que se mantivermos o espírito que determinou a redacção do n.° 3 do artigo 140°, que passou para n.° 2, deveria ficar aqui, neste n.° 2 do artigo 141.° o seguinte «[...] a menção de tais circunstâncias constar de atestado médico subscrito, antes da intervenção, por um médico».

Embora esteja em desacordo com a não exigência de dois médicos, se quisermos uniformizar deve-se exigir apenas um.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. (osé Luís Nunes (PS): — Então, Sr. Deputado, segundo a sua proposta isto ficaria assim redigido: «[...] devendo, em qualquer dos casos, a menção de tais circunstâncias constar de atestado médico».

A proposta será de eliminação da expressão «sempre que possível antes da intervenção, por dois médicos», e proposta de substituição da expressão «documento subscrito» por «atestado médico».

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: — Faça favor, Sr. Deputado.

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O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Deputado, tenho a impressão de que isso é, talvez, ir um pouco longe de mais.

Devíamos deixar ficar a expressão «antes da intervenção». Foi também esta a ideia do n.° 2 do artigo 140.°

O Orador: — Sr. Deputado, a expressão «antes da intervenção» pode ficar aqui, mas acho que isso é o que chamam de summum jus, summa injuria.

Como a mulher não pode prestar o seu consentimento, como o atestado médico só vai ser entregue à mulher depois da intervenção, nada impede, pura e simplesmente, que o médico faça a intervenção e depois vá escrever o atestado. Isso é, naturalmente, o que ele vai fazer, porque uma sala de partos não é propriamente o sítio mais indicado para passar atestados médicos.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Deputado, ternos, efectivamente, que nos colocar a nível de legislador e, portanto, temos que imprimir um certo espírito aos textos que vão contemplar uma eventual e normal lassitude.

Claro que o Sr. Deputado sabe perfeitamente que o dia-a-dia adaptará os textos. Eu sou daqueles que defende que não é a vida que se tem que meter no direito, o direito é que se tem que adaptar à vida.

Portanto, isso depois acontecerá, mas esse não é o nosso papel. Como legisladores temos que enquadrar dentro do nosso objectivo, dentro da finalidade que pretende prever esta lei, a situação ou hipótese.

Creio, por isso, que devemos pôr aqui «antes da intervenção», embora, eventualmente, o dia-a-dia o vá adaptando. Com todas as leis isso acontece.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado }osê Luís Nunes.

O Sr. ücsé Luís Nunes (PS): — Obviamente que estou de acordo consigo, Sr. Deputado. Não vou fazer aqui nenhuma batalha para mexer nisto, até porque aquilo que eu queria consagrar já aqui está. Isto é, a própria lei, numa disposição que revela as minhas e as suas preocupações, acrescentou esta coisa curiosa: «[...] sempre que possível antes da intervenção [...]». Este «sempre que possível», aliado à urgência é perfeitamente irrelevante. Mas também não faz mal nenhum que esteja lá.

Sempre que possível o médico escreverá o atestado médico, antes da intervenção, em casos de urgência da grávida. £ a mesma coisa. Para evitar a discussão e para não cair no perfeccionismo absoluto mantém--se isto.

A proposta de substituição do n.° 2 do artigo 141.° pretende substituir a expressão «[...] documento escrito, sempre que possível antes da intervenção, por dois médicos» por «atestado médico, passado, sempre que possível, antes da intervenção».

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Dá-me licença, Sr. Deputado?

O Orador: — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Deputado, tenho a impressão de que se quisermos uniformizar teremos que tirar a expressão «sempre que possível». Embora não faça qeustão disto, julgo que fica mais prefeito, porque no outro número atrás tirámos a mesma expressão.

O Orador: — Também estou de acordo, Sr. Deputado. Não falei nisso só para evitar uma discussão. Fica então assim a proposta de substituição:

Substituir a expressão «[...] documento subscrito, sempre que possível antes da intervenção, por dois médicos», pela expressão «[...] atestado médico».

Isto aqui funciona no caso de urgência e se ligássemos à ideia de urgência o «sempre que possível» aquela ficaria limitada pela obrigatoriedade de passar o atestado médico, o que é errado.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos então votar esta proposta de substituição do PS ao n.° 2 do artigo 141.°

Submetida à votação, foi aprovada, com 14 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS, e 1 voto contra, do PSD.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso para fazer uma declaração de voto.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Mau grado a obrigação que sentimos, e procuramos cumprir, de contribuir para a melhoria do texto e para o aperfeiçoamento técnico da redacção, votámos contra por este texto, assim como os restantes, contrariar as posições de princípio que definimos no início.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos passar ao n.° 3, que é o seguinte:

No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos, ou inimputável, o consentimento deve ser prestado respectiva e sucessivamente pelo marido capaz não separado, pelo representante legal, por ascendente ou descendente capaz e, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): — Queria sugerir a correcção de um lapso que vem na redacção deste n.° 3.

Refere-se que, no caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos, o consentimento poderia ser prestado, a título substitutivo, por representante legal, por ascendente ou descendente capaz.

A expressão «descendente capaz» é certamente um lapso. Não há possibilidade de haver descendente capaz de uma menor de 16 anos. Propúnhamos que se suprimisse a expressão «descendente capaz». Ê uma mera correcção de sentido.

O Sr. Presidente: — Tem a "palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

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o Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Deputado, é preciso pensar um segundo sobre as consequências que esta expressão tem. Este n.° 3 não se refere somente a menores de 16 anos. Também se refere a inimputáveis.

A expressão «descendente capaz» refere-se à inimputável e, portanto, não se tem que eliminar. A questão do marido capaz não separado diz respeito só à inimputável, porque a maioridade adquire-se com o casamento.

o representante legal diz respeito aos dois e o ascendente também.

Quando se fala em descendente capaz, está-se a pensar apenas no caso da inimputabilidade. Nesse sentido não há nada a corrigir.

o Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

o Sr. José Magalhães (PCP): — Tem toda a razão, Sr. Deputado, só que esta redacção não exprime perfeitamente os conceitos que sabemos que estão na mente dos seus autores. Talvez isso possa ficar para a Comissão de Redacção.

o Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

o Sr. Correia Afonso (PSD). — Efectivamente, como acabou de dizer o Sr. Deputado José Magalhães, a redacção é muito infeliz.

Concordo que o que o Sr. Deputado José Luís Nunes disse que era o sentido do n.° 3 é realmente o que se tentou lá pôr, mas a redacção deveria ser melhorada.

o Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

o Sr. José Luís Nunes (PS): — ê possível, de facto, melhorar isto.

Vamos apresentar uma proposta de aditamento no sentido de inserir a expressão «conforme os casos» a seguir à palavra «consentimento».

o Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos então votar o n.° 3.

Submetido à votação, foi aprovado, com 10 votos a favor, do PS e da UEDS, 1 voto contra, do PSD, e 4 abstenções, do PCP.

o Sr. Presidente: — Vamos agora votar a proposta de aditamento apresentada pelo PS e que diz o seguinte:

Aditamento da expressão «conforme os casos» a seguir à palavra «consentimento».

Submetida à votação, foi aprovada, com 10 votos a favor, do PS e da UEDS, 1 voto contra, do PSD, e 4 abstenções, do PCP.

o Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos passar ao n.° 4 do artigo 141.°, que é o seguinte:

Na falta das pessoas referidas no número anterior, ou na sua ausência e em face de perigo de

demora, deve o médico decidir em consciência, em face das circunstâncias, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros colegas.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Vou fazer duas pro postas de substituição.

Uma é sobre a expressão «perigo de demora», que é errada. Tem que se dizer «em caso de urgência».

A segunda refere-se à expressão «outro ou outros colegas». Ensinaram-me na tropa que «colegas» tinha um significado muito preciso e agradecia que se substituísse esta palavra «colega» pela palavra «médico». £ uma questão de terminologia ...

Neste momento verificou-se uma falha no sistema de gravação.

... que se socorra de um parecer escrito, mas pode fazê-lo — e deve fazê-lo — sempre que possível, mesmo do parecer global.

Vozes inaudíveis.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Cunha.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: Penso que este aspecto está garantido, porque, em qualquer hospital, não se pratica nenhum acto, sem estar registado, sob pena de o médico incorrer em falta disciplinar grave. Ele, de qualquer maneira, vai ser sempre registado. E entendemos que esta situação de urgência se está a passar numa das tais instituições de saúde, que garantem as condições, conforme aqui as definimos no primeiro dia de discussão.

Portanto, em qualquer uma destas circunstâncias de urgência, que exigem uma intervenção médica, seguramente que esta levará forçosamente ao estabelecimento de um relatório escrito, obrigatório até para arrancar uma linha.

O Sr. Presidente: — Qual é então o conteúdo preciso da sua proposta de substituição, Sr. Deputado José Luís Nunes?

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: A fim de tudo ficar esclarecido, passo a explicar novamente o conteúdo da minha proposta de substituição do n.° 4 do artigo 141.° do Código Penal:

a) Substituir «era face de perigo de demora» por

«quando a efectivação do aborto se revista de urgência»;

b) Substituir «colegas» por «médicos».

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Gostaríamos de equacionar a questão que passarei a expor. O sistema seguido por este projecto de lei nesta matéria é especialmente cuidadoso e cauteloso na questão do consentimento: o sistema confia, em regra, a decisão, expressa em atestado, ao

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médico, embora exija também expressão bastante do consentimento —isto é, da vontade— da mulher sobre a qual vai ser praticada a interrupção voluntária da gravidez. Este projecto resolve de forma insatisfatória — e por isso nos abstivemos— a situação da mulher inimputável e das menores de 16 anos, permitindo, nesses casos, que se substitua a vontade da mulher —que, num caso, não pode existir e, no outro, se está perante a situação específica da menoridade— pela vontade do representante legal, do ascendente, do descendente, etc. Só que, depois, no n.° 4 do artigo 141.°, introduz um outro factor, que permite ultrapassar todos esses requisitos do consentimento, depositando a decisão por inteiro nas mãos do médico, no caso de urgência ou de ausência (isto é, impossibilidade de presença imediata) do representante legal, do ascendente, do descendente ou de qualquer parente na linha colateral.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Dá-me licença, que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Deputado José Magalhães: Utilizam-se as expressões «ou» e «e». Isto é, tal decisão deverá surgir na falta das referidas pessoas ou na sua ausência e em caso de urgência. Portanto, a ausência e a urgência são requisitos cumulativos.

O Orador: — Tem razão, Sr. Deputado. O projecto permite ultrapassar, nessa circunstância, cumu-lando-se os dois requisitos, a vontade dessas pessoas que têm alguma relação com a menor ou com a inimputável, atribuindo por inteiro ao médico a decisão de consciência. Isto quer dizer, feito o balanço, que se permite, neste caso, aquilo que, quanto a nós mal, não se autorizou à mulher que poderia, em consciência plena, decidir da interrupção da gravidez. Permite-se à menor de 16 anos e à inimputável um regime que é «mais favorável» do que aquele que se concede àquela que está no pleno gozo de todas as suas faculdades e que, aparentemente, não se enquadra na lógica do projecto de lei. No projecto de lei do PCP, como se lembram, acontecia precisamente o contrário: estabelecíamos um regime em que, para este eleito, os requisitos exigidos eram superiores, porque se está perante uma situação de menoridade, em que há necessidade de agir com uma certa prudência. Em todo o caso, parece-me que se chegou aqui a um resultado inverso daquele que está na lógica da proposta originária do PS.

Isto não envolve nenhuma posição de fundo, neste momento, quanto ao nosso sentido de voto. De qualquer forma, seria importante reflectir, para que a opção aqui a tomar tenha presentes todas as implicações.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Sr. Deputado José Magalhães: Em primeiro lugar, isto tem regras. E as regras são estas: é que não se podem alterar, para determvxvados casos, as chamadas regras do consentimento, que se mantém para a generalidade dos casos.

Quer dizer: mesmo para um caso destes, não penso que essas regras do consentimento possam ser alteradas.

Em segundo lugar, o n.° 4 do artigo 141." não tem contradição nenhuma, pois diz respeito àqueles casos em que o médico se encontra confrontado com a sua própria necessidade. Estando a mulher grávida a morrer, e na ausência das pessoas referidas no n.° 3 do artigo 141.°, o médico tem de tomar uma decisão.

Mas devo dizer-lhe, com toda a franqueza, que, como o Sr. Deputado José Magalhães sabe, a lei não resolve todos os problemas, nomeadamente os chamados problemas de consciência. Se eu fosse médico e me entrasse no consultório uma testemunha de Jeová, cuja religião proíbe as transfusões de sangue, começava por lhe dar um enxerto de pancada e fazia a transfusão de sangue, com ou sem a sua autorização, de acordo com a minha consciência, quaisquer que fossem as consequências. Não teria nenhum respeito por essa opinião. Atenção, pois, a este pormenor, Srs. Deputados.

Portanto, o que aqui está é que está bem. E que, nos casos em que o consentimento não é possível, vai-se buscar um ponto de vista puramente técnico, em que o médico, confrontado com a sua própria consciência, dirá que vai praticar o acto, pois ele é necessário.

Mas admita o caso anterior, em que a mulher é menor de 16 anos e o médico é confrontado com uma negativa, quer da própria mulher, quer dos seus próprios pais, no sentido de rejeitarem a realização do aborto — até no caso de a mulher ser hostilizada pelos próprios pais. Devo dizer-lhe que, nesse caso, o médico fica na situação de confrontação consigo próprio. E é para remediar esta situação que aparecem, ou podem aparecer, depois as causas descriminadoras da culpa previstas no artigo 35.° do Código Penal, se o caso for introduzido em julgamento e se o médico se decidir a agir contra a lei. Nem sempre agir contra a lei é agir contra a moral. Mas este problema é pano de fundo para uma conversa muito mais detalhada.

Portanto, não há qualquer contradição em relação ao n.° 4 do artigo 141.°

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Cunha.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): — Quero apenas corrigir um exagero, que compreendo, porque, por vezes, também a nós nos apetece dar um grande açoite em alguns cidadãos que nos impedem de tratar, por exemplo, crianças. Acho que uma das leis que este Parlamento terá de criar com bastante urgência — que já é aplicada noutros países — é a que, em relação aos menores, tira automaticamente a autoridade paterna — penso que esta é a designação correcta — em certos casos. Na Suíça, por exemplo, no caso de um recém--nascido que precise de uma exsanguinotransfusão, porque está atingido por uma doença que a exige e porque o seu sistema nervoso central está em risco, imediatamente e sem consultar o juiz, os pais perdem a autoridade, só a retomando no dia em que for dada alta à criança.

Ê evidente que, na nossa prática, e no que respeita aos menores, continuamos também a aplicar essa «lei», consensualmente admitida, de tratar o doente, só depois

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discutindo com os pais. Mas, normalmente, não chegamos a vias de facto.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): —Sr. Presidente, Srs. Deputados: Julgo que o Sr. Deputado José Luís Nunes tem razão ao dizer que não há aqui, efectivamente, contradição. Mas também tenho que reconhecer profundidade ao que acabou de ser dito pelo Sr. Deputado José Magalhães.

Ultrapassando isto — e, portanto, não entrando nessa querela, que efectivamente é muito complicada—, julgo que não há contradição, mas não há uniformização, porque o n.° 2 do artigo 141.°, referindo-se ao consentimento, em caso de urgência, relativamente a mulher maior, mas que não esteja em condições de o prestar, admite que o médico prescinda dele e avance. Não sei se os Srs. Deputados repararam neste pormenor do n.° 2. No fundo, é a situação, em termos de direito, da menor de 16 anos, que é incapaz para prestar o consentimento. Mesmo que fisicamente ela o possa prestar, essa declaração não tem eficácia jurídica. Digamos que, em termos de direito, ela está equiparada à mulher maior que, fisicamente, não pode prestar consentimento.

Por que é que refiro que há falta de uniformização? Ê porque, enquanto que, para a mulher maior fisicamente incapaz de prestar o seu consentimento em caso de urgência, obrigamos o médico à menção de tais circunstâncias num atestado médico — é o que consta do final do n." 2 do artigo 141.°, segundo a alteração que foi introduzida—, em relação à menor de 16 anos, incapaz por definição de prestar o seu consentimento, não exigimos a médico nenhum qualquer documento escrito, qualquer referência ou menção às circunstâncias.

Embora sem querer entrar na «querela» que surgiu entre o Sr. Deputado José Magalhães e o Sr. Deputado José Luís Nunes, reconhecendo, todavia, que tem profundidade, verifico que existe aqui efectivamente uma carência de uniformização. E, por isso, sugeria que se uniformizasse, uma vez que estamos aqui na posição de legisladores.

Para aqueles que não são formados em Direito ou que não circulara habitualmente nesta área, esclareço que o Direito é uma ciência. E, portanto, em Direito, os termos devem ser usados com o mesmo sentido: não se pode usar, num sítio, com um sentido e, noutro, com outro sentido. Não se podem usar, na mesma lei, expressões que, atrás, têm determinado alcance e que, à frente, desaparecem em situações semelhantes, sob pena de aquele que, mais tarde, despido de tudo o que se passou aqui, as quer interpretar não apreender o sentido daquele texto, porque o texto tem vida e vontade próprias. De maneira que deve haver um esforço de uniformização.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.a Deputada Zita Seabra.

A Sr.3 Zita Seabra (PCP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Desejo apenas dizer que a tal discrepância entre o n.° 2 e o n.° 4 do artigo 141.° do Código Penal constante do projecto de lei do PS era

efectivamente muito maior antes da alteração ao n.° 2, a partir do momento em que, no n.° 2, se exigiam 2 médicos e, no n.° 4, em situações limites urgentes — a mulher menor de 16 anos e a mulher inimputável —, já se prescindia do parecer de 2 médicos, prevendo-se só, pelo contrário, a decisão de ! médico, devendo socorrer-se este, só quando possível, do parecer de outro médico.

Somos muito sensíveis quer quanto ao caso das mulheres menores, quer quanto ao das mulheres inimputá-veis, porque sabemos também que existem perigos de exercício de violência em relação à mulher para uma interrupção da gravidez que ela não deseja. Daí termo--nos abstido na votação do número anterior e termos sido bastante exigentes em relação a esta matéria no nosso próprio projecto de lei.

Neste caso concreto do n.° 4, creio que se poderá resolver, uma vez que me parece que, agora, o sentido dos dois números coincide, embora não coincida a redacção. No n.° 4, falta o documento escrito; no n.° 2, já lá está. O número de médicos já é idêntico, tanto num caso como neutro. E creio que, talvez posteriormente na Comissão de Redacção, se possam uniformizar as duas alíneas, uma vez que se trata de casos ce urgência, de casos extremos. Neste caso, trata-se até de uma situação a ter mais em conta, pois estão em causa menores de 16 anos. Não é a menor que vai decidir, mas o pai ou a mãe que decidem em vez ceia, podendo, inclusive decidir contra a sua vontade.

Creio que, aqui, devemos ser tão rigorosos, ou mais, do que fomos quanto ao n.° 2. Quando lhe retiramos a capacidade de decisão —até pelo facto de ser menor—, estamos a atribuí-ia a outro, nomeadamente aos pais — e pode ser contra sua vontade. Penso que não devemos facilitar tal atribuição e que devemos ponderar as suas consequências.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que não há. contradição, pelas razões que passarei a expor.

O que é que deve constar do atestado médico referido no n.° 2 do artigo 143.°? Deve constar, entre outras coisas, que é razoavelmente de presumir que, em condições normais, se prestaria o consentimento.

Neste caso, como não se vai exigir ao médico que ele vá pressupor se a grávida prestaria ou não o consentimento em condições normais, porque ela não está em condições normais, neir. pode prestar o consentimento, prevendo-se, em vez de se exigir um atestado médico, que o médico decida em consciência, socor-rendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros colegas. Mas, para conciliar as duas posições, não tenho dúvidas em propor o aditamento ao n.° 4 da seguinte expressão: «devendo, em qualquer dos casos, a menção de tais circunstâncias constar de atestado médico». Acrescentar-ss-ia, portanto, esta expressão no fina! do n.° 4 do artigo 14i.°, a seguir à expressão «outros colegas». Assim, proponho também o aditamento desta expressão, passando de imediato à votação.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos então votar a proposta de alteração ao n.° 4 do artigo 141.°

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do Código Penal do projecto de lei n." 265/1II, da iniciativa do PS.

Vamos proceder à votação da primeira alínea da proposta — substituição da expressão «em face de perigo de demora» pela expressão «quando a efectivação do aborto se revista de urgência».

Submetida à votação, foi aprovada, com 14 votos a favor, do PS, do PCP. do MDP/CDE e da UEDS. e 1 abstenção, do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar a segunda alínea da proposta — substituição da palavra «colegas» pela palavra «médicos».

Submetida à votação, foi aprovada, com 14 votos a favor, do PS, do PCP. do MDP/CDE e da UEDS, e 1 abstenção, do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar

0 texto do n.° 4 deste artigo, com as alterações introduzidas.

Submetido à votação, foi aprovado, com 14 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS, e

1 voto contra, do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar

0 aditamento proposto pelo Sr. Deputado José Luís Nunes, a inserir no final do n.° 4, a seguir à palavra «médicos»: «devendo, em qualquer dos casos, a menção de tais circunstâncias constar de atestado médico».

Submetido à votação, foi aprovado, com 14 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS, e

1 abstenção, do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar

0 texto do n.° 4, com as alterações e o aditamento aprovados.

Submetido à votação, foi aprovado, com 15 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS, e

1 voto contra, do PSD.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado fosé Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Eu proponho que se vote também a epígrafe deste artigo 141.° — «consentimento».

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos então votar a epígrafe do artigo 141.° — «consentimento».

Submetida à votação, foi aprovada, com 13 votos a favor, do PS, do PCP e da UEDS. 1 voto contra, do PSD, e abstenção, do MDP/CDE.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Jos Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que teremos também que votar o corpo do artigo 1.° deste projecto de lei, uma vez que não foi votado. Deve-se votar agora o corpo do artigo 1° e, depois, deve-se proceder à votação final

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar o corpo do artigo l.°

Submetido à votação, foi aprovado, com 14 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS, e 1 voto contra, do PSD.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Presidente, Queira-me desculpar, mas penso que, agora, V. Ex.a terá de submeter à votação o artigo 1.°, em votação final global, uma vez que tal votação é exigida por força do artigo 152.° do Regimento da Assembleia da República. Os Srs. Deputados perceberão esta minha exigência se atentarem bem em todo este artigo 152." Parece-me que os Srs. Deputados estão a estabelecer uma confusão. Ê que, por uma questão técnica jurídica, este projecto de lei tem uma parte que consagra alterações ao Código Penal e outra que não consagra. E essa primeira parte está agrupada no artigo 1." do projecto de lei. Portanto, para este debate decorrer correctamente, teremos de submeter agora o artigo !.° a votação final global.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado |osé Magalhães. .

J ir. Jose Magalhães (PCP):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: Percebemos qual foi a técnica utilizada pelo PS e não temos qualquer objecção a deduzir. Só que votámos, número a número, os artigos do Código Penal alterados por força deste normativo; votámos até — o que não era preciso — as epígrafes; votámos o corpo do artigo 1.°, que determina a alteração dos artigos 139.°, 140.° e 141.° do Código Penal. Não há mais nada a votar, a não ser aquilo que o Plenário — e só o Plenário — há-de fazer, que é a votação final global do decreto que há-de ser submetido a promulgação. Não cabe nenhuma votação em globo do artigo 1.°, porque ele está todo votado, revotado e tri-votado: já está votado exaustivamente. Portanto, creio que não pecaremos por falta de votações.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS):—Sr. Deputado José Magalhães: Peço-lhe que leia o artigo 152." Diz este artigo que «a discussão na especialidade versa sobre cada artigo». É isto que consta do artigo 152.°. E a Comissão não perde nada em votar globalmente o artigo 1.° A discussão na especialidade versa sobre cada artigo, e, depois, é que discutimos ponto por ponto. Quando isto foi redigido, tive algumas dificuldades, tendo inclusivamente chamado a atenção dos Srs. Depp-tados no decorrer do debate para o facto de as epígrafes não deverem ser votadas.

Simplesmente, o facto —em minha opinião, incorrecto— de se votarem as epígrafes é praticado, pelo menos, desde a Assembleia Constituinte. E essa prática sempre foi, como tive ocasião de dizer aqui, contra a minha opinião, porque a epígrafe constitui uma questão de doutrina: eu, como todos os Srs. Deputados, posso colocar a epígrafe que quiser. Mas, contudo, adoptou-se esta técnica de votar a epígrafe. Portanto,

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agora, para que fique o preto no branco, temos de votar globalmente este artigo 1.°

O Sr. Presidente: — Sinceramente, só estudei Direito Canónico; não estudei mais nenhum. Mas parece--me que a votação do conjunto do artigo 1.° correspondia à votação final global. Todavia, uma vez que há dúvidas, procederei então à votação final global do artigo 1.°

Antes, porém, dou a palavra à Sr." Deputada Zita Seabra.

A Sr." Zita Seabra (PCP): — Sr. Deputado José Luís Nunes: se for necessário, nós votaremos globalmente o artigo 1.° Mas eu coloco-lhe uma questão: supondo que o artigo só tinha um número, votávamos duas vezes, uma na especialidade e outra na globalidade?

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr." Deputada Zita Seabra: Também já coloquei essa questão na Assembleia. Nessa ocasião, a Assembleia da República, então presidida pelo nosso caro colega José Vitoriano, com um voto unânime, que não me convenceu, decidiu contra mim. Decidiu mal — e não valia a pena estar ali, naquela altura, a explicar uma questão processual. Mas, como decidiu mal e decidiu assim, será então melhor aplicar essa decisão. Penso até que a Sr." Deputada tem razão, mas tem-se votado assim e não vejo motivo para se votar de outra forma.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos então proceder à votação final global do artigo 1.°, com todas as alterações e aditamentos já aprovados.

Submetido à votação, foi aprovado, com 14 votos a iavor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS, e J voto contra, do PSD.

O Sr. Presidente: — Para uma declaração de voto, tem a palavra a Sr.a Deputada Zita Seabra.

A Sr." Zita Seabra (PCP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Votámos a favor, embora estejamos em desacordo com muitas das alíneas votadas. Mas votámos nesse sentido, em coerência com a votação na generalidade que efectuámos no Plenário. Portanto, este voto não pressupõe a atitude da nossa parte de estarmos de acordo com cada um dos artigos que foram votados, mas apenas uma coerência com o sentido da nossa votação na generalidade, o que não invalida todas as críticas que temos a fazer às soluções encontradas na votação na especialidade.

O Sr. Presidente: — Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: O PSD votou contra este artigo 1.° porque ele inclui, ou prevê, a alteração dos artigos 139.°, 140.° e 141." do Código Penal, introduzin-do-se através destes artigos, casos de exclusão da ilicitude do aborto, que, pelas razões éticas já explicadas em Plenárjo e na discussão em especialidade, nós rejeitamos

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Cunha.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS):—Sr. Presidente. Srs. Deputados: Tenho a certeza de que, com a aprovação deste artigo, aconteceu neste País aquilo a que eu poderia chamar uma verdadeira revolução cultural. Mais do que os efeitos práticos imediatos que a aplicação deste artigo a nível social possa ter, parece-nos que ele torna as pessoas mais responsáveis, dentro da maior liberdade que lhes é dada, de agirem conforme a sua consciência.

Esperamos — e estamos seguros disso — que a aprovação deste artigo, apoiada pela aprovação dos projectos de lei sobre planeamento familiar e maternidade, será a verdadeira profiiaxia do aborto clandestino, que diminuirá seguramente, no futuro, desde que os meios que o Estado ponha à disposição sejam suficientes, o número de casos de aborto clandestino e o número de mulheres que todos os dias morrem devido a abortos clandestinos praticados em más condições e que assegurará, às mulheres do nosso País, uma maior liberdade na escolha daquilo que é, em todos os momentos e para tudo o que respeita ao seu quotidiano, uma maior garantia de independência e de liberdade.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.0 Deputada Helena Cidade Moura.

A Sr.0 Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Penso que a aprovação deste artigo 1.° do projecto de lei do PS representa realmente um pequeno passo no sentido da justiça social. É evidente que isto necessita de ser implementado, regulamentado, requerendo tudo isso condições de contexto político-social, que todos nós estamos interessados em alterar.

Quero ainda fazer um pequeno esclarecimento quanto à nossa abstenção sobre a epígrafe do artigo 141.° Achamos que a palavra «consentimento» é, como epígrafe, muito redutora em relação ao corpo dos artigos. Em todo o caso, como não encontrámos uma expressão melhor, não formulámos qualquer proposta de alteração.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, estão em discussão o artigo 2.° do projecto de lei n.° 265/ÍII. Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começo por requerer que, tal como temos procedido até aqui, este artigo 2." seja debatido e votado ponto por ponto.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Ê assim que está determinado para todo o projecto!

O Sr. Presidente: — Sr. Deputado, está em discussão o n.° 1 do artigo 2.°

O Orador: — Então, nesse caso, retiro o meu pedido.

O n.° 1 deste artigo começa pela expressão «o médico que por dolo se não premunir», seguindo-se--lhe a regulação da hipótese que se pretende configurar. Ora, efectivamente, creio que a expressão «por dolo» está aqui a mais. O aborto é considerado, pelo Código Penal, um crime contra a vida intra-uterine. Ê assim

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mesmo que, no capítulo u do título t do livro n do Código Penal, é claGsTicado: crime contra a vida intra-uterina.

A economia, a lógca ou o raciocínio deste projecto de lei traduz-se, em poucas palavras, no seguinte: o aborto continua colocado na área dos crimes contra a vida intra-uterina, mas alguns casos são de lá tirados, para :hes excluir a ilicitude. Portanto, estamos perante um projecto de lei que pretende legislar em termes excepcionais. Esta é, aliás, a base do raciocínio do PS para dizer que é um projecto de lei restritivo, na medida em que se coloca na área da excepção.

Mas este artigo 2.° entra'propriamente não na área da exclusão, mas na área generalizada dos crimes contra a vida intra-uterina, na medida em que, ao colocar-se naquela situação, o médico não beneficia da exclusão da ilicitude. Mas o mesmo diploma —o Código Penal — diz que o crime só existe quando há dolo. Para haver crime com negligência é preciso que a lei o diga expressamente, o que consta claramente do artigo 13.° do Código Penal, embora com uma linguagem diferente daquela que usei.

Diz então este artigo que «só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência». Atente-se bem na expressão «nos casos especialmente previstos na lei». Logo, quando a lei não fala em negligência, e se estivermos na área criminal, esse crime exige necessariamente dolo. Porque só há crime com dolo, a não ser que a lei diga expressamente que, num certo caso, o crime está previsto mesmo que se pratique com negligência.

E agora regressaria ao artigo 2° do projecto. Se os Srs. Deputados lerem atentamente o n.° 1 do artigo 2.°, verificam que ele coloca o médico na área do crime contra a vida intra-uterina. Desde que aqui se não refira que o seu acto, praticado com negligência, o coloca lá, ele só lá está colocado se agir com dolo. Porque o crime contra a vida intra-uterina é sempre um crime —e não estou a discutir susceptibilidades de cada um; o que interessa é que, em termos de nomenclatura jurídica, é um crime—, e só quando há dolo é que existe, visto que a lei não prevê este crime com negligência.

Não sei se estou a ser claro. Eventualmente, a minha forma de expressão não será muito feliz, podendo algum dos senhores deputados ter dificuldade em me entender, mas estou disposto a desenvolver, por outras palavras, a mesma ideia. No fundo, posso sintetizar isto: sempre que a lei prevê um crime, se lá não estiver escrita a expressão «negligência», sÒ existe crime se houver dolo. Se estamos aqui a remeter o médico para a área do crime contra a vida intra--uterina, retiraremos o dolo, porque, em termos gerais, a lei já obriga a esse dolo. E assim, quanto a mim, aperfeiçoaremos o texto em termos de técnica jurídica.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado

fosé Magalhães.

O Sr. losé Magalhães (PCP): — Sr. Deputado Correia Afonso: Comprendemos as dúvidas suscitadas por si. Em todo o caso, creio que não há realmente causa pata swàttatt as questões que suscitou. E tentarei demonstrá-lo rapidamente.

Que hipótese é que é regulada no artigo 2.°? Ê apenas a hipótese do aborto lícito, isto é, do aborto verificado nas circunstâncias previstas no artigo 1.°, apenas nessas, e não em quaisquer outras, caso em que, infelizmente, continua a ser criminoso, em que o médico não se tenha premunido dos documentos exigidos pela lei. Portanto, neste artigo, deixarem-se de fora muitos casos, como, por exemplo, as situações de erro na verificação dos pressupostos. Como o Sr. Deputado bem configurará, os pressupostos podem não se verificar, mas, no entanto, por erro, o médico, julgando que eles se verificam, praticar a interrupção da gravidez. Como é que se resolvem essas hipóteses? Pela aplicação das regras gerais do Código Penal. Portanto, neste caso não há qualquer problema.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Não é crime!

O Orador: — Exacto, Sr. Deputado. Ê crime, mas por aplicação das regras contidas na parte geral. Dadas as circunstâncias, o tratamento penal é adequado por forma a não conduzir à punição concreta do médico.

O Sr. Correia Afonso (PSD): —Não é crime.

O Orador: — Não, Sr. Deputado. A hipótese que estou a figurar é a de haver erro na verificação dos pressupostos. Outra hipótese é a de haver erro em relação ao consentimento: o médico julga que tem o consentimento da mulher que se submete à interrupção da gravidez, mas o consentimento ou foi mal expresso ou expresso por forma inadequada ou não foi expresso.-

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: — Faça favor, Sr, Deputado.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Deputado José Magalhães: Creio que as hipóteses que está a descrever — salvo o devido respeito, pois estamos a discutir uma matéria técnica, na qual não sou especialista, não sou penalista— configuram hipóteses de negligência. Aquele que se enganou nisto, aquele que julgou aquilo configuram nítidas hipóteses de negligência. Como sabe, em termos de direito —e não lhe vou explicar isto a si, pois certamente que não é necessário, mas sim, em termos generalizados, a alguns dos senhores deputados, que poderão não o saber—, a vontade tem vários graus. O dolo é o grau mais seguro e mais forte: é uma vontade perfeitamente definida em determinado sentido, embora a lei distinga três espécies de dolo.

A negligência é uma forma de vontade, mas uma forma de vontade indirecta: é aquela que resulta do erro. Quando chego à janela e atiro distraidamente o cigarro para a rua, provocando um incêndio num carro que está parado, estou a agir com uma forma de vontade que é a negligência, não por que quisesse incendiar o carro, mas porque, quando atiro fora o cigarro, tinha obrigação de pensar que pode lá estar um carro em baixo e que posso incendiá-lo.

Ora, as hipóteses que o Sr. Deputado está a configurar — o médico engana-se nos pressupostos, juí-

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gando que há consentimento, quando ele na realidade não existiu — são casos de negligência. Porque, ele não tem a intenção de iludir a lei, de prefigurar ou de representar determinado objectivo que sabe ser contrariado pela lei; funciona, em termos de estrita intenção, dentro da legalidade, embora se tenha enganado por qualquer coisa. Há aqui uma negligência. Portanto, não seria crime porque os crimes contra a vida intra-uterina pressupõem dolo.

O Orador: — Sr. Deputado Correia Afonso: Eu agarrava na questão por outro ângulo. As duas hipóteses que se quis regular aqui — e que são diferentes — foram as que passarei a descrever. Primeira hipótese: o médico, intencional e deliberadamente, não se mune do parecer, nem o obtém posteriormente à interrupção. Esta é uma hipótese em que, logicamente, o tratamento pena! deverá ser mais gravoso. Segunda hipótese: o médico, por negligenciai em sentido técnico, neste caso), não se muniu do parecer, nem curou de o obter posteriormente. E, neste caso, a pena deve ser inferior e o tratamento penal distinto.

Foram estas duas hipóteses que se pretenderam regular neste artigo. Aliás, na parte em que a podemos conhecer, a história dos trabalhos preparatórios deste projecto de lei assim o revela, pois o antecedente deste normativo é o artigo 153.° do anteprojecto de Eduardo Correia, na versão de 1979, com correcções e aligeiramentos. Portanto, deduz-se claramente — e os autores poderão explicá-lo cabalmente — que se quis excluir o tratamento das hipóteses de erro na verificação dos pressupostos e das hipóteses de erro sobre o consentimento, remetendo-o para os princípios gerais, e que se pretendeu regular só estes dois casos, dando-se um tratamento penal diferenciado ao dolo e à negligência (neste sentido técnico), nestas hipóteses em que o aborto não é crime, sendo, antes, lícito. Mas —diz esta lei — não acarreta despenalização em todas as circunstâncias.

ê preciso que o médico, com um tipo criminal criado aqui de novo, preencha certos requisitos; se não o fizer, incorre em certas sanções, não nas sanções correspondentes ao aborto criminoso, mas noutras sanções específicas e próprias. Em todo o caso, penso que os autores poderão também dar o seu contributo sobre esta matéria, que muito agradecíamos.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): —Sr. Deputado José Magalhães: Compreendo perfeitamente os seus argumentos. Entre eles, há um que talvez, para mim, seja muito forte. É que, embora para mim não seja necessária a introdução do dolo aqui, ela pode ajudar a esclarecer. Nesse sentido, aceito-a, embora, em minha opinião, seja desnecessária.

Vozes inaudíveis.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. »osé Luís Nunes (PS):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vou tentar responder claramente a esta questão. Com aquela lealdade que costumo

usar nestas questões, acho duvidoso que se possa aqui encetar uma discussão destas. Os Srs. Deputados do PCP, que têm lutado com tanta intensidade(?) por uma série de coisas. Ê duvidoso, porque aqui não se configura nenhum crime contra o direito à vida. Aqui configura-se um crime do arco-da-velha, que consiste em saber se, por acaso, um sujeito que não obteve documentos comprovativos, mesmo que o aborto seja lícito, cometeu um crime. Isto é de uma violência extraordinária.

Vozes inaudíveis.

O Orador: — E aquilo que os Srs. Deputados Correia Afonso e José Magalhães estão a dizer é muito parecido: não estão a dizer coisas diferentes, isto nada tem a ver com o aborto. Agora, o médico que interrompe voluntariamente a gravidez, em casos lícitos, e que, por dolo, não pretendeu obter, nem obteve, os documentos X, Y ou Z, apanha a mesma pena que apanharia se o aborto fosse ilícito. O que é que isto quer dizer? Isto quer dizer que o tribunal não vai verificar, a não ser em termos de atenuante gerai, se, por acaso, o aborto foi ou não lícito, mas apenas constatar que aquele médico não quis obter estes documentos. Esta é uma critica clara e nítida em relação a isto.

Ponto I: é possível configurar-se uma hipótese destas como dolosa? Quer dizer: em face do aborto lícito, há algum caso em que se possa configurar uma hipótese destas como dolosa? Não há, ou dificilmente haverá. É uma hipótese meramente teórico.

Só depois é que surge a questão do n.° 2 do artigo 2.° Havendo negligência — e aí, sim, é que normalmente se pode configurar—, então a pena aplicável é a de prisão até 1 ano. Imaginemos que, em despacho de pronúncia emitido em processo de querela, o doutor X é acusado por ter praticado um aborto, nos dias tantos de tal, sem se ter premunido dos documentos referidos. Mas vai-se acusá-lo de ter praticado o acto com que intenção?

Aqui é que surge o problema do dolo, havendo que atentar nos artigos 13.° e 14.° do Código Penal, sobretudo no artigo 14.° O médico não recupera os documentos com que intenção? Que facto é que configurei — no caso do aborto lícito —, que visa uma: coisa destas? Ora, o que aqui estava certo — isso sim —, se examinássemos isto atentamente, era eliminar pura e simplesmente esta punição por dolo no que se refere aos documentos, mantendo-a só para a negligência. Aquele médico que não se premune com os documentos ou que não os tira e que é negligente apanha 1 ano de cadeia — e já é uma «pancada» terrível. Isto era o que seria lícito, porque o tribunal, na incriminação desta hipótese, não é sequer obrigado a verificar se o aborto é ou não lícito, antes pelo contrário. O tribunal pode dizer que o aborto era perfeitamente lícito, legal, claro, mas que este médico irá levar uma «pancada» igual à que levaria se tivesse praticado aborto clandestino, porque não se premuniu com os documentos necessários.

Ora, se tivermos um bom espírito para examinar estes problemas, pura e simplesmente eliminamos esta incriminação por dolo e acrescentamos o seguinte: «o médico que, por negligência, fizer isto apanha uma pena de prisão até 1 ano». Mas, para isso, é preciso que não percamos muito tempo aqui e que pensemos

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nesse assunto como é. Porque estou a ver o que o legislador quis escrever quando estava a pensar nisto, nomeadamente se foram ou não aquelas hipóteses que advieram da leitura feita pelo Sr. Deputado José Magalhães, por cujas qualidades tenho o maior respeito e admiração, mas que me pareceu apressada.

Mas não são essas hipóteses de erro —os erros sobre os pressupostos, sobre o consentimento, etc.— que o legislador pretendeu abordar. Trata-se pura e simplesmente de uma não premunição ou não obtenção de documentos, isto é, o sujeito que não obtém determinados documentos leva, pura e simplesmente, e mesma «pancada» que apanharia no caso de aborto clandestino, mesmo que o aborto seja legal; se for clandestino, já se sabe que apanha.

É possível configurar, em relação a isto, qualquer das figuras de dolo: dolo directo, dolo indirecto ou dolo eventual? Não é. o que aqui está —e o Sr. Deputado Correia Afonso fez muito bem em chamar a atenção para o facto — é, pura e simplesmente, um aborto no plano jurídico, porque nenhuma destas figuras de dolo —directo, indirecto ou eventual — é capaz de ser prefigurada em relação a isto. Tal como está aqui assim, isto é um crime qualificado por evento.

Não há muito tempo para discutir isto, mas a posição correcta quanto a este problema é esta: a eliminação do n.° 2 do artigo 2.° e a substituição, no seu n.° l, da expressão «por dolo» pela expressão «por negligência». Isto porque acho que, também neste caso, o médico deve ser punido. E acaba-se assim com o problema, porque o doio não é aplicável num crime qualificado por evento. E isto é um crime qualificável por evento.

o Sr. Presidente: — Peço, então, ao Sr. Deputado jíosé Luís Nunes que explique melhor a sua proposta.

o Orador: — é a seguinte, Sr. Presidente: eliminar o n.° 2 do artigo 2° —é uma questão técnica — e, no n.° 1, substituir a palavra «dolo» pela palavra «■negfigência» e a expressão «será punido como se não ocorressem as causas de exclusão não documentadas» pela expressão «será punido com pena de prisão até 1 ano». Porque isto é uma brutalidade, para além dos efeitos penais e disciplinares, facto em que as pessoas normalmente não pensam quando dão a «pancada» no médico, em circunstâncias destas.

o Sr. Presidente: — Sr. Deputado José Luís Nunus, embora já tenhamos compreendido o conteúdo da proposta, será conveniente apresentá-la por escrito.

o Orador: — Com certeza, Sr. Presidente.

o Sr. Presidente: — Enquanto o Sr. Deputado José Luís Nunes redige a proposta, dou a palavra à Sr.° Deputada Helena Cidade Moura.

A Sr.a Helena Cidade Moura (MDP/CDE): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Estivemos a ouvir atentamente a explicação deste artigo 2.°, porque a leitura que foi feita no meu partido foi a seguinte: toda a actuação médica tem regras a cumprir, as suas leis t a sua d&afttQlo&ia. Quando um médico não as cumpre, esse facto respeita à sua profissão de médico. E as re-

gras de deontologia estão definidas neste projecto de lei. Ora, o que nós não entendíamos muito bem era o sentido de sanção dentro deste projecto de lei. E estávamos na disposição de votar contra isto, uma vez que era a eliminação total que achávamos correcta.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: É evidente que não vou dar nenhuma novidade aos Srs. Deputados ao dizer que vou votar contra os 2 números do artigo. Mas, em termos de aperfeiçoamento técnico, parece-me que há uma de duas soluções: ou se retira a expressão «por dolo», do n.° 1, ou se substitui essa expressão pela expressão «por negligência».

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Mas o Sr. Deputado concorda que isto é manifestamente um crime qualificado por evento?

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Certamente que sim, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: —Srs. Deputados, vamos votar s proposta de eliminação do n.° 2 do artigo 2.° do projecto de eliminação do n.° 2 do artigo 2° do projecto de lei em discussão.

Submetida à votação, foi aprovada, com 14 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS, e 1 abstenção, do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar a proposta de substituição, ao n.° 1 do artigo 2.°, da palavra «dolo» pela palavra «negligência».

Submetida à votação, foi aprovada, com 13 votos a favor, do PS, do PCP e da UEDS, e 2 abstenções, do PSD e do MDP/CDE.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos proceder à votação da proposta de substituição, no n.° 3 do artigo 2°, da expressão «como se não ocorressem as causas de exclusão não documentadas» pela expressão «com pena de prisão até um ano».

Submetida à votação, foi aprovada, com 13 votos a favor, do PS, do PCP e da UEDS, e 2 abstenções, do PSD e do MDP/CDE.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos proceder à votação final global do artigo 2°, com as alterações aprovadas.

Submetido à votação, foi aprovado, com 13 votos u favor, do PS, do PCP e da UEDS, 1 voto contra do PSD, e 1 abstenção, do MDP/CDE.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos entrar na discussão do n.° 1 do artigo 3.°

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Quanto a este preceito, entrou na Mesa uma proposta de substituição da expressão «estabelecimento de saúde adequado» pela expressão «estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido», apresentada pelo Sr .Deputado Jorge Lacão.

Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Como facilmente se compreende, esta proposta de substituição visa apenas unificar os conceitos, tal como fizemos relativamente ao n.° 1 do artigo 140.° do Código Penal.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que este artigo 30 nos levanta outros problemas. E gostaria de chamar a vossa atenção para o seguinte: estamos aqui a legislar alguns casos de exclusão da ilicitude do aborto ...

Por falha no sistema de gravação, não ficou gravada a última parte desta intervenção e, bem assim, a do Sr. Deputado José Luís Nunes (PS), que se lhe seguiu.

Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Deputado Lino Lima.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): —Era para exprimir o nosso acordo em relação às considerações feitas pelo Sr. Deputado José Luís Nunes quanto a este ponto e para acrescentar que nos parece que esta disposição é importante. £ uma norma caracterizadora da natureza real desta lei e não tem realmente carácter puramente regulamentar. Neste ponto permito-me discordar do Sr. Deputado Correia Afonso.

A lei poderia realmente dizer que a interrupção da gravidez não é crime e desinteressar-se de tudo o resto.

Uma lei desse tipo seria puramente despenalizado» e manteria todas as desigualdades no acesso à interrupção da gravidez. Faria julgar todos os desníveis e todas as diferenças.

Desinteressava-se das circunstâncias de defesa da saúde, da dignidade e da humanidade, pelo que seria uma lei imperfeita e, nessa medida, negativa.

Neste caso concreto, se esta disposição peca por alguma coisa, é por, na nossa opinião, não acautelar tão intensamente e tão cuidadosamente quanto seria necessário os direitos dos cidadãos, neste caso da^ mulheres, perante os serviços públicos e de não ter providências com o grau de rigor e de minúcia que seria compatível com uma lei da República, sem descer à minudência dos regulamentos, mas que, na nossa opinião, seria desejável para assegurar, o melhor que seja possível, o acesso da mulher, quando tenha necessidade disso, aos serviços de saúde, públicos ou privados, desde que autorizados para o efeito e reunindo as condições adequadas.

Na nossa opinião, portanto, se alguma coisa afecta esta norma, é a insuficiência e não o excesso regulamentar.

Nesse sentido, votá-la-emos favoravelmente.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Cunha.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): —Na nossa opinião, é também extremamente importante que a lei contenha este artigo, por uma razão simples: se, por um lado, admitimos perfeitamente que qualquer médico não se autorize a si próprio a praticar uma interrupção da gravidez, usando do seu direito de objecção de consciência, não podemos admitir, por outro lado, ao criar esta lei, que as instituições, particularmente as oficiais, usem, no seu todo, desse direito.

Ora, se estes números que fazem parte do artigo 3.° não estivessem expressos na lei, poderíamos encontrar--nos numa situação perfeitamente ridícula, que era a de termos uma lei e um administrador que, só porque não está de acordo, não facilita minimamente o acesso de qualquer mulher, com todos os documentos que provam que ela pode interromper uma gravidez, ao hospital que dirige. Este ponto parece-me ser bastante importante.

E evidente que não tenho dúvidas de que vamos encontrar muitas dificuldades na aplicação desta lei restritiva. Ora, se me bato pela aplicação desta lei, por razões que já várias vezes tive ocasião de invocar, é evidente que tenho também de me bater para que sejam criadas as tais condições adequadas, particularmente nas instituições oficiais. Caso contrário, arriscamo-nos, entre outras coisas, a ver a situação manter-se, isto é, as mulheres privilegiadas, de uma camada social mais favorecida, dirigirem-se para os estabelecimentos não oficializados, onde pagarão as suas interrupções de gravidez por preços que não são acessíveis para um trabalhador rural ou de uma fábrica, e os hospitais oficiais a recusarem-se a criar condições locais para que se possam praticar interrupções de gravidez em condições de segurança para a mulher.

E mais nesse sentido que vejo a necessidade de se manter este artigo.

Ê evidente que ele pode ter o seu aspecto regulamentador. Mas é preciso que isto esteja aqui escrito na lei, senão correremos o risco muito sério de vermos uma boa parte dos estabelecimentos fecharem-se só por o senhor administrador não estar de acordo.

Ele pode não estar de acordo, mas o que ele não pode é fechar a porta do estabelecimento

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Afonso Correia.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Julgo que há duas ordens de razões para nos fazerem ponderar o que consta do artigo 3.°

Admito perfeitamente que este artigo tem alguns pontos que não serão regulamentares, podendo existir uma certa dúvida acerca da sua natureza.

Mas, como dizia há pouco, há aqui dois pontos que merecem a nossa reflexão e vou tentar colocar-me nessas duas plataformas.

Em primeiro lugar, quero chamar a vossa atenção para o facto de que os pontos que estão aqui e que são regulamentares deviam, por uma questão de princípio, ser remetidos por nós, deputados, para o Governo. E, se o que nos aflige é que isso demore tempo, temos sempre a possibilidade de incluir um artigo que dê um prazo ao Governo para regulamentar. Nesse caso. o Governo terá de cumprir.

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Um segundo ponto que queria realçar, embora se situe ainda a nfvel constitucional, tem um aspecto mais prático. Tenho as maiores dúvidas de que a parte regulamentar inserida no artigo 3.° não seja inconstitucional, na medida em que estamos a impor despesas e não podemos, nos termos do artigo 170.", n.° 2, aprovar e desenvolver projectos que as envolvam.

Ora, quando estamos a criar serviços nos hospitais só afectos à interrupção voluntária da gravidez e, nomeadamente, a obrigar a outras providências, estamos efectivamente a fazer aquilo que o n.° 2 do artigo 170." diz que não devemos fazer:

Os deputados, os grupos parlamentares e as assembleias regionais não podem apresentar projectos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas oü diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.

Neste caso encontrar-nos-íamos abrangidos pela parte referente ao aumento das despesas.

A Sr." Zita Seabra (PCP): — Dá-me licença, Sr. Deputado?

O Orador: — Faz favor, Sr." Deputada.

A Sr.a Zita Seabra (PCP): — Sr. Deputado, penso que, se a interpretação fosse essa, não podíamos aprovar qualquer espécie de lei ou fosse o que fosse.

Nesse caso, o melhor era arrumarmos as botas e votarmos só o OGE, mais nada. Se isso fosse assim, como o Sr. Deputado diz, não se podiam criar serviços de saúde e ensino, escolas, etc, O nosso próprio projecto de planeamento familiar seria, desta maneira, inconstitucionalíssimo, uma vez que vai criar serviços de planeamento familiar. Nessa altura, nem educação sexual, nem maternidade, nem nada disso. Penso, assim, que esse argumento não é razoável.

Dir-lhe-ia ainda um outro aspecto: os actuais serviços que existem para atender os casos que provêm do aborto clandestino são mais que suficientes e, pelo contrário, ficará muito mais económico em termos financeiros se forem reconvertidos naquilo que este texto procura exactamente criar.

O Sr. Deputado sabe tão bem como eu que há hospitais públicos só para isso. Aqui em Lisboa é o caso, por exemplo, do Hospital de Santa Bárbara, que é só para atender os casos mais graves que vêm do aborto clandestino. Agora creio que não é realmente um argumento válido.

O Orador:—Sr." Deputada, muito obrigado pela sua contribuição. Ê evidente que não tenho, neste caso concreto, uma visão tão niilista, no sentido de que não podíamos mais legislar. £ que aquilo que acabei de dizer foi o seguinte: se nós estabelecermos que determinados casos ou certas hipóteses são excluídos da ilicitude, depois de determinarmos as condições em que são excluídos, não somos nós que criamos a despesa; se for o Governo a regulamentar, como é que isso vai funcionar.

Ao passo que, se formos nós, ao nível da Assembleia da República, ou seja, ao mais alto nível da lei ordinária, a emitir disçosições regulamentares dizendo que os serviços funcionam desta ou daquela maneira, que é o

que, por exemplo, se prevê aqui no artigo 3.°, estamos a criar uma especialidade. Admito perfeitamente o que a Sr.tt Deputada diz, que na prática isso não acontece.

Mas, em termos de teoria, estamos, porque de outra maneira não estaríamos aqui a fazer nada. Se estamos a excluir da ilicitude determinados casos de aborto e os inserimos, portanto, na actividade normal dos hospitais, partimos do princípio de que, nestes termos, isto não tem funcionado assim. Caso contrário, repito, não estaríamos aqui a fazer nada.

Estamos, neste momento, a introduzir uma nova actividade nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficializados, a qual custa dinheiro. Quando entrarmos na regulamentação, estamos a pisar o n.° 2 do artigo 170." da Constituição.

Se todos temos preocupações (e eu também as tenho) acerca de problemas eventualmente constitucionais das disposições que estamos aqui a debater e a aprovar, ao menos que não juntemos mais elementos nessa matéria.

Devo dizer que estou a falar apenas dentro daquela obrigação que sinto de colaborar, porque votarei sempre contra, no princípio, no meio e no fim. Portanto, dentro deste sentido estrito que é a minha obrigação de colaborar, julgo que deveríamos remeter a regulamentação para o Governo e dar-lhe um prazo, que pode ser, por exemplo, de 8 ou 10 dias, uma vez que é urgente. Mas não façamos, por uma questão de urgência, aquilo que não devemos fazer.

Chamava, assim, a atenção dos Srs. Deputados para isto, porque se trata efectivamente de uma matéria controversa, a que eventualmente devemos e podemos fugir. Isto não fica no vago, porque, se nós dermos ao Governo um prazo curto para regulamentar, ele terá mesmo de o fazer.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Sr. Presidente, vamos começar pelo princípio, ou seja, vamos discutir e votar estes assuntos ponto por ponto.

Em relação ao n.° 1 do artigo 3.° existe uma proposta de substituição nossa, que visa substituir a expressão «estabelecimento de saúde adequado» por «estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido». Em relação a esse ponto não se aplicam as objecções que o Sr. Deputado Correia Afonso levantou.

Sendo assim, propunha que, seguindo a regra que adoptámos até aqui, votássemos primeiro o n.° 1 e abríssemos em seguida a discussão sobre o n.° 2, acerca do qual gostaria de dizer algumas coisas. Se esta foi a regra até aqui, ela não deve ser alterada.

O Sr. Presidente: — Sr. Deputado Correia Afonso, pretende transformar em proposta as suas considerações e a sua crítica?

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Não, Sr. Presidente, não pretendo transformá-las em proposta.

A minha contribuição é feita em termos de carácter geral e não irá, a não ser num único caso, que daqui a pouco referirei, ao ponto de apresentar propostas.

Mas, já agora, aproveitaria para dizer ao Sr. Deputado José Luís Nunes que o n.° 1 não enírou efecti-

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vãmente na segunda plataforma constitucional que referi há pouco, ou seja, de envolver despesas. No entanto, tem natureza regulamentar, sem dúvida.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Dá-me licença que Sr. Deputado?

O Orador: — Faz favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Luís Nunes (PS):—Sr. Deputado, é duvidoso que tenha natureza regulamentar.

Numa parte estou de acordo em que tem, mas é extremamente pequena, e não há mal nenhum que isso aconteça, porque estas coisas não são completamente estanques. Agora tem uma outra parte em que não tem natureza regulamentar, porque confere um direito.

Referir-me-ia agora ao n.° 1 e em seguida iríamos ao n.° 2. Propunha, para já, que fosse votada a nossa proposta de alteração ou de substituição e que depois fosse votado o n.° 1 na sua redacção. Depois, quando se tratar do n.° 2, diria alguma coisa sobre os problemas importantes que o Sr. Deputado Correia Afonso levantou.

O Sr. Presidente: — Assim, uma vez que o Sr. Deputado Correia Afonso não pretende transformar as suas considerações em proposta e não há mais ninguém que esteja inscrito para debater a questão levantada por este Sr. Deputado, vamos passar à votação da proposta de substituição apresentada pelo PS, que é no sentido de se substituir a expressão, contida no n.° 1 do artigo 3.°, «estabelecimento de saúde adequado» por «estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido».

Submetida à votação, foi aprovada, com 14 votos a favor do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS e a abstenção do PSD.

O Sr. Presidente: — Vamos agora proceder à votação de todo o n.° 1.

Submetido à votação, foi aprovado, com 15 votos a favor do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS e 1 voto contra do PSD.

O Sr. Presidente: — Vamos passar à discussão do n.° 2 do artigo 3.° Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS):—Vamos apresentar uma proposta de alteração em relação a este n.° 2 por 2 motivos: primeiro, porque é duvidoso que se possa dizer numa lei da Assembelia da República que se «disporão de serviços»; em segundo lugar, porque é errado que se diga «serviços adequados para o efeito». Gostaria de lembrar, a este respeito, que uma das formas como foi atacada a lei Veil em França foi chamar aos sítios onde se praticavam abortos avortoires, tentando criar serviços só para abortos.

Ê evidente que não é possível criarem-se serviços apenas para este efeito, bem como discriminar os profissionais de medicina entre os que fazem nascimentos e os que se especializam em abortos. Ora, esta norma do n.° 2, tal como está redigida, podia abrir caminho a isso.

Por outro lado, a objecção do Sr. Deputado Correia Afonso tem razão de ser.

Além disso, o tal carácter de orientação programático é importante.

Neste sentido, o PS vai apresentar uma proposta à Mesa no sentido de se eliminar a expressão «disporão de serviços adequados para o efeito», fazendo-a substituir pela expressão «organizar-se-ão por forma adequada para o efeito».

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Dá-me licença, Sr. Deputado?

O Orador: — Faz favor, Sr. Deputado.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Sr. Deputado José Luís Nunes, dentro do espírito de colaboração que tenho manifestado, julgo que neste n.° 2, a manterem a vossa proposta, se deveria uniformizar, dizendo-se também «os estabelecimentos de saúde oficiais mi oficialmente reconhecidos».

O Orador: — Tem toda a razão, Sr. Deputado Correia Afonso.

Vai-se apresentar, por conseguinte, uma proposta de substituição do n.° 2 do artigo 3.°, com o seguinte teor:

Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde seja licitamente praticada a interrupção voluntária da gravidez organizar-se-ão por forma adequada para o efeito.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Deputado José Luís Nunes, julgo que esta alteração retira daqui qualquer coisa que não sei onde vai ficar. Isto pressupõe que se dá prazo ao Governo para regulamentar?

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Não, Sr. Deputado, não pressupõe que se dá prazo ao Governo para regulamentar para além do que está previsto no artigo 6.°

Esta lei é extremamente complexa e é necessário que fique bem claro aqui que há determinados factos que não carecem de regulamentação.

Por outro lado, é extremamente duvidosa a expressão «autorizada a prática lícita da interrupção voluntária da gravidez». Repare, Sr. Deputado, que se diz «autorizada».

É claro que já estou a ver o que é e não fujo à dificuldade. Em relação às maternidades, tudo bem. Mas o serviço de urgência de um banco de hospital será ou não um sítio onde em determinados aspectos pode ser autorizada a interrupção voluntária da gravidez?

O Orador:—Sr. Deputado, mas porquê então a maternidade?

Se entrarmos no caminho da dúvida, caberá perguntar o que são estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Esses são os hospitais ou aqueles estabelecimentos particulares que são reconhecidos como tais.

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O Orador: — Concordo, Sr. Deputado. No entanto, também pode ser o contrário. Há aqui, indubitavelmente, necessidade de uma regulamentação.

Mas por mim não há problema nenhum.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Cunha.

O 3r. Octávio Cunha (UEDS): — Sr. Deputado Correia Afonso, penso que este problema não se vai pôr na prática.

O Sr. Deputado está muito preocupado com os g2Stos, mas vejamos, afinal, aquilo que se vai passar. O que vai acontecer é que aquilo que era clandestino até agora nos hospitais passa a ser reconhecido como legal.

A meia dúzia de macas no serviço de urgência deixam de sobrecarregar este e outros serviços, passando apenas a fazer parte daquele que lhe é destinado.

Além disso, as pessoas que vêm aos serviços de urgência passarão e ser melhor atendidas porque não existe aquele permanente chegar de mulheres a partir da 1 hora da madrugada que vêm acabar na urgência um aborto que iniciaram em casa.

Os serviços não vão ficar mais sobrecarregados. Ao contrário daquilo que se diz muitas vezes, a aprovação desta lei não vai aumentar os casos de interrupção de gravidez nem de aborto clandestino. A experiência mostra que, se pode, eventualmente, haver durante alguns meses um certo aumento de pedidos, tudo acaba por se estabilizar.

A experiência do Estado de Nova Iorque é clara nesse aspecto e é, segundo me parece, a melhor controlada neste sector.

Os serviços já se encontram de certo modo organizados. O que sc pretende é que, de facto, um administrador, ou um director de serviço, por sua posição pessoal, impossibilite que os serviçoi sociais funcionem, ao fim e ao cabo, como têm funcionado sempre.

Simplesmente, ele agora, em vez de assinar uma tabela de saída de uma senhora que veio ali acabar um aborto que começou em casa com o diagnóstico de septicemia, que é o caso de infecção, ele passará a referir interrupção de gravidez.

Já não dirá «septicemia», até porque, se o aborto foi praticado em boas condições, a mulher não vai infectar-se.

Se ela chegar infectada, ele escreverá que se tratou de uma septicemia pós-interrupção clandestina de uma gravidez. Ele terá o direito de o fazer.

Ao fim e ao cabo, vamos tornar claro aquilo que tem sido obscuro e obrigar, através da lei, a que as mulheres não abortem em casa nem se entreguem nas mãos de qualquer curiosa para o fazerem. O que queremos, portanto, é diminuir os riscos, criando condições.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Deputado Octávio Cunha, aprecio a sua preocupação, na medida em digo-lhe que me recuso, a nível da Assembleia da República, a ir legalizar práticas já existentes.

Em re\ação a este assunto, uns estão de acordo, outros em desacordo. Mas o que temos é obrigação de

dar dignidade de conceitos àquilo que estamos e legislar.

Recuso-me a aceitar o que o Sr. Deputado Octávio Cunha acabou de referir, no sentido de que vamos legislar apenas aquilo que já existe.

Não, Sr. Deputado. Temos de dar a este problema a dignidade que ele tem, colocá-lo ao r.ívei a que ele se coloca, e não apenas, como mero acto regimenta; ou regulamentar, dizer que aquilo que já se faz era proibido, mas passa a ser permitido.

As posições em relação ao aborto são diferentes, mas num ponto elas coincidem: que este problema deve ser tratado de acordo com a dignidade que tem. Ê, aliás, em função dela que tenho estado a contribuir e a desenvolver.

Ora, não posso, de maneira nenhuma, aceitar isto. Logo, se é assim, em termos de conceito, não há dúvida de que este ponto tem de ser regulamentado. Não aceito estar aqui com uma medida policiai a transformar uma coisa que era proibida em permitida.

Estamos a entrar numa nova vida. Aquilo que a Assembleia da República vai decidir, embora com o voto contrário meu e do meu partido, tem que ter a dignidade de uma decisão importante que entra na vida das pessoas. Não pode ser apenas a legalização do que se passa clandestinamente nos hospitais. E muito mais do que isso.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado losé Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Não percebi muito bem o debate que está a travar-se, porque estou aqui a tentar meter mais umas pequenas modificações atinentes à definição terminológica, mas aquilo que me parece fundamental em relação a isto é o seguinte: esta norma merecia, quanto a mim, 3 críticas que lhe foram feitas pelo Sr. Deputado Correia Afonso.

A primeira, que assumimos, é que ela tem alguma coisa de programático.

No entanto, esta característica, como já foi aqui referido pelo Sr. José Magalhães, permite dar um pouco de sentido a tudo isto. Portanto, não inc parece que seja grave.

O segundo ponto, que aqui foi sublinhado pelo Sr. Deputado Correia Afonso, e muito bem, c que quando se referia «disporão de serviços adequados» estava-se, não digo a pisar o risco, mas a andar perto de uma secante ou de uma tangente.

Estava-se a adoptar um conceito que não me sinto habilitado a dizer se é correcto em termos médicos, ou seja, que deverá haver serviços, nc sentido técnico da palavra, para este efeito.

Em terceiro lugar, no que toca ao problema de saber onde deve ser autorizada a prática da interrupção da gravidez, não vejo nenhum inconveniente em que a certa altura por acto administrativo, que pede ser do Governo ou de outras entidades, se centralize aqui ou ali a prática de certo acto médico.

Mas o que gostava de focar era que a interrupção da gravidez, tal como aparece neste nosso decreto-lei, é um acto médico, no sentido que lhe dá o Supremo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência normal: z prática consíante e reiterada de actes dentro da sua arte, que era a expressão utilizada no Código Pena! de 1852.

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Quando se definia aborto no Código Penal de 1852 referiam-se os actos praticados por médicos ou profissionais de farmácia com intuito curativo de forma determinada e sistemática.

£ evidente que neste aspecto estamos de acordo.

Gostaria ainda de dizer ao Sr. Deputado Correia Afonso, que tanto contribuiu para nos ajudar na elaboração da parte técnica desta lei, o seguinte: sabemos qual a sua posição de princípio em relação a este ponto e estou de acordo em que a lei não deve legalizar práticas já efectuadas, mas sim ter a função mais elevada de ser também disciplinadora delas, entendendo a expressão «disciplina» como um juízo valorativo que regula, autoriza ou proíbe. Portanto, a disciplina pode regular, proibir tout court ou permitir dentro das circunstâncias.

Era, portanto, neste sentido que, fazendo tábua rasa de algumas notas que aqui foram feitas, vamos votar a favor desta proposta tal como a eleborámos, depois de um debate que creio ter sido profícuo.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Cunha.

O Sr. Octávio Cunha (UEDS): —Era apenas para dizer que existem aqui dois aspectos e talvez por isso é que haja um desencontro na nossa linguagem.

O primeiro aspecto é o da mulher que por via normal chega a um hospital credenciada para fazer uma interrupção da gravidez. £ evidente que ela, nesse caso, será dirigada para o serviço adequado, que será de ginecologia ou de obstetrícia, conforme a organização interna do hospital.

Penso que é positivo o facto de não se pretender criar hospitais só para a prática da interrupção da gravidez, já que isse seria desagradável para toda a gente.

Por outro lado, existe o outro aspecto, que são as mulheres que chegam aos serviços de urgência sem nenhuma credencial, mas com uma interrupção de gravidez iniciada em casa. Essas são, evidentemente, as tais situações clandestinas a que me refiro e que sobrevivem nos hospitais clandestinamente.

Era a essas que eu me referia e aí é que houve talvez uma pequena confusão.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Queria contar-lhes uma história autêntica, que gostava que ficasse registada, de um homem que foi enforcado em Inglaterra em mil seiscentos e pico porque tratou das feridas sofridas em combate de um homem, de um nobre, que se tinha revoltado contra o rei. Foi condenado por traição e enforcado. A defesa que ele utilizou e que aparece muito citada, tendo eu já tido ocasião também de a citar numa alegação jurídica, foi a seguinte: o tribunal que o condenou à morte perguntou--lhe por que motivo tinha ele tratado de um traidor ao seu rei. A resposta dele foi esta:

Milords, pediram-me que tratasse das feridas do seu corpo, e não das feridas do seu espírito.

£ um ponto de vista que eu gostaria de trazer aqui.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos então proceder à votação da proposta de substituição do PS.

Submetida à votação, foi aprovada, com 14 votos a favor do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS e 1 voto contra do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos passar à discussão do n.° 3.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Existe já uma proposta de substituição no sentido de se eliminar a expressão «os serviços adequados dos [...]», ficando só «os estabelecimentos referidos [...]».

O Sr. Presidente:—Srs. Deputados, vai ser lida a proposta de alteração apresentada pelo PS a este n.° 3.

Foi lida. Ê a seguinte:

Propõe-se a eliminação da expressão «os serviços adequados», iniciando-se a norma pela expressão «os estabelecimentos [...]» e mantendo-se a mesma redacção até final.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, está em discussão.

Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Correndo o risco de repetir o que já há pouco disse, este n.° 3 parece-me colidir com o n.° 2 do artigo 170.° da Constituição.

Chamo a atenção de novo dos senhores deputados, porque estas providências envolvem, necessariamente, despesas e encargos, estando, segundo penso, um pouco fora da nossa esfera de decisão.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — O Sr. Deputado Correia Afonso teria toda a razão, mas, com as alterações que já foram feitas no n. 2, essa objecção já não colhe. Com a eliminação dos «serviços adequados» ficam apenas os «estabelecimentos referidos no número anterior», que são os oficiais ou oficialmente reconhecidos.

Quanto a este ponto, caía no fundo uma explicitação do combinado no artigo 22.° da Constituição.

O Sr. Presidente: — Vamos proceder à votação da proposta de alteração do n.° 3 do artigo 3.° apresentada pelo PS.

Submetida à votação, foi aprovada, com 13 votos a favor do PS, do PCP e do MDP/CDE e 1 voto contra do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos agora votar o texto do n.° 3 do artigo 3.° com a alteração que acabámos de votar.

Submetido à votação, foi aprovado, com 13 votos a favor do PS, do PCP e do MDP/CDE e 1 voto contra do PSD.

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O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos proceder à votação na globalidade do artigo 3.°

Submetido* à votação, foi aprovado, com 13 votos a favor do PS, do PCP, e do MDP/CDE e 1 voto contra do PSD.

O Sr. Presidente: — Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — O PSD, que represento nesta comissão especializada, votou contra, não só por razões, que já referi, de ordem ética, mas por duas outras adicionais.

Em primeiro lugar, por este artigo 3.° do projecto ter várias prescrições de natureza regulamentar e ainda porque naquilo que nele se estabelece há colisão com o n.° 2 do artigo 170.° da Constituição.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): — Era também para uma declaração de voto, Sr. Presidente.

Votámos favoravelmente este artigo porque constitui um instrumento fundamental para que a lei possa ser aplicada a todas as mulheres portuguesas que o desejem em condições de igualdade, preterindo, assim, factores de desigualdade que a despenalização pura, inevitavelmente, acarretaria.

Atingiu-se o mínimo dos mínimos, o qual é, obviamente, constitucional, não colhendo quaisquer argumentos, como os que aqui foram invocados, no sentido de se sustentar que as disposições do artigo citado da Constituição, que, de resto, foram revistas na revisão constitucional precisamente para aclarar interpretações excessivamente lineares como esta, são violadas pelo preceito em questão.

Desta maneira, nenhuma regra constitucional pode ser invocada, em nosso entender, para substentar ou questionar a constitucionalidade destas providências, que, repita-se, têm apenas carácter mínimo e são aquilo que se espera de um Estado que pretende enfrentar, em condições mínimas também, esse flagelo que é o aborto clandestino.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, temos agora uma proposta do PCP que visa a criação de um novo artigo, que aparece com a designação de artigo 3.°-A, e que vai ser lida.

Foi lida. Ê a seguinte:

NOVO ARTIGO 3.0-A

1 — A mulher que haja realizado uma interrupção voluntária da gravidez deverá ser observada, no prazo máximo de 7 dias após a intervenção, num centro de saúde onde lhe seja fornecida informação sobre planeamento familiar.

2 — Esta obrigação será sempre referida d mulher na altura da intervenção.

O St. Vtesid&tite'. — Tem a palavra a Sr.* Deputada Zita Seabra.

A Sr." Zita Seabra (PCP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: O sentido desta proposta é exactamente evitar o que se passa hoje, em que muitas vezes a mulher é forçada à prática sucessiva do aborto por desconhecimento do planeamento familiar. Daí que em todos os países que legalizaram, com maior ou menor amplitude, a interrupção da gravidez tenha havido a preocupação de que sejam facilitadas à mulher as condições e as informações para que ela siga para uma consulta de planeamento familiar e impeça que volte novamente a encontrar-se numa situação como esta a que acaba de recorrer, ou seja à prática de uma interrupção da gravidez.

Como nós entendemos que a única forma de o impedir é o planeamento familiar, é esse o sentido da nossa proposta.

Uma das questões que se têm procurado imprimir nos países que têm legislação em vigor neste sentido há muitos anos é o recurso ao planeamento familiar para impedir que a prática do aborto prolifere.

Isto é tão importante que nos casos em que não foi feito, e há países onde não o foi, veio a verificar-se um aumento do número de abortos.

Só depois, com o implemento do planeamento familiar, é que essa práticavem novamente a baixar. É este, portanto, o sentido da nossa proposta.

Creio que é sabido, conforme resulta dos trabalhos preparatórios que fizemos do texto do nosso próprio projecto, que são as mulheres de condição económica mais difícil, de menor nível de informação e de cultura que recorrem, sucessivamente, à prática do aborto. E, como ele é clandestino, muitas vezes verifica-se que fazem 5, 10, enfim, números incríveis de abortos. É justamente para evitar isso que fazemos esta nossa proposta.

A redacção pode não ser a mais feliz, mas estamos abertos a qualquer outra.

A única preocupação é a de que fique consagrado nesta lei que depois de uma interrupção da gravidez nos próprios serviços de saúde onde ela é feita a mulher é encaminhada para um serviço de planeamento familiar.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Se eu tivesse a certeza de que esta proposta não passava, abstinha-me. Mas como ela pode passar com a nossa abstenção, vamos votar contra, porque entendemos que esta disposição não pode ficar aqui neste projecto de decreto--lei.

Gostaria de explicar sucintamente as razões que nos levam a isso.

Sr." Deputada Zita Seabra, aquilo que acaba de propor não é para este projecto de decreto-lei, mas para o do PCP. No projecto de lei do PCP é que a educação sexual a seguir à prática de um aborto poderia ter algum sentido, embora, pessoalmente, tivesse algumas dúvidas sobre isso, até por uma questão que o Sr. Deputado Correia Afonso referiu há pouco.

Faz favor, Sr." Deputada.

A Sr." Zita Sea&ra (PCP): — Sr. Deputado, vou-Ihe já dar um exemplo claro que mostra que não é assim. Mesmo com a filosofia inerente ao vosso projecto de lei, isto é necessário.

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Por exemplo, o caso mais típico do aborto eugénico é a mulher com mais de 40 anos que tem imediatamente uma gravidez de risco e que vai cair nos tais casos mais normais ou mais frequentes de crianças mongolóides ou outros casos graves, uma vez que passa a ser uma idade de risco.

Ora, essa mulher com mais de 40 anos que vai fazer uma interrupção e que tem o direito de a fazer no quadro desta lei, das duas uma, ou segue para um serviço de planeamento familiar ou corre o risco de passado um ano estar lá outra vez na mesma situação, ou seja com um caso claro de aborto eugénico.

Portanto, mesmo no âmbito estrito desta lei, excepção feita, evidentemente, ao caso da violação, há também casos claros que levam a esta situação.

O Orador: — A Sr." Deputada fala em realidades como, por exemplo, centros de saúde que não sei como é que vão funcionar neste momento no nosso país ou até se se impõe a sua criação.

A Sr.° Deputada dá um prazo que é incumprível, por ser apenas de 7 dias. E a sua proposta, mesmo em relação a essas questões, está em muito melhor sede em relação à lei de educação sexual do que aqui.

É evidente que é minha convicção que este projecto de lei é absolutamente constitucional que a chamada «objecção do direito à vida» que foi utilizada, por muito responsável que seja, não tem acolhimento na Constituição portuguesa. Mas pela introdução de mecanismos ou de variações que retiram a linearidade a este projecto a Sr.a Deputada Zita Seabra pode estar a levantar problemas que não estão no seu espírito e com os quais, efectivamente, o projecto não ganha. Até porque uma coisa dessas pode ser prefeitamente colocada naquele projecto sobre educação sexual que está a ser discutido neste momento sobre a saúde.

Não tenho nada de grave contra esse assunto, não meditei a fundo nisso, mas assim, à prima facie, manteria este projecto de lei na sua linearidade absoluta e evitaria um determinado número de coisas que podem criar aquilo a que poderíamos chamar «casos formais de inconstitucionalidade».

A Sr.a Deputada não ganha nada com a introdução desse preceito, que pode, de resto, ser introduzido noutra sede com um âmbito muito mais geral que abarque também estes casos: Pô-lo aqui neste projecto de lei era estar a abrir uma porta que seria melhor manter fechada.

Nesse sentido, e sem me pronunciar pelas questões de fundo, vamos votar contra.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.a Deputada Zita Seabra.

A Sr.a Zata Seabra (PCP): — Sr. Presidente, dei o exemplo ou o caso que podia caber neste âmbito do aborto eugénico. Mas mesmo no próprio caso típico e clássico do aborto terapêutico mais restrito, aquele cuja gravidez coloca a mulher em perigo de vida, o caso, por exemplo, de uma mulher cardíaca ou com um problema cancerígeno ou outro deste tipo, creio que é absolutamente fundamental que, uma vez que a lei lhe consagra o direito de para salvar a sua própria vida o fazer num estabelecimento de saúde, se evite que ela volte à mesma situação.

Penso, assim, que, do ponto de vista da protecção da mulher, o caso não se resolve dando-lhe apenas

o direito de ela fazer a interrupção da gravidez, fulgo que lhe devemos dar os meios para evitar que a situação se repita, e só neste sentido. Faz favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr.° Deputada, neste caso concreto, continuo a insistir em que estas coisas não estão devidamente avaliadas e quantificadas.

Vamos votar contra para não deixar passar esse preceito sem ter nenhuma razão de fundo em relação a esta matéria.

Mas gostaria de chamar a vossa atenção para um ponto que é muito interessante. No que diz respito, por exemplo, ao aborto eugénico, que acaba de focar, ainda ninguém tratou este caso, como outros assuntos que aqui estão, e pelo meu lado também não lhe vou mexer, porque para mim trata-se de direitos indisponíveis.

Portanto, votaremos contra. Mas, no lugar da Sr.a Deputada Zita Seabra, guardaria essa matéria para uma melhor reflexão, mesmo em relação ao campo da educação sexual.

O problema da objecção do direito à vida que se levanta em relação à constitucionalização destes preceitos está resolvido em inúmeros acórdãos de tribunais internacionais.

No entanto, existem outros problemas que não estão neste decreto e que ainda não foram levantados por ninguém, mas que, com pequenos passos, em breve aparece alguém que se lembra de começar a falar sobre eles. E esse poderia levantar um que não vou estar agora aqui a enunciar porque também não gosto de ser advogado do diabo.

Neste sentido, o PS vai votar contra e abstém-se de dizer o que quer que seja mais sobre esta matéria.

A Oradora: — Para terminar a minha intervenção, gostaria de dizer que não vejo que isso possa suscitar qualquer problema de inconstitucionalidade. Creio que o projecto de lei do planeamento familiar subscrito pelo PSD e pelo PS não levanta nenhuma questão de constitucionalidade. Apenas se remetia a mulher, numa situação destas, para uma consulta de planeamento familiar, tal como está previsto no outro projecto de lei que estamos a votar na especialidade.

Desta maneira, não vejo que, pelo facto de este projecto de lei prever que a mulher vá a uma consulta de planeamento familiar, que está prevista na outra lei, se possa aqui levantar qualquer questão de constitucionalidade ou complicar a constitucionalidade deste texto. Creio que teríamos era a ganhar com isso.

O caso mais concreto de país que conheço que não previu imediatamente no próprio texto da legalização da interrupção da gravidez a possibilidade de os próprios serviços encaminharem a mulher para uma consulta de planeamento familiar foi o caso italiano e essa situação veio trazer problemas graves no próprio cumprimento dessa lei, porque veio arrastar a mulher para sucessivas interrupções de gravidez.

Nesse sentido, e como eu creio que o espírito de todos nós, mesmo dos que apresentámos leis bem mais abertas do que essa, é impedir a prática do aborte, mesmo a prática lícita —e nós pensamos que a única forma de impedir a prática, mesmo lícita, é o planeamento famiilar —, pensamos que devia vir consagrada no texto desta lei uma forma qualquer de remeter a

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mulher para um serviço de planeamento familiar que evite que ela volte a ter que recorrer à interrupção voluntária da gravidez. Só lamentamos que o PS não acolha essa proposta.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr.a Deputada, nós estamos perfeitamente de acordo em acolher uma proposta dessas, ou até mais alargada, no texto da lei sobre educação sexual, se ela ainda lá não estiver. Vou ver se providencio nesse sentido. Nesta sede é que não pode ser, porque todas as coisas têm o momento e o local exacto.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos proceder à votação desta proposta do PCP.

Submetida à votação, foi rejeitada, com 9 votos contra do PS e do PSD e 5 votos a favor do PCP e do MDP/CDE.

O Sr. Presidente: — Para uma declaração de voto, tem a palavra a Sr.a Deputada Helena Cidade Moura.

A Sr.a Helena Cidade Moura (MDP/CDE): —Era só para dizer que o MDP/CDE votou a favor deste artigo 3.°-A proposto pelo PCP porque entendemos que o esclarecimento da situação, tal como se propõe neste novo artigo, é inerente mesmo à própria legalidade social deste projecto de lei do PS.

Não entendemos muito bem a posição do PS, visto que manteve também a trilogia da maternidade, planeamento e aborto. Penso, no entanto, que a proposta do Sr. Deputado José Luís Nunes pode talvez colher no outro projecto de lei.

De qualquer maneira, julgo que, se fosse repetido num e noutro, não fazia mal nenhum.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos passar ao artigo 4.°, e a proposta apresentada pelo Partido Socialista de aditamento de um novo número ao artigo 4.°, que viria a ser, portanto, o n.° 2, é do seguinte teor:

A objecção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objector e a sua decisão deve ser imediatamente comunicada à mulher grávida ou a quem no seu lugar pode prestar o consentimento, nos termos do artigo 141.° do Código Penal.

Está, portanto, em discussão o actual texto do artigo 4.°, em relação ao qual não há propostas de alteração, e que virá a ser o n.° 1, caso a proposta agora lida seja aprovada.

Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Queria referir-me apenas ao texto que ficará sendo o n.° 1 deste artigo 4.°, se a proposta de um n.ü 2 for aprovada.

Creio que neste artigo 4.° não tem sentido o que está entre vírgulas, isto é, a expressão «ainda que voluntária e lícita». Efectivamente, estamos a apreciar neste projecto de lei os casos de exclusão de ilicitude; portanto, esta expressão «ainda que voluntária e lícita» está, realmente, a mais. E isto porque é evidente que

têm de ser esses os casos contemplados, pois, quanto aos outros, não há lugar à objecção de consciência, porque entram no campo do crime, portanto, são punidos.

Logo, creio que esta expressão, embora não me oponha a ela, está, efectivamente, a mais, pois a objecção de consciência só surge nos casos de licitude, segundo o que resulta do próprio texto.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS):—Sr. Deputado Correia Afonso, acho que V. Ex.a tem toda a razão. Simplesmente, andei para aqui numa «ginástica» para propor a eliminação neste texto de algumas coisas, mas depois cheguei à conclusão de que era melhor não lhe mexer pelas razões que lhe passo a expor.

Ponto 1, o direito à objecção de consciência é um instituto que está muito mal tratado em Portugal. Ele surgiu pela primeira vez na Constituição de 1976 e, na verdade, ele está mal tratado.

Em segundo lugar, penso que, se tirássemos aqui a expressão «ainda que voluntária e lícita», considerando-a exorbitante, poderia entender-se — até no seguimento de algumas intervenções que o Sr. Deputado fez em relação a práticas que são seguidas e que não estão devidamente consagradas — que, mesmo em relação a essas práticas, funcionava, não a criminalização, mas o direito à objecção de consciência.

De modo que, correndo o risco de uma certa repetição e partilhando até das preocupações jurídicas e de estilo que V. Ex.a manifestou, optamos, depois de uma ponderação atenta, por manter isto como está, o que não quer dizer que o Sr. Deputado não tenha razão.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Então, Sr. Deputado, sugeria que, pelo menos, se retire a expressão «ainda que», pois com ela parece que se está, não a privilegiar, mas, pelo contrário, a penalizar as práticas voluntárias e lícitas. Ao menos que fique:

[...] respeitantes à interrupção da gravidez voluntária e lícita, o direito à objecção de consciência.

Efectivamente, julgo que a expressão «ainda que» vem criar complicações em termos de alcance do conteúdo do texto.

O Orador: — Seguindo a sugestão do Sr. Deputado Correia Afonso, vamos transformá-la em proposta.

Assim, propõe-se a eliminação da expressão «ainda que» do texto do artigo 4.° do projecto de lei em apreço, de modo que a sua redacção fica sendo a seguinte:

Ê assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde, relativamente a quaisquer actos respeitantes à interrupção da gravidez voluntária e lícita, o direito à objecção de consciência.

Acatamos a sugestão do Sr. Deputado, porque, na verdade, no caso de se tratar de uma interrupção involuntária e ilícita, não há já lugar a objecção de consciência, pois é um crime. De qualquer forma, isto tem aqui muitas coisas em que se pode integrar.

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No entanto, a primeira explicação que devemos dar para a presença desta disposição e a razão por que não propomos a sua eliminação prende-se com o impacte que poderia ter sobre a opinião pública uma redacção diferente. Isto porque a questão é a seguinte: será que a Constituição consagra um direito de objecção de consciência erga omnes, isto é, a toda a gente? E capaz de não consagrar. A Lei do Serviço Militar, que af está, diz, por exemplo, que pode invocar-se a objecção de consciência. Mas que objecção de consciência? A objecção de consciência a fazer, em concreto, isto, isto e aquilo, por razões de ordem moral, filosófica, etc. Mas, dado que isto entrou no vocabulário público, as pessoas, sabendo mais ou menos do que se trata, dizem que não fazem, e passa! Mas muitas das objecções de consciência invocadas não teriam passado se o instituto tivesse sido mais trabalhado.

Digo isto, inclusivamente, para ficar na acta, porque não tenho ideia de que a Constituição consagre um direito à objecção de consciência que se imponha geralmente e em todos os casos, nomeadamente em relação à regra da obediência hierárquica, embora neste caso, sim senhor. Quer dizer, terá de ser apenas face a cada caso concreto que se poderá ou não invocar a objecção de consciência, na base de razões morais, filosóficas ou políticas, que colocam o objector perante actos gerais ou em relação a actos concretos. Mas, enfim, adiante.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos votar a proposta de eliminação da expressão «ainda que» do texto do artigo 4.° do projecto de lei em apreço apresentada pelo Partido Socialista.

Submetida à votação, foi aprovada, com 13 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS e com 1 obstenção do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos agora votar o corpo do artigo 4.c, que poderá vir a ser o n.° 1 do mesmo artigo, se a outra proposta de aditamento de mais um número vier a ser aprovada.

Submetida à votação, foi aprovada, com 14 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS e com 1 voto contra, do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, passemos agora à apreciação da proposta de aditamento de um n.° 2 ao artigo 4.°, apresentada pelo Partido Socialista, cujo texto já há pouco li aos Srs. Deputados.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, solicitava a'V. Ex.° a leitura da proposta que acaba de referir.

O Sr. Presidente: — Com certeza, Sr. Deputado. É do seguinte teor:

A objecção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objector e a sua decisão deve ser imediatamente comunicada à mulher grávida ou a quem no seu lugar pode prestar o consentimento nos termos do artigo 141.° do Código Penal.

Srs. Deputados, não havendo inscrições, passamos à votação desta proposta.

Submetida à votação, foi aprovada, com 15 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS e com 1 voto contra, do PSD.

O Sr. Presidente: — Passemos agora à votação global do artigo 4.°, em que o texto que actualmente consta do projecto de lei ficaria sendo o n.° 1 e o texto que acabámos de votar o n.° 2.

Submetido à votação, foi aprovado, com 15 votos a favor, do PS, do PCP, do MDP/CDE e da UEDS e com 1 voto contra, do PSD.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, passamos à apreciação do artigo 5.° do projecto de lei em apreço.

É o seguinte:

Os médicos, demais profissionais de saúde e restante pessoal dos estabelecimentos em que se pratique licitamente a interrupção voluntária da gravidez ficam vinculados ao dever de sigilo profissional relativamente a todos os actos, factos ou informações de tenham conhecimento no exercício das suas funções, ou por causa delas, relacionadas com aquela prática.

O Sr. Presidente:—Em relação a este artigo, o Partido Social-Democrata apresenta uma proposta de aditamento de 2 números, que vai, igualmente, ser Hda.

Foi lida. E a seguinte:

ARTIGO 5.'

1 — (Actual corpo do artigo).

2 — Cessa o dever de sigilo profissional previsto no número anterior quando as pessoas nele mencionadas sejam chamadas a depor em processo de natureza criminal instaurado por crime de aborto.

3 — Denunciado qualquer crime de aborto, o processo iniciar-se-á em regime de instrução preparatória.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos seguir esta metodologia para a discussão deste artigo. Primeiramente apreciaremos o artigo 5.° tal.como consta do texto proposto pelo projecto de lei n.° 265/III, e depois, como não há, relativamente a esse texto, qualquer proposta de alteração, passaremos à discussão da proposta de aditamento que acaba de ser lida.

Estão em discussão.

Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, embora reconheça que poderá ser melhor votar ponto por ponto e separadamente estes vários números, creio, no entanto, que para apresentar esta nossa proposta tenho de referir-me à generalidade das matérias referidas neste artigo, na medida em que elas estão relacionadas.

O artigo 5.°, além da incidência que tem, como todas as outras disposições deste projecto de lei, na matéria

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do aborto ou da interrupção voluntária da gravidez, tem outra incidência que é, digamos, a da separação dos poderes do Estado ou, nomeadamente, a inserção no poder judicial.

Parece-me que este segredo profissional redefinido em termos absolutos, envolve efectivamente uma colisão que me atreveria até a projectar em termos constitucionais. Compreendo também, por outro lado, que os médicos não podem estar sujeitos a terem que, eventualmente, afastar ou ultrapassar esse sigilo profissional. Daí que no n.° 2 que propomos em aditamento a este artigo se diga que «cessa o dever de sigilo profissional quando os médicos sejam chamados a depor em processo de natureza criminal instaurado por crime de aborto». Portanto, já estamos aqui na área do poder judicial.

Seguidamente, e para que as pessoas envolvidas nessa prática — a mulher que abortou e o médico que interveio— estejam livres, nomeadamente de quaisquer intervenções ou actos policiais menos agradáveis, estabelece o n.° 3 que, denunciado um crime de aborto, ele começa imediatamente em regime de instrução preparatória. Quer isto dizer, para aqueles que não estão muito versados nesta área, que não é a polícia que vai proceder à instrução, mas um juiz — isto é, essa instrução cabe já ao corpo dos magistrados, tal como está previsto na Constituição—, o que dá garantias de imparcialidade e de tratamento, de qualquer forma diferente do policial.

Ê uma preocupação para nós que não tem nada a ver com o resto do problema do aborto.

Por outro lado, esta circunstância de se dar a um médico o poder de decidir — o que está certo, pois ele está lá na altura—, mas depois conferi-lhe o direito de não dizer nada a ninguém, seja qual for a instância que queira saber o que se passou, parece que invade, efectivamente, uma esfera que nos cumpre salvaguardar, até por exigência constitucional.

Esta a explicação para a nossa proposta.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado António Macedo.

O Sr. António Macedo (PS): — Queria pedir ao Sr. Deputado Correia Afonso que me figurasse e concretizasse o caso que considera previsto no n.° 2 que propôs em aditamento a este artigo 5.°

Ao mesmo tempo peço licença para nesta única intervenção que faço, declarar que foi com imensa satisfação que vi actuar o Sr. Deputado Correia Afonso. A sua dignidade, a sua correcção e a sua simpatia, apesar de aqui ter funcionado como «Cardeal-Diabo», faz com que me sinta na obrigação de lhe prestar os meus cumprimentos, lamentando apenas ter de fazer esta objecção final, porque, na verdade, não entendo o que se está a prever neste n.° 2 que propõe.

O Sr. Presidente: — O Sr. Deputado Correia Afonso pretende usar da palavra, não é verdade?

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Se V. Ex.tt me permitir, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Correia Afonso (PSD):— Sr. Deputado António Macedo, queria-lhe agradecer as suas palavras

e dizer que não sou «Deus», mas também não gostava de ser «Diabo». Nem tanto, nem tão pouco! Mas, de qualquer forma, estou-lhe muito grato pelas suas palavras amáveis.

Entrando propriamente no seu pedido de esclarecimento, gostaria de lhe dizer que este projecto, no fundo, mantém a filosofia que existia em termos de Código Penal, mas vai desinserir daquela área de penalização do aborto ou da ilicitude determinados casos a que chama exclusão da ilicitude. Portanto, como disse há pouco, este projecto funciona em termos excepcionais.

O que é que isto quer dizer? A regra é: todo o aborto é crime. E lembro aos Srs. Deputados que não estou a introduzir por minha alta recriação uma palavra que eu sei que é desagradável, mas apenas a referir o que diz o Código Penal. Qual a excepção? São, exactamente, estes casos.

Esta é, portanto, a filosofia deste projecto de lei. E, repito, isto é muito importante: tudo é crime; rebuscando, é lícito apenas o que está aqui. Trata-se, assim, de um raciocínio, digamos, a contrario, é a definição por a excepção.

Se é assim, e agora passo a abordar directamente a questão que o Sr. Deputado me colocou, se se trata de chegar à definição por a excepção então poder acontecer, e eventualmente acontecerá, ela terá de ser provada. E isto porque a regra, em termos de aborto, é ser crime. Portanto, qualquer destes casos pode, eventualmente amanhã, ter que ser provado no sentido de que não se trata de crime, e não é crime se se passar o que está aqui previsto e contemplado neste projecto.

Ora, vamos admitir, aproximando-nos mais da matéria de facto, que uma situação destas —e pego, por exemplo, na alínea b) do n.° 1 do artigo 140.° — aparece e que o médico, devidamente documentado ou convencido, pratica a intervenção. Tudo perfeito.

Mas, e dentro do raciocínio que fiz há pouco — porque em relação ao aborto a regra é ser crime—, admitamos que há uma suspeita qualquer, que até pode ser de familiares, que pode ser ausência de consentimento ou qualquer outra que provoque todo este processo. Essa suspeita, ao provocar o dito processo, não entra no âmbito da competência da autoridade policial, mas, ao contrário, entra imediatamente na instrução preparatória e é logo entregue a um juiz. Simplesmente, quando ela chega ao juiz e este chama o médico para ser ouvido depara com um mutismo total, ficando assim bloqueada toda a possibilidade de se saber o que se passou, que até pode ser perfeitamente lícito e se assim fosse o processo seria arquivado depois de o médico falar.

Agora, se o médico, invocando este projecto de lei, disser que não responde, em lugar de estarmos a criar a licitude para certos casos de aborto pode acontecer que em termos públicos o que começa a surgir é uma falta de clareza e transparência sobre o que é que está a acontecer em termos de aborto, porque não se sabe e porque o médico tem o direito de responder que nada diz. E isto, repito, mesmo nos casos em que o aborto seja lícito.

Sr. Deputado, não sei se fui suficientemente claro, mas era isto, mais ou menos, que lhe queria responder.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

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O Sr. José Luís Nunes (PS):—Sr. Presidente, ficou combinado entre nós que os artigos seriam votados ponto por ponto.

Portanto, propunha a V. Ex.a que pusesse à votação o artigo 5.° tal como está no projecto que apresentámos. Se ele for rejeitado, desaparece; Se for aprovado, poderá ou não conter o n.° 2 e o n.° 3, mas, de qualquer forma, essa discussão seria posterior à votação do artigo 5.° que agora sugiro.

O Sr. Presidente: — Sr. Deputado José Luís Nunes, essa sua sugestão vem ao encontro daquilo que eu disse à pouco sobre a metodologia a seguir para o debate deste artigo 5° Simplesmente, o Sr. Deputado Correia Afonso, quando começou a sua intervenção, referiu que não poderia cindir esta discussão e que teria de abordar globalmente esta matéria, apresentando desde logo os aspectos mais salientes da sua proposta de aditamento de 2 novos números.

O Sr. Deputado Jorge Lacão pretende intervir?

O Sr. Jorge Lacão (PS): —Sr. Presidente, pretendia fazer alguns pedidos de esclarecimento ainda sobre esta matéria, envolvendo portanto o ponto n.° 2 que o Sr. Deputado Correia Afonso referiu.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Jorge Lacão (PS):—No projecto do PS, o estabelecimento do dever de sigilo profissional tem um sentido abrangente e, assim, todos as actos preparatórios do acto médico abortivo são considerados abrangidos por ele e como tal devem ser tratados. Simplesmente, não tipificamos um novo dever de sigilo, pois trata-se do dever de sigilo profissional tal como ele se encontra previsto no artigo 184.° do Código Penal.

Ora bem, o artigo 185.° do mesmo Código refere a exclusão da ilicitude relativamente aos casos de segredo profissional. E se nós, nesta circunstância concreta, vamos apenas fazer uma exclusão de ilicitude num caso tipificado, isto é, relativamente à violação do dever de sigilo profissional para o caso do aborto, não será que em lugar de traduzirmos essa abertura que o Sr. Deputado considera necessária apenas a limitamos num caso concreto?

E não será que, pelo contrário, o problema se resolveria, como sempre se resolve, com o artigo 185° do Código Penal, nos casos de exclusão de ilicitude, portanto justamente quando há um conflito de valores?

Ê que isso acontece, designadamente para todos os casos de dever de sigilo profissional dos actos médicos, sejam eles intervenções desta ou de outra qualquer natureza.

Portanto, julgo que não valeria a pena arranjarmos normas de excepção, para além do caso que se encontra tipificado no artigo do 185.° do Código Penal. Pergunto-lhe, Sr. Deputado Correia Afonso, se não seria essa a melhor solução para este caso.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—O Sr. Deputado Jorge Lacão fez-me uma pergunta e respondo-lhe com outra: Se este é o mesmo sigilo que está consignado no

artigo 185° do Código Penal, por que é que o põe aqui? Então, retire-o.

Agora, se o põe aqui, não é o mesmo! A lei não se repete! E se o põe numa lei que é perfeitamente especializada — até porque, como eu já disse há pouco, trata de casos excepcionais — é porque o sigilo profissional que está aqui previsto é outro e tem um tipo completamente diferente, na medida em que circunscrito apenas à matéria deste diploma.

Acha que é o mesmo? «Encantado», então retire-o! Não precisa de o pôr aqui, pois se ele já existe no Código Penal!

A ser assim, retiro imediatamente a minha proposta de aditamento porque deixa de ter razão de ser. Agora, enquanto ele estiver aqui a repetir o que já está no Código Penal, o seu significado não é o mesmo, porque a lei não tem normas desnecessárias — o Sr. Deputado sabe isso bem —, não se repete; portanto se está aqui e porque não tem o mesmo sentido, e se não o tem é porque é um sigilo respeitante apenas aos casos de interrupção voluntária da gravidez.

Então, olhemos para ele de uma forma diferente e não digamos que há repetição.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): —O dever de sigilo é, ou pode, ser olhado como um dever geral ou como um dever deontológico.

Ê olhado como um dever geral, nos termos do artigo 184.° do Código Penal, que tipifica a sua violação como um crime. Mas é olhado como um dever deontológico essencialmente em certas profissões, nomeadamente nas profissões liberais — e particularmente, na minha e na do Sr. Deputado Correia Afonso, que é a advocacia.

Nestas, para que se estabeleça o vínculo de confiança entre o advogado e o cliente, o advogado em nenhum caso deve dar conhecimento do que lhe foi transmitido, mesmo se o cliente lhe propuser cometer um crime. Se me entrar pela porta dentro um cliente, que se senta à minha frente, ou se o fizer no seu escritório, Sr. Deputado Correia Afonso, e disser: Sr. Doutor, e se agora eu falsificasse um documento ou passasse uns cheques sem cobertura, ou qualquer coisa do género?

Perante isto tenho a obrigação restrita de o dissuadir de dar tal passo, de chamar à atenção para a gravidade das consequências em que incorre se cometer um acto desses e de lhe recusar qualquer espécie de patrocínio. Mas já não tenho o dever —ou, por outra, tenho o dever de não o fazer — de, pegando nessas informações, ir ao juiz de instrução mais próximo e dizer-lhe: Sr. Dr. Juiz, entrou-me pela porta dentro o Sr. Fulano de tal que me disse que ia falsificar uma letra.

Ora, este dever deontológico só é quebrado nos termos do Estatuto Judiciário, como o Sr. Deputado muito bem sabe — e estou a dizê-lo mais para esclarecimento geral do que para esclarecimento de V. Ex.a —, mediante uma consulta feita ao bastonário e em defesa dos interesses do próprio cliente. Consulta essa que é, em muitos casos, negada — como já me ocorreu várias vezes, quando pedi autorização para poder depor, o que nunca chegou a acontecer por desnecessidade, deparei com indecisões e respostas do

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género «veja no despacho saneador se a coisa é absolutamente necessária, etc.» Isto passou-se em casos que reputava importantes para os interesses do meu constituinte.

Mas, Srs. Deputados, o que está consagrado no nosso texto é um dever deontológico que estabelece o segredo profissional, não só em relação ao médico, mas também em relação aos «... demais profissionais de saúde e restante pessoal dos estabelecimentos em que se pratique licitamente a interrupção voluntária da gravidez no sentido de eles ficarem ...» vinculados ao dever de sigilo profissional relativamente a todos os actos, factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções, ou por causa delas, relacionados com aquela prática.

Quer dizer, o dever de sigilo profissional que aqui aparece determinado é o dever relacionado com a prática legal da interrupção voluntária da gravidez.

Aquilo que o Sr. Deputado Correia Afonso sugere no n.° 2 da sua proposta é que «cesse o dever de sigilo profissional previsto ao número anterior...». Ora, quanto a mim, esse dever de sigilo profissional não está em causa. Esse nunca pode cessar. Nunca era relação â prática lícita da interrupção voluntária da gravidez se pode dar qualquer espécie de violação do dever de sigilo profissional.

E agora suponhamos o seguinte caso: vamos supor que há a prática de um aborto ilegal. Pergunta-se: manter-se-á o dever do sigilo profissional relativamente à prática deste aborto ilegal? Essa é uma questão diferente.

Embora não tenha diante de mim o Estatuto da Ordem dos Médicos, penso que, mesmo em relação à prática de um crime de aborto ilegal que o médico surpreenda no exercício das suas funções, esse médico está obrigado ao segredo profissional. E mais, creio que ele tem de ir ao conselho deontológico da Ordem dos Médicos pedir para esclarecer o facto.

Mas agora levanta-se uma questão, que é, de facto, uma questão grave: suponhamos, por hipótese, que em relação ao aborto legal, e para poder isentar de pena alguém falsamente acusado da sua prática ilegal, o médico é chamado a depor. Pergunta-se: apesar de este ser um dos tais casos em que ele é obrigado a sigilo profissional, e dado que ele dispõe de elementos que lhe permitem isentar alguém, seu cliente ou terceiro, dessa acusação, deve ou não deve, aí também, estar coberto pelo sigilo profissional?

A este respeito direi que, no plano puramente legal, esta decisão não compete ao médico, mas ao conselho deontológico da sua Ordem. É que há mesmo uma sanção para a utilização em processos cíveis ou criminais, consagrada, nomeadamente, no Código do Processo Civil —e refiro-o, repito, não para o Sr. Deputado Correia Afonso, mas para os nossos colegas que não são formados em Direito— que se aplica a qualquer depoimento que seja prestado em violação do segredo profissional e que se traduz na impossibilidade de o tribunal utilizar esse depoimento na fundamentação da sua prova.

Se os Srs. Deputados me permitissem, e se tivesse aqui o Código de Processo Civil, era importante ler isso, porque tanto este diploma como o Estatuto Judiciário proíbem que o depoimento, não devidamente autorizado, de um advogado ou de um médico seja utilizado na produção da prova e na fundamentação

dos quesitos quando seja prestado era violação do segredo profissional.

Mas, mais ainda, na recente introdução do júri no nosso país, instituição em relação à qual, de resto, sempre tive as maiores dúvidas — mas isso não é para ser discutido agora—, e nas instruções gerais que o tribunal lhe dá, uma das coisas que este deve é alertar para a produção da prova que não podia ser produzida ou admitida. E há vários casos clássicos como, por exemplo, o caso das perícias médico-Iegais que aparecem, infelizmente muito, em casos de homicídio e que, por não terem a assinatura do respectivo director--geral, são consideradas inexistentes.

Portanto, embora compreenda os problemas levantados pelo Sr. Deputado Correia Afonso, a proposta que apresentou de um n.° 2 não pode merecer o nosso acolhimento, por causa deste conjunto de fundamentos e de razões. É que, uma vez estabelecido o dever de sigilo profissional, não compete nem à lei geral, nem ao próprio profissional obrigado a esse sigilo, o direito de o interromper ou não. E como tive a ocasião de agora referir, os tribunais reservam mesmo outra sanção, para além da sanção criminal, que determina que não se podem considerar, em qualquer circunstância, declarações prestadas com violação do segredo profissional.

É por isso que, quanto ao ponto n.° 2, nós estamos em desacordo e votaremos contra.

Quanto ao n ° 3, que estabelece que «denunciado qualquer crime de aborto o processo seguir-se-á em regime de instrução preparatória», queria dizer que compreendemos a intenção do Sr. Deputado Correia Afonso, sugerindo, dada a delicadeza do tema, que este processo deva ser tratado directamente por um juiz. Creio, no entanto, sob pena de introduzir o caos no nosso sistema judiciário, que não podemos privilegiar o crime de aborto sobre, por exemplo, o de parricidio— que é um crime de uma gravidade tão grande que nem sequer a legítima defesa do parricida é admitida como atenuante qualificativa, mas apenas como atenuante geral.

Portanto, neste sentido, não me parece que o crime de aborto possa ser privilegiado em relação a variadíssimos outros crimes quanto às pessoas que aqui poderíamos estar a enumerar à náusea.

Assim, Sr. Deputado, e embora tenha pessoalmente muitas dúvidas em relação à instituição do inquérito preliminar e sua constitucionalidade— não vem muito a propósito, mas já agora fica dito —, penso que, tendo em atenção a lei vigente, nenhuma destas propostas poderá ter o nosso acolhimento, em virtude do conjunto de regras e de fundamentos que acabo de expor.

O Sr. Presidente: — O Sr. Deputado Correia Afonso pretende responder, mas antes vou dar a palavra ao Sr. Deputado José Magalhães, que pretende igualmente dirigir-lhe algumas questões.

O Sr. ¡osé Magalhães (PCP): — Exactamente, Sr. Presidente. Era só para aditar às considerações do Sr. Deputado José Luís Nunes, com as quais, aliás, estamos de acordo e que nos parecem muito pertinentemente invocadas, a nossa impressão de que esta proposta do PSD é verdadeiramente lamentável.

Só tenho memória de ver propostas deste tipo dos artigos que podemos ver dos anos quarenta, em que havia determinados próceres da proibição à viva

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força, do aborto que, era libelos que ainda hoje fazem arrepios, propunham que se estabelecessem regimes especiais de perseguição da mulher, registos obrigatórios das grávidas, revisão do Código do Registo' Civil para garantir que nenhuma gravidez escapasse ao olhar policial, etc.

Agora, vem-se propor aqui um regime especial de quebra de sigilo. É que, Srs. Deputados, das duas uma: ou é um regime especial, ou é um regime geral. Se se trata de um regime geral não vale a pena nada adiantar; se se trata de um regime especial, como na verdade nos parece, então é verdadeiramente monstruoso, porque estabelece um sistema de derrogação do dever de sigilo em condições absolutas e ilimitadas, que são verdadeiramente um despautério e que traduz o interesse que certos partidos estão agora a dedicar ao aborto, em absoluta discrepância com o interesse que dedicam a crimes de gravidade superior — a admitir-se que o aborto é crime o que, como é sabido, na nossa opinião não é.

Quanto à segunda norma proposta, o n.° 3, sugerindo que se siga desde o início o processo de instrução preparatória, logo regime processual penal especial, enferma da mesma ideia e da mesma mania persecutória. Vamos, portanto, estabelecer um processo penal especial para as grávidas.

Então os crimes verdadeiramente ditos, aqueles em que realmente as providências processuais, eventualmente especiais, terão alguma vaga justificação? Esses aparecem apagados nas propostas dos deputados a quem agora deu esta fobia persecutória.

Isto compatibiliza-se, realmente, com a posição de um partido que, no Plenário, sustentou essa nova pena horripilante que era a tal contemplação compulsiva do feto. Está, de facto, à altura dessas propostas! Só que nos parece absolutamente lamentável que em Portugal, em 1984, um partido que tem o nome de PSD tenha vindo propor a uma comissão parlamentar um regime especial de quebra do sigilo, e um regime processual penal especial para a perseguição das mulheres grávidas forçadas a interromper a gravidez.

Os Srs. Deputados, se querem inventar regimes processuais penais especiais e quebras de sigilo, têm muito mais com que se entreterem e têm um vastíssimo campo de propostas a fazer. Estas são, verdadeiramente, lamentáveis.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, gostaria de responder também na presença do Sr. Deputado José Luís Nunes que me dirigiu algumas questões, e penso que o que vou dizer é suficientemente importante para justificar que aguardemos o regresso à Sala deste Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: — Com certeza, Sr. Deputado. Aguardaremos uns momentos.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD):—Sr. Presidente, Srs. Deputados: Iria responder ao Sr. Deputado José Luís Nunes e ao Sr. Deputado José Magalhães.

Começo por este último, porque ao Sr. Deputado José Magalhães apenas tenho que dizer duas coisas. Em primeiro lugar, esta nossa proposta não tem, de forma nenhuma, carácter persecutório e, pelo contrário, essa natureza é evidente é na sua intervenção, na medida em que não quis comprender o seu sentido. Em todo o caso, também devo dizer-lhe, Sr. Deputado, que não estou nada preocupado com isso, porque o único sinal característico e positivo na sua intervenção é o da ignorância a respeito do que é o segredo profissional.

Quanto à sua intervenção, acho que ela não merece que eu diga mais nada, a não ser apenas que mais uma vez o Partido Comunista pela sua voz resolveu iniciar um processo de intenção no final deste debate, quando ele já não era de todo necessário.

Passando, agora, a responder ao Sr. Deputado José Luís Nunes, queria-lhe dizer que nunca gostei de invocar a minha autoridade pessoal. Mas já que o Sr. Deputado fosé Luís Nunes me quis dar uma lição a respeito do que é o segredo profissional, aproveito a oportunidade para dizer ao Sr. Deputado que fui presidente do conselho distrital da Ordem dos Advogados no triénio de 1978-1980, e que quem liberta os advogados do segredo profissional é o presidente do conselho distrital e não o bastonário como V. Ex.a disse ...

O Sr. José Luís Nunes (PS): —O Sr. Deputado dá-me licença que o interrompa?

O Orador: — Faça favor de dizer, Sr. Deputado.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Sr. Deputado, quanto à última questão que referiu tem V. Ex.a toda a razão, pois é de facto o presidente do conselho distrital da Ordem que tem esse poder. Quanto à primeira questão não terá o Sr. Deputado razão, pois por várias vezes sublinhei que o Sr. Deputado conhecia isso tão bem como eu e que me estava a referir somente aqueles problemas a fim de esclarecer os nossos colegas que não são advogados.

O Orador: — Sendo assim, peço-lhe desculpa. O Sr. Deputado não me quis dar uma lição, mas, de qualquer forma, penso que aquilo que V. Ex.a disse necessitava de correcção.

Continuando a minha explanação, dizia que quem dispensa de segredo profissional os advogados é o presidente do conselho distrital da Ordem. No tempo em que ocupei esse lugar, e não vai muito longe, mais de metade dos advogados estavam incluídos no distrito judicial —ou forense, para nós— de Lisboa e quem, durante 3 anos, decidiu sobre esse assunto fui eu. Sendo assim, peço ao Sr. Deputado José Luís Nunes que me faça, pelo menos, a justiça de pensar que eu já tive seguramente oportunidade de reflectir bastante sobre este problema.

Ora, o segredo profissional é qualquer coisa de diferente daquilo que W. Ex.as acabaram de referir. O segredo profissional abrange os actos e as responsabilidades dos outros, de que nós tivemos conhecimento no exercício da nossa profissão. Não abrange os nossos actos. O próprio advogado, se tiver práticas criminosas, não pode recusar-se a responder dizendo que está a coberto do segredo profissional. E é para essa pequena subtileza que chamo a vossa atenção, para que, efecti-

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vãmente, numa lei sobre o aborto não acabe por sair um «aborto jurídico», pelo menos nesta parte.

Ê que, quando digo que o médico, neste caso concreto, e nas hipóteses prefiguradas deve ser liberto do segredo profissional, é porque o médico está directamente envolvido — os actos são dele —, ele não vai contar nada a respeito da mulher grávida, mas vai contar aquilo que fez. Não há segredo profissional em parte nenhuma do mundo que cubra os actos de qualquer profissional, seja ele médico, advogado, ou outro qualquer — mesmo padre —, se os actos que ele praticou forem criminosos.

Não há, Srs. Deputados, segredo profissional que se justifique, em qualquer sítio do mundo, para evitar a investigação ou a instrução de processos criminosos. Isto é muito importante, porque se trata de ir à origem da fundamentação do segredo profissional.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Dá-me licença, Sr. Deputado?

O Orador: —Faça favor.

O Sr. José Luís Nunes (PS):—O que o Sr. Deputado está a referir é muitíssimo correcto. Já agora desculpe-me a incorrecção de há pouco, quando falei em bastonário, porque, como de vez em quando penso em termos franceses, estava a pensar no bastonário (des barreaux), mas, de facto, entre nós é o presidente do conselho distrital da Ordem que decide nessa matéria.

O que V. Ex.° diz é muitíssimo correcto, simplesmente o que refere na sua proposta de aditamento é o seguinte: «Cessa o dever de sigilo profissional previsto no número anterior [...]», e o número anterior diz assim: «os médicos [...] ficam vinculados ao dever de sigilo profissional [...]».

Portanto, é evidente que há uma diferença fundamental entre o sigilo profissional, que é uma coisa, e as declarações que alguém presta ou pode prestar quando acusado de um acto ilícito, do ponto de vista criminal ou disciplinar. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. E volto a repetir que não quero dar lições a ninguém e muito menos ao Sr. Deputado, mas, simplesmente ...

O Orador: — Oh, Sr. Deputado, permite-me invocar esta minha experiência profissional na medida, e só na medida, em que entendi que era necessário, pois não sou nada do género de invocar a minha experiência ou autoridade ...

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Nem eu, Sr. Deputado. Mas sublinho isso porque V. Ex.a disse que eu lhe queria dar uma lição, quando desde o princípio venho referindo que o Sr. Deputado conhece este assunto tão bem ou melhor que eu próprio.

Simplesmente, a questão do sigilo profissional é aqui uma questão completamente diferente. Se um médico é acusado de ter cometido um acto criminoso ele pode. acerca dos factos da sua defesa própria, invocar uma razão muito simples para estar calado, que é a de que não quer falar.

Quer dizer, o acusado em qualquer processo, criminal ou disciplinar, pode em qualquer momento

recusar-se a prestar declarações. Ê duvidoso — e sublinho o duvidoso porque pessoalmente não partilho dessa dúvida, mas sei que opiniões muitíssimo abalizadas a levantam— que ele o possa fazer antes de estar qualificado, por qualquer forma, como arguido. Mas, a partir do momento em que é qualificado perante o processo como arguido, como réu ou como acusado, não há dúvida nenhuma que ele não é obrigado a dizer mais nada. E antes disso? Antes disso creio que, desde que ele pense que as suas declarações podem pôr em risco a sua defesa, também não é obrigado a dizer rigorosamente nada. Embora, como lhe digo, muito boa gente pense o contrário acerca desta matéria.

Agora isto nada tem a ver com o que aqui está. O que o Sr. Deputado Correia Afonso escreve na proposta do PSD é o seguinte: «Cessa o dever de sigilo profissional previsto no número anterior [...]» Supúnhamos que em vez de estar «cessa o dever de sigilo profissional», estava «cessa o dever de sigilo». Não adiantava, porque o número anterior chama-lhe «sigilo profissional».

Por que é que aparece aqui o número anterior? O Sr. Deputado há pouco, numa resposta que deu ao meu colega deputado Jorge Lacão, disse uma coisa interessante e que tem muito fundamento, é que este artigo 5.°, se reproduz o Código Penal, está aqui a mais. Simplesmente ele reaparece aqui porque, se em relação aos médicos não há dúvida nenhuma — dado o seu estatuto que criminal e disciplinarmente os obriga ao sigilo profissional— já será duvidoso que essa obrigação disciplinar apareça em relação a certos outros profissionais de saúde que não dispõem de ordens, e já é mais duvidoso ainda — para não dizer que não é certo— que isso exista em relação ao restante pessoal dos estabelecimentos em que tais intervenções se poderão praticar.

Portanto, esta disposição surge aqui não para inovar em matéria de sigilo profissional — e dou-lhe toda a razão, não há qualquer inovação — mas para alargar a obrigação do sigilo profissional a casos que ele poderá ser duvidoso ou até inexistente. E porquê?

O Orador: — O Sr. Deputado está-me a fazer uma interrupção, não está?

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Tem toda a razão, Sr. Deputado Correia Afonso, a interrupção faz-se nos termos limitados pelo orador e, na verdade, usei e abusei da possibilidade que V. Ex.a me facultou.

O Orador: — O Sr. Deputado José Luís Nunes deu agora uma sugestão extraordinária que resolve todos os problemas.

Se isto é o mesmo que está no Código Penal, mas com o sentido de alargar esse regime, então por que não se põe este artigo só assim:

É aplicável a todos os que intervêm no processo de interrupção voluntária de aborto, o disposto no artigo 184.° do Código Penal.

O Sr. José Luís Nunes (PS): — Se isso resolve o problema para si, e sem me obrigar a essa redacção, pois necessito de a ponderar, não tenho dúvida nenhuma em aceder, porque fica inclusive mais forte do que aqui está.

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O Orador: — Oh, Sr. Deputado José Luís Nunes, aquilo que disse há pouco ao Sr. Deputado Jorge Lacão é, efectivamente, aquilo que sinto. Quando se repete aqui uma coisa que já está no Código Penal, os médicos, que estão cobertos pelo sigilo profissional, vêem surgir aqui um novo sigilo só relativo ao aborto e isto pode criar grande perturbação.

O sigilo profissional dos médicos e dos advogados, entre outros, está já estudado até à exaustão, mas se aparece um novo sigilo, o que é que vai acontecer? Daí, todas estas precauções.

Se o Sr. Deputado me diz isso, então que se estabeleça uma redacção deste género: «é aplicável a todos aqueles que intervêm num processo de interrupção voluntária de gravidez, o disposto no artigo 184.° do Código Penal.»

O Sr. José Luís Nunes (PS): —Sr. Deputado reservando o direito de redigir com mais calma esse artigo, parece-me que, de facto, isso resolveria completamente o problema. E mais, digo-lhe com toda a franqueza, que acho que o debate foi utilíssimo porque torna mais forte e cominatório o que está aqui determinado.

Portanto, continuaremos amanhã para redacção final, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: — O Sr. Deputado Correia Afonso dá por terminada a sua intervenção, acerca deste as-

sunto, ou fica ainda com a palavra reservada para amanhã.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Sr. Presidente, não queria ter o privilégio do que me está a propor. Julgo que será preferível não dar o debate por encerrado, porque qualquer senhor deputado poderá ainda querer intervir.

O Sr, Presidente: — De maneira nenhuma, Sr. Deputado, o debate não está encerrado, pois há pelo menos 2 senhores deputados inscritos para falar.

O Sr. Correia Afonso (PSD): — Então, Sr. Presidente, para já dou por concluída esta minha intervenção, e se o Sr. Deputado José Luís Nunes me arranjar uma solução deste género, nem tenho mais nada a dizer.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, penso que será bom marcamos a hora da reunião para amanhã, pois temos de votar o resto que é pouco e de fazer o relatório para ser apresentado em Plenário.

Então, penso que todos estamos de acordo em que a reunião de amanhã fique convocada para as 10 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados, está encerrada a sessão.

Eram 21 horas.

PREÇO DESTE número 95$00

IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA

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