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Sábado, 11 de Junho de 1988
II Série — Número 82
DIÁRIO
da Assembleia da República
V LEGISLATURA
1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)
SUPLEMENTO
SUMÁRIO
Decretos:
N.° 81/V (autorização ao Governo para rever o regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho, do contrato de trabalho a termo e o regime processual da suspensão e redução da prestação de trabalho):
Mensagem do Sr. Presidente da República fundamentando a devolução do decreto por exercício do direito de veto...................... 1588-(2)
Texto do decreto........................... 1588-(2)
Acórdão n.° 107/88, de 31 de Maio, do Tribunal Constitucional.......................... 1588-(3)
N.° 83/V (transformação das empresas públicas em sociedades anónimas):
Mensagem do Sr. Presidente da República fundamentando a devolução do decreto por exercício do direito de veto...................... 1588-(31)
Texto do decreto........................... 1588-(31)
Acórdão n.° 108/88, de 31 de Maio, do Tribunal Constitucional.......................... 1588-{32)
Nota. — Os decretos foram publicados no n.° 70, de 30 de Abril.
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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Lisboa, 31 de Maio de 1988.
Sr. Presidente da Assembleia da República:
Tenho a honra de junto devolver a V. Ex.â, nos termos dos artigos 139.°, n.° 5, e 279.°, n.° 1, da Constituição da República, o Decreto da Assembleia da República n.° 81/V, de 15 de Abril de 1988, sobre «autorização ao Governo para rever o regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho, do contrato de trabalho a termo e o regime processual da suspensão e redução da prestação do trabalho», uma vez que o Tribunal Constitucional, através do douto Acórdão n.° 107/88, de 31 de Maio de 1988, se pronunciou pela inconstitucionalidade das normas constantes do n.° 2 do artigo 1.° e das alíneas a), d), f) e s) do artigo 2.° do referido decreto, em sede de processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Apresento a V. Ex.a os meus respeitosos cumprimentos de muita estima e consideração pessoal.
Mário Soares.
ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
AUTORIZAÇÃO AO GOVERNO PARA REVER 0 REGIME JURÍDICO DA CESSAÇÃO 00 CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO, DO CONTRATO DE TRABALHO A TERMO E 0 REGIME PROCESSUAL DA SUSPENSÃO E REDUÇÃO 0A PRESTAÇÃO 00 TRABALHO.
A Assembleia da República decreta, nos termos dos artigos 164.°, alínea e), 168.°, n.° 1, alíneas b) e c), e 169.°, n.° 2, da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.0 — 1 — É o Governo autorizado a legislar estabelecendo um novo regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho, incluindo as condições de celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, revogando, em consequência, os seguintes diplomas:
a) Decreto-Lei n.° 372-A/75, de 16 de Julho;
b) Decreto-Lei n.° 84/76, de 28 de Janeiro;
c) Decreto-Lei n.° 781/76, de 28 de Outubro;
d) Decreto-Lei n.° 841-C/76, de 7 de Dezembro; é) Lei n.° 48/77, de 11 de Julho;
f) Lei n.° 68/79, de 9 de Outubro.
2 — O Governo é igualmente autorizado a, simultaneamente, proceder à revisão do regime processual da suspensão e redução da prestação de trabalho constante dos artigos 14.°, 15.° e 16.° do Decreto-Lei n.° 398/83, de 2 de Novembro.
Art. 2.° O regime jurídico a estabelecer pelo Governo nos termos do artigo anterior assentará nos seguintes princípios fundamentais:
a) Alargamento do conceito de justa causa para despedimento individual a factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho e estejam ligados à aptidão do trabalhador ou sejam fundados em motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado, relativos à empresa, estabelecimento ou serviço;
b) Condicionamento do cálculo de remunerações de base vincendas devidas ao trabalhador despedido por forma declarada ilícita, em termos de evitar a criação de situações de duplicação de rendimentos do trabalho e de imputação à entidade empregadora das consequências da inércia do trabalhador no acesso aos meios de defesa dos seus direitos;
c) Simplificação do processo de despedimento nas empresas com menos de 21 trabalhadores, garantindo sempre ao trabalhador o direito de defesa e a exigência de fundamentação escrita que delimite a apreciação judicial da licitude do despedimento;
d) Admissão de substituição judicial da reintegração do trabalhador, em caso de despedimento declarado ilícito, por indemnização quando, após pedido da entidade empregadora, o tribunal crie a convicção da impossibilidade do reatamento de normais relações de trabalho;
é) Criação da figura de abandono do trabalho como causa autónoma da cessação do contrato de trabalho, equiparada nas suas consequências à revogação por iniciativa do trabalhador, sem justa causa e sem aviso prévio;
f) Uniformização do processo de despedimento dos representantes dos trabalhadores, ainda que rodeado de um particular quadro de garantias substantivas, com recondução da competência para a decisão do despedimento à entidade empregadora como detentora do poder disciplinar na empresa;
g) Garantia da intervenção das organizações representativas dos trabalhadores nas diversas modalidades de despedimento, evitando situações de intervenção múltipla mas garantindo, no que respeita ao despedimento colectivo, a supleti-vidade da intervenção para os casos de inexistência da estrutura mais vocacionada;
h) Alteração das regras processuais de índole administrativa aplicáveis nos casos de despedimento colectivo e no regime de redução e suspensão da prestação de trabalho, com consagração expressa, num e noutro caso, da participação intensiva e com efeitos substantivos dos representantes dos trabalhadores;
/) Alargamento do período experimental que o reconduza à sua função, até este momento impedida pelo exíguo período que lhe foi reservado na lei em vigor, e com admissão de flexibilização do período consagrado;
j) Revisão do regime do contrato de trabalho a termo, tendo em atenção os objectivos seguintes: retoma da aceitação da contratação a termo incerto ao lado da contratação a termo certo ou a prazo; delimitação clara das situações que legitimam a contratação a termo; exigência de forma escrita para o contrato, com indicação expressa da circunstância justificativa da estipulação do termo; redução da duração máxima do contrato a termo quando seja objecto de renovações; reconhecimento ao trabalhador do direito a uma compensação pecuniária pela caducidade do contrato, que seja proporcional à sua duração; proibição da rotação de trabalhadores admitidos a termo na ocupação do mesmo posto de trabalho;
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/) Possibilidade de flexibilização do regime através da previsão de matérias susceptíveis de negociação colectiva, funcionando, em relação a elas, o regime legal em termos de supletivi-dade, mas acautelando o respeito pelos aspectos de interesse e ordem pública;
m) Criação de um regime que garanta aos trabalhadores reformados por velhice ou de idade superior a 70 anos que, por acordo, continuem ao serviço uma estabilidade condicionada de emprego com aplicação dos princípios enformadores de contratação a termo certo, salvo os relativos à forma, aos limites temporais da renovação do contrato e ao prazo de aviso de não renovação;
n) Clarificação da posição contratual dos trabalhadores cuja entidade empregadora morre, se extingue ou cessa a actividade por falência ou insolvência;
o) Revisão do regime da cessação do contrato por acordo das partes, suprimindo-se a possibilidade de revogação unilateral desse acordo e prevendo-se que a eventual compensação pecuniária que daí advenha ao trabalhador se entenda como incluindo todos os créditos vencidos à data da cessação do contrato ou exigíveis em virtude dela;
p) Sistematização e clarificação das fases do processo de despedimento por comportamento culposo do trabalhador;
q) Estabelecimento de um regime punitivo adequado relativamente a infracções ao regime praticadas pela entidade empregadora, que tenha em conta a importânciaa social da regra violada, a qualidade do trabalhador relativamente ao qual se verifica a infracção e a dimensão da empresa;
r) Atribuição de competência ao juiz de trabalho para, em acções cíveis que perante si corram, aplicar as penas de multa previstas para as infracções apuradas;
s) Garantia do direito de o trabalhador despedido requerer, a título cautelar, a suspensão judicial do despedimento, sem prejuízo de, sendo procedente o pedido, a entidade empregadora poder suspender a sua prestação de trabalho, sem perda de retribuição ou do direito de acesso aos locais destinados ao exercício, na empresa, das suas funções de representante sindical ou membro da comissão de trabalhadores, se for o caso.
Art. 3.° A presente autorização legislativa tem a duração de 90 dias.
Art. 4.° A presente lei entra imediatamente em vigor.
Aprovada em 15 de Abril de 1988.
O Presidente da Assembleia da República, Vítor Pereira Crespo.
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Acórdão n.° 107/88
Acordam no Tribunal Constitucional (T. Const.):
I — Enquadramento temático
1 — Em conformidade com o disposto nos artigos 278.°, n.05 1 e 3, da Constituição e 51.°, n.° 1, e 57.°, n.° 1, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, veio
o Presidente da República requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade dos artigos 1.°, n.° 2, e 2.°, alíneas a), d),J)t s), do Decreto da Assembleia da República n.° 81/V, que lhe havia sido remetido para promulgação como lei, e reportado «à autorização ao Governo para rever o regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho, do contrato de trabalho a termo e o regime processual da suspensão e redução da prestação do trabalho».
A fundamentação para tanto expendida reveste o seguinte teor:
O n.° 2 do artigo 1.° do decreto da Assembleia da República acima identificado, ao não definir o sentido da autorização legislativa quanto à revisão do regime processual da suspensão e da redução do trabalho constante de algumas disposições do Decreto-Lei n.° 398/83, de 2 de Novembro, parece violar o disposto no n.° 2 do artigo 168.° da Constituição;
O artigo 2.°, alínea fl), ao autorizar o Governo a alargar o conceito de justa causa para despedimento individual a factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho e estejam ligados à aptidão do trabalhador ou sejam fundados em motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado, relativos à empresa, estabelecimento ou serviço, legitimam o despedimento por factos não ligados à conduta do trabalhador, e em termos muito amplos, poderá entender-se que contende com os direitos da segurança no emprego e ao trabalho, previstos nos artigos 53.° e 59.°, n.° 1, da Constituição;
O artigo 2.°, alínea d), ao admitir que em substituição da decisão judicial da reintegração do trabalhador, em caso de despedimento declarado ilícito, possa haver lugar a indeminização, após mero pedido da entidade empregadora, parece apontar para o reconhecimento do despedimento sem justa causa, uma vez que, tendo sido o despedimento declarado ilícito, e inexistente a justa causa, ainda assim, o trabalhador não é reintegrado apesar de o desejar, cessando por isso a relação de trabalho a troco de uma indemnização.
Nesta medida, pode questionar-se a conformidade constitucional do preceito com o artigo 53.° da Constituição.
Acresce que, ao não excluir a sua aplicação aos representantes eleitos dos trabalhadores, pode também entender-se que a norma em apreço viola o disposto nos artigos 56.°, n.° 6, e 54.°, n.° 4, da Constituição, uma vez que tal pode constituir uma forma de «condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas funções»; A alínea f) do artigo 2.°, ao permitir a uniformização do processo de despedimento quanto aos representantes dos trabalhadores, não parece acautelar uma protecção adequada nesta matéria aos representantes eleitos dos trabalhadores contra quaisquer formas de condicionamento ou limitação do exercício legítimo das suas funções, em conformidade com o estabelecido no citado artigo 56.°, n.° 6, da Constituição.
Aliás, tal entendimento parece ser corroborado pela alínea d) do artigo 2.°, como atrás se viu, que não exclui os representantes dos trabalhadores do regime que prevê;
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O artigo 2.0, alínea s), ao admitir como princípio que a entidade empregadora possa suspender a prestação de trabalho do trabalhador despedido, apesar de haver decisão judicial de suspensão do despedimento, proferida em providência cautelar, além de parecer violar a salvaguarda do direito ao trabalho previsto no artigo 59.° da Constituição, afigura-se que contende com o disposto no artigo 210.°, n.° 2, segundo o qual «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades».
2 — Em obediência ao disposto no artigo 54.° da Lei n.° 28/82, foi o Presidente da Assembleia da República notificado para os efeitos ali consignados, havendo, na sequência de tal comunicação, oferecido o merecimento dos autos e juntado, simultaneamente, um parecer da Auditoria Jurídica da Assembleia da República, no qual se conclui no sentido de as normas contestadas no pedido não ofenderem qualquer princípio ou norma constitucional.
3 — Antes de partir ao encontro das diversas questões postas no requerimento do Presidente da República ou de outras que, porventura, por força do mesmo requerimento, o T. Const. possa ou deva vir a conhecer, importa deixar traçadas as grandes linhas que pautaram nos últimos anos, em especial no quadro normativo posterior ao 25 de Abril, a evolução do regime jurídico relativo à cessação do contrato individual de trabalho, em ordem a poder alcançar-se um mais fácil visionamento das matérias sob sindicância.
Vejamos então.
A Lei n.° 1952, de 10 de Março de 1937, pode considerar-se como o primeiro diploma que, de modo sistemático, procedeu à regulamentação jurídica do contrato individual de trabalho.
Em conformidade com as suas prescrições, para além da caducidade e do acordo mútuo, podia o contrato terminar por denúncia unilateral de qualquer das contratantes, independentemente da alegação de justa causa e com aviso prévio (artigo 10.°), ou por denúncia ou rescisão com justa causa a apreciar pelo juiz, considerando-se como tal «qualquer facto ou circunstância grave que torne prática e imediatamente impossível a subsistência das relações que o contrato de trabalho supõe» (artigo 11.° e § único).
Os factos ou circunstâncias enumerados por este diploma como constitutivos de justa causa respeitavam a: 1) motivos pessoais da esfera do trabalhador, com ou sem natureza disciplinar; e a 2) causas objectivas alheias à pessoa do trabalhador.
O artigo 11.°, § único, n.° 3), reportando-se a esta última categoria, contemplava como tais a «falência ou insolvência civil, judicialmente verificadas, da entidade patronal ou a sua manifesta falta de recursos para promover a exploração comercial ou industrial».
Manteve-se esta lei em vigor até ao dia 23 de Setembro de 1966, data em que se iniciou a produção de efeitos do Decreto-Lei n.° 47 032, de 27 de Maio de 1966, que, na quase globalidade, aquela revogou.
O artigo 132.° deste diploma impunha a sua revisão obrigatória a efectuar até 31 de Dezembro de 1968, razão pela qual veio a ser publicado o Decreto-Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969 (lei do contrato de trabalho), cuja disciplina muito se aproxima do texto legal que o antecedeu.
No domínio da cessação do contrato por iniciativa da entidade patronal, a lei do contrato de trabalho previa a rescisão, ocorrendo justa causa [artigos 98.°, alínea c), 101.°, 102.°, 104.°, 105.° e 106.°], denúncia com pré-aviso [artigos 98.°, alínea a), 107.° e 108.°] e decisão unilateral sem justa causa nem pré-aviso (artigos 98.°, n.° 2, e 109.°).
Na definição do artigo 101.°, n.° 2, constituía, em geral, justa causa «qualquer facto ou circunstância grave que torne praticamente impossível a subsistência das relações que o contrato de trabalho supõe, nomeadamente a falta de cumprimento de deveres», podendo qualquer das partes, quando aquela se verificava, pôr imediatamente termo ao contrato (artigo 101.°, n.° 1).
Simplesmente, e apesar de a noção de justa causa da Lei n.° 1952 haver sido mantida, o certo é que se excluíram do seu âmbito as causas objectivas, reduzindo-se assim a justa causa de despedimento a factos ou circunstâncias graves da esfera do trabalhador (cf. artigos 102.°, 111.° e 114.°), e de entre estas apenas restando uma como susceptível de se considerar sem natureza disciplinar [a manifesta inaptidão do trabalhador para as funções ajustadas, referida na alínea cr) do artigo 102.°].
Entretando, o Decreto-Lei n.° 372-A/75, de 16 de Julho, «considerando a necessidade de rever o regime legal dos despedimentos, pondo-o de acordo com os mais legítimos anseios das organizações sindicais e da generalidade do povo trabalhador e considerando que esse regime deve ter em atenção o direito ao trabalho e ao emprego, rodeando o despedimento das cautelas necessárias para que ele não seja possível senão em condições muito especiais» (cf. o respectivo preâmbulo), veio trazer, na sequência aliás da nova ordem jurídico--política entretanto estabelecida, significativas alterações no domínio desta disciplina.
Em conformidade com o disposto no seu artigo 4.°, ficaram proibidos os despedimentos sem justa causa nem motivo atendível, definindo-se justa causa como «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, constitua infracção disciplinar que não comporte a aplicação de outra sanção admitida por lei ou instrumento de regulamentação colectiva» (artigo 10.°, n.° 1) e motivo atendível como «o facto, situação ou circunstância objectiva, ligado à pessoa do trabalhador ou à empresa, que, dentro dos condicionalismos da empresa, torne contrária aos interesses desta e aos interesses globais da economia a manutenção da relação de trabalho» (artigo 14.°).
Este mesmo preceito, depois de estatuir que na apreciação da existência de motivo atendível deve ser sempre tida em conta a gravidade das consequências que para o trabalhador representa a perda do emprego, nomeadamente face às condições do mercado de trabalho e às características pessoais do trabalhador, elen-cava entre os motivos atendíveis «a necessidade de extinção do posto de trabalho e a manifesta inaptidão e impossibilidade de preparação do trabalhador para as modificações tecnológicas que afectem o posto de trabalho» [cf. artigo 14.°, n.° 3, alíneas a) e b)].
O diploma dedicava um capítulo à cessação do contrato individual de trabalho por despedimento com justa causa (capítulo iv) e um outro à cessação do con-
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trato fundada em motivo atendível (capítulo v), nos quais se estabelecia a disciplina material e adjectiva dos respectivos procedimentos.
Esta normação estabeleceu, pela primeira vez, no nosso ordenamento jurídico, o direito à reintegração dos trabalhadores cujo despedimento venha a ser declarado nulo por inexistência de justa causa, inadequação da sanção ao comportamento verificado ou nulidade ou existência de processo disciplinar (artigo 12.°, n.os 1 e 2), ou também sem motivo atendível (artigo 16.°, n.° 5).
Tanto os depedimentos com justa causa como com motivo atendível ficaram sujeitos, prévia e obrigatoriamente, ao controle das organizações representativas dos trabalhadores (artigos 11.° el5.°, n.°2).
Logo a seguir, porém, o Decreto-Lei n.° 84/76, de 28 de Janeiro, «considerando a necessidade de rever em certos aspectos o regime legal dos despedimentos previstos pelo Decreto-Lei n.° 372-A/75, designadamente a supressão da matéria respeitante ao despedimento por motivo atendível, compreendida no capítulo V do citado diploma, em virtude de a prática ter demonstrado que o referido tipo se revelou inadequado à defesa da estabilidade do emprego, motivando a contestação generalizada dos trabalhadores» (cf. o respectivo preâmbulo), procedeu à revogação de todas as normas respeitantes aos despedimentos baseados em motivo atendível, reduzindo consequentemente a denúncia patronal do contrato individual de trabalho aos casos de justa causa apurada em processo judicial (artigo 3.°).
A partir da vigência deste diploma, a invocação da justa causa deixou de ser apenas um meio de legitimar o despedimento imediato e sem aviso prévio da entidade patronal, com exoneração da correlativa indemnização. Ajusta causa (entendida como comportamento culposo impossibilitador da subsistência da relação de trabalho) passou a assumir a natureza de condição de licitude do despedimento.
Até agora permaneceu incólume o princípio assim instituído, pois que o Decreto-Lei n.° 841-C/76, de 7 de Dezembro, ratificado com emendas pela Lei n.° 48/77, de 11 de Julho, editados já na vigência da Constituição de 1976, muito embora hajam introduzido algumas alterações no regime dos despedimentos com justa causa, nomeadamente no domínio dos comportamentos materiais que a poderão integrar, mantiveram como regra nuclear e exclusiva a proibição de todos os despedimentos sem justa causa apurada em processo disciplinar, ou seja, baseada em comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
4 — 0 artigo 4.° do Decreto-Lei n.° 372-A/75, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.° 84/76, prevê, ao lado do despedimento individual com justa causa, o despedimento colectivo.
Anteriormente, a matéria dos despedimentos colectivos figurava na disciplina do Decreto-Lei n.° 783/74, de 31 de Dezembro, cujo conteúdo foi, aliás, quase inteiramente transposto para aquele diploma.
Caracteriza-se este instituto por dois traços essenciais: «primeiro, o de abranger uma pluralidade de trabalhadores da empresa; segundo, o de a ruptura dos contratos respectivos se fundar em razão comum a todos eles. O motivo ou fundamento invocado pelo empregador é o elemento unificante que reconduz a cessação daquela pluralidade de vínculos a um fenómeno
homogéneo, regulado pela lei em bloco. Note-se, todavia, que não pode ter-se como relevante qualquer fundamento invocado pela entidade patronal, desde que comum a vários trabalhadores; nomeadamente, não são de atender razões alusivas ao comportamento deles, ou seja, num certo sentido, razões de carácter 'subjectivo', embora coincidentes — mas apenas motivos inerentes à organização produtiva em que se inserem, por isso exteriores às relações de trabalho» (cf. Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, 1, 3.a ed., 1979, p. 322).
O regime legal do despedimento colectivo (artigos 13.° a 23.° do Decreto-Lei n.° 372-A/75) impõe a existência de diversos requisitos objectivos condicionadores da sua validade e eficácia e cuja verificação externa, através de um processo administrativo especial, compete ao Ministério do Trabalho, que poderá, nomeadamente, proibir a cessação dos contratos de trabalho, quando a fundamentação invocada pelo empregador se revelar inconsistente.
0 despedimento colectivo, enquanto «consequência mecânica» de certos factos ou situações ocorridas na esfera da empresa, traduz uma realidade material e jurídica inteiramente distinta da cessação do contrato individual de trabalho com base em «despedimento ordinário», nomeadamente quando fundada em justa causa de despedimento.
5 — Aqui chegados, e encerrado que está o desenho das grandes linhas cujo traçado antecedentemente se anunciou, cumpre passar à apreciação do requerimento formulado pelo Presidente da República e das questões que, directa ou indirectamente, a ele estão subjacentes.
Contemplam-se naquele petitório dois temas de natureza distinta e conteúdo diversificado: de um lado, questiona-se o rigor constitucional do artigo 1.°, n.° 2, do decreto, ao não definir o sentido da autorização legislativa aí contemplada, em contravenção ao disposto no artigo 168.°, n.° 2, da Constituição; de outro lado, suspeitam-se por desobediência ao texto fundamental as alíneas a), d), f) e s) do artigo 2.°, na medida em que os princípios ali definidos como critério da disciplina jurídica a estabelecer incorrem, eventualmente, em colisão com o disposto nos artigos 53.°, 54.°, n.° 4, 56.°, n.° 6, 59.°, n.° 1, e 210.°, n.° 2, da Constituição.
E, se não oferece qualquer dúvida que a este Tribunal assiste competência para, no quadro do regime das autorizações legislativas, fiscalizar a adequação constitucional dos seus limites próprios, sejam eles substanciais, formais, subjectivos e temporais (cf. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1986, pp. 274 e segs.), outro tanto não poderá já dizer-se no que respeita ao aferimento constitucional de preceitos que não têm, por via de regra, a função de produzir efeitos externos imediatos.
Será que estes devem ser havidos como normas nos termos e para os efeitos do artigo 278." da Constituição, de modo que a sua apreciação se possa inscrever no domínio da fiscalização preventiva de constitucionalidade?
Em obediência a um adequado desenvolvimento metodológico vai, de imediato, passar-se à apreciação desta matéria preliminar.
II — Uma questão prévia
1 — Parece poder afirmar-se, à luz do texto constitucional vigente, que, nas autorizações legislativas, o
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órgão detentor do primado do exercício da competência legislativa (o Parlamento) autoriza, permite ou habilita o órgão executivo (o Governo) a, dentro de certos condicionalismos, directamente previstos na Constituição ou a definir na própria lei de delegação, emanar actos normativos com força de lei sobre matérias que a lei fundamental atribui prima facie ao Parlamento como integrando uma reserva relativa de competência.
A natureza jurídica das autorizações legislativas é tema especialmente controverso no plano doutrinário, se bem que, «relativamente ao problema da natureza meramente formai ou formal-material das leis de autorização ou de delegação, julga-se superada a velha doutrina germânica segundo a qual estas leis deveriam ser qualificadas como meramente formais, porque não continham verdadeiras normas jurídicas, isto é, normas gerais e abstractas, válidas no confronto de todos os sujeitos, permanecendo com um conteúdo meramente interno, insusceptível de ser invocado perante os juízes, e praticamente submetido ao jogo das forças políticas.
Hoje, quando os autores propendem para esta qualificação, invocam não já os efeitos meramente internos, mas o facto de os efeitos se verificarem só depois da entrada em vigor da lei delegada. As leis de delegação começariam por ser leis formais sobre a produção jurídica para se transformarem em leis substanciais de produção depois da emanação da lei delegada. Parece--nos de rejeitar esta tese das leis meramente formais, mesmo na formulação matizada que acabamos de expor, porque a caracterização das leis de delegação não deve estar dependente da sua actuação pela lei delegada. A lei de delegação não tem uma natureza diversa das outras leis, acontecendo apenas que as suas normas são formuladas pelo órgão parlamentar para serem aplicadas juntamente com a emanação de leis delegadas» (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4." ed., Coimbra, 1986, p. 630).
Na verdade, alguns autores que ainda perfilham aquela concepção de fundo (a lei de delegação seria uma lei formal por não ter conteúdo verdadeiramente legislativo, isto é, por não conter normas gerais e abstractas susceptíveis de entrarem em vigor aquando da sua publicação em termos que fizessem incidir os seus efeitos sobre a esfera jurídica dos particulares, inovando em relação ao conjunto do ordenamento preexistente) vêm reformulando o seu enunciado em termos de conciliarem as duas vertentes do problema, rotulando as leis de delegação como leis formais-materiais.
É o caso de Vezio Crisafulli, Lezioni di diritto cos-tituzionale, vol. li, 5." ed., Padova, p. 81, onde considera que «às disposições da lei de delegação que contêm os princípios deve-se reconhecer — mas apenas virtualmente — carácter e natureza de actos legislativos em sentido material, embora a sua eficácia (neste aspecto) esteja subordinada à entrada em vigor da norma delegada. Constituem, por isso, normas de eficácia diferida.»
Posicionamento semelhante é o assumido por Carlo Lavagna, Istituzioni di diritto pubblico, 3." ed., Torino, 1979, p. 299, onde considera que «a lei de delegação [... ] não pode ter nenhuma eficácia externa se não se lhe seguir a lei delegada; por isso, se esta não for emitida, aquela permanece como um acto meramente interno do ordenamento constitucional com base na qual não pode ser invocada em sede jurisdicional ou em qualquer outra sede uma pretensão dos particula-
res. Mas se a delegação é usada no sentido de ser emitido o decreto legislativo delegado, a lei de delegação deixará de ter mera eficácia interna, mas coordena-se com a lei delegada, concorrendo com esta para disciplinar uma determinada matéria por ela contemplada.»
Já se viu, porém, que semelhante entendimento é rejeitado por outra doutrina (cf. Gomes Canotilho, ob. cit., loc. cit.).
2 — Como quer que seja, parece irrecusável que as normas de uma lei de autorização legislativa detêm a natureza e a qualidade de normas, nomeadamente para os fins previstos no artigo 278.° da Constituição, legitimando-se assim que, quanto a elas, seja accionado o mecanismo da fiscalização preventiva de constitucionalidade.
Esta qualificação não é minimamente afectada pela circunstância de tais normas assumirem uma muito especial e particular vertente interna: o estabelecimento dos limites do exercício do poder delegado, expressando, por isso, uma relação de confiança entre a Assembleia da República (delegante) e o Governo (delegado).
Mas tais limites não exprimem apenas a essência de uma mera relação interorgânica irrelevante para o conjunto do ordenamento jurídico. São limites com eficácia externa na medida em que, confrontáveis com a Constituição e actuando como parâmetro dos poderes delegados, estabelecem o quadro de alteração do ordenamento vigente ao qual se há-de subordinar a legislação autorizada.
Aliás, a Constituição, ao dispor sobre o instituto das autorizações legislativas, impõe a sua integração em leis que não se distinguem das demais quanto ao seu regime jurídico, salvo no facto de prescrever regras sobre o seu conteúdo obrigatório, nomeadamente quanto à inclusão neste de normas que traduzam o parâmetro aferidor do uso dos poderes delegados.
Estas normas, produzindo efeitos na esfera dos particulares apenas aquando da entrada em vigor do decreto-lei autorizado, aparecem como não sendo exequíveis por si próprias, mas, por isso, e tal como sucede com as normas programáticas, não perdem a sua imediata relevância externa e o seu valor de normas jurídicas.
As normas da lei de autorização são concebidas e pretendidas pela Constituição enquanto normas geradoras do processo legislativo das leis delegadas e por tal circunstância são aplicadas com a emissão destas, sem prejuízo de constituírem desde logo instrumento jurídico-normativo quanto à determinação do segmento do ordenamento em vias de modificação e quanto ao sentido genérico das alterações a introduzir.
O Tribunal Constitucional italiano, chamado a pronunciar-se sobre a entrada em vigor da lei de delegação, decidiu na sua sentença n.° 75, de 25 de Maio de 1957 (in Giuridizione costituzionale, 1957, p. 770), que «a lei de delegação entra em vigor, tal como todas as demais leis, após vacatio legis ou imediatamente, se assim o dispuser [...] e que, se para a produção de ulteriores efeitos se torna necessário o concurso de outros eventos, tal não parece suficiente para justificar a construção de um novo conceito, o da progressiva entrada em vigor da lei, o que poderia \evar à confusão entre dois tipos de factos bem diversos entre si: a integração de uma norma ou de um conjunto de normas no ordenamento (que é a entrada em vigor) e
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a produção do pressuposto de facto ou de direito ao qual possam estar subordinados o nascimento, a modificação e a extinção de situações subjectivas activas ou passivas reguladas pelas próprias normas» (cf. António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, versão policopiada, Lisboa, 1985, pp. 320 e segs.).
De tudo o exposto, adquirida que está a adequação das normas de uma lei de autorização legislativa (ou, no caso, de um decreto remetido para promulgação como lei) ao sistema de fiscalização de constitucionalidade, nenhum impedimento se verifica à apreciação da legitimidade constitucional das normas constantes das alíneas a), d), f) e s) do artigo 2.° do decreto da Assembleia da República.
3 — Encerrado o capítulo que se abriu para dilucidação da questão prévia suscitada, caberia passar ao exame dos diversos temas directamente postos no pedido do Presidente da República.
Todavia, por força do disposto no artigo 51.°, n.° 5, da Lei n.° 28/82, o T. Const., no âmbito dos seus poderes de cognição, não se encontra impedido de abordar questões de constitucionalidade diversas daquelas que vêm postas no pedido relativamente às normas aí referenciadas e cujo objecto constituem.
E, nomeadamente, indagar do seu rigor, aferido à luz das exigências constitucionais impostas ao procedimento legislativo destinado à produção de certo tipo de normas jurídicas, concretamente as normas que possam ser havidas como integrantes do conceito de legislação do trabalho.
Para tanto, não constitui impedimento que o Tribunal haja de se socorrer de factos que, embora não alegados no pedido, foram objecto de publicação em jornal oficial de um órgão de soberania, concretamente o Diário da Assembleia da República, constando, ademais, do processo.
Na sequência do exposto passará a averiguar-se se no processo formativo das normas questionadas pelo Presidente da República foram colididos os direitos atribuídos pela Constituição às organizações representativas dos trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho.
Ill — A elaboração da legislação do trabalho
1 — O decreto sob sindicância foi originado pela proposta de lei n.° 35/V {Diário da Assembleia da República, 2.a série, n.° 54, de 9 de Março de 1988), em cuja exposição de motivos se noticiam não só os propósitos e princípios que presidiram à sua formulação, mas também a diversa tramitação observada na recolha das soluções acolhidas no articulado final.
Em conformidade com aquela informação preambular, apura-se que o Governo preparou um «primeiro anteprojecto de diploma que submeteu aos parceiros sociais com assento no Conselho Permanente de Concertação Social. As suas análises, críticas e sugestões foram cuidadosamente ponderadas, daí tendo resultado a reformulação do anteprojecto, com a preparação do que, para cumprimento das exigências constitucionais consagradas nos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea a), da lei fundamental, foi publicado para apreciação pública na separata n.° 1/87 do Boletim do Trabalho e Emprego, de 17 de Dezembro.»
De harmonia com o mesmo texto, todas as críticas e sugestões recebidas das diversas organizações de trabalhadores e entidades empresariais foram analisadas
e ponderadas e os debates conduzidos no já referido órgão de concertação «permitiram uma mais ampla compreensão das razões e alcance dessas críticas e facultaram as aproximações possíveis dentro da unidade de regime e das motivações que conduziram o Governo nesta revisão».
Finalmente, para além da ponderação sobre os regimes e instrumentos jurídicos que nas matérias em causa vigoram nos restantes países das Comunidades Europeias, ali se dá conhecimento que foram tidas «em conta as disposições constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias, designadamente sobre os direitos do trabalhador, com realce para o artigo 53.° da Constituição e para a garantia de estabilidade de emprego no mesmo consignada, com proibição de despedimentos sem justa causa ou por razões políticas ou ideológicas».
2 — Como se pode extrair do ofício do Presidente da Assembleia da República de fl. 29 e também do Diário da Assembleia da República, l.a série, n.° 73, de 15 de Abril de 1988, e 2.a série, n.° 66, de 20 de Abril de 1988, não só à Assembleia da República «não foram fornecidas as opiniões das organizações de trabalhadores colhidas pelo Governo durante a apreciação pública a que se alude na 'exposição de motivos' da proposta de lei n.° 35/V, ou seja, sobre o projecto de diploma publicado em separata no Boletim do Trabalho e Emprego, de 17 de Dezembro de 1987», como também nela não se procedeu «autonomamente à audição das organizações representativas dos trabalhadores» sobre a matéria daquela proposta de lei.
Cabe então averiguar se desta ocorrência não resultou afectado, de modo constitucionalmente irremissível, o procedimento legislativo que produziu o decreto agora submetido à fiscalização deste Tribunal.
A Constituição atribui, nos seus artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea a), às comissões de trabalhadores e às associações sindicais o direito de participar na elaboração da legislação do trabalho.
Apesar de o texto constitucional não definir o que seja «legislação do trabalho» pode dizer-se que esta há--de ser «a que visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores enquanto tais, e suas organizações» (cf. parecer n.° 17/81, Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16.°, p. 14) ou, se assim melhor se entender, há-de abranger «a legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição» (cf. Acórdãos do T. Const. n.os 31/84, 451/87 e 15/88, Diário da República, 1." série, de, respectivamente, 17 de Abril de 1984, 14 de Dezembro de 1987 e 3 de Fevereiro de 1988).
No caso vertente, todas as normas que integram o objecto do pedido respeitam manifestamente à legislação laboral, como logo se extrai do seu mero enunciado, devendo como tal ser havidas sem que, para tanto, algum obstáculo represente o facto de integrarem uma lei de autorização legislativa (um decreto remetido para promulgação como lei).
É que, como já se viu e adiante mais detalhadamente se observará (cf. supra n e infra iv, 2), as leis de autorização, pelo facto de não intervirem directamente no ordenamento jurídico, em termos de aplicabilidade directa, transportam, todavia, parâmetros normativos fundamentais (princípios e directivas) decisivamente condicionadores da legitimidade do decreto-lei autorizado, em termos de se poder afirmar que o essencial
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do diploma delegado está predeterminado na lei delegante, a qual aliás, no caso em presença, se espraia ao longo de dois artigos e dezoito alíneas contendo uma ampla, diversificada e minuciosa normação.
Não parece assim procedente a argumentação de as leis autorizadoras valerem apenas como normas de competência e de orientação, que em nada alteram a legislação efectivamente vigente.
E não parece porque a normação contida no diploma delegante, incidindo sobre matéria inscrita no âmbito da competência reservada da Assembleia da República, há-de condicionar duplamente a acção legislativa do Governo, dependente não só da autorização enquanto tal, mas também das directivas e critérios que esta contém. O decreto-lei autorizado representará obrigatoriamente uma mera tradução material daquelas directivas, em termos de se poder afirmar que os seus enunciados essenciais (os que respeitem à competência reservada do Parlamento) se acham predefinidos no texto autorizados
Não colhe assim a objecção de que as leis de delegação não intervêm directamente no ordenamento jurídico, pois que isso apenas significa que elas não inovam, em termos de aplicabilidade directa, o sistema jurídico.
Assim sendo, nenhum obstáculo existe ao entendimento de que as normas contidas no decreto sob sindicância devem ser havidas como legislação do trabalho nos termos e para os efeitos daquelas disposições constitucionais.
Adquirido este apuramento conceituai, e tendo presente que a única participação das organizações dos trabalhadores de que nos autos se dá notícia — aquela a que se alude na exposição de motivos da proposta de lei — se situou numa fase preliminar, de «pré--procedimento legislativo», aquando da preparação pelo Governo do texto da sua proposta, e cujo resultado, como se viu, não foi levado ao conhecimento da Assembleia da República, cabe perguntar se o quadro assim traçado importará a violação das normas constitucionais que dispõem sobre a audição dos trabalhadores.
À luz desta realidade deveria, desde logo, colocar-se a questão de saber se o direito de participação dos trabalhadores exigia, no caso concrecto, que a respectiva audição fosse desencadeada directamente pela própria Assembleia da República, ou se bastava que a este órgão de soberania fossem fornecidas as opiniões emitidas durante a consulta efectuada pelo Governo antes ainda da apresentação da proposta de lei. Todavia, não se torna necessário decidir aqui estas questões — que se deixam em aberto — visto que, como já se referiu, não só não teve lugar qualquer consulta levada a efeito pela própria Assembleia da República, como também a esta não foi dado conhecimento pelo Governo das opiniões e outros elementos eventualmente por ele recolhidos aquando da audição das organizações dos trabalhadores, na fase preparatória da proposta de lei.
Ora, isto basta para se dever concluir no sentido de que as normas questionadas pelo Presidente da República, enquanto normas da legislação do trabalho, violam o disposto nos artigos 55.°, alínea b), e 57.°, n.° 2, alínea a), da Constituição.
3 — Atingida esta conclusão e considerando que o vício de procedimento encontrado naquele bloco normativo não pode deixar de se repercutir na materialidade injuntiva dos respectivos preceitos, justificar-se--ia, porventura, que as questões directamente colocadas no pedido não fossem objecto de conhecimento.
Simplesmente, razões de ordem prática e de economia processual, que se prendem com a celeridade do procedimento legislativo e com a própria natureza da fiscalização preventiva de constitucionalidade, aconselham que não se enverede por esta via, passando-se assim, e em consequência, a apreciar aquelas questões.
Seguir-se-á, para tanto, a ordenação estabelecida no requerimento inicial.
IV — A norma do artigo 1.a, n.° 2
1 — Dispõe-se neste preceito que «o Governo é igualmente autorizado a, simultaneamente, proceder à revisão do regime processual da suspensão e redução da prestação de trabalho constante dos artigos 14.°, 15.° e 16.° do Decreto-Lei n.° 393/83, de 2 de Novembro».
Define este último diploma o regime da redução ou suspensão da prestação de trabalho (lay-off), estatuindo nas normas que respeitam ao domínio processual, cuja revisão agora se autoriza, da forma que segue:
Artigo 14.° Processo
1 — A entidade empregadora enviará à comissão de trabalhadores e às comissões sindicais representativas dos trabalhadores abrangidos, no caso de existirem, o projecto de redução ou suspensão, acompanhado da respectiva fundamentação técnico-económica.
2 — Durante o prazo mínimo de quinze dias terá lugar um processo de negociação, com vista à obtenção de um acordo.
3 — Concluída a fase de negociação, a entidade empregadora apresentará no Ministério do Trabalho e Segurança Social requerimento em que fundamente o pedido para proceder à redução ou suspensão, acompanhado do acordo efectuado com as estruturas representativas dos trabalhadores ou de documento demonstrativo das razões que impossibilitaram a sua concretização.
4 — O requerimento será instruído com os documentos indispensáveis à apreciação do pedido, designadamente:
a) Relação nominal, por secções, de todos os trabalhadores da empresa, com indicação da remuneração normal, profissão, categoria e antiguidade;
b) Relação nominal, por secções, dos trabalhadores abrangidos, com indicação dos critérios que presidiram à sua selecção;
c) Folhas de salários, devidamente visadas pela Segurança Social, referentes aos três meses imediatamente anteriores;
d) Elementos contabilísticos que evidenciem a situação económico-financeira da empresa;
e) Memória descritiva, orçamentos, planos e prazos de execução relativos a investimentos ou a reestruturações a efectuar;
f) Documentos comprovativos dos empréstimos bancários solicitados ou concedidos e respectivos encargos;
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g) Plano de actividades para o período de aplicação do regime solicitado, no qual deve constar o programa de viabilização da empresa e de manutenção dos postos de trabalho.
5 — A entidade empregadora enviará cópia de toda a documentação apresentada no Ministério do Trabalho e Segurança Social às estruturas representativas dos trabalhadores referidas no n.° 1.
6 — A comissão de trabalhadores e as comissões sindicais representativas dos trabalhadores abrangidos que não tenham chegado a acordo com a entidade empregadora devem enviar ao Ministério do Trabalho e Segurança Social, no prazo de quinze dias, parecer escrito sobre o requerimento de redução ou suspensão.
Artigo 15.° Apreciação e decisão
1 — No prazo de oito dias a partir da apresentação do requerimento, o Ministério do Trabalho e Segurança Social notificará a empresa da admissão do processo ou, sendo caso disso, da necessidade do seu aperfeiçoamento.
2 — No prazo de 45 dias após a notificação da admissão do processo, será proferida decisão por despacho conjunto dos Ministros do Trabalho e Segurança Social e das Finanças e do Plano e dos ministros que superintendam no sector de actividade da empresa.
3 — Na apreciação do pedido poderão os serviços competentes estabelecer o contacto directo com as partes interessadas e solicitar a entidades públicas ou privadas as informações e documentos julgados necessários.
4 — No caso de acordo entre a entidade empregadora e as estruturas representativas dos trabalhadores abrangidos, a redução ou suspensão considera-se autorizada se, decorrido o prazo referido no n.° 2, não for proferido qualquer despacho.
Artigo 16.°
Vigência
1 — A redução ou suspensão determinada por razões conjunturais de mercado por motivos económicos ou tecnológicos ou por catástrofes ou outras ocorrências que tenham afectado gravemente a actividade normal da empresa terá uma duração previamente determinada não superior a um ano.
2 — A duração inicialmente prevista poderá ser prorrogada até ao máximo de um ano, observando-se o disposto nos artigos 14.° e 15.°
3 — Terminado o período da redução ou suspensão, são restabelecidos todos os direitos e deveres das partes decorrentes do contrato de trabalho.
Alega-se no requerimento do Presidente da República que a norma do artigo 1.°, n.° 2, agora em apreço, ao não definir o sentido da autorização legislativa quanto à revisão do regime processual da suspensão e da redu-
ção do trabalho constante das disposições que se deixaram transcritas, parece violar o disposto no artigo 168.°, n.° 2, da Constituição. Acaso será assim?
A resposta a esta interrogativa envolve uma prévia indagação no domínio do instituto das autorizações legislativas, sobre o qual, aliás, já em passo antecedente se deixaram esboçadas algumas considerações (cf. supra li).
Cabe, porém, retomar o tema, se bem que à luz da específica questão dos seus limites substanciais.
2 — Em obediência ao disposto no artigo 168.°, n.° 2, da Constituição, «as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada».
A versão originária da Constituição no seu artigo 168.°, n.° 1, no quadro dos limites materiais, apenas se referia ao objecto e extensão, havendo a exigência do sentido da autorização sido aditada na revisão de 1982, com o que se sublinhou a autonomia deste elemento substancial face à interpretação conjugada dos outros elementos, e reforçando-se também o grau de rigor na determinação dos respectivos limites.
Acolheu-se, desta maneira, a experiência de outros ordenamentos onde o princípio da especialidade das autorizações ou delegações legislativas tinha, já há muito tempo, assento constitucional.
Assim, a Lei Fundamental de Bona, no artigo 80.°, prescreve que a lei «deverá determinar o conteúdo, o fim e a extensão das referidas autorizações», enquanto a Constituição Italiana, no artigo 76.°, dispõe que «o exercício da função legislativa não pode ser delegado ao Governo a não ser com determinação dos princípios e critérios directivos e penas por tempo limitado e com objecto definido».
Se o objecto constitui o elemento enunciador da matéria sobre que versa a autorização, e a extensão especifica qual a amplitude das leis autorizadas, através do sentido são fixados os princípios base, as directivas gerais que devem orientar o Governo na elaboração da lei delegada.
Este último elemento de condicionamento substancial constitui já não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro limite interno à própria autorização, porque é essencial para a determinação das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa.
A lei de autorização, em obediência ao comando constitucional, há-de definir os princípios, ou seja, as normas fundamentais que concedem unidade lógico--política à disciplina a editar pelo Governo, e há-de estabelecer também as directivas, reconduzíveis à determinação das finalidades a que aquela disciplina tem de adequar-se.
Poderá dizer-se, acompanhando António Vitorino (cf. ob. cit., p. 240) que «o sentido da autorização, sendo um dos elementos do 'conteúdo mínimo exigível' da lei de autorização, em relação à qual opera como condição da sua própria validade, só se encontra efectivamente contemplada quando as indicações a esse título constantes da lei de autorização permitam um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do acto delegado em relação ao do da lei delegante. Donde resulta que, se o sentido não tem que exprimir--se em abundantes princípios ou critérios directivos (que levados às últimas consequências até poderiam condicionar totalmente em termos de conteúdo o exercício
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dos poderes delegados), deverá, pelo menos, ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa operar com clareza como parâmetro de aferição dos actos delegados e consequentemente da observância por parte do legislador delegado do essencial dos ditames do legislador delegante».
3 — Poder-se-á então dizer, no plano do quadro conceituai atrás delineado, que a norma do artigo 1.°, n.° 2, não define o sentido da autorização legislativa que nela se comporta?
Vejamos.
No corpo do artigo 2.° do decreto da Assembleia da República dispõe-se que «o regime jurídico a estabelecer pelo Governo nos termos do artigo anterior assentará nos seguintes princípios fundamentais», princípios esses a seguir enumerados ao longo de dezoito alíneas.
Há-de assim entender-se que estas directivas gerais se reportam ao artigo 1.° na sua globalidade, abarcando consequentemente, não apenas o primeiro, mas antes os dois números que o compõem. Ao facto de, tal-qualmente o artigo 2.°, apenas o n.° 1 do artigo 1.° se referir a «regime jurídico», não deve ser concedida qualquer relevância, pois que, embora sem essa referência expressa, também o n.° 2 do artigo 1.° se reporta à revisão de um regime jurídico, concretamente aquele que no preceito se contém.
Restará, todavia, averiguar se no elenco desses princípios algum ou alguns existem que, na sua materialidade, respeitem ao tema do artigo 1.°, n.° 2, isto é, ao regime processual da suspensão e redução da prestação de trabalho constante dos artigos 14.°, 15." e 16.° do Decreto-Lei n.° 398/83, por forma que, através deles, o Governo conheça, nessa parte, as linhas gerais a observar na emissão da lei delegada.
Ora, observa-se que a alínea h) do artigo 2.° contempla a «alteração das regras processuais de índole administrativa aplicáveis nos casos de despedimento colectivo e no regime de redução e suspensão da prestação de trabalho, com consagração expressa, num e noutro caso, da participação intensiva e com efeitos substantivos dos representantes dos trabalhadores».
0 princípio geral contido nesta alínea assinala suficientemente um dado «programa-fim» (alteração das regras processuais de índole administrativa, com consagração expressa da participação intensiva e com efeitos substantivos dos representantes dos trabalhadores), através do qual pode ser dimensionado o objectivo e o critério da disciplina legislativa, no tocante às matérias inscritas na área reservada da competência da Assembleia da República, a concretizar pelo Governo, no domínio da revisão autorizada no artigo 1.°, n.° 2.
Na esteira do exposto, deve concluir-se que este preceito não violou o estatuído no artigo 168.°, n.° 2, da Constituição.
V — A norma do artigo 2.°, alinea a)
1 — A esta norma foi concedida a seguinte formulação:
a) Alargamento do conceito de justa causa para despedimento individual a factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho e estejam ligados à aptidão do trabalhador ou sejam fundados em motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado relativos à empresa, estabelecimento ou serviço.
No juízo de avaliação do Presidente da República este preceito, enquanto legitima «o despedimento por factos não ligados à conduta do trabalhador, e em termos muito amplos, poderá entender-se que contende com os direitos da segurança no emprego e ao trabalho, previstos nos artigos 53.° e 59.°, n.° 1, da Constituição da República».
Já se deixaram apontados alguns princípios gerais sobre a actual disciplina, no plano da lei ordinária, da cessação do contrato individual de trabalho (cf. supra i, 3).
Disse-se então que, a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 84/76, a invocação da justa causa deixou de ser apenas um meio de legitimar o despedimento imediato e sem aviso prévio da entidade patronal, com exoneração da correlativa indemnização. A justa causa (entendida como comportamento culposo impossibili-tador da subsistência da relação de trabalho) passou a assumir a natureza de condição de licitude do despedimento.
No entendimento de Mário Pinto e Francisco Sousa Fialho, O Despedimento, 1983, p. 23, «tratando-se de um sistema de despedimentos justificados, será, todavia, o único conhecido em que não se admite o despedimento individual por motivos objectivos. Efectivamente, com a revogação dos artigos 13.° a 23.° do Decreto-Lei n.° 372-A/75, efectuada em 28 de Janeiro de 1976 pelo Decreto-Lei n.° 84/76, apenas serão possíveis o despedimento individual por conduta culposa do trabalhador e o despedimento colectivo por razões objectivas ligadas à empresa, pelo que não tem cabimento o despedimento individual por incapacidade/inaptidão (o revogado 'motivo atendível'), não sendo líquido que seja admissível o despedimento individual por razões económicas ou organizativas da empresa».
E os mesmos autores (ob. cit., p. 24), caracterizaram, do modo que segue, os despedimentos segundo os motivos:
Todos os despedimentos são justificados. A lei enumera exemplificativamente os factos que podem constituir «justa causa» de despedimento e que se relacionam unicamente com a conduta culposa do trabalhador. Não se admite o despedimento objectivo individual, seja por incapacidade/inaptidão, seja por razões económicas ou organizativas ligadas a empresa, mas prevê-se a possibilidade do despedimento colectivo, fundamentado em motivos objectivos da empresa e nos termos de um processo especial. Não existe o binómio despedimento com pré-aviso/despedimento imediato, visto que todo o despedimento individual, necessariamente fundado em conduta culposa do trabalhador, é obrigatoriamente precedido de um processo disciplinar.
A norma sob sindicância, ao legitimar o despedimento individual por factos não ligados à conduta do trabalhador, alargando o conceito de justa causa para além das fronteiras disciplinares, beneficiará de beneplácito constitucional?
A questão assim posta há-de resolver-se essencialmente no domínio da interpretação constitucional.
2 — Segundo a lição de Gomes Canotilho (ob. cit., pp. 156 e 157), o programa normativo, entendido este como resultado de um processo parcial de concretiza-
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cão assente fundamentalmente na interpretação do texto normativo, «não é apenas a soma dos dados linguísticos normativamente relevantes do texto, captados a nivel puramente semântico. Outros elementos a considerar são: 1) a sistemática do texto normativo, o que corresponde tendencialmente à exigencia de recurso ao elemento sistemático; 2) a genética do texto; 3) a história do texto; 4) a teieologia do texto. Este último elemento, 'teleología do texto normativo', aponta para a insuficiência de semântica do texto; o texto normativo quer dizer alguma coisa a alguém e daí o recurso à pragmática».
Importará assim, em ordem a uma rigorosa captação do âmbito normativo dos conceitos constitucionais inscritos nos preceitos invocados pelo Presidente da República, muito especialmente o conceito de «despedimento sem justa causa» constante do artigo 53.° da Constituição, proceder a um recenseamento das fontes e das vicissitudes formativas que conduziram ao seu actual texto e respectivo enquadramento sistemático.
Vejamos então.
Todos os partidos que estiveram representados na Assembleia Constituinte apresentaram projectos de Constituição, nos quais, com maior ou menor expressão e intensidade, foram tratadas as matérias do direito ao trabalho e da segurança no emprego, cumprindo agora fazer um breve relance pelos mais significativos desses projectos.
Assim, e respeitando a ordem de publicação no Diário da Assembleia Constituinte (cf. suplemento aos n.os 13 e 14, de 7 e 9 de Julho de 1975), podem deixar-se os seguintes destaques:
Partido do Centro Democrático Social (CDS):
No artigo 12.°, n.° 13, dispunha-se que o direito ao trabalho e ao emprego constitui direito e liberdade individual do cidadão português.
Movimento Democrático Português (MDP/ CDE):
No artigo 39.°, n.os 1 e 2, previa-se que todo o cidadão tem direito ao trabalho, estabelecendo a lei as medidas adequadas de protecção e segurança.
Partido Comunista Português (PCP):
No artigo 35.°, n. os 1 e 8, estatuía-se que todos os cidadãos têm direito ao trabalho, incluindo este direito a proibição de ser despedido sem justa causa ou sem motivo justificado e a proibição do lock-out.
Partido Socialista (PS):
No artigo 30.°, n.os 1 e 2, alínea d), consagrava--se o direito ao trabalho e também à segurança no emprego, tendo os despedimentos de ser sancionados pelas organizações representativas dos trabalhadores e não podendo ser invocados motivos políticos ou ideológicos, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa.
Partido Popular Democrático (PPD):
Nos artigos 52.° e 53.°, n.° 1, alínea j), dispunha--se sobre o direito ao trabalho e no elenco dos direitos dos trabalhadores integrava-se o direito ao não despedimento sem justa causa.
Cumpre recordar que todos estes projectos de Constituição foram elaborados e publicados no domínio da vigência, em matéria de cessação do contrato individual de trabalho, do Decreto-Lei n.° 49 408, pois que, como já se deixou assinalado, o Decreto-Lei n.° 372-A/75, que veio introduzir profundas modificações naquele diploma, apenas iniciou a produção de efeitos em Agosto de 1975.
3 — O plenário da Assembleia Constituinte procedeu ao debate na especialidade e à votação do texto da 3.a Comissão («Direitos e deveres fundamentais», título III «Direitos e deveres económicos, sociais e culturais») nas matérias respeitantes à garantia do direito ao trabalho, nas sessões de 16 e 17 de Setembro de 1975 (cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.os 47 e 48, de 17 e 18 de Setembro), consequentemente já no domínio da vigência do Decreto-Lei n.° 372-A/85, mas antes da publicação do Decreto-Lei n.° 84/76, que só viria a ocorrer, como é sabido, em 28 de Janeiro do ano seguinte.
O texto apresentado por aquela Comissão, na parte que aqui importa assinalar, foi assim concebido:
Artigo 3.° Garantia do direito ao trabalho
De acordo com os princípios dos artigos precedentes e através da aplicação do plano de política económica e social, compete ao Estado assegurar:
b) A segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos, tendo sempre os despedimentos de ser sancionados pelas organizações representativas dos trabalhadores.
Os Grupos Parlamentares do PPD e do PS apresentaram, para a norma da transcrita alínea b), na sessão de 16 de Setembro, propostas de alteração, depois retiradas na sessão do dia imediato, por força da apresentação das seguintes propostas de substituição:
PPD: «b) A estabilidade no emprego, com a proibição dos despedimentos sem justa causa ou sem motivo atendível, bem como dos despedimentos por motivos políticos ou ideológicos, e com o reconhecimento às organizações representativas de trabalhadores do direito de apreciação dos despedimentos, sem prejuízo do recurso aos tribunais.» (Sublinhado acrescentado.)
PS: «b) A segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.»
A formulação proposta pelo PS veio a prevalecer, transitando integralmente para o futuro artigo 52.°, alínea b), da Constituição, integrado no capítulo li («Direitos e deveres económicos») do título ih («Direitos e deveres económicos, sociais e culturais»).
Aquando da aprovação desta norma, a Assembleia Constituinte recusou, expressamente, que nela se fizesse menção, ao lado do conceito de justa causa, ao motivo atendível como causa justificativa do despedimento, arredando assim uma construção jurídico-constitucional erigida a partir do regime então vigente (redacção ori-
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ginària do Decreto-Lei n.° 372-A/75). Todavia, e tanto quanto se pode colher dos respectivos debates parlamentares (cf. as intervenções dos deputados Marcelo Curto e Mário Pinto, Diário da Assembleia Constituinte, n.° 48, já citado, pp. 1388 e 1389), foi expresso o entendimento de que, recusando-se embora os despedimentos por motivo atendível, neles não se consideravam incluídos os despedimentos colectivos (cf. também Monteiro Fernandes, ob. cit., p. 324).
E assim não podia deixar de ser, por força da sua natureza especial que, como já se viu, é inspirada por uma lógica própria e diversa da que está subjacente aos despedimentos individuais.
Entretanto, logo no mês de Janeiro seguinte, o Decreto-Lei n.° 84/76, em coerência com o sentido daquela votação, veio suprimir a «matéria respeitante ao despedimento por motivo atendível, [... ] em virtude de a prática ter demonstrado que o referido tipo de despedimentos se revelou inadequado à defesa da estabilidade do emprego».
Supressão essa não contrariada no Decreto-Lei n.° 841-C/76 e na Lei n.° 48/77, que ainda hoje disciplinam esta matéria. E as tentativas que em sentido diverso foram empreendidas acabaram sempre por se saldar em insucesso (cf. o texto da proposta de lei n.° 70/11, Diário da Assembleia da República, 2.' série, n.° 8, de 31 de Outubro de 1981).
Na revisão constitucional de 1982, a norma do artigo 52.°, alínea b), da versão originária, foi recebida pelo actual artigo 53.°, se bem que se operassem então duas significativas alterações.
De um lado, e no plano sistemático, o preceito passou a integrar o capítulo ih («Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores») do título n («Direitos, liberdades e garantias»), de outro lado, e no plano da materialidade normativa, a segurança no emprego deixou de ser entendida como incumbência do Estado, para passar a constituir um dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, o que não pode deixar de significar um acrescido reforço da segurança no emprego como expressão directa do direito ao trabalho, como, aliás, foi unanimemente reconhecido pelo plenário da Assembleia da República, aquando da aprovação do texto da revisão constitucional (cf. Diário da Assembleia da República, 1." série, n.° 104, de 18 de Junho de 1982).
4 — 0 espaço de interpretação, e agora se retoma a lição de Gomes Canotilho (cf. ob. cit., pp. 158 e 159), ou, talvez melhor, «o âmbito de liberdade de interpretação do aplicador-concretizador das normas constitucionais, tem também o texto da norma como limite: só os programas normativos que se considerem compatíveis com o texto da norma constitucional podem ser admitidos como resultados constitucionalmente aceitáveis derivados de interpretação do texto da norma».
Qual então o exacto programa normativo contido no preceito do artigo 53.° da Constituição?
O conceito de justa causa já era, à data da aprovação do texto constitucional, um conceito suficientemente densificado sob o ponto de vista jurídico--dogmático.
Na última fase da sua evolução, como se extraiu do percurso cujo desenvolvimento se acompanhou, aquele conceito era informado por dois elementos principais: 1) uma conduta culposa do trabalhador; 2) cuja gravidade e consequências constituam infracção disciplinar que não comporte a aplicação de outra sanção.
Representam estes dois elementos o seu núcleo essencial, independentemente das precipitações legislativas concretas que o mesmo pode assumir quanto aos contornos e elenco das factualidades susceptíveis de se candidatarem à sua subsunção (cf. as diferentes versões que o artigo 10.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 372-A/75 conheceu, por força da sucessiva redacção que lhe foi concedida pelos Decretos-Leis n.os 84/76 e 841-C/76 e Lei n.° 48/77).
Não definindo a Constituição o que sejam despedimentos sem justa causa cabe apurar se, aquando do recebimento do conceito, este foi acolhido com o sentido que lhe vinha sendo dado na ordem jurídica interna anterior, ou se, porventura, foi transformado o seu significado e sentido, isto é, o seu espaço semântico.
Tratando doutrinalmente do tema da determinação do âmbito dos conceitos pré-constitucionais, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.° vol., 2.a ed., p. 47, sustentam parecer evidente «que, quando a Constituição recebe um determinado conceito legal com um certo sentido, este fica, por assim dizer, 'constitucionalizado', deixando de estar à disposição do legislador. Por exemplo, se o conceito de 'pena maior' foi recebido na Constituição [cf. artigo 27.°, n.° 3, alínea a)] com um certo sentido, não pode a lei vir a alterar o conceito, de modo a modificar significativamente o sentido do preceito constitucional; se o conceito de 'justa causa de despedimento' foi acolhido na Constituição com um sentido rigorosamente delimitado, não pode a lei vir depois modificá-lo, por forma a fazer dizer ao preceito constitucional coisas substancialmente diferentes do que originariamente dizia».
E, no campo jurisprudencial, bem pode dizer-se que tem havido um entendimento similar ao assim exposto, como há-de extrair-se, além de outros, dos Acórdãos do T. Const. n.m 70/85, 131/86 e 328/86, Diário da República, 2.a série, de 1 de Junho de 1985, 13 de Agosto de 1986 e 16 de Fevereiro de 1987, nos quais se colocou a questão conceituai de pena maior, e onde se reconheceu estar vedado ao legislador «atribuir a essa pena um conceito substancialmente diferente do que lhe era dado pela legislação anterior», da qual, aquando da sua cons-titucionalização, foi recebido aquele conceito.
Como em qualquer outro conceito constitucional, existe, é certo, uma determinada margem de liberdade de configuração legislativa concreta de justa causa. O que o legislador não pode, porém, é transfigurar o conceito, de modo a fazer com que ele cubra dimensões essenciais e qualitativamente distintas daquelas que caracterizam a sua intenção jurídico-normativa.
Tendo presente tudo quanto se observou no plano de evolução do conceito de justa causa, deve afirmar--se que o seu alargamento a factos, situações ou circunstâncias objectivas de todo alheias a qualquer comportamento culposo do trabalhador não deixará de envolver a sua transmutação substancial.
Não importa agora determinar — questão que se deixa em aberto — se à proibição constitucional do despedimento sem justa causa corresponde, necessariamente, a exclusiva legitimidade constitucional do despedimento com justa causa, ou se, pelo contrário, ainda seria igualmente lícita a previsão de despedimentos fundados em causas objectivas não imputáveis a culpa do empregador que, em cada caso concreto, tornem praticamente impossível a subsistência da relação ào trabalho.
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Com efeito, ainda que se seguisse este último entendimento, tais despedimentos nunca poderiam ser configurados, face à Constituição, como verdadeiros despedimentos com justa causa, pelo que a sua regulamentação substantiva e processual sempre exigiria um tratamento distinto daquele por que se regem estes últimos.
Ademais, sempre haverá de se assinalar que o texto constitucional não admite o renascimento da figura do despedimento com base em motivo atendível, contemplada na versão originária do Decreto-Lei n.° 372-A/75 e suprimida pelo Decreto-Lei n.° 84/76, supressão essa depois confirmada pelos diplomas que ulteriormente versaram sobre esta matéria.
Com efeito, enquanto no artigo 4.°, n.° 2, daquele primeiro diploma se estatuía ser proibido à entidade patronal «promover o despedimento sem justa causa nem motivo atendível», o artigo 53.° da Constituição [artigo 52.°, alínea b), da versão originária] veio afastar o motivo atendível, que assim deixou de ser causa justificativa de despedimento.
5 — Por outro lado, e em complemento do exposto, importa acentuar que a Constituição garante, em geral, o direito à segurança no emprego e garante, em especial, o direito a não ser despedido sem justa causa, constituindo este uma expressão qualificada daquele no que respeita ao despedimento individual (o conceito de justa causa, com o seu sentido típico, apenas neste despedimento tem relevância).
Ora, se a Constituição não se limitou a garantir a «segurança no emprego», acrescentando e especificando a proibição dos «despedimentos sem justa causa», é porque quis dizer mais, no caso de se tratar de despedimentos individuais.
Mas, por si só, a garantia de segurança do emprego (independentemente daquela proibição) postula, desde logo, a garantia da estabilidade da posição do trabalhador na relação de trabalho e de emprego e a sua não funcionalização aos interesses da entidade patronal.
E esta verificação não pode deixar de interpenetrar o verdadeiro sentido da justa causa para despedimento e a avaliação constitucional que sobre ela se empreenda.
6 — A norma do artigo 2.°, alínea a), a cuja apreciação directa agora se regressa, contempla dois diversos quadros de previsão.
O conceito de justa causa para despedimento individual é alargado a factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho e (1) estejam ligados à aptidão do trabalhador ou (2) sejam fundados em motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado, relativos à empresa, estabelecimento ou serviço.
Pese embora o diferente plano em que se colocam estas duas situações — os motivos ligados à aptidão do trabalhador, ao contrário dos motivos ligados à empresa, estabelecimento ou serviço, contêm uma determinada referência pessoal —, deve dizer-se que em ambas a causa de despedimento não é justa, por se fundar em «razões objectivas» relacionadas com a diminuição da aptidão profissional adequada do trabalhador ou com motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado.
Ao legislador, como se viu, pertence uma certa margem de configuração do conceito constitucional de justa causa. Não está impedido de delimitar no plano concreto o âmbito e as formas de funcionamento da figura, precisando e tipificando os seus motivos e pressupostos.
Mas já lhe é vedado alterar o seu «critério de definição» e transfigurar o seu conteúdo essencial, de modo a alargá-lo a situações qualitativamente distintas, e isto independentemente do quadro acima traçado sobre a eventual licitude constitucional de despedimento para além da justa causa.
De todo o modo o alargamento do conceito de justa causa operado pela norma do artigo 2.°, alínea a), traduz-se na sua adulteração, violando, em consequência, o disposto no artigo 53.° da Constituição.
VI — A norma do artigo 2.°, alínea d)
1 — Este preceito dispõe do modo seguinte:
d) Admissão de substituição judicial da reintegração do trabalhador, em caso de despedimento declarado ilícito, por indemnização quando, após pedido da entidade empregadora, o tribunal crie a convicção da impossibilidade do reatamento de normais relações de trabalho.
O Presidente da República questiona a legitimidade constitucional desta norma, sob uma dupla perspectiva:
1) Enquanto parece apontar para o reconhecimento do despedimento sem justa causa, uma vez que, tendo sido o despedimento declarado ilícito, e inexistente a justa causa, ainda assim o trabalhador não é reintegrado apesar de o desejar, cessando por isso a relação de trabalho a troco de uma indemnização, com o que poderá haver-se por violado o disposto no artigo 53.° da Constituição;
2) Ao não excluir a sua aplicação aos representantes eleitos dos trabalhadores, podendo daí advir uma forma de «condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas funções», pode também entender-se que a norma em apreço colide com o disposto nos artigos 56.°, n.° 6, e 54.°, n.° 4, da Constituição.
Tem-se por seguro, todavia, que esta segunda questão apresenta a natureza de um pedido subsidiário, cuja consideração apenas deverá ser tomada em conta na eventualidade de não proceder o pedido que a antecede.
Posta esta advertência, passa a tomar-se conhecimento da matéria que primeiramente aqui se deve equacionar.
2 — Substituição judicial da reintegração do trabalhador por indemnização. — Na vertente agora em apreço, autoriza a norma que, em caso de despedimento judicialmente declarado ilícito, a reintegração do trabalhador, após pedido da entidade empregadora, seja substituída por indemnização quando o tribunal crie a convicção da impossibilidade do reatamento de normais relações de trabalho.
Quer isto dizer que, não obstante o despedimento ordenado pela entidade patronal haver sido declarado ilícito na acção que contra a mesma e por tal facto instaurou o trabalhador, pode ainda assim o juiz, quando criar a convicção da impossibilidade do reatamento de normais relações de trabalho, substituir a reintegração por indemnização, após pedido em tal sentido da entidade empregadora.
A inexistência de justa causa, a inadequação da sanção ao comportamento verificado e a nulidade ou inexistência do processo disciplinar determinam a nuli-
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dade do despedimento que, apesar disso, tenha sido declarado e constituem no trabalhador o direito à reintegração na empresa no respectivo cargo ou posto de trabalho (cf. artigo 12.° do Decreto-Lei n.° 372-A/75).
O acto que extingue o contrato de trabalho, no regime da norma em apreço, vem a revelar-se ilícito, antijurídico, e, não obstante isso, pode vir a ocasionar o despedimento quando o juiz criar a convicção da impossibilidade do reatamento de normais relações de trabalho.
Quer isto dizer que a entidade patronal, ao desencadear um despedimento ilícito, originou uma situação de conflito e tensão na relação laboral, acabando o clima de perturbação a ela devido servir para levar o juiz a substituir a reintegração por indemnização.
Não existe aqui lugar para o apelo a qualquer princípio de tu quoque, de compensação de culpas, pois que, ao menos no recorte abstracto da situação normativa, apenas à entidade empregadora pertence responsabilidade na degradação da relação de trabalho, por efectuar um despedimento ilícito em termos de assim ser reconhecido pelo tribunal.
A culpa do empregador, através do mecanismo instituído nesta norma, volta-se, não contra ele próprio, mas sim contra o trabalhador, que acaba despedido, em última análise, por força de um acto judicialmente declarado ilícito e situado na esfera de exclusiva responsabilidade da entidade patronal. É que a eventual impossibilidade do reatamento de normais relações de trabalho dever-se-á, em direitas contas, ao menos na generalidade das situações, ao próprio despedimento ilícito e às tensões que se lhe seguiram e o acompanharam.
A substituição da reintegração pela indemnização, em semelhante quadro, permitiria que a entidade patronal sempre pudesse despedir o trabalhador à margem de qualquer «causa constitucionalmente lícita», bastando--lhe para tanto criar, mesmo que artificialmente, as condições objectivas (despedimento ilícito + perturbações da relação laboral = impossibilidade do reatamento de normais relações do trabalho) conducentes à cessação do contrato de trabalho.
É patente a violação do disposto no artigo 53.° da Constituição.
3 — Deixou-se atrás referido que, na parte respeitante à segunda vertente desta norma — protecção contra o despedimento dos trabalhadores —, o pedido se apresentava como subsidiário, devendo apenas ser conhecido na eventualidade de o antecedente não prevalecer.
Assim sendo, e porque acaba de se reconhecer a ilegitimidade constitucional da norma em causa, não deverá agora aquele ser tomado em consideração.
VII — A norma do artigo 2.°, alínea f)
1 — É a seguinte a formulação da norma agora em apreciação:
f) Uniformização do processo de despedimento dos representantes dos trabalhadores, ainda que rodeado de um particular quadro de garantias substantivas, com recondução da competência para a decisão do despedimento à entidade empregadora como detentora do poder disciplinar na empresa.
Alega-se no requerimento do Presidente da República que esta norma, ao permitir a uniformização do processo de despedimento quanto aos representantes dos trabalhadores, não parece acautelar uma protecção adequada nesta matéria aos representantes eleitos dos trabalhadores contra quaisquer formas de condicionamento ou limitação do exercício legítimo das suas funções, em conformidade com o estabelecido no citado artigo 56.°, n.° 6, da Constituição.
Embora inserido numa disposição dedicada à liberdade sindical, o preceito do artigo 56.°, n.° 6, da Constituição — «a lei assegura protecção adequada aos representantes eleitos dos trabalhadores contra quaisquer formas de condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas funções» — abrange todos os representantes eleitos dos trabalhadores, sejam representantes sindicais, sejam membros das comissões de trabalhadores, sejam outros representantes eleitos.
Pode dizer-se que este direito de protecção especial dos representantes eleitos dos trabalhadores «se desdobra em duas dimensões: a) a dimensão subjectiva, pois trata-se da consagração de um verdadeiro direito de defesa dos representantes eleitos dos trabalhadores no exercício das suas funções; b) a dimensão objectiva dirigida ao legislador no sentido de este concretizar as formas de protecção adequadas» (cf. Gomes Canoti-lho e Vital Moreira, ob. cit., pp. 307 e 308).
Assim, de um lado, a Constituição estabelece um direito desses trabalhadores a uma protecção adequada contra formas de constrangimento, condicionamento ou limitação das suas actividades funcionais e, de outro, consagra uma imposição dirigida ao legislador no sentido de este criar uma disciplina normativa que dê satisfação, nos diversos planos do seu exercício, a esse direito.
O fundamento racional e material para a protecção concedida a estes trabalhadores é o de «acautelar a segurança no emprego dos trabalhadores que, pelas funções que exercem, se tornam mais facilmente vulneráveis às medidas discricionatórias, mesmo persecutórias, por parte daqueles contra cujos interesses desempenham boa parte das suas funções (cf. Jorge Leite e Coutinho de Almeida, Colectânea de Leis do Trabalho, Coimbra, 1985, p. 278).
Ou, dito de outra maneira, e repetindo o que se escreveu no citado Acórdão n.° 122/86:
Ao candidatarem-se e ao assumirem o desempenho de cargos sindicais ou equiparados, ao protagonizarem a representação do conjunto dos trabalhadores, ao formularem as suas reivindicações, ao dirigirem os processos de luta laboral (reuniões, manifestações, greves, etc), os representantes dos trabalhadores encarnam necessariamente as tensões conflituais frequentemente ínsitas nas relações laborais, tornando-se inevitavelmente em alvo preferencia] da animosidade patronal.
2 — A Lei n.° 68/79, de 9 de Outubro, cuja revogação é autorizada pela norma do artigo 1.°, n.° 1, define na actualidade um regime processual de protecção em casos de despedimento de trabalhadores membros das respectivas organizações representativas, consagrando uma «reserva de decisão judicial» como garantia da segurança no emprego e da liberdade sindical desses trabalhadores. O despedimento só pode ter
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lugar por meio de acção judicial se contra ele se tiver pronunciado o trabalhador interessado e a comissão de trabalhadores ou associação sindical, consoante os casos.
Apesar de a Relação do Porto haver sustentado, em diversas decisões, que semelhante regime colidiria com o princípio da igualdade, o certo é que uma linha jurisprudencial constante e uniforme tem-se pronunciado no sentido da inteira conformidade constitucional daquela lei (cf. Acórdãos n.os 126/84, 204/85, 309/85, 18/86 e 122/86 do T. Const., Diário da República, 2.» série, respectivamente de 11 de Março de 1985 e 25 de Janeiro, 11 de Abril, 24 de Abril e 6 de Agosto, todos de 1986, n.os 458 e 476 da Comissão Constitucional, Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983, e do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março e 29 de Julho de 1983, Boletim do Ministério da Justiça, n.os 327, p. 573, e 329, p. 475).
Mas será que a Constituição exige e impõe necessariamente esta reserva de acção e decisão judicial?
3 — A norma do artigo 2.°, alínea f), autoriza a uniformização do processo de despedimento dos representantes dos trabalhadores, com recondução da competência para o despedimento à entidade empregadora, se bem que aquele venha a ser rodeado de um particular quadro de «garantias substantivas».
Quer dizer, de um lado, uniformiza-se o processo de despedimento e suprime-se a reserva judicial; de outro lado, assegura-se aos representantes dos trabalhadores uma especial protecção através daquilo que se designa por «garantias substantivas».
Se é certo que a Lei n.° 68/79 contém um determinado sistema de garantias processuais cuja supressão é autorizada, não pode agora dizer-se, em termos absolutos, que tais garantias não possam vir a ser substituídas por outras igualmente adequadas e eficazes, mesmo na ausência da reserva judicial.
A Constituição não exige uma certa e determinada forma especial de protecção, apenas impõe um conteúdo protectivo adequado cuja concretização, ao menos no plano abstracto, pode ser assumida de diversificadas maneiras.
A este propósito escreveu-se no citado Acórdão n.° 126/84:
Não se trata de afirmar que era constitucionalmente obrigatória a solução que a Lei n.° 68/79 concretamente instituiu, ou que ela seja a única (ou, noutra perspectiva, bastante) para satisfazer a incumbência constitucional decorrente dos artigos 54.°, n.° 4, e 56.°, n.° 6, da CRP.
Nas «garantias substantivas» (cf. intervenção produzida a este respeito pelo Ministro do Emprego e da Segurança Social na Assembleia da República, aquando da aprovação na especialidade da proposta de lei n.° 35/V, Diário da Assembleia da República, 1." série, n.° 74, de 16 de Abril de 1988) que a lei delegada há--de discriminar, pode conter-se o conjunto de garantias mínimo exigível em termos de preenchimento da protecção adequada constitucionalmente imposta. Tudo depende de saber se as «garantias substantivas» que venham a ser estabelecidas em substituição do regime actualmente contemplado na Lei n.° 68/79 constituirão ainda protecção adequada em termos de ser dada satisfação às exigências constitucionais.
Não pode assim, face ao exposto, de imediato, concluir-se que a norma sob sindicância viola o disposto no artigo 56.°, n.° 6, da Constituição.
VIII — A norma do artigo 2.°, alínea s)
1 — Esta disposição dispõe do seguinte teor:
s) Garantia do direito de o trabalhador despedido requerer, a título cautelar, a suspensão judicial do despedimento, sem prejuízo de, sendo procedente o pedido, a entidade empregadora poder suspender a sua prestação de trabalho, sem perda de retribuição ou do direito de acesso aos locais destinados ao exercício, na empresa, das suas funções de representante sindical ou membro da comissão de trabalhadores, se for o caso.
Esta norma, sustenta-se na petição, ao admitir como princípio que a entidade empregadora possa suspender a prestação de trabalho do trabalhador despedido, apesar de haver decisão judicial de suspensão do despedimento, proferida em providência cautelar, além de parecer violar a salvaguarda do direito ao trabalho previsto no artigo 59.° da Constituição, afigura-se que contende com o disposto no artigo 210.°, n.° 2, segundo o qual «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras entidades».
Por força do contrato de trabalho, determinada pessoa obriga-se, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta (cf. artigos 1.° da lei do contrato de trabalho e 1152.° do Código Civil).
A celebração contratual implica, para o trabalhador, a aquisição de um complexo de direitos e obrigações (garantias e deveres) cuja cessação está, em princípio, associada à extinção do próprio contrato, através das diversas formas consentidas por lei.
Na situação contemplada na norma em apreço o trabalhador requereu e alcançou, por via da competente providência cautelar (cf. artigos 38." e seguintes do Código de Processo do Trabalho), a suspensão judicial do despedimento, consentindo-se, não obstante, à entidade empregadora a faculdade de suspender a prestação de trabalho.
No entender de Monteiro Fernandes (cf. ob. cit., pp. 242 e segs.), «do ponto de vista jurídico-formal, a retribuição surge como a contraprestação da entidade patronal face ao trabalho efectivamente realizado pelo trabalhador. Assim é que, por exemplo, as faltas não justificadas, e mesmo algumas das justificadas, conferem (legalmente) à entidade patronal o direito ao desconto na retribuição [...]».
Simplesmente, o mesmo autor logo acrescenta que «não é, apesar de tudo, exacto que a correspectividade se estabeleça entre a retribuição e o trabalho efectivamente prestado. [... ] É a disponibilidade do trabalhador — mais do que o serviço efectivo — que corresponde ao salário; o trabalhador está, muitas vezes, inactivo porque a entidade patronal não carece transitoriamente dos seus serviços ou o coloca em situação de não poder prestá-los, embora mantendo-se ele disponível e, portanto, a cumprir a sua obrigação contratual.»
Exemplificando esta última situação, deve citar-se a regra contida no artigo 31.°, n.° 2, da lei do contrato de trabalho, segundo a qual pode a entidade patronal, após a instauração do procedimento disciplinar, suspender a prestação do trabalho, se a presença do traba-
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lhador se mostrar inconveniente, mas não lhe é lícito suspender o pagamento da retribuição (cf. artigo 11.°, n.° 10, do Decreto-Lei n.° 372-A/75).
Na norma agora em apreço, concede-se à entidade empregadora a faculdade de suspender a prestação de trabalho, sem embargo de manter a retribuição e o direito de acesso aos locais destinados na empresa ao exercício das actividades próprias dos representantes dos trabalhadores.
Acaso esta previsão envolverá violação do artigo 59.°, n.° 1, da Constituição, como se admite no pedido do Presidente da República?
O direito ao trabalho, enquanto assegura a realização do homem numa dimensão pluridireccional, deve haver-se como algo mais complexo do que uma pura relação económica, na qual o acento tónico seja posto na retribuição auferida pelo trabalhador.
Sendo esta uma das componentes essenciais do respectivo direito, outras, porém, existem, que não podem deixar de a ele estar indissoluvelmente associadas. Entre estas deve conter-se o próprio exercício do trabalho ou do emprego, do qual o trabalhador não pode, salvo motivo lícito, ser afastado ou impedido de o actuar.
A decisão que determinou a supressão judicial do despedimento restitui ao trabalhador todos os direitos inerentes à relação laboral, desde logo como consequência da garantia de segurança no emprego constitucionalmente reconhecida.
Aliás, bem pode dizer-se que esta garantia constitucional postula uma medida de acautelamento liminar contra violações patentes do direito ao trabalho e à segurança no emprego, em termos de se haver como emanação daquela garantia o sistema processual contido na respectiva providência cautelar.
E assim sendo, a norma do artigo 2.°, alínea s), enquanto consente à entidade patronal a suspensão da prestação do trabalho, fora do processo disciplinar e na ausência de justificação judicialmente atendida, colide com o disposto no artigo 59.° da Constituição.
2 — Outro tanto não se dirá relativamente à norma do artigo 210.°, n.° 2, do texto constitucional.
As decisões judiciais só valem nos exactos e estritos termos da lei que os suporta, não sendo o seu conteúdo determinado pelo julgador.
No caso em presença, a suspensão judicial do despedimento significa apenas que o empregador fica obrigado a pagar a retribuição devida ao trabalhador, bem como a permitir o seu acesso aos locais destinados ao exercício, na empresa, das suas funções de representante sindical ou membro da comissão de trabalhadores, quando seja esse o caso.
Não se pode afirmar, deste modo, que o princípio da autoridade judicial resulte violado ao conceder-se à entidade patronal a faculdade de, posteriormente à decisão judicial e para além dela, suspender o efectivo exercício da prestação de trabalho.
Assim sendo, não se tem por verificada a violação do disposto no artigo 210.°, n.° 2, da Constituição, como no pedido do Presidente da República vem sustentado.
Esgotados que se mostram todos os temas cuja matéria devia ser objecto de apreciação, resta agora concluir.
IX — A decisão
Nesta conformidade, o T. Const. decide pronunciar--se pela inconstitucionalidade:
1) Da norma do artigo 1.°, n.° 2, por violação do disposto nos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea a), da Constituição;
2) Da norma do artigo 2.°, alínea a), por violação do disposto nos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea a), e também do disposto no artigo 53.°, todos da Constituição;
3) Da norma do artigo 2.°, alínea d), por violação do disposto nos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea a), e também do disposto no artigo 53.°, todos da Constituição;
4) Da norma do artigo 2.°, alínea f), por violação do disposto nos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea a), da Constituição;
5) Da norma do artigo 2.°, alínea s), por violação do disposto nos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea c), e também do disposto no artigo 59.°, todos da Constituição.
Lisboa, 31 de Maio de 1988. — Antero Alves Monteiro Dinis (relator) — Vital Moreira (com declaração de voto) — José Magalhães Godinho — Luís Nunes de Almeida (com declaração de voto) — Mário de Brito (com declaração de voto) — José Martins da Fonseca (vencido em parte, de harmonia com a declaração que junto) — Raul Mateus (vencido, nos termos da declaração de voto junta) — José Manuel Cardoso da Costa (vencido, nos termos de declaração de voto) — Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto junta) — Armando Manuel Marques Guedes (vencido, nos termos da declaração de voto).
Declaração de voto
Votei a inconstitucionalidade da alínea f) do artigo 2.° — sobre o despedimento dos representantes dos trabalhadores —, não só pelo motivo constante do acórdão (inconstitucionalidade formal), mas também por inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 53.° e 56.°, n.° 6, da Constituição.
Na verdade, penso que a proibição dos despedimentos sem justa causa postula, no caso dos representantes dos trabalhadores, particulares garantias que impeçam o abuso da autoridade patronal contra eles; por outro lado, é a própria Constituição, no artigo 56.°, n.° 6, que expressamente comina à lei que assegure «protecção adequada aos representantes eleitos dos trabalhadores contra quaisquer formas de condicionamento, constrangimento ou limitação ao exercício legítimo das suas funções».
Considero que essa «protecção adequada» não pode deixar de ter especial relevo no que se refere à garantia da segurança no emprego, pois é inquestionável que, na conflitologia própria das relações entre entidade patronal e representantes eleitos dos trabalhadores, será recorrente no espírito daquela a tentação de se «ver livre» dos segundos, através do despedimento.
Por outro lado, não vejo como é que a protecção adequada dos representantes dos trabalhadores em matéria de despedimentos pode ser eficaz sem garantias especiais em matéria processual que impeçam, preventivamente, a entidade patronal de consumar o afastamento dos representantes dos trabalhadores. Como
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se diz, justamente, num parecer presente ao Tribunal a propósito deste processo, da autoria de J. J. Gomes Canotilho e Jorge Leite, «há certos direitos onde as dimensões materiais e processuais são incindíveis, a ponto de se poder afirmar l... ] que da 'conformação processual e procedimental depende a garantia material do próprio direito'».
Ora, a protecção da segurança no emprego dos representantes dos trabalhadores — que é também protecção do direito de formar comissões de trabalhadores e da liberdade sindical — exige que, cautelarmente, se garanta que o representante dos trabalhadores não possa ser afastado sem ser por justa causa devidamente apurada e controlada por forma adequada. Se a entidade patronal puder consumar o despedimento de um representante dos trabalhadores com base em qualquer aparência de justa causa (que não permitisse a suspensão do despedimento), de tal modo que o trabalhador se visse efectivamente afastado do lugar enquanto não obtivesse judicialmente a anulação do despedimento (o que pode levar um, dois, três ou mesmo cinco anos!), então é seguro que os representantes dos trabalhadores não teriam protecção adequada para o exercício das suas funções de forma livre e isenta de receio de represálias da entidade patronal.
Sucede que a norma em apreço, ao prever a uniformização do processo de despedimento dos representantes dos trabalhadores, combinada com a prevista revogação da Lei n.° 68/79, de 10 de Outubro (que exige uma decisão judicial de controle da licitude do despedimento dos representantes dos trabalhadores, sem a qual este não tem lugar), elimina as garantias actualmente existentes sem as substituir por outras que dêem satisfação à exigência constitucional de protecção específica dos representantes dos trabalhadores. Com efeito, a norma não define o que devam ser as «garantias substantivas» específicas de que hão-de gozar os representantes dos trabalhadores, e, de qualquer modo, as que estão enunciadas no projecto de diploma governamental de modo nenhum podem considerar-se satisfatórias.
Ora, é doutrina e jurisprudência assente (cf. Acórdão n.° 39/84, relativo ao Serviço Nacional de Saúde) que as normas constitucionais que impõem uma obrigação ao legislador impedem que, uma vez essa obrigação cumprida, ela seja, de novo, «descumprida». Se a Lei n.° 68/79 deu satisfação à exigência constitucional hoje contida no artigo 56.°, n.° 6, da CRP, não pode agora revogar-se aquela lei sem que outras garantias, igualmente adequadas e eficazes para a satisfação da exigência constitucional, venham a ocupar o seu lugar.
Como já se assinalou, «o direito à protecção adequada dos representantes eleitos dos trabalhadores é um direito incindível de garantias processuais e procedimentais», como se diz no já referido parecer, cuja doutrina é de sufragar integralmente. E, uma vez que a norma em causa parece afastar desde logo toda e qualquer específica garantia processual, tem de concluir-se que, independentemente do que venham a ser as tais «garantias substantivas», tal norma é inconstitucional.
Vital Moreira.
Declaração de voto
Embora com algumas dúvidas quanto ao verdadeiro sentido e alcance da norma da alínea f) do artigo 2.°,
propendi para a considerar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 56.°, n.° 6, da lei fundamental.
Com efeito, apesar de não ser clara a intenção do legislador, ao afirmar que a «uniformização do processo de despedimento dos representantes dos trabalhadores» deveria ser contrabalançada por «um particular quadro de garantias substantivas», pareceu-me que era lícito concluir, por um lado, que o processo em causa devia ser uniformizado com o processo respeitante ao despedimento dos restantes trabalhadores, e, por outro lado, que apenas seria necessário assegurar a existência de garantias substantivas.
Ora, no meu entendimento, a «protecção adequada» a que se refere a Constituição, há-de consistir, no mínimo, na existência de garantias processuais que tornem o processo de despedimento de representantes dos trabalhadores mais exigente que o seguido relativamente à generalidade desses mesmos trabalhadores.
Nessa ordem de ideias, e muito embora não considere que a Constituição exige e impõe necessariamente a reserva de acção e decisão judicial para que nestes casos se possa efectuar o despedimento, penso que não é constitucionalmente possível a uniformização de todo o processo, com renúncia à existência de particulares garantias processuais.
Luís Nunes de Almeida.
Declaração de voto
De acordo com o preceituado no n.° 6 do artigo 56.° da CRP, «a lei assegura protecção adequada aos representantes eleitos dos trabalhadores contra quaisquer formas de condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas funções».
Cumprindo esta imposição constitucional, veio a Lei n.° 68/79, de 9 de Outubro, regular o despedimento de membros de corpos gerentes das associações sindicais, de delegados sindicais, de membros das comissões e subcomissões de trabalhadores e suas comissões coordenadoras durante o desempenho das suas funções e até cinco anos após o seu termo. E fê-lo, dispondo, em matéria de despedimento, que, elaborado o processo disciplinar, «o despedimento só pode ter lugar por meio de acção judicial se contra ele se tiver pronunciado o trabalhador interessado e a comissão de trabalhadores, no caso de se tratar de um seu membro, ou a associação sindical, no caso de se tratar de um membro dos seus corpos gerentes ou de delegado sindical» (artigo 1.°, n.° 2).
O artigo 2.°, alínea f), do diploma em apreciação autoriza o Governo a proceder à «uniformização do processo de despedimento dos representantes dos trabalhadores, ainda que rodeado de um particular quadro de garantias substantivas, com recondução da competência para a decisão do despedimento à entidade empregadora como detentora do poder disciplinar na empresa». E o presente acórdão decidiu não ofender esta norma aquele preceito constitucional, com o argumento de que as «garantias substantivas» para que ela remete poderão vir a assegurar aos representantes eleitos dos trabalhadores a «protecção adequada» exigida por esse mesmo preceito.
Foi contra tal decisão que manifestei o meu voto.
Como se disse no Acórdão deste Tribunal n.° 39/84, de 11 de Abril (no Diário da República, 1." série, de 5 de Maio de 1984) —que declarou a inconstituciona-
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lidade, com força obrigatória geral, do artigo 17." do Decreto-Lei n.° 254/82, de 29 de Junho, na parte em que revogou os artigos 18.° a 61.°, 64.° e 65.° da Lei n.° 56/79, de 15 de Setembro (Serviço Nacional de Saúde) —, a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito fundamental (falava-se aí em «direito social», por, no caso, se tratar do direito à protecção da saúde), o respeito constitucional deste deixa de consistir, ou deixa de consistir apenas, numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa; isto é, o Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada a esse direito.
É certo que aqui, para além de se autorizar a revogação da garantia judicial instituída pela Lei n.° 68/79, se remete para um «particular quadro de garantias substantivas».
Simplesmente, o que salta à vista é a intenção de transferir para a entidade empregadora uma decisão — a decisão do despedimento dos representantes eleitos dos trabalhadores — que, pela referida lei, cabe ao juiz.
Quanto às «garantias substantivas», não se sabe o que elas virão a ser.
Pronunciei-me, por isso, no sentido da inconstitucionalidade da norma em questão, não só por violação dos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea a), da Constituição (inconstitucionalidade formal) — como se decidiu no acórdão —, mas também por ofensa do n.° 6 do seu artigo 56.° (inconstitucionalidade material).
Mário de Brito.
Voto de vencido
As leis de autorização emanadas ao abrigo do n.° 2 do artigo 168.° da CRP não produzem efeitos jurídicc--materiais no domínio social sobre que o Governo tenciona legislar. Limitam-se a produzir efeitos jurídicos instrumentais, criando condições para que possa verificar-se uma mudança do direito material aí vigente levada a efeito pelo Governo.
Assim, por um lado, as leis de autorização habilitam o Governo a exercer o seu poder legislativo na matéria abrangida pela reserva parlamentar relativa. Nesta medida, valem, pois, como normas de competência. Por outro lado, elas demarcam o sentido segundo o qual deve ser orientada a legislação, eventualmente subsequente, do Governo. Nesta medida, dir--se-á, valem como normas de orientação, como normas regulativas, como directrizes — isto é, como critérios a tomar em consideração na decisão legislativa do Governo.
Assim, as leis de autorização em nada alteram a legislação vigente no respectivo domínio: só o decreto--lei autorizado, se o Governo a usar e até onde usar a autorização concedida, é que modificará o direito material em referência.
Por estes fundamentos, as normas constantes da lei de autorização legislativa em apreço não revestem a natureza de normas laborais. Daí não ser imperativa a audição dos representantes dos trabalhadores, pelo que não se verifica a inconstitucionalidade formal que se considerou existir.
Deste modo, entende não serem inconstitucionais as normas constantes do n.° 2 do artigo 1.°, bem como a da alínea/) do artigo 2.° da lei das autorizações legislativas.
Em relação à norma da alínea s) do artigo 2.°, entende existir também violação do disposto no n.° 2 do artigo 210.° da CRP, pelos seguintes fundamentos:
A suspensão do despedimento é uma providência cautelar instituída entre nós pela Lei n.° 48/77, de 11 de Julho.
A criação deste mecanismo legal teve como finalidade a protecção dos trabalhadores contra os abusos das entidades patronais quando faziam má aplicação do seu poder disciplinar conducente ao despedimento (cf. Carlos Alberto Lourenço Morais Antunes e Ribeiro Guerra, in Despedimentos, p. 161).
O julgamento expresso na providência cautelar não tem a natureza de um julgamento condicional; é antes um julgamento a termo. Tem feição provisória: supre temporariamente a falta da providência final (cf. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.°, pp. 625 e segs.).
Elas destinam-se a resolver provisoriamente um litígio que há-de ter a sua solução definitiva na causa principal.
Mas, enquanto não se verificarem algumas das causas legais da sua caducidade ou o julgamento definitivo, a decisão que a decreta tem o valor de uma normal decisão judicial — ser obrigatória para todas as entidades públicas e privadas e prevalecer sobre as de quaisquer outras autoridades (n.° 2 do artigo 210.° da CRP).
Certo é que algumas providências cautelares podem ser substituídas por outras medidas estabelecidas por lei, mas mediante decisão do juiz do processo.
0 Decreto-Lei n.° 372-A/75 criou o direito à reintegração do trabalhador injustificadamente despedido. Suspenso o despedimento do trabalhador, deve ser reintegrado no local de trabalho, ainda que provisoriamente até à sentença de impugnação do despedimento (cf. ob. cit., p. 172).
A alínea s) do n.° 2 veio criar um mecanismo de harmonia com o qual a entidade patronal pode substituir livremente uma decisão judicial por uma outra que nem sequer acautela suficientemente o direito que se quis proteger: o direito ao trabalho e à segurança no emprego.
Conferir a uma entidade particular o poder de legalmente desrespeitar uma decisão judicia/ ofende indis-cutivelmente o disposto no n.° 2 do artigo 210.° da CRP.
Por estes fundamentos votei parcialmente vencido.
Lisboa, 31 de Maio de 1988. — José Martins da Fonseca.
Declaração de voto
Divergi do acórdão nos seguintes pontos: Primeiro ponto
1 — Escreveu-se no acórdão:
E, se não oferece qualquer dúvida que a este Tribunal assiste competência para, no quadro do regime das autorizações legislativas, fiscalizai a
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adequação constitucional dos seus limites próprios, sejam eles substanciais, formais, subjectivos e temporais [...], outro tanto não poderá já dizer-se no que respeita ao aferimento constitucional de preceitos que não têm, por via de regra, a função de produzir efeitos externos imediatos.
Concordei plenamente com a impostação, em tais termos, deste problema. Na realidade, e a uma primeira análise, bem se poderia pensar que o confronto com a Constituição dos preceitos das leis de autorização legislativa sem imediata acção na ordem jurídica substantiva envolveria como que uma simples inconstitucionalidade virtual e, por isso mesmo, insusceptível de controle por parte do T. Const.
No entanto, no seu desenvolvimento posterior, o acórdão não se debruça especificamente sobre este problema, mas sobre um outro, qual seja o de saber se «as normas de uma lei de autorização legislativa detêm a natureza e a qualidade de normas, nomeadamente para os fins previstos no artigo 278.° da Constituição. Assim, e na minha perspectiva, o T. Const. «saltou» sobre um problema que ele próprio colocara.
Cheguei a propor que tal questão fosse directamente abordada e resolvida, mas a minha proposta não mereceu acolhimento. Por isso, e na sequência desse posicionamento, não posso deixar agora, e em breves palavras, de dizer qual deveria ser, em minha opinião, a solução para ela.
2 — É exacto que as normas das leis de autorização legislativa não interferem imediatamente com a ordem jurídica material. Essa interferência processa-se apenas imediatamente, isto é, através dos decretos-leis autorizados.
No entanto, não menos exacto é que a lei de autorização legislativa, estando obrigada — artigo 168.°, n.° 2 , da Constituição — a definir o objecto, o sentido e a extensão da autorização, necessariamente acaba por ser a imagem radicalmente simplificada do decreto--lei autorizado, que, por isso mesmo, e nas suas linhas essenciais, logo prefigura. Em tal medida, as normas da lei de autorização legislativa contêm em si princípios, regras e parâmetros que vão consequenciar, e em termos decisivos, a legislação dela derivada.
Nestas circunstâncias, e considerando muito em particular a evidente eficácia material, ainda que condicionada, das normas da lei de autorização em que se contenha, embora em escala reduzida, o modelo do futuro decreto-lei, entendi, ainda, que o T. Const., nos termos da Constituição (artigos 277.°, 278.° e 281.°), não podia deixar de ser competente para conhecer da constitucionalidade de tais normas. É que, tudo isto considerado, o seu confronto com a CRP não será nunca meramente virtual. Seria, aliás, absurdo dar outra solução ao caso: por um lado, porque a Constituição não estabelece quaisquer limitações neste domínio à competência do Tribunal e, por outro lado, porque só assim será possível travar de imediato o passo a uma lei de autorização legislativa que não respeite, àquele nível, a lei fundamental e evitar, deste modo, que o vicio de inconstitucionalidade se propague da lei autorizante ao decreto-lei autorizado.
Segundo ponto
3 — Divergindo aqui do acórdão, seja ao nível argumentativo, seja ao nível conclusivo, entendi — e nesse sentido votei — que a norma do artigo 2.°, alínea a),
do Decreto n.° 81/V da Assembleia da República não violava o artigo 53.° da Constituição.
E entendi também que tal norma não infringia ainda o artigo 59.°, n.° 1, da Constituição, preceito igualmente referido pelo Presidente da República como violado (no acórdão, note-se, não se considerou, ao menos declaradamente, esta eventual situação infraccional).
Em tal aresto, saliente-se este aspecto antes de qualquer outro, julgou-se inconstitucional a norma do artigo 2.°, alínea a), do diploma em análise fundamentalmente por se haver considerado que os motivos de despedimento nela elencados, todos de ordem objectiva, não eram susceptíveis de preencher, na moldura do artigo 53.° da Constituição, o conceito constitucional de justa causa de despedimento.
Por razões históricas, partiu-se do princípio de que para o artigo 53.°, a justa causa, do mesmo passo que pressupunha um comportamento culposo e censurável do trabalhador (critério subjectivo de justa causa), repudiava abertamente quaisquer outros motivos atendíveis baseados em razões puramente externas (critério objectivo de justa causa). No entanto, esclareça-se desde já este lado da questão, tive por inaceitável a linha dedutiva que, arrancando de dados da nossa história jurídica mais recente, acabou por chegar a tal conclusão. A meu ver, a inferência a tirar de tal análise histórica deveria ter sido outra, de sentido, aliás, diametralmente oposto. É o que de seguida se vai procurar demonstrar.
4 — Na Lei n.° 1952, de 10 de Março de 1937, diploma que regulamentou, de forma autónoma e sistemática, e pela primeira vez em Portugal, o contrato de trabalho, adoptou-se um conceito amplo de justa causa (cf. artigos 11.° e 12.°): tanto eram justa causa de despedimento motivos subjectivos (ligados a condutas culposas do trabalhador) como motivos objectivos (radicados em circunstâncias alheias à vontade do trabalhador). Ponto era que, num caso como noutro, o facto invocado pelo empregador para a rescisão unilateral do contrato de trabalho fosse de tal modo grave que tornasse impossível a subsistência da relação laboral.
Esta noção ampla de justa causa, que conjugava um duplo critério (subjectivo e objectivo), manteve-se quer no Decreto-Lei n.° 47 032, de 27 de Março de 1966 (cf. artigos 98.° e 99.°), quer no Decreto-Lei n.° 49 408, de 21 de Novembro de 1969 (cf. artigos 101.° e 102.°), diplomas que sucessivamente implementaram novos regimes jurídicos do contrato individual de trabalho.
Note-se, de certo modo entre parêntesis, que no acórdão — e essa é apenas uma das várias incorrecções históricas de que padece — se assinala, a propósito da definição de justa causa por parte do Decreto-Lei n.° 49 408, o seguinte:
Simplesmente, e apesar de a noção de justa causa da Lei n.° 1952 haver sido mantida, o certo é que se excluíram do seu âmbito as causas objectivas, reduzindo-se assim a justa causa de despedimento a factos ou circunstâncias graves da esfera do trabalhador (cf. artigos 102.°, 111.0 e 114.°) e, de entre estas, apenas restando uma como susceptível de se considerar sem natureza disciplinar [a manifesta inaptidão do trabalhador para as funções ajustadas, referida na alínea a) do artigo 102.°].
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Ora, isto não é exacto. Por um lado, porque o artigo 101.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 49 408 dá uma definição de justa causa de tal modo lata que nela se hão-de compreender necessariamente tanto causas subjectivas como objectivas de despedimento e, por outro lado, porque o artigo 102.° do mesmo diploma legal faz uma enumeração meramente exemplificativa, como nele expressamente se refere, dos factos constitutivos de justa causa.
Fechado o parêntesis, importa prosseguir na narração histórica que nos propusemos levar a cabo.
5 — Na sequência da Revolução de Abril, foi publicado o Decreto-Lei n.° 292/75, de 16 de Junho, cujos artigos 21.° e 23.° determinaram então o seguinte:
Art. 21.° Fica suspensa, pelo prazo de 30 dias, a faculdade de fazer cessar o contrato individual de trabalho, por decisão unilateral, que o regime jurídico desse contrato reconhece às entidades patronais.
Art. 23." — 1 — O disposto no artigo 21.° não se aplica à rescisão por justa causa, desde que nela concorram as seguintes condições:
a) Ser a causa alegada uma infracção disciplinar grave;
b) Ter sido verificada a infracção através de procedimento disciplinar reduzido a escrito, de que constem, pelo menos, o envio de nota de culpa ao trabalhador arguido e a audiência deste.
2 — Não se aplica também o preceituado no artigo 21.° aos casos de caducidade do contrato de trabalho devida ao esgotamento de prazo certo ou à verificação de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, da prestação de trabalho, desde que, nesta última situação, ambos os contraentes conheçam ou devam conhecer o facto determinante da impossibilidade.
3 — São igualmente exceptuados do âmbito de aplicação deste diploma os trabalhadores eventuais e sazonais, desde que esta qualidade corresponda à natureza do seu trabalho.
Vê-se da análise destes preceitos que o regime de cessação do contrato individual do trabalho constante do Decreto-Lei n.° 49 408 não foi de modo algum revogado, mas simplesmente suspenso pelo prazo de 30 dias, período durante o qual, e segundo o artigo 22.° desse Decreto-Lei n.° 292/75, seria publicada nova legislação sobre a matéria.
Nesta perspectiva, é evidente que o conceito de justa causa expresso no Decreto-Lei n.° 49 408, ao menos em termos absolutos, não foi então posto à margem. Simplesmente, e para aquele período transitório de congelamento de despedimentos, se estabeleceu, e excepcionalmente, um regime de ínterim.
Precisamente nesse período de tempo, apresentaram O Partido Socialista (PS) e o Partido Popular Democrático (PPD) à Assembleia Constituinte os seus projectos de Constituição [cf. Diário da Assembleia Constituinte, suplemento ao n.° 13, de 7 de Julho de 1975, p. 280-(52), e suplemento ao n.° 14, de 9 de Julho de 1975, p. 296-(l)].
Nesses projectos, referem-se à matéria de segurança no emprego os seguintes dispositivos:
a) Projecto do PS Artigo 30.°
1 —.....,...............................
2 — É ainda assegurado aos trabalhadores:
d) A segurança no emprego, tendo os despedimentos de ser sancionados pelas organizações representativas dos trabalhadores e não podendo ser invocados motivos políticos ou ideológicos, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa;
£>) Projecto do PPD Artigo 53.° 1 — Constituem direitos dos trabalhadores:
g) O direito ao não despedimento sem justa causa;
Tanto num projecto como noutro — parece lícito presumi-lo — se terá adoptado o conceito amplo de justa causa de despedimento, que desde 1937, e sem interrupções, vinha vigorando na ordem jurídica portuguesa. De facto, nem num, nem noutro projecto, se estabelecem limitações a tal conceito, cuja amplitude e significação se teve naturalmente por adquirida.
6 — No decurso dos trabalhos da Assembleia Constituinte, foi publicado o Decreto-Lei n.° 372-A/75, de 16 de Julho, que entrou em vigor, por força do disposto no seu artigo 34.°, quinze dias mais tarde. Nesse diploma — que pretendia cumprir a determinação inserta no artigo 22.° do Decreto-Lei n.° 292/75 — adoptou-se, pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico laboral, um conceito restrito de justa causa. Esta, por via do disposto no artigo 10.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 372-A/75, passava a ser definida unicamente em função de um critério subjectivo, correspondendo ao «comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, constitua infracção disciplinar que não comporte a aplicação de outra sanção admitida por lei ou instrumento de regulamentação colectiva».
Por outro lado, e por força desse mesmo diploma, as causas de despedimento que até aí, e numa análise objectiva da situação contratual, faziam parte do conceito legal de justa causa passaram a ser catalogadas à parte na categoria dos motivos atendíveis, motivos com base nos quais ficou a ser consentido o despedimento com aviso prévio, e não já o despedimento imediato (cf. artigos 13.° e 14.° do Decreto-Lei n.° 372-A/75).
7 — Cerca de mês e meio depois da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 372-A/75, começou a discutir-se na Assembleia Constituinte, relativamente ao texto da 3." Comissão («Direitos e deveres fundamentais»,
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turais»), o artigo 3.°, que, na parte que ora interessa considerar — Diário da Assembleia Constituinte, n.° 47, de 17 de Setembro de 1975, p. 1359 — dispunha o seguinte:
Artigo 3.°
Garantia do direito ao trabalho
De acordo com os princípios dos artigos precedentes e através da aplicação do plano de política económica e social, compete ao Estado assegurar:
a) ....................................
b) A segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos, tendo sempre os despedimentos de ser sancionados pelas organizações representativas dos trabalhadores;
No decurso dessa discussão, em 16 de Setembro de 1975, foram apresentadas propostas do PPD, PS e UDP para a alínea b), sendo as propostas dos dois primeiros partidos do seguinte teor (citado Diário da Assembleia Constituinte, p. 1360):
a) Proposta do PPD
b) A estabilidade no emprego, com a proibição dos despedimentos sem justa causa ou sem motivo atendível, bem como dos despedimentos por motivos políticos ou ideológicos, e com o reconhecimento às organizações representativas de trabalhadores do direito de apreciação dos despedimentos, sem prejuízo do recurso aos tribunais.
o) Proposta do PS
b) A segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos, tendo sempre os despedimentos com justa causa de ser sancionados pelas organizações representativas dos trabalhadores, de cujas decisões poderá haver recurso para as instâncias jurisdicionais competentes, mantendo-se vigente o contrato de trabalho na plenitude dos seus direitos e deveres até decisão final.
No dia seguinte, 17 de Setembro de 1975, o PS — Diário da Assembleia Constituinte, n.° 48, de 18 de Setembro de 1975, pp. 1378 e 1387 — retirou a proposta relativa à alínea b) do artigo 3.° e apresentou uma outra em sua substituição:
b) A segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.
Seguidamente, o deputado Marcelo Curto, que apresentara esta proposta de substituição do PS, no uso da palavra, teceu a propósito — mesmo Diário da Assembleia Constituinte, p. 1388 — os seguintes considerandos:
Ora, proibindo os despedimentos sem justa causa ou por motivos ideológicos ficam de fora, e nisso estamos em divergência, salvo erro, com o PPD, os despedimentos com motivo ou por
motivo atendível. Nós julgamos que, efectivamente, os despedimentos por motivo atendível não devem ser permitidos.
Por um lado, porque esta terminologia é uma terminologia recente, introduzida numa lei que nós repudiamos, não concretiza suficientemente aquilo que se pode entender por motivo atendível.
Julgamos, no entanto, que, ficam de fora desta proibição os despedimentos tecnológicos ou os chamados despedimentos colectivos, porque esses despedimentos ou essa colocação no desemprego de alguns trabalhadores é uma constante da própria reorganização económica.
Na sequência desta intervenção parlamentar, tomou então a palavra, pelo PPD, o deputado Mário Pinto — referido Diário da Assembleia Constituinte, p. 1389 —, que, a tal respeito, se pronunciou nos seguintes termos:
Depois de termos ouvido a fundamentação da proposta do Partido Socialista, ficou claro, através dessa fundamentação, qual o alcance dado ao conceito «justa causa», alcance que não corresponde exactamente ao sentido, ao âmbito técnico e clássico do termo ou da expressão, mas que é um pouco mais amplo, abrangendo situações objectivas socialmente relevantes e justificadas, designadamente face aos planos sócio-económicos.
Esse entendimento corresponde à posição do Partido Popular Democrático, que, aliás, já tinha repensado a sua proposta de ontem, numa alteração a essa mesma proposta, substituindo a expressão «motivo atendível» por «motivo socialmente justificado».
Por outro lado, também nos merece aprovação a posição do Partido Socialista pelo que respeita à parte final da disposição em discussão. Sendo certo que dessa posição não pode inserir-se nenhum prejuízo para as garantias dos trabalhadores e sua participação na vida das empresas, desde logo sobre questões essenciais, como a dos despedimentos.
Por estas razões, iremos votar aprovativamente a proposta do Partido Socialista. Com isto fica prejudicada a nossa proposta.
Depois disto, mais nenhum deputado usou da palavra, seguiu-se a votação, e a proposta do PS para a alínea b) do artigo 3.° foi aprovada (mesmo Diário da Assembleia Constituinte, p. 1389).
Registe-se que no texto sistematizado da nova CRP, aprovado pela Assembleia Constituinte em 2 de Abril de 1976, veio aquela alínea b) do artigo 3.° (texto da 3.a Comissão) a corresponder à alínea b) do artigo 52.°
8 — Face a esta panorâmica histórica, era lícito concluir-se, como no acórdão, que nessa alínea b) do artigo 52." se consagrara constitucionalmente um conceito restrito de justa causa, em tudo idêntico ao adoptado no Decreto-Lei n.° 372-A/75?
A minha resposta a esta interrogação é negativa, e é negativa basicamente pelos seguintes motivos:
1) Aquando da aprovação, pela Assembleia Constituinte, da futura alínea b) do artigo 52.° da CRP, coexistiam na nossa tradição jurídica dois conceitos de justa causa: um amplo, que com-
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binava a motivação subjectiva e objectiva e estivera em vigor durante cerca de 40 anos, e outro restrito, que se limitava à motivação subjectiva e havia sido recentemente introduzido na nossa ordem jurídica;
2) Teve-se por inaceitável o entendimento, acolhido no acórdão, de que a Constituição há-de cristalizar necessariamente os conceitos legais vigentes ao tempo da sua aprovação, mesmo os mais imaturos;
3) Coexistindo na nossa tradição jurídica dois conceitos de justa causa, à partida tanto um como outro poderiam ter sido recebidos pelo poder constituinte originário;
4) As circunstâncias em que foi aprovada a proposta do PS para a alínea b) do artigo 3.° [futura alínea b) do artigo 52.°] mostram claramente que os constituintes se decidiram pelo conceito lato de justa causa:
a) O deputado Marcelo Curto, autor da proposta, dá-lhe tal sentido;
b) O deputado Mário Pinto adere a esse posicionamento e retira a proposta do PPD para tal alínea;
c) Nenhum outro deputado contesta antes da votação, que se seguiu de imediato, o sentido que os deputados Marcelo Curto e Mário Pinto haviam acabado de dar ao conceito de justa causa.
9 — Observe-se a propósito — e essa é outra das diversas incorrecções históricas de que padece — que não é exacta a descrição conclusiva que no acórdão se faz destes passos dos trabalhos da Assembleia Constituinte. Aí, na verdade, se escreveu:
A formulação proposta pelo PS veio a prevalecer, transitando integralmente para futuro artigo 52.°, alínea b), da Constituição, integrado no capítulo li («Direitos e deveres económicos») do título iii («Direitos e deveres económicos, sociais e culturais»).
Aquando da aprovação desta norma, a Assembleia Constituinte recusou expressamente que nela se fizesse menção, ao lado do conceito de justa causa, ao motivo atendível como causa justificativa do despedimento, arredando assim uma construção jurídico-constitucional erigida a partir do regime então vigente (redacção originária do Decreto-Lei n.° 372-A/75).
Ora, não é exacto dizer-se, sem mais, que a proposta do PS para a alínea*) do artigo 3.° (texto da 3." Comissão) prevaleceu. Como se viu, a proposta do PPD para a mesma alínea não foi rejeitada pela Assembleia Constituinte, mas antes retirada pelo próprio PPD. E isto sucedeu porquanto, tendo o deputado Marcelo Curto, em nome do PS, dado ao conceito de justa causa um sentido amplo, logo a ele aderiu, sem qualquer oposição ulterior, o deputado Mário Pinto, em representação do PPD, o que consequenciou que este último partido, face à convergência de posições que então se verificava com o PS, optasse por deixar cair a proposta apresentada.
Tendo as coisas acontecido desta maneira, não parece legítimo dizer-se que a proposta do PS prevaleceu. Antes ela foi secundada pelo PPD e logo votada com o sentido e alcance que, momentos antes da votação, e sem qualquer contestação, lhe havia sido dado.
E, de igual forma, é abusivo dizer-se que, aquando da aprovação desta norma, a Assembleia Constituinte recusou expressamente que nela se fizesse menção, ao lado do conceito de justa causa, ao motivo atendível como causa justificativa do despedimento. Esta afirmação, em bom rigor, só teria cabimento se a Assembleia Constituinte tivesse rejeitado a proposta do PPD para a alínea ¿») do referido artigo 3.°, o que, como já se disse e ora se repete, não aconteceu: foi o PPD que a retirou.
10 — Feita esta outra crítica à história dos antecedentes jurídicos do conceito constitucional de justa causa; tal como ela é contada no acórdão, impõe-se prosseguir e apontar o que de mais importante, e a este respeito, ocorreu no decurso da revisão constitucional de 1982.
Com esta revisão da Constituição, note-se de entrada, a segurança no emprego que, até aí, no artigo 52.°, alínea b) (texto de 1976), vinha sendo afirmada, ao menos em primeira linha, como mera incumbência do Estado, passa a ser claramente assumida como uma garantia dos trabalhadores no actual artigo 53.°, que reza assim:
É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos ideológicos.
O conceito amplo de justa causa, constante da alínea b) do artigo 52.° do primitivo texto da Constituição, foi então transposto, embora sob outra sistematização e modelação da matéria da segurança no emprego, para o actual artigo 53.° De facto, as tentativas que, no decurso dos trabalhos de revisão, se efectuaram em ordem à restrição do sentido e alcance de tal conceito fracassaram.
Assim, na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional — Diário da Assembleia da República, 2.a série, 3.° suplemento ao n.° 10, de 6 de Novembro de 1981, p. 176-(66) —, o PCP apresentou, com este objectivo, a proposta de um novo número para o artigo 52.°, e que, se tem sido aprovado, viria a ser o n.° 2 do actual artigo 53.° Era o seguinte o teor de tal proposta do PCP:
2 — O despedimento com justa causa só é permitido em casos de infracção culposa do trabalhador de tal modo grave que torne praticamente inevitável a ruptura do vínculo contratual, devendo sempre ser precedido de processo disciplinar, com garantias de defesa do arguido e audição prévia de organizações representativas de trabalhadores.
Esta proposta não foi aceite ao nível da Comissão, e, por isso, o PCP, já depois de aprovado o texto do actual artigo 53.° da Constituição, reeditou essa mesma proposta de aditamento no plenário da Assembleia da República, proposta que, no entanto, veio a ser expressamente reprovada (Diário da Assembleia da República, 1.a série, n.° 104, de 18 de Junho de 1982, pp. 4285 a 4299).
Ora, esta rejeição da proposta do PCP não pode deixar de ter uma clara significação: a de que o poder constituinte derivado recusou expressamente restringir o conceito constitucional de justa causa.
Tudo isto, a meu ver, da maior importância, é incompreensivelmente omitido no acórdão.
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11 — Também no aresto se refere que a consideração de causas objectivas como motivo de despedimento, depois de posteriormente suprimida do Decreto-Lei n.° 372-A/75, veio a ser sempre repudiada, ao nivel da legislação ordinária, quer pelo Decreto-Lei n.° 84/76, quer pelos diplomas ulteriores. Com isto se está a querer sugerir — é evidente — que o legislador comum, depois da entrada em vigor da Constituição (25 de Abril de 1976), sempre leu o conceito constitucional de justa causa em termos estritos, ou seja, como abarcando unicamente uma motivação de tipo subjectivo.
Ora isto, historicamente, não é verdadeiro, pois que o Decreto-Lei n.° 508/80, de 21 de Outubro, que regulamentou o contrato do serviço doméstico, veio dar de justa causa uma definição alargada, aliás, e na minha óptica, em perfeita consonância com a conceitualização constitucional de tal figura jurídica. De facto, aí se diz no artigo 16.°, n.° 1, que «constitui, em geral, justa causa qualquer facto ou circunstância que impossibilite a manutenção das relações que decorrem da natureza especial do contrato de serviço doméstico», especificando-se no artigo 17.°, mas a título meramente exemplificativo, uma série de comportamentos do trabalhador susceptíveis de preencher o conceito de justa causa prefixado no artigo anterior.
Mais um erro histórico — este, aliás, de somenos importância — que se aponta ao acórdão.
A concluir esta análise, há agora que fazer a síntese do que para trás se disse, há que salientar, em suma, que no acórdão o pensamento raciocinante se perdeu no labirinto da história jurídica e chegou a uma conclusão errada sobre o conceito constitucional de justa causa. Este é o elemento histórico que decisivamente o diz, é um conceito amplo e não estrito.
12 — Todavia, cabe ainda dizê-lo, não foi apenas por razões históricas que se entendeu que o artigo 53.° da Constituição consagrava um conceito amplo de justa causa.
Algo combinatoriamente com o arrazoado de ordem pregressa que se veio tecendo, surgem outras linhas de argumentação que com ele confluem.
Nesta ordem de ideias, e antes de mais, cabe lembrar, a este propósito, que o artigo 16.°, n.° 2, da Constituição determina que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem». Ora, em tal domínio, esta Declaração Universal limita-se a determinar, no artigo 23.°, n.° 1, que «toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego».
À luz deste dispositivo, poder-se-á dizer que causas objectivas que tornem impossível a manutenção da relação de trabalho não correspondem afinal a condições equitativas e satisfatórias no que se refere à cessação de tal relação por despedimento? Creio absolutamente que não.
Aliás, deste modo também o entendeu a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é hoje simples instituição especializada da Organização das Nações Unidas (ONU), a cuja Assembleia Geral se deve, como é sabido, a proclamação da referida Declaração Universal dos Direitos do Homem. E, dado o estreito relacionamento que presentemente se observa, na sequência do acordo de 1946, entre a OIT e a ONU, é de presumir que aquela, nas suas recomendações,
tenha muito particularmente em conta essa mesma afirmação de direitos constante da citada Declaração Universal. Ora, a OIT, na Recomendação n.° 119, sujeita à epígrafe «Recomendação respeitante à cessação da relação laboral por iniciativa do empregador», determina, a dado passo, o seguinte:
2. (1) Nenhum despedimento se deverá verificar sem que ocorra motivo válido de despedimento ligado à aptidão ou à conduta do trabalhador ou devido a necessidades de funcionamento da empresa, do estabelecimento ou do serviço.
Como se vê, a própria OIT, naturalmente interpretando nesse sentido a Declaração Universal dos Direitos do Homem, considerou justificável o despedimento por razões objectivas, desde que impostas por necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço. Tendo, pois, em conta o disposto no artigo 16.°, n.° 2, da Constituição, deveria ter sido interpretado nesta mesma linha o artigo 53.° da Constituição. Não foi isso, porém, o que se verificou.
13 — Por fim, não se quer deixar de referir que, segundo o n.° 3 do artigo 9.° do Código Civil, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados». Estes princípios de hermenêutica são geralmente considerados como princípios de aplicação universal na nossa ordem jurídica. E a eles se deverá recorrer na interpretação da própria Constituição, desde logo porque esta não fixa quaisquer princípios em ordem à interpretação das suas normas.
Dito isto, importa recordar aqui o que escreveu José Gil de Jesus Roque, Da Justa Causa do Despedimento face à Actual Lei Portuguesa, p. 33:
Como se sabe, o desemprego é desde há muito uma das maiores preocupações de quase todos os governantes do Mundo e das associações sindicais.
Tais situações são devidas principalmente a uma luta permanente que existe entre o binómio — estabilidade no emprego e equilíbrio económico das empresas —, o que em última análise redundará no desejo constante de desenvolvimento económico das nações e o bem-estar social dos seus povos.
São, como é bom de ver, duas constantes que se digladiam, mas que necessitam uma da outra para sobreviverem.
Sem empresa não haverá trabalho, mas sem trabalho não haverá empresa.
Traça-se aqui, e em poucas linhas, um quadro realista da situação, mostrando-se claramente como os problemas da estabilidade do emprego e do equilíbrio económico das empresas estão intimamente interligados. Tendo em conta estas duas vertentes da situação, não será naturalmente fácil, nem talvez possível, dizer--se — para efeitos de aplicação do critério hermenêutico do artigo 9.°, n.° 3, do Código Civil ao artigo 53.° da Constituição — qual deveria ser, em termos de equidade, a solução mais acertada na definição do conceito de justa causa.
Uma coisa, no entanto, tem-se por segura. Uma interpretação extremista do artigo 53.° da Constituição, como a que foi acolhida no acórdão, interpretação que protege quase absolutamente a estabilidade no emprego e prejudica quase absolutamente o equilíbrio económico
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das empresas, e que pela sua inflexibilidade virá a ter, a prazo, efeitos devastadores na economia, não pode, de modo algum, ser tida como uma solução minimamente acertada. Logo, e à face do princípio interpretativo decorrente do n.° 3 do artigo 9.° do Código Civil, tal leitura do artigo 53.° da Constituição deveria ter sido, e ab initio, repudiada.
14 — Por todas estas razões, e atento o conceito amplo de justa causa, efectivamente acolhido no artigo 53.0 da Constituição, considerei não inconstitucional a norma do artigo 2.°, alínea a), do Decreto n.° 81/V da Assembleia da República. Na verdade, e do meu ponto de vista, os casos de justa causa de despedimento referenciados nesta norma não ultrapassam os quadros da definição constitucional de justa causa constante do artigo 53.°
Assim, e não havendo qualquer restrição ilícita ao direito à segurança no emprego, não ocorreria aqui violação do mesmo artigo 53.°, nem também do artigo 59.°, n.° 1, da Constituição, que se limita a garantir o direito ao trabalho (a este último artigo, já se disse atrás, também apontado como violado pelo Presidente da República, não fez, no entanto, o acórdão, a este propósito, qualquer alusão).
Terceiro ponto
15 — Acompanhei o acórdão quanto à posição final assumida em relação à norma da alínea d) do artigo 2.° do referido Decreto n.° 83/V. Na verdade, também eu votei no sentido da sua inconstitucionalização, mas fi--lo, no entanto, por razões diversas.
A minha argumentação conclusiva a este respeito é breve e simples. No conceito de justa causa de despedimento do artigo 53.° da Constituição incluem-se, como já antes sustentei, motivos subjectivos (imputáveis ao trabalhador) e motivos objectivos (a ele não imputáveis), pressupondo-se em qualquer caso que o motivo há-de pôr imediatamente em causa, pela sua gravidade, a subsistência da relação de trabalho.
Todavia, na norma da alínea d) do artigo 2.° não se considera, como razão de despedimento do trabalhador, um qualquer motivo desta espécie. Antes, o motivo de despedimento ali contemplado radica num procedimento culposo do empregador: despediu ilicitamente o trabalhador, este foi judicialmente reintegrado e, por via de tensões decorrentes do litígio judicial, necessariamente desenvolvido contra legem, é que veio a ser criada uma situação laboral de difícil solução.
Está-se assim perante um motivo subjectivo, sim, mas de sinal contrário, isto é, imputável ao próprio empregador.
Foi, pois, por entender que este particular motivo de despedimento ultrapassava os quadros constitucionais do conceito de justa causa (que, para mim, repito-o ainda uma vez, é um conceito amplo) que votei que a norma ora em causa infringia o disposto no artigo 53.° da Constituição.
Quarto ponto
16 — Na alínea s) do artigo 2.° do Decreto n.° 81/V assinala-se como um dos princípios fundamentais sobre os quais há-de assentar o novo regime jurídico-laboral que o Governo pretende implementar através do decreto-lei autorizado a «garantia do direito de o trabalhador despedido requerer, a título cautelar, a sus-
pensão judicial do despedimento, sem prejuízo de, sendo procedente o pedido, a entidade empregadora poder suspender a sua prestação de trabalho, sem perda de retribuição ou do direito de acesso aos locais destinados ao exercício, na empresa, das suas funções de representante sindical ou membro da comissão de trabalhadores, se for o caso».
Secundei o acórdão enquanto nele se entendeu que esta norma não violava o artigo 210.°, n.° 2, da Constituição, mas já não o acompanhei enquanto nele se entendeu que tal norma infringia o artigo 59.°, n.° 1, da lei fundamental, artigo que preceitua: «Todos têm direito ao trabalho.»
Comentando este último preceito constitucional, escrevem a propósito Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2." ed., 1.° vol., p. 319:
O direito ao trabalho (n.° 1) consiste principalmente no direito de obter emprego ou de exercer uma actividade profissional. Nesta perspectiva, ele reconhece aos cidadãos sobretudo um direito a uma acção ou prestação do Estado, que constitui este numa verdadeira obrigação constitucional de actuar no sentido de que aquela pretensão obtenha satisfação efectiva. Trata-se, pois, essencialmente, de um direito positivo dos cidadãos perante o Estado.
17 — Este direito ao trabalho, direito do cidadão fundamentalmente dirigido contra o Estado, proibiria que este editasse uma norma como a da alínea s) do artigo 2.°?
Esta norma, num caso muito particular, limita o direito à ocupação efectiva do lugar por parte do trabalhador subordinado, aquele cuja situação jurídica no universo laboral resulta da prévia celebração de um contrato de trabalho com o empregador.
Nos termos do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 49 408, «o contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta».
É traço característico do contrato de trabalho o factor da subordinação jurídica. «A subordinação jurídica consiste na relação de dependência em que o trabalhador se coloca por força da celebração do contrato, ficando sujeito, na prestação da sua actividade, às ordens, direcção e fiscalização do dador de trabalho, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.» (Abílio Neto, Direito do Trabalho, suplemento ao Boletim do Ministério da Justiça, 1979, p. 170.)
É neste quadro de subordinação jurídica que o trabalhador há-de cumprir a prestação a que se obrigou através do contrato de trabalho.
«Trata-se de uma prestação de actividade, que se concretiza, pois, em fazer algo que é justamente a aplicação ou exteriorização da força de trabalho tornada disponível, para a outra parte, por este negócio. Aponta-se este traço característico, pois que ele constitui um primeiro elemento da distinção entre as relações de trabalho subordinado e as relações de trabalho autónomo: nestas, precisamente porque o fornecedor de força de trabalho mantém o controle da aplicação dela, isto é, da actividade correspondente, o objecto do seu compromisso é apenas o resultado da mesma actividade — só este é devido nos termos predeterminados no contrato; os meios necessários para o tornar efectivo em tempo útil estão, em regra, fora
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do contrato, são de livre escolha e organização por parte do trabalhador. No contrato de trabalho, pelo contrário, o que está em causa é a própria actividade do trabalhador, que a outra parte organiza e dirige no sentido de um resultado que (aí) está por seu turno fora do contrato; assim, nomeadamente, e por princípio (sujeito, no entanto, a restrições que serão oportunamente indicadas), o trabalhador que tenha cumprido diligentemente a sua prestação não pode ser responsabilizado pela frustração do resultado pretendido.
Cabe, no entanto, sublinhar que o dizer-se que é a actividade do trabalhador que preenche, do seu lado, o objecto do contrato não esgota a realidade. Pode entender-se, à luz de indicações legais precisas, que o trabalhador cumpre a sua obrigação contratual embora esteja inactivo; na prática das relações laborais, é frequente tal situação de temporária inactividade, sem que por via dela haja que pôr-se em causa a existência do comportamento devido pelo trabalhador. Num estaleiro de construção naval, as obras a realizar em certo dia apenas requerem vinte soldadores; os restantes poderão, embora presentes no estaleiro, ficar parados nesse dia ou em parte dele, a não ser que a entidade patronal encontre tarefas compatíveis para lhes atribuir. Um estabelecimento comercial encerra por dois dias para limpeza e arranjo das montras, trabalhos que ocuparão apenas alguns dos seus empregados; os outros ficarão sem prestar serviço efectivo durante aquele período. Outros exemplos se poderiam apresentar, aliás na linha do que inicialmente se afirmou como sendo o fenómeno formalizado pelo contrato de trabalho: a alienação ou transferência da disponibilidade da força de trabalho. Aqueles trabalhadores inactivos permanecem, com efeito, à disposição do empregador e aí reside o essencial da chamada obrigação de trabalho. Assim, quando se aponta a actividade do trabalhador como objecto do contrato quer-se meramente significar que é esse —a actividade, não o resultado— o especial modo de concretização da força laboral que interessa directamente ao contrato de trabalho; isto sem prejuízo de se entender que o trabalhador se obriga, fundamentalmente, a colocar e manter aquela força de trabalho disponível pela entidade patronal enquanto o contrato vigorar. É óbvio que tal disponibilidade contém a necessitas do serviço efectivo (se, quando, onde e como o empregador determinar), mas o serviço efectivo não esgota o comportamento devido pelo trabalhador com base no mesmo contrato.» (Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, 5.a ed., vol. 1, pp. 38, 39 e 40.)
Como daqui se vê, em função do contrato de trabalho, o trabalhador fica à disposição do empregador, que pode utilizar ou não, segundo melhor achar, o serviço efectivo do trabalhador. Não tem o empregador, em principio ao menos, de assegurar sempre tal exercício efectivo.
Esta dimensão do contrato de trabalho, tradicional na nossa ordem jurídica, se a Constituição a tivesse querido recusar, por certo teria sido cristalinamente explícita nesse sentido. Ora, tal não sucedeu. Ao contrário, no artigo 59.°, n.° 1, da lei fundamental o que se quis afirmar foi pura e simplesmente que o Estado haveria de garantir emprego, independente ou subordinado, a todos os cidadãos. Mas não houve a preocupação, nesse mesmo preceito, de garantir os exactos termos em que o trabalhador, em caso de emprego subordinado, haveria de prestar a sua actividade ao empregador. Essa questão deixou-a em aberto a Constituição.
Assim sendo, e sem prejuízo do programa que lhe é assinalado por aquele artigo 59.°, não estava o Estado impedido, nessa norma do artigo 2.°, alínea s), do Decreto n.° 81/V, de permitir, em circunstâncias excepcionais, ou seja, até ser em definitivo decidido o litígio acerca da licitude de um qualquer despedimento, que o empregador recusasse ao trabalhador a ocupação efectiva do lugar.
Neste termos, e em última análise, entendi ainda que não se registava violação do artigo 59.°, n.° 1, da Constituição por banda da norma em exame.
Raul Mateus.
Declaração de voto
Não acompanhámos o precedente acórdão em vários e decisivos pontos, e antes entendemos que o Tribunal não deveria ter-se pronunciado pela inconstitucionalidade de qualquer das normas do Decreto da Assembleia da República n.° 81/V submetidas à sua apreciação.
1 — Quanto à «questão prévia» da admissibilidade do pedido. — Também entendemos que uma lei de autorização legislativa ou o correspondente decreto parlamentar são certamente susceptíveis de controle da constitucionalidade — inclusive, preventivo —, porquanto os respectivos preceitos incorporam verdadeiras e próprias «normas» jurídicas e, mais precisamente, normas «legais». Ou seja: porquanto tais diplomas são (ou virão a ser) verdadeiras e próprias «leis».
Para concluir assim basta, porém, considerar, em nosso modo de ver, o específico «efeito normativo» que os correspondentes preceitos de tais leis produzem (ou virão a produzir) no domínio da distribuição da competência legislativa entre a Assembleia da República e o Governo — não sendo necessário, para tanto, perscrutar neles um qualquer outro efeito (externo ou material), que efectivamente não desencadeiam (como a seguir se verá). Assim sendo, desde logo não podemos subscrever integralmente a fundamentação do acórdão quanto à questão prévia em epígrafe.
2 — Quanto ao procedimento da elaboração do Decreto n. ° 81/V. — Contrariamente ao decidido, entendemos que no procedimento da elaboração do diploma em apreço não houve violação do disposto nos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 1, alínea o), da Constituição (direito de participação na elaboração da legislação do trabalho, reconhecido às comissões de trabalhadores e às associações sindicais).
a) Determinante, só por si, desta conclusão é a circunstância de uma lei de autorização legislativa, através da qual a Assembleia da República confere ao Governo competência para modificar a legislação laboral (no caso, a legislação sobre contrato do trabalho) em aspectos compreendidos na «reserva» relativa da primeira, ainda não ser legislação do trabalho. Relativamente às normas de tal lei de autorização — e apesar de nelas dever definir-se não apenas «o objecto e a extensão» daquela, mas igualmente o seu «sentido» —, não vale, pois, a «garantia» consignada nos preceitos constitucionais em causa (e que significativa doutrina configura, não propriamente como um «direito fundamental», stricto sensu, mas antes, quando muito, como «garantia institucional»).
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Que é assim resulta de que as normas da lei de autorização em causa — como, de resto, de qualquer lei semelhante, seja qual for a matéria sobre que verse — não irão produzir nenhum efeito ao nível do ordenamento juslaboral, isto é, da disciplina jurídica (material e processual) do trabalho e das respectivas relações: de facto, publicada a lei de autorização, tal ordenamento e tal disciplina manter-se-ão (ou manter-se-iam) inalterados até à emissão do decreto-lei autorizado. Só este último, pois, virá (ou viria) a constituir, em direitas e rigorosas contas, «legislação do trabalho».
Quanto propriamente à «lei de autorização», os respectivos efeitos esgotam-se no plano da ordenação e organização do exercício da «função legislativa» — que, por via dela, e quanto à matéria em causa, é como que «transferida» da Assembleia da República para o Governo. O que significa que as correspondentes normas mais não são do que «normas organizatórias» e, concretamente, normas de competência: normas que definem e delimitam, material e temporalmente, uma certa competência legislativa do Governo. Delas se poderá dizer, por conseguinte, que, em razão do objecto, se situam, não já no domínio do «direito do trabalho», mas ainda, e só, no domínio (ou no nível) do «direito constitucional».
O que vem de afirmar-se exprime uma realidade jurídico-estrutural inequívoca e irrefragável — e que não pode, por isso, deixar de determinar, directa e decisivamente, a resposta (negativa) à questão da aplicabilidade, à lei de autorização em causa, do disposto nos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 2, alínea a), da Constituição.
Só não seria assim, porventura, se se demonstrasse que a não audição das associações sindicais e das comissões de trabalhadores na fase de elaboração da própria lei de autorização legislativa, e relativamente a esta, precludiria a possibilidade de exercício útil do direito reconhecido nesses preceitos constitucionais àquelas associações e comissões. Então, ainda se poderia invocar uma razão substantiva ou prático-material para, «contornando» embora o resultado decorrente da simples (mas necessariamente primária e fundamental) consideração dos dados jurídico-estruturais em presença, dever «estender-se» a qualificação «legislação do trabalho» inclusivamente à «lei de autorização». Mas não só não é esse o caso, como semelhante «extensão» conduziria mesmo a consequências incongruentes.
Não é esse o caso, porque a audição das associações sindicais e das comissões de trabalhadores com referência apenas ao decreto-lei autorizado conserva no essencial as suas virtualidades e potencialidades, como modo adequado de «participação» dessas organizações na elaboração da legislação laboral.
De facto, tal «direito de participação» traduz-se fundamentalmente num «direito de audição» (e no correspondente «dever de consulta») das organizações representativas dos trabalhadores, em tais termos que a estas seja dado conhecimento dos projectos de diplomas laborais antes de os mesmos serem definitivamente aprovados e a possibilidade de sobre eles se pronunciarem junto das instâncias legislativas, em ordem a poderem «influenciar» as decisões destas (neste sentido, cf. Acórdão n.° 22/86, Diário da República, 1.» série, de 29 de Abril de 1986, e também Acórdãos n.°5 31/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.° vol., p. 495, e 15/88, Diário da República, 1.* série, de 3 de Fevereiro de 1988).
Ora a verdade é que a audição dos representantes dos trabalhadores simplesmente na fase da elaboração do decreto-lei autorizado preenche plenamente os requisitos ou exigências apontadas: por um lado, e em primeiro lugar, porque vai ainda a tempo de influenciar as decisões da instância legislativa (no caso, o Governo), podendo perfeitamente levá-la a inflectir a seu propósito e orientação inicial e, no limite, inclusivamente a não fazer uso da autorização parlamentar obtida; por outro lado, e depois, porque se trata mesmo de uma audição mais alargada e completa, porquanto é feita já à vista das normas «acabadas» que se pretende fazer inserir no corpus júris laboral (como, de resto, é exigível).
Mas ao facto de se não mostrar «necessária», e muito menos «imprescindível», a audição das organizações representantivas dos trabalhadores relativamente à lei de autorização (recte, à correspondente «proposta»), acresce que semelhante audição levaria inclusivamente, como se disse, a consequências incongruentes, ou, no mínimo, excessivas. É que, então, e publicada a lei de autorização, uma de duas: ou se voltaria a promover uma nova «audição» de tais organizações, agora com referência ao projecto de decreto--lei, e teríamos uma «dupla audição», cuja «obrigatoriedade» não é uma exigência constitucional, e antes se afigura excessiva; ou, em alternativa, não se iria proceder a essa nova audição, e teríamos um resultado claramente contrário à Constituição (pois que o direito de as associações sindicais e comissões de trabalhadores se pronunciarem sobre a «legislação do trabalho» não pode reportar-se simplesmente aos «princípios», «directrizes» e «orientações» gerais informadoras da mesma legislação, mas há-de obviamente abranger, em toda a extensão, o conteúdo concretizado e preciso das respectivas «normas»).
Eis quanto, do nosso ponto de vista, é por si decisivo para concluir que não foi infringido, na hipótese, «o direito de participação» consagrado nos preceitos constitucionais atrás citados.
b) A isto, porém, cumpre acrescentar que nem sequer pode dizer-se que não tenha havido lugar, no processo legislativo em causa, à «participação» — e, consequentemente, à «audição» — das organizações representativas de trabalhadores.
Desta dá conta, nomeadamente, o relatório da proposta de lei n.° 35/V, que esteve justamente na base do Decreto n.° 81/V, da Assembleia da República, em apreciação (v. Diário da Assembleia da República, 2." série, n.° 54, de 9 de Março de 1983). Assim — como aí se refere —, o Governo fez publicar no Boletim do Trabalho e Emprego, de 17 de Dezembro de 1987, o primeiro projecto (anteprojecto) de diploma, sobre a matéria em questão, que se propunha emitir, depois de obtida a necessária autorização legislativa; e, no seguimento de tal publicação, e em consequência da apreciação do diploma que a mesma se destinou a assegurar, foram-lhe enviados (ao Governo) nada menos de 346 contributos críticos por parte de 194 associações sindicais e de 152 comissões de trabalhadores e respectivas comissões coordenadoras. Mas além do que vem de referir-se — e é o essencial em matéria de obrigação constitucional de audição —, sucede que, antes e depois desse período de apreciação pública, «se desenvolveu uma fase de intensas consultas entre o Governo e os parceiros sociais», quer em reuniões isoladas quer em reuniões em sede do Conselho Permanente de
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Comunicação Social, nas quais, obviamente, as organizações sindicais, representadas pelas respectivas confederações, tiveram uma privilegiada ocasião de emitir os seus pontos de vista acerca da legislação a publicar. Com tudo isto — e com a ampla difusão e cobertura que lhe foi dada por todos os meios de comunicação social — poderá inclusivamente dizer-se que dificilmente algum outro processo legislativo terá tido entre nós mais alargada e aprofundada «participação» dos respectivos interessados directos e, entre eles, primacialmente, dos «trabalhadores», representados pelas correspondentes organizações, do que aquele a que respeita o diploma parlamentar sub judicio.
Ora, à audição e consulta assim feita das organizações representantivas dos trabalhadores há-de reconhecer-se não apenas puro relevo factual, mas relevo jurídico — e o relevo jurídico suficiente para se dever julgar cumprida, quanto à própria «lei de autorização», a exigência dos artigos 55.°, alínea d), e 57.°, n.° 1, alínea a), da Constituição (se fosse o caso de, ao contrário do que antes se sustentou, ela também ai dever ter lugar).
É que, estando-se perante um procedimento legislativo complexo, que se iniciou com a preparação pelo Governo de um projecto de decreto-lei a emitir no uso de uma autorização legislativa, e que só justamente culminará e se encerrará com a publicação desse diploma governamental, não só cumpria indiscutivelmente ao Governo o dever de promover e conduzir a audição dos representantes dos trabalhadores (consoante decorre da conjugação do disposto nos próprios artigos 3.° e 4.° da Lei n.° 16/79, quando no primeiro desses preceitos se faz referência aos projectos de decreto-lei), como estava ele certamente autorizado a fazê-lo antes mesmo de obtida ou sequer solicitada a necessária autorização parlamentar. E tendo o Governo enveredado, no caso, por esta última metodologia, a verdade é que, desse modo, a própria Assembleia da República e os respectivos membros e grupos parlamentares não só ficaram em condições de conhecer, como ficaram a conhecer as posições assumidas pelas organizações representativas de trabalhadores a respeito da legislação a emitir: é isto' coisa que ninguém seguramente negará, em vista da larga publicidade de que se revestiu o processo da audição e consulta daquelas organizações, já antes salientada.
De resto, o próprio Governo tomou a iniciativa de, no relatório preambular da proposta de lei n.° 35/V, dar conta à Assembleia da República, com suficiente concretização, do essencial de tais posições (v. Diário da Assembleia da República, cit.); e na própria discussão parlamentar não se deixou de fazer-lhes abundante referência (cf., por todas, a intervenção do deputado Torres Couto, no mesmo Diário, 1." série, n.° 73, de 15 de Março de 1988, p. 2843).
Nestas condições, entendemos que, mesmo quanto à lei de autorização legislativa, estaria preenchido o fundamental da exigência da «participação» das organizações representativas de trabalhadores na elaboração da legislação de trabalho, pois que tal exigência visa basicamente — como na jurisprudência deste Tribunal se tem salientado e atrás já se deixou referido — facultar àquelas organizações a possibilidade de exporem o seu posicionamento a respeito de tal legislação (seja quanto à oportunidade dela, seja quanto ao seu conteúdo), e influenciarem desse modo o an, o guando e o quomodo
da decisão legislativa. Ora, visto o anteriormente referido, essa «influência» puderam-na elas efectivamente exercer também sobre a Assembleia da República, no tocante ao diploma aqui em apreço.
3 — Quanto ao artigo 2.°, alínea a). — Esta norma permite o «alargamento do conceito de justa causa para despedimento individual a factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho e estejam ligados à aptidão do trabalhador ou sejam fundados em motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado relativos à empresa, estabelecimento ou serviço».
O Tribunal decidiu que o alargamento do conceito de justa causa de despedimento nos termos que esta norma o autoriza não é constitucionalmente admissível.
O Tribunal não decidiu, porém, que não sejam constitucionalmente admissíveis despedimentos individuais com fundamento em «factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho». Essa questão — melhor dizendo: a questão da admissibilidade de despedimentos individuais fundados em «causas objectivas não imputáveis a culpa do empregador que, em cada caso concreto, tornem praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho» — deixou-a o Tribunal em aberto.
Por nossa parte, entendemos que os despedimentos individuais podem fundar-se em «factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho», liguem-se eles à aptidão do trabalhador ou fundem-se, antes, em motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado relativos à empresa. E podem, porque, em nossa opinião, o conceito constitucional de justa causa de despedimento é susceptível de cobrir esses «factos, situações ou circunstâncias objectivas».
Vejamos as razões do nosso entendimento.
O artigo 53.° da Constituição proíbe os despedimentos sem justa causa (cf. também o artigo 9.° do Decreto-Lei n.° 372-A/75, de 16 de Julho, na redacção introduzida pelo artigo 1." do Decreto-Lei n.° 841 -C/76, de 7 de Dezembro).
Justa causa — diz o artigo 10.° do mesmo Decreto--Lei n.° 372-A/75, na redacção do Decreto-Lei n.° 841 -C/76 — é «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».
A justa causa, que é condição de validade do despedimento individual, tem, assim, no Decreto-Lei n.° 841-C/76, carácter disciplinar: identifica-se com comportamentos culposos do trabalhador que, tornando impossível a manutenção da relação de trabalho, exigem a aplicação da sanção disciplinar mais grave: o despedimento.
O conceito constitucional de justa causa não coincide, porém, com esta noção restritiva, como vai ver-se.
A justa causa era, no nosso direito laboral, meio de legitimar o despedimento imediato da entidade patronal e um meio, bem assim, de a exonerar da obrigação de aviso prévio e do correlativo dever de indemnizar pelo despedimento. É que o sistema jurídico consentia o despedimento ad nutum: as motivações da denúncia eram irrelevantes.
Em regra, a entidade patronal podia, pois, exercer livremente o seu direito de denúncia do contrato. O despedimento consumava-se sempre, fazendo cessar a relação de trabalho, tanto no caso em que fosse ditado por justa causa como naqueles em que, não existindo
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esta, fosse feito com ou sem aviso prévio e antes (ou não) do termo do prazo do contrato. A denúncia ilícita, ou seja, a denúncia feita sem observância da obrigação de aviso prévio ou com desrespeito pelo prazo convencionado — salvo havendo justa causa —, o que importava era o dever de indemnizar [cf. Lei n.° 1952, de 10 de Maio de 1937, artigo 10.°, §§ 2.° e 3.°, e artigos 11.° e 130.°; e Decreto-Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969 (Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho), artigo 98.°, n.° 1, alíneas c) e d), e n.° 2, e artigos 107.°, 109.° e 110.°].
O Decreto-Lei n.° 372-A/75, de 16 de Julho, pôs termo ao sistema dos despedimentos ad nutum e impôs a obrigação de todos os despedimentos serem motivados, seja com fundamento em justa causa — caso em que o despedimento era imediato e sem indemnização —, seja em motivo atendível — caso em que o despedimento devia ser precedido de aviso prévio e dava lugar ao pagamento de indemnizações [cf. artigo 4.°, n.° 1, alíneas c) e d), e n.° 2, e artigos 13.°, 14.°, 15.°, 20.° e 21.°].
No sistema do Decreto-Lei n.° 372-A/75, a justa causa traduzia-se num facto culposo grave de índole disciplinar (cf. artigos 10.° e 11.°). O motivo atendível consistia no «facto, situação ou circunstância objectiva, ligado à pessoa do trabalhador ou à empresa, que, dentro dos condicionalismos da economia da empresa, tornasse contrária aos interesses desta e aos interesses globais da economia a manutenção da relação de trabalho» (cf. artigo 14.°, n.° 1), podendo constituí-lo «a necessidade de extinção do posto de trabalho», e bem assim «a manifesta inaptidão e impossibilidade de preparação do trabalhador para as modificações tecnológicas que afectem o posto de trabalho» [cf. artigo 14.°, n.° 3, alíneas a) e b)].
Posteriormente, o Decreto-Lei n.° 84/76, de 28 de Janeiro, dando nova redacção a várias disposições do Decreto-Lei n.° 372-A/75, de 16 de Julho, deixou de considerar o motivo atendível como fundamento possível de despedimento. E, assim, este deixou de poder fundar-se na inaptidão ou na incompetência do trabalhador, e bem assim em necessidades de conservação empresarial, por mais imperiosas que elas fossem (cf. artigos 4.°, 10.° e 11.°).
No momento em que foi aprovado o preceito constitucional a proibir os despedimentos sem justa causa [ou seja, o artigo 52.°, alínea b), da versão originária da Constituição] — coisa que sucedeu em 18 de Setembro de 1975 — vigorava o Decreto-Lei n.° 372-A/75, de 16 de Julho. No sistema instituído por este diploma legal, como se viu já, ajusta causa não funcionava propriamente para legitimar o despedimento, pois que este era possível também com fundamento em motivos atendíveis. A justa causa funcionava para permitir que o despedimento fosse imediato (isto é, sem aviso prévio) e sem indemnizações. A gravidade de certas condutas do trabalhador, que se traduziam em importantes violações contratuais ou disciplinares, criava um estado de premência no despedimento, o que explicava que este se fizesse de imediato e sem pagamento de quaisquer indemnizações.
Assim sendo — como faz notar Bernardo da Gama Lobo Xavier («A recente legislação dos despedimentos», Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano xxih, 1976, p. 161) —, é evidente que «não faz sentido que a Constituição recebesse um conceito tão res-
trito, apenas apto para uma diversa consequência jurídica. A Constituição, quando proíbe os despedimentos sem justa causa, coloca-se noutra perspectiva: a da defesa do emprego e a necessidade de não consentir denúncias imotivadas. Não fez apelo aos casos excepcionais da antiga 'justa causa' que legitimava uma rescisão imediata sem indemnizações; a proibição constitucional tem uma explicação diversa, pois pretende atingir os despedimentos arbitrários, isto é, sem motivo justificado.
Portanto, quando o legislador proíbe os despedimentos 'sem justa causa', não está a vedar formas de despedimento tais como o despedimento tecnológico ou por absolutas necessidades da empresa. Está a estabelecer a proibição do antigo regime de denúncias discricionárias sem motivo justificativo, em que era possível a perda arbitrária do lugar.
Supomos, pois, que o conceito de justa causa da Constituição não coincide com a noção restritiva dada pela vigente lei e apenas se destina a vedar a arbitrariedade nos despedimentos.»
A redução do conceito constitucional de justa causa à noção de justa causa de base disciplinar não a impõem, sequer, os trabalhos preparatórios.
Na verdade, ao justificar a alínea b) do artigo 52.° da Constituição, na sua versão originária — «a segurança do emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa [...]»—, o deputado Marcelo Curto (PS) disse, entre o mais, o seguinte:
A proibição dos despedimentos sem justa causa é, quanto a nós, e julgo que nisto somos todos unânimes, uma conquista dos trabalhadores [...].
Ora, proibindo os despedimentos sem justa causa ou por motivos ideológicos ficam de fora, e nisso estamos em divergência, salvo erro, com o PPD, os despedimentos com motivo ou por motivo atendível. Nós julgamos que, efectivamente, os despedimentos por motivo atendível não devem ser permitidos.
Julgamos, no entanto, que ficam de fora desta proibição os despedimentos tecnológicos ou os chamados despedimentos colectivos, porque esses despedimentos ou essa colocação no desemprego de alguns trabalhadores é uma constante da própria reorganização económica. [Cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.° 48, de 18 de Setembro de 1975, pp. 1387-1388 (sublinhou-se).]
Em face desta justificação, disse o deputado Mário Pinto (PPD):
Depois de termos ouvido a fundamentação da proposta do Partido Socialista, ficou claro, através dessa fundamentação, qual o alcance dado ao conceito de «justa causa», alcance que não corresponde exactamente ao sentido, ao âmbito técnico e clássico do termo ou da expressão, mas que é um pouco mais amplo abrangendo situações objectivas socialmente relevantes e justificadas, designadamente face aos planos sócio-económicos.
Esse entendimento corresponde à posição do Partido Popular Democrático, que, aliás, já tinha repensado a sua proposta, substituindo a expressão «motivo atendível» por «motivo socialmente justificado» (sublinhou-se). (Cf. Diário da Assembleia Constituinte, cit., p. 1389.)
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Depois desta intervenção do deputado Mário Pinto, foi aprovada a mencionada alínea b) do artigo 52.° da Constituição, na versão originária desta.
Na revisão constitucional de 1982, esta alínea b) foi destacada do artigo 52.° e passou a constituir o actual artigo 53.°
Na revisão constitucional de 1982, o Partido Comunista Português chegou a propor que se aditasse um n.° 2 ao actual artigo 53.°, que teria a seguinte redacção:
O despedimento com justa causa só é permitido em casos de infracção culposa do trabalhador de tal modo grave que torne praticamente inevitável a ruptura do vínculo contratual, devendo sempre ser precedido de processo disciplinar, com garantias de defesa do arguido e audição prévia das organizações representativas dos trabalhadores.
Esta proposta, apresentada, primeiro, na Comissão Eventual da Revisão Constitucional, deparou com a oposição da Aliança Democrática [cf. Diário da Assembleia da República, 2.* série, 3.° suplemento ao n.° 10, de 6 de Novembro de 1981, p. 176-(66)]; repetida, depois, aquando da votação em plenário do texto actual do artigo 53.°, foi rejeitada pela maioria (cf. Diário da Assembleia da República, 1." série, n.° 104, de 18 de Julho de 1982, pp. 4287 e segs.).
O conceito constitucional de justa causa — como, de resto, muitos outros conceitos utilizados pela Constituição (v.g., justa indemnização) — é um conceito indeterminado, cujo conteúdo normativo o legislador há--de especificar, com respeito, naturalmente, pelas exigências feitas pela própria ideia de justiça na sua particular aplicação à relação de emprego.
Tratando-se, como se trata, de defender o emprego, o que a Constituição proíbe são os despedimentos sem qualquer motivo (qd nutum) ou sem motivo justo (razoável), ou seja, os despedimentos arbitrários.
A manutenção da relação de trabalho é, seguramente, inexigível quando o trabalhador, violando gravemente e de forma culposa as suas obrigações contratuais e a disciplina da empresa, provoca uma situação de mal-estar contratual que torna impossível a subsistência do vinculo contratual. Mas é igualmente inexigível que se mantenha o contrato, quando se verificam «factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho», quer elas «estejam ligadas à aptidão do trabalhador» (casos de manifesta inaptidão do trabalhador ou de impossibilidade de se preparar para as modificações tecnológicas que afectem o posto de trabalho), quer se fundem «em motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado, relativos à empresa, estabelecimento de serviço» — caso em que pode ser imperioso proceder à extinção de postos de trabalho.
O que a justiça exige é que, quando o despedimento individual se fundar numa justa causa objectiva — ou seja, em «factos, situações ou circunstâncias objectivas que inviabilizam a relação de trabalho» —, ele se não faça senão mediante o pagamento de uma indemnização ao trabalhador e precedendo aviso. Esse é, aíiás, o regime consagrado no projecto de diploma legal que o Governo juntou ao pedido de autorização legislativa [cf. artigos 18." a 21.° {Diário da Assembleia da República, 2." série, n.° 54, de 9 de Março de 1988, pp. 1071 e segs.)].
Um despedimento individual sujeito a um regime desta natureza — cuja admissibilidade, ao menos em certos termos, é questão que o acórdão deixa em aberto, embora não aceitando que, em tais casos, se possa falar em justa causa — é algo que a própria dinâmica da economia inelutavelmente acaba por impor.
Seria, aliás, deveras incompreensível que razões do tipo apontado pudessem legitimar (do ponto de vista constitucional) despedimentos colectivos (por exemplo, o despedimento, no mínimo, de dois ou cinco trabalhadores conforme a dimensão da empresa), como sucede presentemente (cf. artigo 13.°, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.° 372-A/75, na redacção do Decreto-Lei n.° 841-C/76), e já não tivessem apoio na lei fundamental em termos de permitir o despedimento de um só trabalhador. Seria essa uma «lógica constitucional» absurda.
O direito à segurança no emprego compreende certamente o direito à manutenção do posto de trabalho que se conquistou (direito à estabilidade no emprego).
Tal direito não é, porém, um direito absoluto e incondicionado que haja de valer em quaisquer circunstâncias. Ele tem, desde logo, que conviver com o direito à obtenção de um «banco de trabalho» por parte daqueles que procuram emprego a fim de poderem dar expressão a essa necessidade do homem que é ter uma ocupação onde possa realizar-se como pessoa e ganhar a vida. E tem que conviver também com as exigências que uma economia de mercado faz ao empresário, que, nesta época de revolução tecnológica e em que «as fontes de trabalho se contraem» (a expressão é da carta encíclica Sollicitudo Rei Socialis), se vê constantemente obrigado a «repensar» a empresa, introduzindo novas tecnologias, revendo processos de trabalho — modernizando, em suma — para se poder manter competitivo e, assim, poder continuar a dar trabalho.
O direito à segurança no emprego não pode, assim, ser hoje pensado como uma espécie de direito de propriedade (qual ius in rem) sobre o posto de trabalho que cada um tem.
Concluindo, pois: não se mostrando arbitrárias as situações ou factos que o legislador pretende erigir em justa causa de despedimento individual, a alínea b) do artigo 2.° não é inconstitucional. Designadamente, não viola ela o artigo 53.° da Constituição.
4 — Quanto ao artigo 2. °, alínea d). — O juiz, embora julgando ilícito o despedimento, se criar a convicção da impossibilidade do reatamento de relações normais de trabalho, em vez de ordenar a reintegração do trabalhador despedido na empresa, pode, a requerimento da entidade patronal, fixar uma indemnização a seu favor, a pagar por esta. É isto o que a norma consente.
Sendo constitucionalmente admissíveis, em nosso modo de ver, justas causas objectivas de despedimento, a constitucionalidade desta norma está assegurada.
Na verdade, tornando-se impossível o reatamento da relação de trabalho — coisa que, em regra, só sucederá nas pequenas empresas (nas empresas de grandes dimensões as relações são, em geral, muito pouco pes-soalizadas) —, é inexigível a subsistência do vínculo contratual e, assim, a reintegração do trabalhador. Para se ver que assim é bastará pensar no caso do despedimento do único trabalhador de uma empresa — despedimento que o juiz, por o patrão não ter conseguido
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fazer a prova da justa causa, acabou por julgar ilícito ao cabo de um processo em que o patrão e empregado tiveram de enfrentar-se numa situação de conflito aberto e de choque pessoal.
Está-se perante uma justa causa superveniente que não ameaça de forma desproporcionada a estabilidade do emprego, até porque ela só pode funcionar precedendo uma decisão judicial, ou seja, rodeada da garantia do juiz.
5 — Quanto ao artigo 2. °, alínea s). — Esta norma permite que, não obstante ter sido decretada judicialmente a suspensão do despedimento, a entidade patronal suspenda a prestação de trabalho do trabalhador que antes despedira, embora pagando-lhe a respectiva retribuição e, se for representante sindical ou membro da comissão de trabalhadores, consentindo que ele continue a utilizar as instalações da empresa para o desempenho das respectivas funções.
Esta norma — como, de resto, o Tribunal decidiu — não viola o artigo 210.°, n.° 2, da Constituição, na parte em que aqui se dispõe que «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas [...]».
É que esta obrigatoriedade há-de ser entendida nos exactos limites que lhe marcar a ordem jurídica: a decisão judicial obriga nos termos do seu próprio conteúdo (do seu sentido), tal como este é modelado pela lei.
Ora, a norma em apreço apenas significa que o sentido da decisão judicial que decrete a suspensão do despedimento é, nalguns casos, o de impor a reintegração do trabalhador despedido com todas as consequências daí decorrentes; mas, noutros casos, o seu sentido é unicamente o de obrigar a entidade patronal a pagar os salários ao trabalhador que despedira, e bem assim, se for o caso, o de consentir que ele utilize as instalações da empresa para o desempenho das funções de eleito dos trabalhadores.
Para além disso, e agora contrariamente à tese que fez vencimento, entendemos ainda que ele tão-pouco viola o direito fundamental ao trabalho, reconhecido no artigo 59.° da lei fundamental.
Decerto que entre as dimensões deste direito vai incluída a que respeita ao próprio «exercício» de uma actividade laboral — ao exercício efectivo do trabalho — enquanto uma das expressões essenciais da realização de cada homem como pessoa. Seria essa dimensão do direito ao trabalho — e só ela — a que poderia estar aqui em causa.
Simplesmente, ainda aceitando que, nessa sua específica dimensão, um tal direito assume não apenas a natureza de um «direito social» (cujo conteúdo «positivo» corresponderá, em via de máxima, à «incumbência» que é cometida ao Estado pelo n.° 3 do artigo 59.°), mas também a natureza de uma «liberdade» (a que corresponderá o dever «negativo», quer do Estado, quer das entidades privadas, de se absterem de condutas que obstem ao exercício do trabalho), certo é também que não poderão deixar de reconhecer--se «limites» a essa mesma dimensão do direito em causa. E tanto mais quanto do artigo 59.° se não retira o «direito subjectivo a um concreto posto de trabalho» (neste sentido, por todos, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.a ed., vol. i, p. 319, nota ni).
Ora, entre tais limites não pode deixar de contar-se, obviamente, aquele que decorrerá da possibilidade de
o empregador fazer cessar unilateralmente a relação de trabalho, quando se verifique um fundamento legal para tanto, e designadamente um fundamento «disciplinar». De tal modo que não poderá já considerar-se como uma manifestação do direito ao trabalho, constitucionalmente protegida, a pretensão de o trabalhador continuar no exercício da sua actividade, apesar de ocorrer um motivo que legalmente legitima a cessação do vínculo laboral.
É claro, porém, que podem a entidade patronal, por um lado, e o trabalhador, por outro, divergir, quanto à verificação do fundamento para a cessação do contrato — o que conduzirá a que se abra um contencioso entre ambos, que cabe ao tribunal competente dirimir. E, então, dir-se-á — e é exacto — que até à decisão final da correspondente acção não é ainda certo, nem que aquela entidade esteja «legitimada» para impor a cessação unilateral do vínculo laboral, nem que, por isso, seja «ilegítima» a pretensão do trabalhador a continuar no exercício da sua actividade. Mas, de qualquer modo, cria-se, a esse respeito, uma situação provisória, ou de Ínterim — na qual há-de considerar-se igualmente lícito e legítimo que o trabalhador alegue a «improcedência» da causa de despedimento (e a consequente invalidade deste), e que a entidade patronal sustente posição contrária. Está-se, por conseguinte, perante uma situação de nítido conflito entre dois direitos, que contrastam irremediavelmente na sua pretensão a efectivar-se. Ora — e é essa a questão — imporá a Constituição que, em nome do direito ao trabalho, tal conflito haja de resolver-se pela «anulação» completa (ainda que provisória) do direito da entidade patronal, e pela prevalência absoluta (ainda que também provisória) do direito do trabalhador, embora condicionada a uma decisão judicial nesse sentido?
Eis o que não entendemos. E isso, por se nos afigurar que conferir um tal alcance ao direito do trabalho (na sua específica dimensão aqui em causa, como direito ao exercício efectivo da actividade laboral) é atribuir-lhe uma extensão «excessiva», uma extensão que, constitucionalmente, ele (nessa sua mesma dimensão) já não comporta.
O que em semelhante situação de conflito a Constituição exige é uma solução «equilibrada» (dir-se-á: segundo o critério da «concordância prática») entre os dois interesses ou direitos contrapostos; e o que o direito ao trabalho, em particular, postula é que o seu núcleo mais irredutível, e que tem a ver, obviamente, com a própria «subsistência» do trabalhador, seja aí preservado. Ora, isso logra-se já obter com o regime legal para que se aponta na disposição em apreço. (Tal como se logra com ele obter também, e de resto, a preservação do essencial do direito de liberdade sindical, e de direitos afins dos trabalhadores — na medida em que, relativamente a trabalhadores com funções sindicais ou similares, sempre a concessão da providência cautelar da suspensão do despedimento implicará o direito de acesso dos mesmos ao local de trabalho, para o exercício de tais funções.)
José Manuel Cardoso da Costa — Messias Bento.
Declaração de voto
Vencido, nos termos da declaração de voto conjunta dos Ex.mos Srs. Conselheiros Cardoso da Costa e Messias Bento.
Armando Manuel Marques Guedes.
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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Lisboa, 31 de Maio de 1988.
Sr. Presidente da Assembleia da República:
Tenho a honra de junto devolver a V. Ex.a, nos termos dos artigos 139.°, n.° 5, e 279.°, n.° 1, da Constituição da República, o Decreto da Assembleia da República n.° 83/V, de 25 de Março de 1988, sobre «a Transformação das empresas públicas em sociedades anónimas», uma vez que o Tribunal Constitucional através do douto Acórdão n.° 108/88, de 31 de Maio de 1988, se pronunciou pela inconstitucionalidade da norma constante do n.° 2 do artigo 7.° do referido decreto, em sede de processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Apresento a V. Ex.a os meus respeitosos cumprimentos da mais alta consideração e estima.
Mário Soares.
ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
TRANSFORMAÇÃO DAS EMPRESAS PÚBLICAS EM SOCIEDADES ANÓNIMAS
A Assembleia da República decreta, nos termos dos artigos 164.°, alínea d), 168.°, n.° 1, alínea v), e 169.°, n.° 2, da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.° As empresas públicas, ainda que nacionalizadas, podem, mediante decreto-lei, ser transformadas em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos, nos termos da Constituição e da presente lei.
Art. 2.° — 1 — Na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima, deve ser imperativamente salvaguardado que:
a) A transformação não implique a reprivatização do capital nacionalizado, salvo nos casos previstos no artigo 83.°, n.° 2, da Constituição, devendo os títulos representativos do capital assumido pelo Estado à data da respectiva nacionalização ser sempre detidos, pela parte pública;
b) A maioria absoluta do capital social seja sempre detida pela parte pública;
c) A representação da parte pública nos órgãos sociais seja sempre maioritária.
2 — Para os efeitos previstos na presente lei, consideram-se integrando a parte pública o Estado, as outras pessoas colectivas públicas e as entidades que, por imposição \egal, devam pertencer ao sector público.
Art. 3.° — 1 — A sociedade anónima que vier a resultar da transformação continua a personalidade jurídica da empresa pública transformada, mantendo todos os direitos e obrigações legais ou contratuais desta.
2 — O decreto-lei que operar a transformação deve aprovar o estatuto da sociedade anónima, estabelecendo a proibição de quaisquer alterações que contrariem o disposto na presente lei.
3 — O diploma previsto no número anterior constitui título bastante para todos os necessários actos de registo.
Art. 4.° Sem prejuízo do disposto no artigo 2.°, o Estado ou qualquer outra entidade pública podem alienar acções da sociedade anónima de que sejam titulares.
Art. 5.° — 1 — Nas alienações referidas no artigo anterior devem ser respeitadas as seguintes regras:
a) São reservadas a pequenos subscritores, a trabalhadores da sociedade anónima e àqueles que o tenham sido da empresa pública durante mais de três anos, pelo menos, 20 % das acções a alienar;
b) Podem ser reservadas a pequenas subscrições por emigrantes até 10 % das acções a alienar;
c) Nenhuma entidade não pública, singular ou colectiva, pode adquirir mais de 10 % das acções a alienar, sob pena de nulidade;
d) O montante de acções a adquirir pelo conjunto de entidades, singulares ou colectivas, estrangeiras ou cujo capital seja detido maioritariamente por entidades estrangeiras hão pode exceder 10 % das acções a alienar, sob pena de nulidade.
2 — Para efeitos da alínea c) do n.° 1, consideram--se uma mesma entidade não pública singular ou colectiva duas ou mais entidades que tenham entre si relações de participação unilateral ou cruzada de valor superior a 50 % do capital social de uma delas.
3 — As acções adquiridas nos termos das alíneas a) e ft) do n.° 1 não podem ser transaccionadas durante um período mínimo de dois anos.
4 — A aquisição de acções por trabalhadores da sociedade anónima e por aqueles que o tenham sido da empresa pública durante mais de três anos beneficia de um regime especial.
5 — Para os efeitos previstos na presente lei, a participação do conjunto de entidades, singulares ou colectivas, estrangeiras ou cujo capital seja detido maioritariamente por entidades estrangeiras no capital social das sociedades anónimas não pode exceder 5 % do mesmo.
Art. 6.° — 1 — As alienações referidas na presente lei são realizadas por transacção em bolsa de valores, exceptuado o disposto no número seguinte.
2 — A parte das acções que em cada alienação seja reservada nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 5.° é transaccionada mediante subscrição pública, com recurso a rateio, se necessário.
Art. 7.° — 1 — As receitas do Estado provenientes das alienações referidas na presente lei são efectuadas:
a) À correcção dos desequilíbrios financeiros do sector empresarial do Estado, mediante o reforço de capitais estatutários ou sociais, ou mediante a liquidação ou assunção de dívidas de empresas públicas e de sociedades anónimas de maioria de capitais públicos;
b) À amortização antecipada de dívida pública;
c) À cobertura do serviço da dívida emergente das nacionalizações e expropriações anteriores à entrada em vigor da Constituição de 1976.
2 — As receitas e despesas resultantes do número anterior são escrituradas como operações de tesouraria, a regularizar no próprio ano em que são realizadas ou no seguinte.
Art. 8.° As empresas nacionalizadas que não tenham estatuto de empresa pública ficam sujeitas aos princípios e regras consagrados na presente lei.
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Art. 9.° Os aumentos de capital das sociedades anónimas abrangidas pela presente lei, a realizar com abertura a entidades não públicas, ficam sujeitas à observância dos princípios e regras constantes desta lei.
Art. 10.° — 1 — O Governo deve criar uma comissão tendo por fim específico acompanhar quaisquer operações de alienação de acções ou de aumentos de capital previstos nesta lei e apreciar as reclamações que em relação às mesmas lhe sejam apresentadas.
2 — A comissão elabora e publica semestralmente um relatório das suas actividades, onde designadamente, são referidas as transacções efectuadas no âmbito de aplicação da presente lei.
Aprovada em 25 de Março de 1988.
O Presidente da Assembleia da República, Vítor Pereira Crespo.
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Acórdão n.° 108/88
Acordam no Tribunal Constitucional (T. Const.):
I — Introdução
1 — Ao abrigo do disposto nos artigos 278.°, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 51.°, n.° 1, e 57.°, n.° 1, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, veio o Presidente da República requerer ao T. Const. que apreciasse preventivamente a constitucionalidade das normas dos artigos 1.°, 2.°, h.° 1, 4.°, 7.°, n.° 2, 8.° e 9.° do Decreto n.° 83/V da Assembleia da República (AR), diploma que disciplina a «transformação das empresas públicas em sociedades anónimas».
Fundamenta nos seguintes termos o pedido de intervenção do T. Const: o artigo 1.° do Decreto n.° 83/V vem permitir que as empresas públicas, ainda que nacionalizadas, se transformem, nos termos da CRP e dos artigos subsequentes do diploma, e mediante decreto-lei, em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos.
Por seu turno, o artigo 2.°, n.° 1, ao prescrever que na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima devem ser imperativamente salvaguardados certos princípios [os constantes das suas alíneas a), b) e c)], apenas proíbe, no que toca às empresas nacionalizadas, a privatização do capital nacionalizado, tornando, assim, possível a transferência para o sector privado — após a transformação da empresa em sociedade anónima — das partes sociais representativas de capital social que exceda aquele que existia à data da nacionalização.
Ora, o disposto no artigo 1.°, conjugado com o estatuído no artigo 2.°, n.° 1, pode suscitar, e suscitou, efectivamente dúvidas, que convém remover, quanto ao respeito da norma do artigo 83.°, n.° 1, da CRP, isto se se tiver em conta, e muito particularmente, que a grande maioria das nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 se referiram a empresas — envolvendo a sucessão universal nos seus direitos e obrigações —, e não, ou ao menos não directamente, a partes sociais. As dúvidas apontadas reforçam-se nos casos em que o capital superveniente houver resultado de incorporação de reservas.
Acresce que pode ainda estar em causa o respeito pelo artigo 85.°, n.° 3, da CRP, uma vez que o citado artigo 1.° não salvaguarda expressamente a delimitação de sectores vedados à iniciativa privada.
As dúvidas referidas estendem-se, pelas mesmas razões, e no que toca a empresas nacionalizadas após o 25 de Abril de 1974, por um lado, ao artigo 9.°, que prevê aumentos de capital abertos a entidades não públicas e por via dos quais estas poderão vir a participar de direitos relativos àquelas empresas, e, por outro lado, aos artigos 4.° e 8.°
Por último, o n.° 2 do artigo 7.°, na medida em que prevê que as receitas e despesas relativas ao processo de alienação do capital público de certas empresas sejam escrituradas em operações extra-orçamentais, eventualmente regularizáveis no ano seguinte à sua efectivação, levanta dúvidas quanto ao acatamento das regras da anualidade e da plenitude orçamental, consagradas, respectivamente, nos artigos 93.°, alínea c), e 108.°, n.os 1 e 5, da CRP.
2 — Notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 54.° da Lei n.° 28/82, veio o Presidente da AR a oferecer o merecimento dos autos e a fazer juntar um parecer da Auditoria Jurídica da AR, no qual, em resumo, se sustenta o seguinte: na busca do exacto sentido do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, impõe-se que preliminarmente se acentuem as seguintes ideias:
a) As nacionalizações, a que se refere o artigo 83.°, n.° 1, da CRP, foram, todas elas, efectuadas por empresas, e não por sectores de actividade;
b) O princípio da irreversibilidade das nacionalizações, consignado no artigo 83.°, n.° 1, da CRP, não abrange a totalidade das empresas públicas, antes se confina às empresas cuja nacionalização foi objecto de um acto administrativo concreto, ainda que sob a forma de lei;
c) O preceito constitucional em causa tem alcance temporal limitado: reporta-se exclusivamente às nacionalizações feitas entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976;
d) Tais nacionalizações incidiram sempre sobre o capital ou sobre a titularidade da empresa, mas nunca sobre o seu património.
Dada esta particular incidência das nacionalizações, nacionalizações que apenas em tal dimensão o artigo 83.°, n.° 1, da CRP salvaguarda, configura-se como indubitável que o artigo 1.° do Decreto n.° 83/V, em conjugação com o artigo 2.°, n.° 1, não viola, de qualquer modo, aquele preceito constitucional.
Também se não pode considerar violado o artigo 85.°, n.° 3, da CRP, por um lado, porque o mesmo não salvaguarda expressamente a delimitação de sectores vedados à iniciativa privada e, por outro lado, porque não só as nacionalizações operadas não atingiram os sectores, como acontece que a definição dos sectores vedados à iniciativa privada é da competência do legislador ordinário, como, aliás, resulta desse mesmo artigo 85.°, n.° 3.
Desta forma, pode perfeitamente o legislador ordinário ordenar a transferência de sector relativamente a uma empresa, sem que daí resulte qualquer inconstitucionalidade.
De igual modo se não verifica a inconstitucionalidade dos artigos 4.°, 8." e 9.° do diploma em questão, simples corolários dos artigos l.° e 2.°
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Por outro lado, e passando a apreciar a questão da (in)constitucionalidãde do artigo 7.°, n.° 2, do Decreto n.° 83/V, convém notar, antes de mais, e quanto às regras da unidade e da universalidade, integrantes do princípio da plenitude orçamental, que só muito limitadamente terão consagração na CRP.
Acresce ainda que o grande sentido da proibição contida no n.° 5 do artigo 108.° da CRP é para a existência de dotações e fundos secretos.
Ora, não é de maneira nenhuma isto que o n.° 2 do artigo 7.° do decreto em causa se propõe fazer ao determinar a escrituração das receitas e despesas a que se reporta como operações de tesouraria.
Todavia, sempre se poderá obtemperar que esta última disposição não respeita o princípio da anualidade do orçamento.
Sem embargo, se tal preceito for analisado em profundidade, ter-se-á de reconhecer que no mesmo está ínsito ou implícito esse mesmo princípio, na medida em que a regularização das aludidas operações se fará no próprio ano ou no ano seguinte, não se registando, pois, a sua inconstitucionalidade.
3 — Cumpre agora, no domínio da fiscalização a priori, investigar se as normas referidas no requerimento do Presidente da República se confrontam ou não com a CRP, investigação que se desenvolverá ao longo de dois capítulos, sujeitos às seguintes epígrafes:
O artigo 1." do Decreto n.° 83/V, em conjugação com o artigo 2.°, n.° 1, e os artigos 4.°, 8.° e 9.°, face ao disposto nos artigos 83.°, n.° 1, e 85.°, n.° 3, da CRP (capítulo n);
O artigo 7.°, n.° 2, do Decreto n.° 83/V, face ao disposto nos artigos 93.°, alínea c), e 108.°, n.os 1 e 5, da CRP (capítulo ui).
II — O artigo 1.° do Decreto n.° 83/V, em conjugação com o artigo 2.°, n.° 1, e os artigos 4.°, 8.° e 9.°, face ao disposto nos artigos 83.°, n.° 1, e 85.°, n.° 3, da CRP.
4 — Dispõem as normas do Decreto n.° 83/V em causa neste capítulo o seguinte:
Artigo 1.° As empresas públicas, ainda que nacionalizadas, podem, mediante decreto-lei, ser transformadas em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos, nos termos da CRP e da presente lei.
Art. 2.° — 1 — Na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima deve ser imperativamente salvaguardado que:
a) A transformação não implique a reprivatização do capital nacionalizado, salvo nos casos previstos no artigo 83.°, n.° 2, da CRP, devendo os títulos representativos do capital assumido pelo Estado à data da respectiva nacionalização ser sempre detidos pela parte pública;
b) A maioria absoluta do capital social seja sempre detida pela parte pública;
c) A representação da parte pública nos órgãos sociais seja sempre maioritária.
2—.....................................
Art. 4.° Sem prejuízo do disposto no artigo 2.°, o Estado ou qualquer outra entidade pública podem alienar acções da sociedade anónima de que sejam titulares.
Art. 8.° As empresas nacionalizadas que não tenham estatuto de empresa pública ficam sujeitas aos princípios e regras consagrados na presente lei.
Art. 9.° Os aumentos de capital das sociedades anónimas abrangidas pela presente lei, a realizar com abertura a entidades não públicas, ficam sujeitos à observância dos princípios e regras constantes desta lei.
Sobre as várias espécies de empresas públicas, escreve J. Simões Patrício, Curso de Direito Económico, 2." ed., p. 536, nota 1:
Entre nós também A. Caeiro tem vindo a subdistinguir, dentro da categoria de empresas públicas, as «empresas criadas pelo Estado, com capitais próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, e as empresas nacionalizadas», por um lado, e, por outro, as «empresas públicas societárias» (isto é, com participação pública majoritária): v., por último, Revista de Direito e Economia, V, 1979, n.° 2, 445.
Veremos mais abaixo que a distinção é obrigatória de jure constituto (Decreto-Lei n.° 260/76).
Todavia, e numa perspectiva constitucional, uma outra classificação das empresas públicas se impõe, a que as classifica em dois grandes grupos :
a) As decorrentes de nacionalizações posteriores a 25 de Abril de 1974;
b) As restantes (deixa-se em aberto a questão de saber se as empresas nacionalizadas depois da entrada em vigor da CRP se deverão situar no primeiro grupo ou antes no segundo).
Acerca da génese das empresas públicas do primeiro grupo, e numa perspectiva histórica, escreve José Fernando Nunes Barata, Enciclopédia Polis, vol. 4, cois. 523 e 524:
A revolução de 25 de Abril de 1974, que introduziu profundas alterações na estrutura sócio--económica portuguesa, deu larga acolhida à política das nacionalizações. O Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) anunciava, desde logo, uma estratégia antimonopolista. No Programa do I Governo Provisório incluía-se a nacionalização dos bancos emissores (Decreto--Lei n.° 203/74, de 15 de Maio). Foi o que se passou com o Banco de Angola, o Banco Nacional Ultramarino e o Banco de Portugal, através, respectivamente, dos Decretos-Leis n.os 450/74, 451/74 e 452/74, todos de 13 de Setembro. Os acontecimentos de 11 de Março de 1975 criaram novas condições para a aceleração desta política. Dois sectores chave, pelas actividades a que se dedicavam e pelo controle que tinham noutros domínios (nacionalização indirecta), foram nacionalizados: as instituições de crédito (Decreto-Lei n.° 132/75, de 14 de Março) [devia-se ter escrito Decreto-Lei n.° 132-A/75, de 14 de Março] e as companhias de seguros (Decreto-Lei n.° 135/75, de 15 de Março) [devia-se ter escrito Decreto-Lei n.° 135-A/75, de 15 de Março]. Em 15 de Abril foi publicado o Decreto-Lei n.° 203/75, que aprovava bases gerais dos programas de medidas económicas. Previam-se novas nacionalizações. Logo em 16 de Abril foram publicados numerosos diplomas que concretizavam tal propósito: os Decretos--Leis n.05 205-A/75 e 205-G/75 nacionalizaram as
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empresas petrolíferas (SACOR, PETROGAL, CIÓLA e SON AP), as empresas de transportes (CP, Companhia de Transportes Marítimos, Com-• panhia Nacional de Navegação e TAP), a Siderurgia e várias empresas energéticas. Em 9 de Maio foram nacionalizadas as indústrias dos cimentos (Decreto-Lei n.° 221-A/75) e da celulose (Decreto--Lei n.° 221-B/75); em 5 de Junho chegou a vez das empresas de transportes (Decretos-Leis n.os280-A/75 e 280-C/75). O processo não se deteve e no chamado «Verão quente» de 1975 foi a altura da petroquímica (Decretos-Leis n.os 453/75 e 456/75, de 21 e 22 de Agosto) e das cervejas (Decreto-Lei n.° 474/75, de 30 de Agosto). Já no mês seguinte o Decreto-Lei n.° 478/75, de 1 de Setembro, ocupou-se da SETENA VE e o Decreto--Lei n.° 532/75, de 25 de Setembro, da CUF. Quanto aos meios de comunicação social, a sua hora ocorreu mais tarde: os Decretos-Leis n.os674-C/75 e 674-D/75, de 2 de Dezembro, ocuparam-se dos meios de radiodifusão e da RTP; o Decreto-Lei n.° 639/76, de 29 de Julho, nacionalizou vários jornais. A enumeração não será exaustiva. Em termos de síntese, poder-se-á, no entanto, referir que: o processo das nacionalizações portuguesas pós-25 de Abril se concentrou no período de 1974 (com início, como se referiu, nos bancos emissores) a 1976 (meios de comunicação social, a encerrar o ciclo); as nacionalizações efectuaram-se por decretos-leis, variando pouco os esquemas jurídicos adoptados; manifestou-se especial respeito pelas empresas estrangeiras ou com participação estrangeira; não se consagrou uma radicalização quanto a reservas de actividade, pois em sectores base como a banca, os seguros e a indústria petrolífera não foram nacionalizadas as empresas ou participações estrangeiras; determinados sectores (exemplos: comunicação social, indústria de bebidas) ficaram só em parte nacionalizados, mantendo-se noutra parte livres para a iniciativa privada; as empresas nacionalizadas foram transformadas em empresas públicas.
5 — Ora, é unicamente em relação às empresas públicas resultantes de nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 (mencionadas no artigo 1." do Decreto n.° 83/V) e também, por extensão, às empresas nacionalizadas após aquela data e sem estatuto de empresa pública (referidas no artigo 8.°) que o Presidente da República coloca o problema de saber se terá sido violado ou não o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, consagrado no artigo 83.°, n.° 1, da CRP, que reza assim:
Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras.
«A nacionalização», escreveu-se no Acórdão n.° 11/84 do T. Const. (Diário da República, 2.a série, n.° 106, de 8 de Maio de 1984), «importa a apropriação por parte do poder público de empresas, bens ou actividades económicas privadas, com a subsequente alteração do seu modo social de gestão.»
«Trata-se, no fundamental», precisa Manuel Afonso Vaz, Direito Económico, p. 189, «de subtrair à propriedade privada determinados bens, por se entender que o interesse da colectividade exige que tais bens se encontrem na titularidade do Estado e sejam geridos
de acordo com o interesse geral. Com efeito, o substrato ideológico das nacionalizações, ao mesmo tempo que faz transparecer a qualificação económica dos bens objecto de nacionalização, implica não só a transferência do bem, até ai propriedade privada, para o âmbito da propriedade pública, mas também implica que a actividade ligada a esses bens seja exercida no interesse da colectividade.»
A nacionalização de empresas consequência, pois, a sua passagem do sector privado dos meios de produção para o sector público e um outro tipo de gestão. Neste mesmo sentido escreve Carlos Ferreira de Almeida, Direito Económico, i parte, p. 66:
A nacionalização implica, do ponto de vista jurídico, duas consequências fundamentais:
A transferência da propriedade do sector privado para o sector público;
A subsequente gestão pública dos patrimónios transferidos.
«Desnacionalização», escreveu-se no Acórdão n.° 11/84 do T. Const., «é um acto de sinal contrário: directa ou indirectamente dirigido à reintegração, quase sempre por inteiro, da empresa nacionalizada no sector privado.»
É precisamente este acto de desnacionalização que, de certo modo, o artigo 83.°, n.° 1, da CRP vem proibir com a afirmação do princípio da irreversibilidade das nacionalizações. E que assim é resulta claramente da interpretação sistemática do preceito.
De facto, no n.° 2 do artigo 83.° afirma-se que a integração no sector privado, em circunstâncias muito especiais, de pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas constituirá uma excepção ao princípio da irreversibilidade. Ora, se isto é uma excepção a tal princípio, então é porque este, que é regra, e se encontra consignado no n.° 1 do artigo 83.° da CRP, veda a passagem das empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974 do sector público, onde se vêm situando, para o sector privado (desnacionalização).
Todavia, o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, atento o particular contexto histórico a que deveu a sua aparição o artigo 83.°, n.° 1, da CRP, comporta ainda outra dimensão vedatória: a de proibir que, quer o capital existente à data em que as empresas foram nacionalizadas, quer o capital resultante da incorporação das reservas existentes àquela data, sejam alienados em favor de entidades privadas.
Há, pois, que apurar se as normas em análise possibilitarão, de algum modo, ou a transferência de empresas nacionalizadas após 25 de Abril de 1974 (tenham ou não o estatuto de empresas públicas) do sector público para o sector privado dos meios de produção, ou a alienação em favor de entidades privadas do capital coevo das nacionalizações ou do capital adveniente da incorporação das reservas a essa altura existentes. Na realidade, só tal ocorrendo se poderá concluir que o Decreto n.° 83/V, no segmento em exame, não respeitou cabalmente o princípio da irreversibilidade das nacionalizações e violou, assim, o disposto no artigo 83.°, n.° 1, da CRP.
6 — Todavia, antes de dar resposta a esta questão, convém registar, ainda que esquematicamente, quais as mudanças que, àqueles níveis, e através do diploma em análise, a AR pretendeu introduzir na ordem jurídica.
Segundo o artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 260/76, de 8 de Abril — diploma que definiu os princípios gerais a que hão-de obedecer os estatutos das empresas públi-
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cas —, são empresas desta espécie «as empresas criadas pelo Estado, com capitais próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, para a exploração de actividades de natureza económica ou social, de acordo com o planeamento económico nacional, tendo em vista a construção e desenvolvimento de uma sociedade democrática e de uma economia socialista» (n.° 1), e «são também empresas públicas e estão, portanto, sujeitas aos princípios consagrados no presente diploma as empresas nacionalizadas» (n.° 2).
Por força do artigo 49.° deste mesmo Decreto-Lei n.° 260/76, as instituições bancárias, parabancárias e seguradoras, embora empresas públicas, estão excluídas do âmbito de aplicação desta lei de bases e sujeitas a regulamentação especial (cf. Decretos-Leis n.os 644/75, de 15 de Novembro, 729-F/75, de 22 de Dezembro, e 72/76, de 27 de Janeiro).
No que se refere, no entanto, ao regime geral das empresas públicas, verifica-se que estas podem agrupar--se, extinguir-se por cisão ou fusão com outras (para reorganização de actividades) ou extinguir-se pura e simplesmente (para cessação de actividade) — artigos 36.° a 40.° do Decreto-Lei n.° 260/76.
O artigo 1.° do Decreto n.° 83/V veio instituir uma nova espécie de alteração dos estatutos das empresas públicas, especificando, a propósito, que, mediante decreto-lei, podem ser transformadas em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos. Deste modo, os capitais da nova empresa não têm já de ser totalmente públicos: podem ser também, embora em posição minoritária, capitais privados.
Nas alíneas a), b) e c) do n.° 1 do artigo 2." do Decreto n.° 83/V estabelecem-se, todavia, diversas salvaguardas:
A transformação, salvo nos casos previstos no artigo 83.°, n.° 2, da CRP (casos de nacionalizações indirectas de pequenas e médias empresas em relação às quais for inaplicável o princípio da irreversibilidade das nacionalizações), não há-de implicar nunca a reprivatização do capital nacionalizado, que será sempre detido pela parte pública;
A maioria absoluta do capital social há-de pertencer sempre à parte pública;
A representação da parte pública nos órgãos sociais há-de ser sempre maioritária.
No que respeita à gestão das empresas públicas, verifica-se que, segundo o regime geral, quer os membros do conselho de gerência, quer os membros da comissão de fiscalização, são nomeados pelo Governo (artigos 9.°, n.° 4, e 10.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.° 260/76). Agora, segundo o regime proposto pelo Decreto n.° 83/V, a parte pública passará a dispor apenas de representação maioritária nos órgãos sociais da sociedade anónima em que se tiver transformado a empresa pública (conselho de administração e conselho fiscal ou direcção e conselho geral, conforme a estrutura de administração e fiscalização por que se tiver optado, nos termos do artigo 278.° do Código das Sociedades Comerciais, aquando da transformação da empresa pública).
Uma vez constituída a sociedade anónima por metamorfose da empresa pública, e sempre com respeito pelos limites prefixados no artigo 2.°, podem o Estado ou qualquer outra entidade pública, de acordo com o disposto no artigo 4.° do Decreto n.° 83/V, alienar acções de que sejam titulares. Neste preceito permite--se, pois, que a parte pública, sem perda da sua posi-
ção maioritária no capital social, e sempre com reserva do capital nacionalizado, que não poderá ser cedido, transaccione as acções de que disponha em excesso.
Por força do artigo 8.° do Decreto n.° 83/V, às empresas nacionalizadas que não tenham estatuto de empresas públicas é-lhes aplicável o regime previsto no diploma para a transformação das empresas públicas em sociedades anónimas, designadamente o constante dos artigos 1.°, 2.° e 4.° (já analisados) e do artigo 9.° (por analisar).
Não é de imediato muito claro quais sejam essas empresas nacionalizadas privadas do estatuto de empresas públicas. Com efeito, e por via do artigo 2.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 260/76, todas as empresas nacionalizadas, pelo menos à partida, teriam sido substancialmente equiparadas a empresas públicas. No entanto, e tida em conta unicamente a sua forma, nem todas as empresas nacionalizadas poderão ser consideradas, em rigor, empresas públicas.
Como escreve J. Simões Patrício, ob. cit., p. 536:
Como é sabido, a nacionalização tanto pode operar-se pela apropriação («apropriação colectiva») das participações sociais (acções) como pela apropriação da sociedade (empresa) em si mesma. Num como no outro caso, é certo que estamos perante uma empresa nacionalizada, mas, na primeira hipótese, é mais nítido que essa empresa manteve a respectiva superstrutura jurídica — continuou sendo, v. g., uma sociedade anónima —, somente tendo passado para a titularidade do Estado o seu capital (as acções que o representam).
E mais adiante, a pp. 579 e 580:
Com tal declaração [a do artigo 2.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 260/76] a lei terá querido converter em pessoas jurídicas os patrimónios autónomos que existiam até ai dentro do património nacional, provenientes das nacionalizações.
Mas há uma importante observação restritiva a fazer.
É que há empresas nacionalizadas segundo uma técnica — a de o Estado se apropriar das acções — que não levou à subtracção de toda a empresa aos respectivos titulares privados. Referimo-nos, de novo, a hipóteses em que, v. g., foi isento da nacionalização o capital estrangeiro integrante da empresa. Assim, exemplificativamente, com as empresas Covina e Carris de Lisboa [cujas acções portuguesas foram nacionalizadas, respectivamente, pelos Decretos-Leis n.os 432/75, de 13 de Agosto, e 346/75, de 3 de Julho].
O artigo 8.° do Decreto n.° 83/V ter-se-á, pois, referido, desde logo, a empresas nacionalizadas deste tipo, e que, de algum modo, mantiveram a superstrutura jurídica preexistente, e que, por isso mesmo, não chegaram a adquirir o estatuto de empresas públicas. E abrangerá também as empresas nacionalizadas que, tendo adquirido o estatuto de empresas públicas, o hajam, entretanto, perdido.
Por fim, o artigo 9.° deste mesmo diploma dispõe que os aumentos de capital das sociedades anónimas resultantes da transformação de empresas públicas a realizar com a abertura a entidades não públicas ficarão sujeitos à observância dos princípios e regras dele constantes. Designadamente, será assegurado sempre, após qualquer aumento de capital, que a parte pública continue a deter a maioria absoluta do capital social.
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Feita esta detalhada excursão analítica pelas normas dos artigos 1.°, 2.°, n.° 1, 4.°, 8.° e 9.° do Decreto n.° 83/V, é de colocar de novo as interrogações:
1) As empresas nacionalizadas após o 25 de Abril de 1974, tenham ou não o estatuto de empresas públicas, se transmudadas em sociedades anónimas, nos quadros do regime definido por aquelas normas, seriam desnacionalizadas, isto é, passariam do sector público para o sector privado dos meios de produção?
2) As alienações de acções previstas no diploma em análise e subsequentes à conversão dessas empresas nacionalizadas em sociedades anónimas poderiam tocar, segundo tal regime, ou o capital existente à data das nacionalizações, ou o capital resultante da incorporação das reservas a essa data existentes?
Sucessivamente, na análise subsequente se irá dar resposta a estas duas interrogações.
7 — Os três sectores de propriedade dos meios de produção (sector público, sector privado e sector cooperativo) são definidos, nos termos do artigo 89.°, n.° 1, da CRP, em função da sua titularidade e do modo social de gestão.
Em nota a este artigo 89.°, salientam, a propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2." ed., 1.° vol., p. 423:
O critério de delimitação dos sectores (n.° 1) é misto. Faz apelo simultaneamente à propriedade formal («titularidade») e à posse e gestão («modo social de gestão») dos meios de produção. (A referência a «solos» e «recursos naturais» é evidentemente redundante.) Mas o critério dominante parece ser o último, pois, no caso de discrepância entre a titularidade da posse e gestão, prevalece, em geral, esta última. Importa, contudo, analisar cada um dos sectores. Na verdade, há que distinguir três figuras jurídicas:
a) Propriedade formal sobre os meios de produção (terras, fábricas, etc);
b) Direito sobre a empresa ou estabelecimento;
c) Direito de exploração ou gestão da empresa.
Pode haver coincidência — e normalmente existe — destas três figuras jurídicas na mesma pessoa jurídica. Mas também pode não haver, surgindo então o problema de saber em que sector enquadrar essas figuras jurídico-económicas complexas.
Liminarmente, é de afastar a possibilidade de as empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974, uma vez convertidas em sociedades anónimas, nos termos do Decreto n.° 83/V, virem integrar o sector cooperativo, dada a sua total desconexão com este sector (cf. artigo 89.°, n.° 4, da CRP). Resta, pois, uma única via de solução, via esta de tipo necessariamente alternativo: ou aquelas empresas continuam no sector público ou são atiradas para o sector privado. É que, constitucionalmente, não existe qualquer outro sector de propriedade dos meios de produção.
8 — A CRP define os sectores público e privado dos meios de produção nos seguintes termos:
Artigo 89.°
Sectores de propriedade dos meios de produção
1 — ........................................................
2 — O sector público é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas ou a comunidades, sob os seguintes modos sociais de gestão :
a) Bens e unidades de produção geridos pelo Esta,do e por outras pessoas colectivas públicas;
b) Bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores;
c) Bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais.
3 — O sector privado é constituído pelos bens e unidades de produção cuja propriedade ou gestão pertençam a pessoas singulares ou colectivas privadas, sem prejuízo do número seguinte.
4 —........................................................
Por outro lado, e como se viu, segundo o regime instituído pelo Decreto n.° 83/V, o capital das sociedades anónimas resultantes da transformação de empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974 será, todo ele, ou na sua maior parte, pertença da parte pública [cf. artigos 1.°, 2.°, n.° 1, alínea b), e 4.° do Decreto n.° 83/V], e tais sociedades hão-de ser geridas em função da vontade da mesma parte pública, à qual é sempre assegurada representação maioritária nos órgãos sociais [cf. artigo 2.°, n.° 1, alínea c)].
Comparando as definições constitucionais dos sectores público e privado com o estatuto das sociedades anónimas que o Decreto n.° 83/V pretende instituir — e cujas linhas dominantes foram postas em evidência —, verifica-se, a uma primeira análise, e não considerado o caso especial das sociedades anónimas, referidas no artigo 1.°, de capitais exclusivamente públicos, que aquelas sociedades não se situariam nem num nem noutro dos mencionados sectores, demarcáveis, nos termos do artigo 89.°, n.° 1, da CRP, em função de dois vectores: a titularidade e o modo social de gestão.
De facto, o regime daquelas sociedades anónimas não é rigorosamente subsumível, ao nível desses dois vectores, nem na regra que, no plano constitucional, define o sector público (artigo 89.°, n.° 2), nem na regra que, no mesmo plano, define o sector privado (artigo 89.°, n.° 3).
9 — A situação prevista para aquelas sociedades no Decreto n.° 83/V é, pois, híbrida, combina diversamente vectores próprios da definição constitucional de um e de outro daqueles sectores de propriedade. E, porque as sociedades anónimas de capitais mistos, resultantes, nos termos do diploma em análise, da conversão de empresas nacionalizadas após o 25 de Abril de 1974, se não poderão, logicamente, colocar numa espécie de terra de ninguém, numa zona indefinida, como que num limbo dos meios produtivos, há que optar, como atrás se referiu, entre situá-las no sector público ou no sector privado.
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Isto importará, antes de mais, uma interpretação translata do artigo 89.° da CRP, interpretação que arrancará de duas ideias base, ideias que exprimirão, afinal, o seu verdadeiro espírito:
a) Situações não imediatamente subsumíveis em qualquer uma das definições constitucionais dos sectores de propriedade dos meios de produção deverão localizar-se no sector com o qual for mais evidente o seu parentesco;
b) Em tal juízo, deverá ser dada particular relevância ao vector do modo social de gestão.
Nesta perspectiva, verifica-se que o regime previsto para aquelas sociedades anónimas no Decreto n.° 83/V, ora particularmente consideradas, tende a acercar-se mais da definição constitucional do sector público que da definição constitucional do sector privado.
E, na verdade, assim é, porque, por um lado, tal regime preenche integralmente um dos vectores da definição do sector público (gestão por entidade pública) e quase que preenche — atenta a reserva maioritária do capital em favor da parte pública — o outro vector dessa definição (a propriedade pública) e, por outro lado, não preenche, de forma constitucionalmente relevante, qualquer dos vectores que, em alternativa, definem o sector privado (a propriedade privada ou a gestão por entidade privada).
A isto acresce que, no referente ao vector do modo social de gestão, vector, neste campo, de decisiva relevância, se verifica o vector característico, a esse nível, da definição do sector público: a gestão por entidade pública.
10 — Nestas circunstâncias e numa leitura translata do artigo 89.° da CRP, é de concluir que as sociedades anónimas com maioria de capitais públicos e decorrentes — em função do regime instituído pelo Decreto n.° 83/V— de empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974 (tivessem elas ou não o estatuto de empresas públicas) se hão-de situar no sector público (note-se, algo proximamente, que, no âmbito do direito comunitário, e quanto às sociedades comerciais de economia mista, são tais empresas «consideradas como empresas públicas, pelo menos aquelas em que o Estado detenha [... ] a maioria do capital e, para alguns autores, mesmo aquelas em que o Estado detenha o controle 'de facto' da empresa, sem mesmo ser titular da maioria do capital» (Manuel Afonso Vaz, ob. cit., p. 199, nota 1)]. Sendo assim, não se verificará, por via de tal regime (particularmente expresso nos artigos 1.°, 2.°, n.° 1, 8.° e 9.° do Decreto n.° 83/V), a desnacionalização daquelas empresas e, consequentemente, não se registará, a este título, violação do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, declaradamente afirmado no artigo 83.°, n.° 1, da CRP.
Esta conclusão vale necessariamente para a transformação de empresas nacionalizadas após 25 de Abril de 1974 em sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos, expressamente referidas no artigo 1.° do Decreto n.° 83/V. Na verdade, tais sociedades preenchem directamente o duplo critério a que obedece a definição constitucional do sector público. Por isso, e quanto a essas empresas nacionalizadas que se venham a converter em sociedades anónimas desse tipo, é ainda mais evidente que não poderá haver mudanças de sector de propriedade dos meios de produção, ou seja, que não poderá haver desnacionalização.
11 — Vai-se agora averiguar se em função do regime decorrente das normas em causa do Decreto n.° 83/V não se registará, por outra via embora, infracção ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações, tal como o princípio é afirmado no artigo 83.°, n.° 1, da CRP.
O artigo 2.°, n.° 1, alínea a), do diploma em apreciação, em conexão com o artigo 8.°, determina que a transformação das empresas nacionalizadas em sociedades anónimas não implicará nunca a reprivatização do capital nacionalizado. Face a esta salvaguarda, é evidente que, neste plano, o princípio da irreversibilidade também não é posto em causa.
No entanto, e uma vez que, declaradamente ao menos, se não faz ressalva paralela em favor do capital resultante da incorporação das reservas existentes à data das nacionalizações, poder-se-ia ser tentado a concluir, a uma primeira leitura do Decreto n.° 83/V, que, a esse nível, já se registaria confronto com o princípio do artigo 83.°, n.° 1, da CRP, que, como se viu, proíbe a alienação em favor de entidades privadas desse capital (o resultante da incorporação de tais reservas).
No entanto, a uma segunda leitura, e tendo em conta muito particularmente o princípio da interpretação conforme a CRP, é de extrair-se de tal análise conclusão diametralmente oposta. Sobre tal princípio escreve Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.a ed., pp. 164 e 165, o seguinte:
Este princípio é fundamentalmente um princípio de controle (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco de entre os vários significados da norma. Daí a formulação básica para este princípio: no caso de normas polissémicas ou plurissig-nificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a CRP. Esta formulação comporta várias dimensões:
1) O princípio da prevalência da CRP impõe que, de entre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se a interpretação que não seja contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais;
2) O princípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a Constituição;
3) O princípio da exclusão da interpretação conforme a CRP, mas «contra legem», impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a CRP, mesmo que através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais.
Este princípio deve ser compreendido articulando todas as dimensões referidas, de modo que se torne claro:
a) A interpretação conforme a CRP só é legítima quando existe um espaço de deci-
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são (= espaço de interpretação) em que são admissíveis várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a CRP, e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela;
b) No caso de se chegar a um resultado interpretativo de uma norma jurídica inequivocamente em contradição com a lei constitucional, impõe-se a rejeição, por inconstitucionalidade, dessa norma (= competência de rejeição ou não aplicação de normas inconstitucionais pelos juízes) e proíbe-se a correcção pelos tribunais dessa norma inequivocamente inconstitu-
■ cional (= proibição de correcção de norma jurídica em contradição inequívoca com a CRP).
Como se acaba de ver, através da citação transcrita, a interpretação conforme a CRP pressupõe que a norma em questão seja portadora, à partida, de várias significações e que uma dessas significações, ao contrário das outras, seja compatível com a CRP.
Ora, é isto que realmente se verifica em relação à norma do artigo 2.°, n.° 1, alínea a), do Decreto n.° 83/V, norma que determina que na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima (regime extensível, por via do artigo 8.°, às empresas nacionalizadas sem estatuto de empresas públicas) deve ser imperativamente salvaguardado (salvo um caso particular, que aqui não interessa considerar) que a transformação não implique a reprivatização do capital nacionalizado, devendo os títulos representativos do capital assumido pelo Estado à data da respectiva nacionalização ser sempre detidos pela parte pública. De facto, esta ressalva de manutenção do capital nas mãos de uma entidade pública tanto se poderá referir ao chamado capital social ou capital jurídico da empresa nacionalizada (mencionado no contrato de sociedade) como ao seu capital económico, que compreenderia, além do capital social, as próprias reservas existentes na época da nacionalização.
Assim, sendo estas duas leituras igualmente possíveis (note-se que o termo capital não é de qualquer modo adjectivado), e verificando-se que uma das leituras consequentes, e ao contrário da outra, também possível, se não confronta com o princípio contido no artigo 83.°, n.° 1, da CRP, há que optar, de acordo com o princípio da interpretação conforme a CRP, por esta última leitura (leitura segundo a qual há uma ressalva absoluta do capital económico existente à data da nacionalização de cada empresa).
Deste modo, e a este título, também se não observa qualquer infracção ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações.
12 — Resta agora averiguar, dentro ainda deste capítulo, se as normas dos artigos 1.°, 2.°, n.° 1, 4.°, 8.° e 9.° do Decreto n.° 83/V se confrontam ou não com o disposto no artigo 85.°, n.° 3, da CRP.
Refere o Presidente da República, a propósito, que pode estar eventualmente em causa o respeito pelo artigo 85.°, n.° 3, da CRP, uma vez que o artigo 1.° do Decreto n.° 83/V não salvaguarda expressamente a delimitação de sectores vedados à iniciativa privada.
Não é muito claro se se pretendeu aqui pôr em xeque unicamente a norma do artigo 1.°, ou também, e paralelamente, a norma do artigo 8.° e, reflexamente ainda, as normas dos artigos 2.°, n.° 1, 4.° e 9.° do Decreto n.° 83/V.
De qualquer modo, qualquer que seja aqui a amplitude do pedido, sempre será de se chegar à mesma conclusão: a de que não houve violação do disposto no artigo 85.°, n.° 3, da CRP, preceito que determina que à lei cabe definir os sectores básicos nos quais é vedada a actividade às empresas privadas. Essa lei é, presentemente, a Lei n.° 46/77, de 8 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 406/83, de 19 de Novembro, e nela efectivamente se vedam certos sectores básicos da economia à actividade privada.
Nos termos do artigo 85.°, n.° 3, da CRP, têm, assim, de ficar vedados à iniciativa privada apenas alguns sectores básicos, exactamente aqueles que a lei definir.
13 — O pedido do Presidente da República, neste ponto, partiu do pressuposto de que as empresas públicas (nacionalizadas ou não) referidas no artigo 1.° do Decreto n.° 83/V passariam para o sector privado por via da sua transformação em sociedades anónimas e de que o mesmo sucederia com as empresas nacionalizadas sem estatuto de empresas públicas mencionadas no artigo 8.°
E certamente suscitou a questão, por este modo, da eventual violação do artigo 85.°, n.° 3, da CRP, não por entender que a CRP garante —o que de modo algum se verifica— a permanência de todas as empresas públicas ou simplesmente nacionalizadas no sector público, mas antes por considerar que, por aquela via, e na ausência de qualquer particular ressalva, se poderia, afinal, e em flagrante violação à referida determinação constitucional, acabar com a reserva de alguns sectores básicos da economia em favor da iniciativa pública.
Já se viu, no entanto, que o pressuposto de que o Presidente da República partira para formular o pedido ora em exame não merecia acolhimento. Na realidade, as sociedades anónimas para cuja constituição aponta o Decreto n.° 83/V serão ainda sociedades do sector público.
Consequentemente, não será nunca possível, pela via transversal apontada, pôr termo à vedação de alguns sectores da economia à iniciativa privada.
Deste modo, o artigo 85.°, n.° 3, da CRP não foi infringido, fosse como fosse, pelas normas dos artigos 1.°, 2.°, n.° 1, 4.°, 8.° e 9.° do Decreto n.° 83/V.
Ill — O artigo 7.°, n.° 2, do Decreto n.° 83/V, face ao disposto nos artigos 93.°, alínea c), e 108.°, n.°' 1 e 5, da CRP
14 — Dispõe o artigo 7.° do Decreto n.° 83/V — relativamente ao qual o Presidente da República põe unicamente em questão a constitucionalidade da norma do n.° 2 — o seguinte:
Art. 7.° — 1 — As receitas do Estado provenientes das alienações referidas na presente lei são efectuadas:
a) A correcção dos desequilíbrios financeiros do sector empresarial do Estado, mediante o reforço de capitais estatutários ou sociais ou mediante a liquidação ou assunção de
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dividas de empresas públicas e de sociedades anónimas de maioria de capitais públicos;
b) A amortização antecipada de dívida çública;
c) A cobertura do serviço da dívida emergente das nacionalizações e expropriações anteriores à entrada em vigor da CRP de 1976.
2 — As receitas e despesas resultantes do número anterior são escrituradas como operações de tesouraria, a regularizar no próprio ano em que são realizadas ou no seguinte.
Decorre do n.° 1 deste artigo que às receitas do Estado provenientes da alienação de acções das sociedades anónimas em que se tiverem transformado empresas públicas ou empresas nacionalizadas sem estatuto de empresas públicas (artigos 1.° e 8.° do Decreto n.° 83/V) serão dados diversos destinos [observe-se que o n.° 1 do artigo 7.°, por evidente lapso, se prescreve que «as receitas são efectuadas», quando se quis antes prescrever que «as receitas são afectadas» (cf. o Diário da Assembleia da República, 2." série, n.° 27, de 5 de Dezembro de 1987, a pp. 541 e 542, que publicou a proposta de lei n.° 18/V, proposta que veio a dar origem ao Decreto n.° 83/V)]. Especificam-se, pois, nesse n.° 1 do artigo 7.°, embora só categorialmente, e por referência às diversas destinações das receitas, as despesas que com base nelas poderão ser levadas a cabo.
Relativamente a tais receitas e despesas, acrescenta o n.° 2 deste artigo 7.° que as mesmas serão escrituradas como operações de tesouraria e regularizadas no próprio ano em que tiverem sido realizadas ou no ano seguinte.
É sobre este ponto, precisamente, que o Presidente da República suscita uma última questão de inconstitucionalidade, pronunciando-se, a esse respeito, nos seguintes termos:
O n.° 2 do artigo 7.°, na medida em que prevê que as receitas e despesas relativas ao processo de alienação de capital público de empresas sejam escrituradas em operações extra-orçamentais, eventualmente regularizáveis no ano seguinte à sua efectivação, permite a dúvida de saber se não se estarão a pôr em causa as regras da anualidade e da plenitude orçamental, consagradas, respectivamente, nos artigos 93.°, alínea c), e 108.°, n.os 1 e 5, da CRP.
15 — Uma só vez, precisamente no artigo 108.°, n.° 4, se refere a CRP ao Tesouro. E fá-lo nos seguintes termos:
A proposta de orçamento é acompanhada de relatório justificativo das variações das previsões das receitas e despesas relativamente ao orçamento anterior e ainda de relatórios sobre a dívida pública e as contas do Tesouro, bem como da situação dos fundos e serviços autónomos.
Esta referência, ainda que muito periférica, implica desde logo o reconhecimento constitucional do Tesouro em toda a sua dimensão histórica, ou seja, como «órgão, organismo ou departamento administrativo que administra todo o património monetário em separado das restantes operações de gestão patrimonial», que, em
suma, gere «a zona patrimonial formada pelos meios monetários do Estado ou património da tesouraria — o qual é constituído, do lado activo (que agora mais interessa), pelo conjunto dos meios de liquidez a curto prazo de que o Estado é titular», sendo «os respectivos problemas de afectação de recursos a responsabilidades — por serem monetários e por serem a curto prazo — [...] autónomos em relação às restantes operações de gestão patrimonial» (Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, p. 285).
No exercício desta competência, que lhe é típica, de gestão do património de tesouraria — património que se opõe ao restante património do Estado — realiza o Tesouro operações orçamentais e operações de tesouraria.
Nesta mesma ordem de ideias se escreveu, aliás, no parecer do Tribunal de Contas (TC) sobre a Conta Geral do Estado do ano económico de 1981 (Diário da República, 2." série, n.° 164, suplemento, de 20 de Julho de 1987):
A gestão dos meios de liquidez do Estado obriga o tesouro público a desempenhar funções que se integram nos circuitos monetários, pela via da emissão dos empréstimos públicos, das aplicações rentáveis, dos adiantamentos de transferência, de concessão de subsídios, etc.
O tesouro público, hoje centralizado na Direcção-Geral do Tesouro, é a instituição à qual, nos planos administrativo, orgânico e funcional, compete gerir os dinheiros públicos, traduzindo--se essa gestão no movimento de fundos avultados, nos quais interfere o Banco de Portugal, como caixa geral do Tesouro.
Assim, subjacente a todo o movimento de fundos públicos, o Tesouro realiza operações de cobrança de receitas e de pagamento de despesas que, nuns casos, decorrem da execução orçamental, que lhe compete assegurar, e, noutros, são efectuados à margem do orçamento.
16 — Referindo-se a esta dupla competência do Tesouro, escreve Sousa Franco, ob. cit., pp. 399, 400 e 401:
Na sua actuação normal, o Tesouro gere fundos próprios (os do Estado) e fundos de organismos autónomos (objecto de contas especiais, como os CTT). Nesta actividade, porém, importa ainda abrir uma distinção.
Nuns casos, o Tesouro realiza operações (cobrança de receitas, pagamento de despesas) que decorrem necessariamente da execução orçamental que lhe cabe assegurar; noutros, realiza operações à margem do orçamento.
As operações orçamentais estão previstas no orçamento; sujeitam-se aos processos próprios de execução dos orçamentos de receitas e despesas; estão sujeitas a controle da Direcção-Geral da Contabilidade Pública; dão origem à inscrição definitiva na Conta Geral do Estado e provocam uma saída irreversível de fundos dos cofres públicos. São operações de arrecadação de receitas e pagamento de despesas inscritas no orçamento.
As operações de tesouraria são realizadas à margem do Orçamento Geral do Estado, movimentam fundos que revertem na afectação normal da execução do orçamento, a qual cabe à entidade a
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quem pertencem; não estão sujeitas a processo rígido nem à regra da anualidade; são imprescritíveis, e essas saídas de fundos darão origem a uma nova entrada nos cofres até à concordância do crédito. Tanto podem ser operações de receitas como de despesas e assumem diversíssimas naturezas, como operações de movimentação de dinheiros públicos não inscritos no orçamento (artigo 4.°, § 1.°, da Lei de 20 de Março de 1907). O seu regime foi clarificado pelo Decreto-Lei n.° 113/85, de 18 de Abril, que as define assim (artigo 1.°):
São operações de tesouraria todos os movimentos de fundos nos cofres do Tesouro que não se encontram sujeitos à disciplina do Orçamento do Estado, bem como todas as restantes operações escriturais com eles relacionadas no âmbito das contas do Tesouro.
O artigo 2.°, n.° 2, subdivide-as em operações passivas ou activas:
As operações passivas correspondem à entrada de fundos ou a operações escriturais de natureza idêntica nos cofres do Tesouro e as operações activas correspondem à saída de fundos daqueles cofres ou a operações escriturais de natureza idêntica.
Uma das maneiras de suprir dificuldades na execução do orçamento consistiria em recorrer para tal a operações de tesouraria (cf. o artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 74/70, de 2 de Março); nesse caso, podia-se chegar a não respeitar de todo a previsão orçamental. Por isso, é proibido efectuar despesas por operações de tesouraria, salvo em casos especiais (artigo 36.°, § 3.°, da Lei de 20 de Março de 1907 e Decreto n.° 22 257, de 25 de Fevereiro de 1933, artigo 35.°, n.os 1, 2 e 3). A lei dispõe sobre a sua formalização e controle pelo TC.
Quanto às receitas, os seus casos mais conhecidos relacionam-se com as emissões de moeda e a gestão da dívida flutuante, destinadas a antecipar recursos de que o Estado disporá necessariamente no termo do período orçamental, e cujas condições de utilização (aliás hoje flexíveis) estavam rigidamente condicionadas (menos, todavia, do que ao abrigo do artigo 67.°, § único, da Constituição de 1933).
Quatro funções principais são então asseguradas por estas operações, tanto na forma das entradas de tesouraria (receitas de tesouraria) como através das saídas da tesouraria (despesas de tesouraria):
a) A antecipação de receitas que o Estado espera cobrar durante o ano, mas não pode movimentar quando delas careça para realizar despesas;
b) A colocação junto de certas instituições do sistema bancário de disponibilidades em excesso por prazos curtos, obtendo, assim, um rendimento (juro) de dinheiro que, de outra maneira, estaria inactivo (cf. Decreto-Lei n.° 49 240);
c) A gestão de fundos afectos a finalidades permanentes (como no Decreto-Lei n.° 74/ 70, de 2 de Março);
d) A utilização como instrumentos de politica monetária, regulando os mercados de dinheiro e a oferta de moeda (possível em casos como o dos bilhetes do Tesouro).
As operações de tesouraria previstas no artigo 7.°, n.° 2, do Decreto n.° 83/V e classificadas no requerimento do Presidente da República —em concordância, aliás, com a definição do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 113/85— como operações extra-orçamentais serão, na verdade, incompatíveis com a CRP? Serão inconciliáveis, designadamente, com as regras da anualidade e da plenitude orçamental?
17 — Decorre do que até aqui se escreveu que, à luz da CRP, serão admissíveis operações de tesouraria, isto é, operações extra-orçamentais, desde que elas tenham de algum modo a ver, mais ou menos directamente, com a gestão do património de tesouraria. Na realidade, o acolhimento constitucional do Tesouro como organismo a se e de longa tradição no nosso ordenamento jurídico não pode deixar de ter essa implicação.
Não será sempre fácil traçar a fronteira entre a gestão do património de tesouraria e a gestão do restante património do Estado, ou património stricto sensu. No caso presente (caso do artigo 7.° do Decreto n.° 83/V), a situação, todavia, não deixa margem para dúvidas.
É que em causa está a venda de elementos do património empresarial do Estado, rectius de acções das sociedades anónimas que, nos quadros do Decreto n.° 83/V, resultarão da transformação de empresas nacionalizadas. Uma alienação deste tipo, como é evidente, não pode nunca ser equiparada a mero acto de gestão do património de tesouraria.
Pelas receitas que gera e pelas despesas que permite impossível é de deixar considerá-la no Orçamento do Estado.
Deste modo, têm aqui aplicação, e plenamente, as regras da anualidade e da plenitude. A regra da anualidade implica:
a) A votação parlamentar, ano a ano, do orçamento;
b) A vigência do orçamento pelo período de um ano.
Esta regra era claramente afirmada no texto primitivo da CRP (artigo 108.°, n.° 1). No entanto, e apesar de no actual artigo 108.° da CRP se ter deixado de fazer qualquer referência directa a esse parâmetro temporal, é de entender que tal regra ainda hoje tem pleno acolhimento constitucional.
Com efeito, tudo indica que, aquando da revisão de 1982, o poder constituinte derivado se limitou a introduzir na CRP o conceito de Orçamento do Estado na sua acepção tradicional, muito particularmente no que respeita à sua vertente periódica (na história constitucional portuguesa os orçamentos sempre foram anuais). E a isto acresce o facto de a CRP, no artigo 93.°, alínea c), explicitamente afirmar que o plano anual há--de ter a sua expressão financeira no Orçamento do Estado, o que necessariamente, e ao nível temporal, os associa (neste sentido, Sousa Franco, ob. cit., p. 319, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2." ed., l vol., p. 470, e Guilherme de Oliveira Martins, Constituição Financeira, 2." vol., pp. 278 e 279).
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Quanto à sub-regra da universalidade —uma das sub-regras em que se desdobra a regra da plenitude—, observa-se que, apesar de a CRP não se mostrar igualmente muito determinante, parece legítimo, mesmo assim, deduzi-la do artigo 108.°, n.° 1. É que este preceito, obrigando à discriminação no orçamento, e sem ressalvas, das receitas e despesas do Estado, por certo se referirá a todas as receitas e a todas as despesas (em concordância com esta interpretação, Sousa Franco, ob. cit., p. 322, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 469, e Guilherme de Oliveira Martins, ob. cit., pp. 282 e 283).
No que respeita à outra sub-regra em função da qual se exprime a regra da plenitude, ou seja, no respeitante à sub-regra da unidade —segundo a qual as receitas e despesas do Estado devem constar de um único documento—, afirma-a expressamente o artigo 108.°, n.° 5, da CRP.
18 — À luz destes princípios constitucionais verifica--se que, não podendo as receitas e as despesas previstas no n.° 2 do artigo 7.° do Decreto n.° 83/V —dentro do discurso argumentativo que se vem desenvolvendo — ser realizadas através de operações de tesouraria (em causa não está de maneira alguma, directa ou indirectamente, um acto de gestão do património de tesouraria), tinham elas de ser inscritas, embora a um nível meramente previsivo, no Orçamento do Estado do ano a que respeitassem. Isto o que resulta imediatamente das regras da anualidade e da plenitude, as quais, como se viu, têm efectivamente assento constitucional.
Prescrevendo de outro modo, a norma do n.° 2 do artigo 7.° violou o disposto no artigo 108.°, n.os 1 e 5, em conjugação com o artigo 93.°, alínea c), ambos da CRP, e tem por isso de ser considerada inconstitucional.
19 — Pelos motivos expostos, o T. Const. decide:
a) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.°, 2.°, n.° 1, 4.°, 8.° e 9.° do Decreto n.° 83/V da AR;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 7.°, n.° 2, do mesmo diploma, por violação dos princípios constitucionais da anualidade e da plenitude do orçamento.
Lisboa, 31 de Maio de 1988. — Raul Mateus (vencido parcialmente, nos termos da declaração de voto junta) — José Magalhães Godinho — Luís Nunes de Almeida — Antero Alves Monteiro Dinis —fosé Martins da Fonseca — Vital Moreira (vencido em parte, conforme declaração de voto junta) — Messias Bento (vencido em parte, nos termos da declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Cardoso da Costa) — Mário de Brito (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) — José Manuel Cardoso da Costa (vencido em parte, conforme declaração de voto) — Armando Manuel Marques Guedes (vencido.parcialmente, nos termos da declaração de voto).
Declaração de voto
1 — Entendi que o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, consignado no n.° 1 do artigo 83.° da CRP, interpretado este dispositivo em relação5sistemá-tica com o n.° 2 do mesmo artigo, proibia apenas a desnacionalização de empresas no exacto sentido que no acórdão se deu a tal acto jurídico.
Consequentemente, entendi ainda que esse princípio já não impunha que o capital existente à data das nacionalizações, e muito menos o capital resultante da
incorporação das reservas nessa altura existentes, tivesse obrigatoriamente de permanecer nas mãos de entidades públicas. Deste modo, e quanto a esta interpretação alargada do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, fiquei vencido.
Por isso, e face à interpretação estrita de tal princípio, a que tive por correcta, votei naturalmente que, no plano do artigo 83.°, n.° 1, da CRP, se não verificava qualquer inconstitucionalidade por parte das normas em questão do Decreto n.° 83/V.
De facto, e face a este posicionamento interpretativo, tive ainda como de todo em todo irrelevante que no regime do Decreto n:° 83/V se impedisse ou não a venda a entidades privadas do capital superveniente de empresas nacionalizadas, ainda que aquele mesmo capital tivesse resultado da incorporação de reservas.
É que nesses casos de aumento de capital, aos quais se refere directamente o artigo 9.° do Decreto n.° 83/V, se assegura que a maioria absoluta do capital (e, consequentemente, a gestão das empresas) continua sempre a ser detida pela parte pública [artigo 2.°, n.° 1, alínea b)], a isto acrescendo que o juízo sobre a desnacionalização ou não das empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974, e ao menos em princípio, sempre haveria de ser de ordem global. Ou seja, e atenta a regulamentação constante do artigo 89.° da CRP, sempre teria de incidir sobre tais empresas, consideradas como unidades produtivas, e não sobre partes delas: aquele artigo 89.° distribui pelos diversos sectores de propriedade os meios de produção, e não fracções deles.
Por estas razões, e só por estas razões, votei a não inconstitucionalização das normas dos artigos 1.°, 2.°, n.° 1, 4.°, 8.° e 9.° do Decreto n.° 83/V, face ao disposto no artigo 83.°, n.° 1, da CRP.
2 — Uma última nota se impõe registar. Tendo sido derrotado no que respeita à interpretação do artigo 83.°, n.° 1, da CRP (o T. Const. interpretou-o como proibindo ainda a alienação em favor de entidades privadas do capital económico existente à data das nacionalizações nas empresas nacionalizadas), considerei que, apesar do meu posicionamento sobre este ponto, não estava impedido de me pronunciar sobre uma questão nova, qual era a de saber se seria possível fazer uma interpretação conforme a CRP da norma do artigo 2.°, n.° 1, alínea a), do Decreto n.° 83/V.
E, pronunciando-me a propósito — e sempre com ressalva da leitura por mim feita do artigo 83.°, n.° 1, da CRP—, secundei a argumentação do acórdão e respondi, pois, positivamente.
Raul Mateus.
Declaração de voto 1 — Introdução
Votei pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.°, 2.°, 4.° e 9.° na parte em que elas se referem a empresas nacionalizadas, por ofensa da garantia constitucional das nacionalizações (artigo 83.° da CRP). Continuo convicto da justeza da posição que defendi noutro lugar, há já bastante tempo, de que tal garantia é infringida pela abertura das empresas nacionalizadas ao capital privado (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.a ed., 1.° vol., C.a, 1984, p. 411), opinião que não vejo razões para modificar (pelo contrário!).
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Considero incontrovertível que a garantia das nacionalizações implica garantia de tudo o que foi nacionalizado. Ora, o que historicamente foi nacionalizado foram as empresas enquanto tais, na sua totalidade, de modo a torná-las exclusivamente públicas, eliminando de todo em todo o capital privado. Disto só há que ressalvar as participações de capital estrangeiro, que foram preservadas, mas, abstraindo disso, o propósito expresso das nacionalizações foi o de nacionalizar as empresas a 100 %, furtando-as integralmente à lógica do capital privado.
O objecto da nacionalização não foi um determinado montante de capital social, ou um certo volume patrimonial; foi a empresa enquanto tal, independentemente do seu capital e do seu património concreto em certo momento.
O sentido das nacionalizações não foi apenas conferir ao Estado posição dominante no capital das empresas nacionalizadas e na sua gestão. Para isso bastar--lhe-ia nacionalizar uma parte maioritária do capital e, em alguns casos, nem sequer precisaria de ter nacionalizado nada, pois a participação pública em várias empresas nacionalizadas já era dominante antes da nacionalização.
A razão de ser das nacionalizações foi a de subordinar as empresas nacionalizadas a uma lógica exclusivamente pública, sem ter de fazer concessões ao capital privado e aos valores do lucro que este predominantemente implica.
Ora, são estas as nacionalizações concretas que estão constitucionalmente garantidas.
São essas nacionalizações, tal como foram efectuadas, que estão constitucionalmente protegidas.
O artigo 83.° da CRP mais não é do que a consolidação jurídica do status quo em matéria de nacionalizações, uma garantia do adquirido, uma proibição de modificação da situação estabelecida.
2 — Sentido e alcance das nacionalizações
O artigo 83.° não garante as nacionalizações em abstracto. Considera irreversíveis, concretamente, as nacionalizações efectuadas no período revolucionário, naturalmente com o sentido e alcance que tiveram.
A garantia constitucional das nacionalizações abrange, por isso, as nacionalizações tal como foram feitas. O sentido da garantia constitucional é o de que o que foi nacionalizado, nacionalizado está. O que a CRP impede é que deixe de estar nacionalizado, no todo ou em parte, aquilo que foi nacionalizado.
Ora, o que é que foi nacionalizado? Qual foi o objecto das nacionalizações?
É fácil responder.
Uma rápida vista de olhos sobre os diplomas que procederam às nacionalizações mostra superabundan-temente que, salvo nos casos de empresas com participação de capital estrangeiro —em que a nacionalização teve por objecto apenas o capital nacional—, nos demais casos (que são a esmagadora maioria) a nacionalização incidiu sobre a empresa em si mesma (sem cuidar sequer de distinguir o capital que já era público à data da nacionalização).
Vale a pena mencionar alguns exemplos ilustrativos:
Decreto-Lei n.° 132-A/75, de 14 de Março (nacionalização da banca):
Artigo 1.° — 1 — São nacionalizadas todas as instituições de crédito [...}
Decreto-Lei n.° 135-A/75, de 15 de Março (nacionalização dos seguros):
Artigo 1.° — 1 — São nacionalizadas todas as companhias de seguros [...]
Decreto-Lei n.° 221-A/75, de 9 de Maio (nacionalização dos cimentos):
Artigo 1.° — 1 — São declaradas nacionalizadas [...] as sociedades a seguir indicadas [..]
2 — São nacionalizadas as acções da SECIL [...] salvo as pertencentes a indivíduos de nacionalidade estrangeira [...]
Decreto-Lei n.° 205-A/75, de 16 de Abril (nacionalização do sector petrolífero) :
Artigo 1.° — 1 — São declaradas nacionalizadas [... ] as sociedades petrolíferas a seguir indicadas [...]
2 — São nacionalizadas as quotas da [...] SOPONATA pertencentes a sociedades [... j que reúnam os requisitos de nacionalidade portuguesa [...]
Decreto-Lei n.° 205-B/75, de 16 de Abril (nacionalização da CP):
Artigo 1.° — 1 —A Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses é declarada nacionalizada [...]
Decreto-Lei n.° 205-G/75, de 16 de Abril (nacionalização das companhias de electricidade):
Artigo 1.° — 1 — São declaradas nacionalizadas [...] as sociedades exploradoras do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica a seguir indicadas [...]
Decreto-Lei n.° 434/75, de 14 de Agosto (nacionalização de empresas mineiras):
Artigo 1.° — 1—É declarada nacionalizada [...] a Sociedade Mineira Santiago, S. A. R. L.
2 — São igualmente declaradas nacionalizadas [...] as acções das Pirites Alentejanas, S. A. R. L., salvo as pertencentes a indivíduos de nacionalidade estrangeira [...]
Os exemplos poderiam multiplicar-se. O que neles se mostra inequivocamente é que, salvo no caso de empresas com capital estrangeiro, o que foi nacionalizado foi a empresa em si mesma, a empresa na sua globalidade. Para não restarem nenhumas dúvidas a esse respeito, os diplomas de nacionalização contêm um preceito que reza assim:
A universalidade dos bens, direitos e obrigações que integram o activo e o passivo das sociedades nacionalizadas ou que se encontrem afectos à sua exploração são transferidos para o Estado, integrados no património autónomo das respectivas empresas ou a eles igualmente afectos. [V., por exemplo, o artigo 3.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 221-A/75, o artigo 3.°, n.° 1, do Decreto--Lei n.° 221-B/75 e o artigo 3.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 205-A/75, etc.J
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À face disto, como é que é possível sustentar que a nacionalização teve por objecto apenas o «capital historicamente existente» à data da nacionalização? Pois não é evidente que, salvo o caso das empresas com capital estrangeiro, se nacionalizaram as empresas enquanto tais, enquanto organizações de produção, afastando de todo em todo o capital e a gestão privados?
O que as nacionalizações fizeram transferir para a titularidade do Estado foi não apenas o capital da empresa (no todo ou em parte), mas sim a empresa em si mesma.
Escreve um especialista (aliás citado no acórdão):
Como é sabido, a nacionalização tanto pode operar-se pela apropriação [...] das participações sociais (acções) como pela apropriação da sociedade (empresa) em si mesma. Num como noutro caso, é certo que estamos perante uma empresa nacionalizada, mas, na primeira hipótese [...] somente [passou] para a titularidade do Estado o seu capital (as acções que o representam). [J. Simões Patrício, Curso de Direito Económico, 2.a ed., p. 536.]
Não é difícil ver, pelos exemplos acima transcritos, que, na generalidade dos casos, a nacionalização importou a «apropriação da sociedade (empresa) em si mesma» e que só nos casos de empresas com participação estrangeira é que a nacionalização se limitou «à apropriação das participações sociais» nacionais. Na primeira figura, a nacionalização traduziu-se na transferência para o sector público da «universalidade dos bens, direitos e obrigações que integram o activo e o passivo das sociedades nacionalizadas», como refere o preceito dos diplomas de nacionalização acima transcrito.
Ora, se o que foi nacionalizado foi a própria empresa, em si mesma, de modo a torná-la integralmente pública, então constitui desnacionalização todo o acto que privatize, mesmo que apenas em parte, essa empresa. Como já se disse no Acórdão n.° 11/84 deste Tribunal, «desnacionalização é um acto de sinal contrário [à nacionalização]: directa ou indirectamente dirigido à reintegração, quase sempre por inteiro, da empresa nacionalizada no sector privado». «Quase sempre por inteiro», diz-se na expressão agora sublinhada, mas pode ser também apenas «por partes», que isso não é menos desnacionalização.
É indiferente que a privatização tenha por objecto apenas a parte de capital em excesso em relação ao capital da empresa à data da nacionalização, pois (não é de mais insistir) o que foi nacionalizado não foi um certo capital, mas sim a empresa em si mesma, como entidade dinâmica, como organização empresarial. Uma empresa não é como um prédio em propriedade horizontal, nem os aumentos de capital entretanto ocorridos são uma espécie de andar a mais, construído sobre os existentes à data da nacionalização, ao qual fosse lícito alienar sem prejuízo dos andares originários. É óbvio que a entrada de capital privado e a consequente intervenção privada na gestão afectam toda a empresa, que deixa de ser integralmente nacionalizada, de ser gerida exclusivamente por entidades públicas e em atenção exclusivamente ao interesse público.
Em conclusão: a privatização, ainda que parcial e minoritária, das empresas nacionalizadas — pelo menos das que foram nacionalizadas integralmente — confi-
gura uma clara violação da garantia constitucional das nacionalizações. A privatização parcial é necessariamente desnacionalização parcial. É posição que defendo desde há muito (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., loe. cit.) e que o presente caso não fez mais do que arreigar.
Compartilho, assim, das posições que na doutrina consideram constitucionalmente ilícitas soluções como as do presente diploma e tenho por manifestamente inconvincentes as tentativas (laboriosas ou sumárias) de as defender. Com Guilherme de Oliveira Martins, penso que «com este 'expediente' poder-se-ia, afinal, retirar conteúdo à disposição constitucional, que, assim, seria contornada e violada» (Constituição Económica, \.° vol., 1983, pp. 78 e seg.).
3 — Desnacionalização e privatização
Não é por acaso que o diploma em causa ficou vulgarmente conhecido como lei das privatizações. Ora, só se privatiza aquilo que é público e, quando se trata de empresas públicas por via de nacionalização, então a privatização é desnacionalização.
É desnacionalização na medida em que toda e qualquer privatização — por injecção de capital privado ex novo ou por alienação do actual capital público — de uma empresa totalmente nacionalizada implica, ipso Jacto, um atentado à nacionalização.
A garantia das nacionalizações implica o respeito pelo sentido e propósito das nacionalizações, tal como elas ocorreram. Ora, é fácil ver que as normas em apreço conduziriam, em certos casos, a retirar todo e qualquer sentido à nacionalização. Basta recordar o exemplo já referido das nacionalizações de empresas em que o Estado já detinha maioria do capital. Nestes casos, as normas aqui em consideração permitiriam a privatização de um montante igual ao capital nacionalizado. A nacionalização será integralmente inutilizada. Volta-se ao status quo anterior a nacionalização. Como é que se pode dizer então que não foi afectada a nacionalização? A proibição de desnacionalização não pode ser compatível com actos que desfazem o efeito da nacionalização.
Acresce que o objectivo do presente diploma é contraditório, em si mesmo, com a garantia das nacionalizações.
Na própria «exposição de motivos» da proposta de lei n.° 18/V, que deu origem ao presente diploma, afirma-se expressamente que ela «vem iniciar um processo de abertura ao sector privado do capital de empresas [públicas]» (Diário da Assembleia da República, 2.a série, de 5 de Dezembro de 1987, p. 54). Um periódico especializado entendeu que «neste diploma vem o Governo franquear as portas das empresas públicas à intervenção da dinâmica privada» (Jornal do Comércio, de 26 de Janeiro de 1988, p. 5).
Neste contexto não sei se se pode sustentar — como se faz no acórdão — que as empresas assim «abertas ao sector privado» ou «franqueadas à intervenção da dinâmica privada» permanecem, mesmo assim, no sector público e não passam, pelo menos parcialmente, para o sector privado. Como quer que seja, o que não vejo é como se pode contestar que, pelo menos, é o sector privado que entra nas empresas públicas. O que
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resta saber é se existe alguma diferença entre as duas coisas, em termos constitucionais. Por minha parte, não vejo nenhuma.
4 — Nacionalização e sector público
O princípio das nacionalizações — repete-se — foi o da nacionalização integral das empresas abrangidas (com a já referida ressalva das participações estrangeiras). Se a nacionalização opera a 100%, parece evidente que a empresa deixa de ser tão nacionalizada como era quando ela passa a estar nacionalizada apenas a 51 %.
Uma tal empresa talvez ainda deva considerar-se integrada no sector público — como se defende no acórdão— para efeitos do artigo 89.° da CRP (ou porventura, até, para efeitos do artigo 85.°, n.° 3). Todavia, isso ainda tem a ver com a garantia constitucional das nacionalizações, expressa no artigo 83.°, pois a verdade é que este, nem na sua letra, nem no seu espírito, não se limita a garantir que as empresas nacionalizadas permaneçam no sector público.
Não é de aceitar o pressuposto de que o acórdão parte — e que não dedica grande espaço a demonstrar —, segundo o qual a garantia das nacionalizações equivale simplesmente a proibir a transferência das empresas nacionalizadas para o sector privado, o que seria compatível com participações privadas, desde que minoritárias, nas empresas nacionalizadas.
Como já mostrei antes, as nacionalizações não consistiram apenas em transferir empresas para o sector público, visto que, por um lado, algumas já lá estavam antes da nacionalização (pois já eram empresas mistas com maioria de capital público) e, por outro lado, para alcançar aquele objectivo bastaria ter nacionalizado o capital suficiente para perfazer a maioria de capital público. Ora, como se viu, não foi apenas isso que sucedeu. Por isso, garantir as nacionalizações é assegurar a persistência das empresas nacionalizadas como empresas totalmente nacionalizadas.
O argumento tirado do n.° 2 do artigo 83.° a favor da tese do acórdão é manifestamente bem frágil. O que desse preceito se pode e deve razoavelmente retirar é que as pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas não gozam da garantia das nacionalizações, podendo, inclusivamente, ser integradas plenamente no sector privado, mediante a sua total desnacionalização ou privatização. Isto não quer dizer que só a privatização integral ou maioritária é que seria violadora da garantia das nacionalizações.
Por conseguinte, o n.° 2 não pode ser convincentemente utilizado, num suposto argumento a contrario sensu, para concluir que a privatização parcial minoritária não constitui ofensa à garantia das nacionalizações. O facto de se admitir uma excepção à garantia das nacionalizações e de se ir ao ponto de, em certos casos, se permitir privatização total, com integração total da empresa no sector privado, não quer dizer que a privatização parcial não seja também uma ofensa à garantia das nacionalizações. A privatização total, a integração plena no sector privado, é a hipótese extrema da desnacionalização; mas a privatização parcial é também uma forma (menos extrema, mas não menos inconstitucional) de desnacionalização.
Também no artigo 32.° da CRP, depois de se garantir o direito à liberdade, se menciona, como excep-
ção, apenas a prisão, quer a repressiva (n.° 2), quer a preventiva (n.° 3). E, todavia, ninguém pretenderia fazer decorrer daqui, a contrario sensu, que só a prisão é que atenta contra a liberdade. A prisão é a última ratio de perda da liberdade, havendo outras medidas atentatórias da garantia da liberdade (medidas de privação parcial da liberdade) que não são menos inconstitucionais (v. o Acórdão n.° 7/87).
Serve isto para concluir que o n.° 2 do artigo 83.° não pode ser utilizado para interpretar o n.° 1, no sentido em que o acórdão o faz, não apenas porque aquele preceito pode ter — e, a meu ver, tem — um sentido bastante diverso do que lhe foi dado, mas também porque a conclusão a que tal conduziria seria manifestamente incongruente com o alcance e sentido histórico e sistemático do n.° 1, que, indubitavelmente, teve o propósito de salvaguardar o acquis em matéria de nacionalizações, impedindo retrocessos nessa área.
5 — Privatização e capital nacionalizado
A redução da irreversibilidade das nacionalizações à garantia de que as empresas nacionalizadas permaneçam maioritariamente no sector público — tal é o ponto de partida do acórdão— conduziria, logicamente —para levar o raciocínio até ao fim—, à conclusão que isso é condição necessária e também é suficiente. Para garantir as nacionalizações é preciso —e seria apenas preciso— que a empresa nacionalizada se mantivesse no sector público através do predomínio público no capital e na gestão. Nada mais seria exigido. Ou seja: nem sequer seria necessário garantir a não privatização do capital efectivamente nacionalizado em 1974-1976, desde que a sua reprivatização não afectasse a regra da maioria do capital público. A conclusão lógica salta à vista: o Estado poderia desfazer-se mesmo de capital efectivamente nacionalizado desde que não afectasse a maioria de capital público!...
O acórdão guarda-se de avançar para essa conclusão. Mas este «pequeno» passo suplementar em frente na linha daquele raciocínio não deixou de ser dado por alguns (é caso para dizer abyssus abyssum invocai...). É um facto evidente que essa tese choca fragorosamente com a norma constitucional, pois, se a lei fundamental assevera que «todas as nacionalizações [... ] são conquistas irreversíveis», não se vê nenhum meio de afirmar que a irreversibilidade das nacionalizações é compatível com a desnacionalização do que foi nacionalizado. É ir contra lei expressa. É indefensável. Está para além de todos os limites suportáveis de esvaziamento das normas constitucionais.
Mas há uma coisa que se não pode dizer dessa tese. É que ela não seja coerente e consequente do pressuposto de que parte o acórdão. Este constrói um silogismo assim:
1) Nacionalizar é passar empresas para o sector público e desnacionalizar é passá-las para o sector privado;
2) As empresas mistas de capital e gestão maioritariamente públicos pertencem ao sector público;
3) Logo, a transformação das empresas nacionalizadas em empresas mistas de maioria pública não desnacionaliza essas empresas.
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Já se viu acima como este silogismo está viciado logo na primeira premissa. Mas, quando ele é aceite como bom, então é lógico que se conclua que é indiferente o destino do capital efectivamente nacionalizado. Se se nacionalizou 100, mas se bastam 51 para que a empresa se mantenha no sector público, então, logicamente, o Estado pode alienar, privatizar, 49 sem atentar contra as nacionalizações, porque a empresa continua no sector público!...
Mostrou-se como esta conclusão é insustentável à luz da Constituição; a verdade é que, quer a lei, quer o acórdão, atrás dela, consideram irreprivatizável o capital historicamente nacionalizado [embora não garanta a sua permanência nas mãos do Estado, visto que a alínea a) do n.° 1 do artigo 2.° se limita a garantir a sua detenção pela parte pública, o que é coisa diferente, como se vê pelo n.° 2 desse mesmo preceito]. Mas aquela conclusão lógica tem uma importante virtualidade: é a de mostrar que o raciocínio em que assenta o acórdão não pode estar correcto. Se um raciocínio, levado às suas naturais consequências, conduz a soluções insustentáveis, por absurdas, então é porque ele tem algo de errado.
A interpretação em que, afinal, se firma o acórdão, segundo a qual a garantia das nacionalizações só impediria a alienação do montante do capital historicamente nacionalizado em 1974-1976, conduz, também ela, a conclusões perfeitamente absurdas.
Basta atentar numa delas.
Por um lado, é fácil de verificar que as empresas em que antes da nacionalização o Estado já detinha forte participação eram, em geral, as empresas mais relevantes sob o ponto de vista do controle público da economia. Nesses casos, a nacionalização limitou-se a transferir para o Estado a parte restante do capital da empresa, o que, em alguns casos, era mesmo uma parte menor. Ao contrário, noutros sectores, estrategicamente menos relevantes, a participação pública era menor, pelo que a nacionalização abrangeu uma parte relativamente maior do capital das empresas abrangidas pela nacionalização. Neste contexto, é fácil vislumbrar o resultado absurdo a que chega a tese segundo a qual a garantia das nacionalizações apenas implica a proibição de alienação do montante de capital efectivamente nacionalizado em 1974-1976. É que, em primeiro lugar, a garantia das nacionalizações —que teve em todos os casos o mesmo propósito de tornar as empresas 100 % públicas— passa a ter um alcance diverso, conforme a empresa já fosse mais ou menos participada pelo sector público. Por outro lado, e mais importante, a garantia das nacionalizações passou a ser, em regra, tanto mais débil quanto mais importante for o sector em que elas ocorreram (partindo do princípio, que julgo corresponder à realidade, de que a participação pública era maior nos sectores mais importantes). Assim, a garantia das nacionalizações seria mais frustre no caso da TAP ou da CP do que no caso das empresas rodoviárias ...
Acresce que, nesses casos, em que o capital que ainda não era público era menor do que aquele que já o era, a lei em apreço permite que seja privatizado um montante de capital maior do que o que foi nacionalizado.
Nestes termos, a proibição de alienação do montante historicamente nacionalizado é uma pura falácia. A verdade é que, se se nacionalizou só uma parte do capital, é porque nada mais havia para nacionalizar, porque já era «nacional».
6 — Privatização parcial e sectores vedados à iniciativa privada
O diploma em apreço não é explícito quanto a saber se o regime nele previsto se aplica também às empresas públicas dos sectores vedados à iniciativa privada (nos termos da Lei n.° 46/77, de 8 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei n.° 406/83, de 19 de Novembro).
No seu pedido o Presidente da República suscita expressamente a questão da compatibilidade das normas em causa com o artigo 85.°, n.° 3, da CRP, que prevê justamente a existência de sectores vedados à iniciativa privada.
O acórdão parte do pressuposto de que o presente diploma se aplica também às empresas públicas dos sectores vedados para concluir que não existe nenhuma violação do artigo 85.°, n.° 3, pela mesma razão que não existe violação do artigo 83.°, n.° 1, a saber, que as empresas, mesmo transformadas em empresas mistas, se mantêm dentro do sector público, uma vez que nelas está garantido o predomínio público, quer no capital, quer na gestão. Donde continuaria a valer a vedação dessas actividades a empresas privadas.
Este discurso suscita algumas observações.
Em primeiro lugar, não é líquido se este diploma pretende derrogar a Lei n.° 46/77, a qual, salvo algumas excepções, proíbe de todo em todo a intervenção privada nos sectores vedados, reservando-os para empresas exclusivamente públicas.
Por um lado, é certo que na proposta de lei originária se ressalvavam expressamente os sectores vedados (v. Diário da Assembleia da República, 2." série, de 5 de Dezembro de 1987, p. 541) e que tal inciso veio a desaparecer do texto finalmente aprovado, o que apontaria para a ideia de que se pretendeu afastar tal ressalva; por outro lado, porém, é estranho que uma alteração de tal alcance, a ter sido desejada, não conste expressamente do presente diploma e não tenha sequer sido mencionada (e muito menos sublinhada) nos debates e não tenha suscitado ao menos um reparo por parte das forças políticas parlamentares que se opuseram à lei na AR.
Como quer que seja, admitindo, sem discutir, a hipótese de que este diploma derroga a Lei n.° 46/77, permitindo a transformação de empresas públicas dos sectores vedados à iniciativa privada em sociedades de capital misto, abertas ao capital privado, é tudo menos seguro que tal solução seja constitucionalmente lícita, ao contrário do que o acórdão dá por adquirido, sem grandes esforços de demonstração. E que, por um lado, é fácil ver que a Lei n.° 46/77 supõe claramente que a lógica dos sectores vedados à iniciativa privada exclui, em princípio, a abertura das empresas desses sectores ao capital privado (v. artigos 8.° e 5.°, n.° 2, da referida lei); por outro lado, pode defender-se, com bons argumentos, que é essa a solução mais consentânea com a intenção normativa do referido preceito constitucional, o qual, ao fazer vedar certos sectores básicos às empresas privadas, procura interditar-lhes toda e qualquer intervenção nesses sectores, mesmo em posição minoritária em empresas mistas, já que isso sempre introduziria uma lógica económica incongruente com a razão de ser do princípio constitucional da vedação de certos sectores básicos ao capital privado. É, pois, fundadamente defensável a tese de que, quando a CRP veda certos sectores económicos —por serem sectores básicos— a «empresas privadas e a outras entidades
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da mesma natureza», quis interditar o acesso a esses sectores de todas as empresas com uma componente privada (cf., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, pp. 417 e seg. e nota vi ao artigo 85.°).
Mas, mesmo que a solução haja de ser outra, isto é, concedendo que as empresas mistas com predomínio público já não sejam empresas privadas nem «entidades da mesma natureza» para efeitos do artigo 85.°, n.° 3, da CRP, a verdade é que essa conclusão não pode servir de sufrágio à tese de que, pela mesma razão, não haveria violação do artigo 83.°, n.° 1. É que — não é de mais sublinhá-lo— a CRP não se limita a proibir que as empresas nacionalizadas sejam transformadas em empresas privadas; o que a lei fundamental proíbe é a sua desnacionalização, tout court. Ora, como acima se demonstrou, uma empresa nacionalizada fica parcialmente desnacionalizada quando uma parte do seu capital passa a ser privado.
A empresa parcialmente privatizada pode não ser ainda uma empresa privada em sentido próprio, mas já não é seguramente uma empresa integralmente nacionalizada.
7 — A garantia institucional das empresas públicas
Nos termos do artigo 1.°, as empresas públicas podem ser transformadas em sociedades anónimas (de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos). A norma não estabelece nenhuma excepção ou limite. Todas as empresas públicas podem ser transformadas em sociedades anónimas.
Isto quer dizer que, no limite, poderá deixar de haver empresas públicas, com a consequente caducidade do seu actual estatuto genérico (o Decreto-Lei n.° 260/76).
O problema constitucional que aqui se suscita é o seguinte: pode deixar de haver empresas públicas stricto sensu? A figura de empresa pública pode ser legalmente abolida?
A questão pode parecer, à primeira vista, ociosa. Mas não é. A questão é constitucionalmente relevante na medida em que a figura da empresa pública encontra-se explicitamente prevista na CRP [artigos 102.°, n.° 1, alínea b), 109.°, n.° 2, 168.°, n.° 1, alínea v), e 229.°, alínea f)].
É certo que não existe nenhuma norma a determinar expressamente a existência de empresas públicas, podendo, portanto, defender-se que à CRP é indiferente a subsistência de empresas públicas stricto sensu.
Não me parece ser essa a melhor interpretação. Julgo que o entendimento correcto é o de que estamos perante uma verdadeira e própria garantia institucional, isto é, de uma figura jurídica que, independentemente dos seus contornos específicos e do seu âmbito concreto de aplicação, é de existência constitucionalmente obrigatória, não podendo ser suprimida.
Existe uma inegável ligação entre a previsão constitucional da figura da empresa pública e a obrigatoriedade constitucional de um sector público [artigo 89.°, n.° 2, alínea a)], composto pelas «unidades de produção de propriedade colectiva, geridas pelo Estado». Naturalmente que não existe uma obrigação constitucional de as empresas do sector público revestirem necessariamente, todas elas, a forma de empresa
pública. Mas é de concluir que para a CRP a forma de empresa pública é a forma normal das empresas do sector público.
A este propósito, cabe ainda assinalar que o artigo 1.° do diploma não excepciona nenhuma empresa pública, nem sequer o Banco de Portugal, que também parece poder ser transformado em sociedade anónima mista, participada de capital privado até 49,9%.
É certo que a transformação das empresas públicas' se deve dar «nos termos da CRP». Mas, aparentemente, essa norma tem a ver apenas com o processo de transformação das empresas.
Como quer que seja, a verdade é que, a admitir-se que a lei não quis excluir o Banco de Portugal, então ela deve ser tida por inconstitucional. O Banco de Portugal está previsto na própria CRP «como banco central», com o «exclusivo da criação de moeda», colaborando, «de acordo com o Plano e as directivas do Governo [...], na execução das políticas monetária e financeira» (CRP, artigo 105.°, n.° 2). A expressa previsão constitucional do Banco de Portugal, bem como o papel que constitucionalmente lhe está confiado, fazem daquele, necessariamente, uma instituição pública, posta exclusivamente ao serviço do interesse público, o que manifestamente não se compadece com a sua transformação em sociedade mista, com a participação de capital privado e com a intervenção de uma lógica empresarial essencialmente alheia à lógica pública.
8 — Interpretação da lei fundamental e «constituição económica»
Julgo ter demonstrado que o preceito do artigo 83." não consente a privatização (total ou parcial) das empresas nacionalizadas.
Penso que isso, além de decorrer exuberantemente da letra e intenção normativa do preceito — expressa na sua fórmula enfática («conquistas irreversíveis») —, não é senão sublinhado quando se faz apelo a uma interpretação integrada dos preceitos da «constituição económica» global.
Não deixa de ser estranho que o acórdão se tenha bastado com um seco silogismo baseado num postulado perfeitamente indemonstrado — a saber: as nacionalizações não consistiram senão em transferir empresas do sector privado para o sector público —, sem cuidar minimamente de indagar sobre o propósito e sentido da garantia das nacionalizações no contexto global da «parte económica» da CRP.
Por mim, não vejo como é que é possível desligar a garantia das nacionalizações (artigo 83.°) dos princípios fundamentais da organização económica constitucional (artigo 80.°), bem como das incumbências prioritárias do Estado nesse domínio (artigo 81.°). Seguramente que as nacionalizações constituem realização e garantia de alguns dos mais eminentes princípios da constituição económica, designadamente os da «subordinação do poder económico ao poder político democrático» [artigo 80.°, alínea a)J, da «apropriação colectiva dos principais meios de produção» [artigo 80.°, alínea c)] e do «desenvolvimento da propriedade social» [artigo 80.°, alínea e), e artigo 90.°1. Não é por acaso que o artigo 90.°, n.° 2, menciona as «nacionalizações» como primeira das «condições de desenvolvimento da propriedade social», sendo que esta é inquestionavelmente uma das formas de realização da
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«democracia económica e social» em que se configura o Estado de direito democrático de vocação socialista, cuja construção a CRP visa (artigos 1.° e 2.°).
Nada disto é compaginável — antes é frontalmente contrariado — pela reprivatização, ainda que parcial, das empresas nacionalizadas, pela introdução do capital privado e da filosofia da gestão privada nas empresas públicas. Isto não favorece, antes impede, a realização daqueles princípios constitucionais.
Qualquer que seja o juízo que se faça sobre a constituição económica da CRP em sede político-constitucional, não se afigura aceitável, porém, em sede de jurisdição constitucional, que se silencie e ignore o sentido que os princípios constitucionais emprestam a cada norma singular, sobretudo àquelas normas que mais típica e emblemáticamente caracterizam a constituição económica (como sucede justamente com a do artigo 83.°).
As normas da parte económica da CRP não são diferentes das demais normas constitucionais. Não são mais «fracas», nem estão mais à disposição do legislador e do intérprete do que as demais. Não existe nenhuma razão jurídico-dogmática para se adoptar um código específico de interpretação e de aplicação das normas da constituição económica, substancialmente menos exigente e mais complacente do que aquele que se considera adequado para as normas sobre os direitos fundamentais e sobre a organização política.
Tal como já escrevi na declaração de voto de vencido ao Acórdão n.° 25/85, continuo a não poder alinhar no preconceito de que as normas da constituição económica pertencem a uma espécie de constituição menor, de segunda ordem, menos cogente e menos limitativa para o legislador, mais lábil e imprecisa, insusceptível de fundar juízos de inconstitucionalidade (salvo em casos limite de irremissível e escandaloso conflito entre norma legal e norma constitucional). Não é difícil identificar os pressupostos ideológicos que suportam essa desvalorização da constituição económica. O que penso é que ter consciência deles apenas sublinha a necessidade de afirmar enfaticamente que a constituição económica não é menos constituição e que deve ser tratada como parte a título inteiro da lei fundamentai da República.
Vital Moreira.
Declaração de voto
Nos termos do n.° 1 do artigo 83.° da CRP «todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras».
Definindo o âmbito deste preceito, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.a ed., 1.° vol., 1984, nota ih a esse artigo:
Quanto ao âmbito material, importa notar que a norma não fala em «empresas nacionalizadas», mas sim, simplesmente, em «nacionalizações». Abrange, portanto, tudo aquilo que foi objecto de um acto de nacionalização: não apenas as empresas globalmente, mas também as participações no capital de certas empresas; [... ]
Sobre a proibição de desnacionalização dizem os mesmos autores, ob. c/7., loc. cit., nota V:
Não existe desnacionalização apenas quando haja reprivatização de uma empresa inteira, enquanto tal. Da letra e da ratio da norma resulta igualmente claro que a CRP não só proíbe a desnacionalização integral, mas também a desnacionalização parcial de qualquer empresa ou exploração nacionalizada — a CRP não fala em empresas nacionalizadas, mas sim em nacionalizações, tout court. Por isso, deve ter-se por inconstitucional a alienação da propriedade ou do direito de exploração de qualquer estabelecimento ou parte distinta do património de uma empresa nacionalizada susceptível de exploração empresarial autónoma, directa e imediata; de outro modo, o Estado estaria sempre em condições de frustrar a proibição constitucional [... ]
Também parece infringir a garantia das nacionalizações a abertura das empresas nacionalizadas à participação do capital privado [...]
Na mesma orientação escreve Guilherme de Oliveira Martins, Lições sobre a Constituição Económica Portuguesa, vol. i, 1984, n.° 25:
Quanto à desnacionalização parcial, entendemos que ela não é possível à face do artigo 83.°, n.° 1, uma vez que com esse «expediente» poder-se-ia, afinal, retirar conteúdo à disposição constitucional, que, assim, seria contornada e violada. Pensamos que o direito de propriedade do Estado se reporta à totalidade dos títulos de participação no capita] nacionalizado das empresas, nesse sentido, aliás, apontando a Lei n.° 77/79, de 4 de Dezembro, designadamente no seu artigo 3.°
Com base nesta doutrina votei a inconstitucionalidade — por violação do citado preceito constitucional — das normas dos artigos 1.°, 2.°, n.° 1, 4.° e 9.° do diploma em apreciação, na parte em que elas se referem às empresas públicas nacionalizadas, bem como da norma do artigo 8.° do mesmo diploma, referente às empresas nacionalizadas que não tenham estatuto de empresa pública.
Mário de Brito.
Declaração de voto
1 — Tal como já havia entendido na declaração de voto que juntei ao Acórdão n.° 273/86 {Diário da República, l.a série, de 11 de Setembro de 1986), proferido sobre um decreto do Governo visando transformar a SOCARMAR, E. P., em sociedade anónima de capitais mistos —e, por conseguinte, já pelas razões aí expendidas—, acompanhei o precedente acórdão no seu conteúdo decisório fundamental, a saber, que a abertura do capital de empresas nacionalizadas à participação de entidades privadas, nas condições previstas no decreto da AR em apreço, não briga com o princípio constitucional da irreversibilidade das nacionalizações. Existe, de resto, e prescindindo do maior ou menor ênfase posto em certos considerandos, uma básica sintonia entre o teor da referida declaração e a fundamentação do presente aresto, no que toca a esse seu ponto central e nuclear.
Estou, porém, em divergência com tal fundamentação no que respeita ao entendimento, nela consignado,
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de que o dito princípio da irreversibilidade postula a permanência na titularidade pública (ou da «parte pública», como se diz no decreto em análise) do capital «económico» que era o das empresas nacionalizadas à data da respectiva nacionalização — ou seja, a permanência nessa titularidade não apenas do «capital» síricto sensu, «capital jurídico» ou «capital social» ao tempo de tais empresas, mas ainda das reservas então existentes entretanto incorporadas nesse mesmo «capital», provocando o seu aumento.
Continuo a entender, com efeito, que o que o princípio em causa exige, no máximo, é que continue a pertencer à «parte pública» o referido capital stricto sensu, ou «capital» em sentido técnico-jurídico, das empresas à data da nacionalização, e apenas esse. E isto —para me ater ao essencial— porque não mais é reclamado pela «lógica» das nacionalizações (e pela consequente «lógica» da sua irreversibilidade), que é uma lógica político-económica e político-jurídica, e de modo algum exclusivamente económica: a «lógica» da transferência para a titularidade «jurídica» do Estado, e para a sua gestão, de determinadas unidades produtivas, em nome de determinada concepção e programa «político», e não a da apropriação pelo Estado dessas mesmas unidades em razão do «valor» económico de respectivo património. Ora, sendo assim, claro é que a ideia básica que presidiu à nacionalização (e que determina a correspondente irreversibilidade) fica respeitada desde que o «capital social» inicial das empresas permaneça nas mãos do Estado ou de outras entidades do sector público — por isso que, determinando-se a titularidade de uma empresa e da correspondente gestão pela titularidade do correspondente «capital social», o que a nacionalização significou (e através do que se consumou) foi justamente a apropriação pelo Estado do mesmo capital das empresas que daquela foram objecto.
Exigir que, além disso, permaneça na titularidade pública o capital correspondente às reservas existentes à data da nacionalização traduzir-se-á, pois, em meu modo de ver, numa mudança de plano — susceptível de conduzir, aliás, a consequências incongruentes. Na verdade —pode perguntar-se—, se a empresa, à data da nacionalização, tivesse, em lugar de reservas, prejuízos acumulados e apresentasse uma «situação líquida» passiva, a mesma razão que leva a deverem considerar-se intransferíveis aquelas para o sector privado não deveria conduzir, nesta outra hipótese, a ter como admissível a «privatização» mesmo do capital inicial da empresa em questão, salvaguarda a maioria da participação do sector público?
Eis por que no ponto em apreço não posso acompanhar o acórdão. O que significa que continuaria a perfilhar a sua conclusão fundamental, ainda quando se entendesse que no artigo 2.°, alínea a), do diploma
sub judicio se tinha unicamente em vista o «capital» em sentido jurídico das empresas nacionalizadas à data da respectiva nacionalização.
2 — Também acompanhei o acórdão no que se refere à pronúncia da inconstitucionalidade do artigo 7.°, n.° 2, do decreto da AR em análise. Mas aqui só parcialmente.
Procurando, de igual modo, cingir-me ao essencial da questão, direi simplesmente que, pelo menos no tocante à escrituração como «operações de tesouraria» das receitas a que se reporta o n.° 1 do mesmo artigo, ela ainda será compatível com o princípio da universalidade, conjugado com o princípio da anualidade, do orçamento desde que a correspondente «regularização» — naturalmente através de um orçamento suplementar— se faça no próprio ano em que as receitas são arrecadadas e que, no tocante às despesas, não haverá, em qualquer caso, violação daqueles princípios, na medida em que tais receitas (mesmo escrituradas como «operações de tesouraria») venham a ser utilizadas na cobertura de despesas orçamentalmente previstas. É que —e quanto a este último ponto—, não se prevendo propriamente no artigo 7.° um regime de «consignação de receitas», mas tão-só a «afectação» destas a determinadas despesas públicas, o facto de aquelas virem a ser arrecadadas (isto é, o facto de virem efectivamente a realizar-se em determinado ano alienações de acções que as produzam) não tem que implicar uma automática «majoração» das últimas (para lá da correspondente dotação orçamental): bem poderá perfeitamente o Governo, em lugar disso, e por exemplo, utilizar em menor extensão o recurso aos empréstimos como meio de financiamento.
Na medida indicada, pois, não votei a inconstitucionalidade do preceito ora em causa.
Tem-se consciência, aliás, quer da complexidade da problemática que ele suscita, desde logo, ao nível financeiro, e depois, ao nível constitucional, quer do melindre e complexidade das situações que lhe estão subjacentes. Mas, se aquela parece realmente defrontar-se, no limite, com a exigência dos princípios da CRP, em matéria de organização orçamental, atrás referidos, crê--se, não obstante, por outro lado, que as preocupações e os objectivos que estarão na base da disposição sempre poderão vir a encontrar uma diversa resposta — uma resposta que, dando-lhes do mesmo modo satisfação, seja a um tempo mais conforme com os aludidos princípios.
José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Vencido parcialmente, nos termos do n.° 1 da declaração de voto do Ex.m0 Sr. Conselheiro Raul Mateus. — Armando Manuel Marques Guedes.
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