Página 119
Sábado, 30 de Novembro de 2002 II Série-B - Número 22
IX LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2002-2003)
S U M Á R I O
Votos (n.os 29 a 31/IX):
N.º 29/IX - De condenação dos actos criminosos que vitimaram crianças e jovens da Casa Pia e de apelo às autoridade judiciárias competentes para que prossigam, com a máxima celeridade e empenhamento, o seu trabalho de investigação e para que sejam devidamente responsabilizados os autores e cúmplices daqueles actos (apresentado pelo Presidente da Assembleia da República, PSD, PS, CDS-PP, PCP, BE e Os Verdes).
N.º 30/IX - Sobre o desastre com o petroleiro Prestige (apresentado pelo PSD e CDS-PP).
N.º 31/IX - Sobre o desastre ecológico com o petroleiro Prestige (apresentado pelo PSD, CDS-PP e BE).
Petição n.º 7/IX (1.ª) (Apresentada por José António Mendes Rebelo e outros, sobre o negócio e o tráfico de armas ligeiras):
- Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Página 120
0120 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
VOTO N.º 29/IX
DE CONDENAÇÃO DOS ACTOS CRIMINOSOS QUE VITIMARAM CRIANÇAS E JOVENS DA CASA PIA E DE APELO ÀS AUTORIDADES JUDICIÁRIAS COMPETENTES PARA QUE PROSSIGAM, COM A MÁXIMA CELERIDADE E EMPENHAMENTO, O SEU TRABALHO DE INVESTIGAÇÃO E PARA QUE SEJAM DEVIDAMENTE RESPONSABILIZADOS OS AUTORES E CÚMPLICES DAQUELES ACTOS
Nos últimos dias, têm sido divulgados, pelos diversos órgãos da comunicação social, casos de abusos sexuais continuados envolvendo crianças e jovens adolescentes da Casa Pia de Lisboa.
Estas chocantes notícias têm abalado profundamente a sociedade portuguesa e necessitam de ter, por parte da justiça nacional, uma resposta exemplar e conforme ao sentimento comum de combate à impunidade dos que perpetuaram tais actos hediondos.
Acresce a perplexidade, também generalizada, pela notícia de que terá havido conhecimento pretérito das autoridades judiciárias competentes, mas de que o processo então aberto terá prescrito ou findo de forma inconclusiva.
Sendo a pedofilia um crime bárbaro e repulsivo que afecta, de forma tenaz vítimas indefesas, necessita ser tratado com o máximo empenhamento e prioridade absoluta.
Tal importa serem as investigações conduzidas com a maior celeridade e, acima de tudo, com a eficácia merecida, para que seja alcançada a tão esperada, por todos, descoberta da verdade material, apuradas todas as responsabilidades e exemplarmente punidos os culpados.
Não podem deixar de ser profundamente condenados os acontecimentos agora vindos a público, mas deve ser preservada a instituição Casa Pia de Lisboa, que tem uma história absolutamente modelar, sendo que a sociedade portuguesa muito deve aos casapianos.
Às vítimas; além da incondicional condenação pelo sucedido, uma palavra muito firme: que seja feita justiça em prazo adequado.
Assim, a Assembleia da República condena sem reservas os actos criminais que vitimaram crianças e jovens da Casa Pia e apela veementemente às autoridades judiciárias competentes para que prossigam, com a máxima celeridade e empenhamento, o seu trabalho de investigação e para que sejam devidamente responsabilizados os autores e cúmplices de actos tão hediondos.
Assembleia da República, 27 de Novembro de 2002. - O Presidente da Assembleia da República, João Bosco Mota Amaral - Os Deputados: Guilherme Silva (PSD) - Luís Marques Guedes (PSD) - Telmo Correia (CDS-PP) - Maria de Belém Roseira (PS) - José Magalhães (PS) - Bernardino Soares (PCP) - Francisco Louçã (BE) - Isabel Castro (Os Verdes).
VOTO N.º 30/IX
SOBRE O DESASTRE COM O PETROLEIRO PRESTIGE
O afundamento do petroleiro Prestige, no dia 19 de Novembro, ao largo da costa galega veio provocar um desastre ecológico, com consequências imprevisíveis. A maré negra devastou as praias da Galiza, ameaçando os pescadores que foram obrigados a cessar temporariamente as suas actividades nas zonas afectadas, pondo assim em risco a subsistência de centenas de famílias.
É de salientar que, quando surgiu a iminência de perigo para Portugal, o Governo português defendeu, em devida altura, o interesse nacional, fazendo saber, com a actuação da Marinha, que não aceitaria a rota de aproximação do petroleiro à sua Zona Económica Exclusiva nem permitiria que o petroleiro viesse atracar a Portugal.
O Governo português defendeu o interesse nacional quando, atempadamente, reagiu ao desastre ecológico no país vizinho e disponibilizou, de imediato, militares para operações de limpeza, caso o crude chegasse à nossa costa e, ainda, numa atitude de solidariedade para como povo galego, pensa enviar, a curto prazo, voluntários portugueses da protecção civil para a Galiza para o auxílio na limpeza das praias galegas.
A Assembleia da República Portuguesa congratula-se, assim, com a prontidão das diligências tomadas pelo Governo português face a este desastre ecológico.
A Assembleia da República Portuguesa exprime ainda a sua solidariedade com as populações do litoral da Galiza e manifesta o seu apoio a todas as iniciativas nacionais e da União Europeia que possam resultar em medidas urgentes de segurança no transporte marítimo, para evitar catástrofes como a do Prestige.
Assembleia da República, 27 de Novembro de 2002. - Os Deputados: Guilherme Silva (PSD) - Telmo Correia (CDS-PP) - Álvaro Castello-Branco (CDS-PP)
VOTO N.º 31/IX
SOBRE O DESASTRE ECOLÓGICO COM O PETROLEIRO PRESTIGE
O afundamento do petroleiro Prestige, no dia 19 de Novembro, ao largo da costa galega veio provocar um desastre ecológico com consequências imprevisíveis. A maré negra devastou as praias da Galiza, ameaçando os pescadores que foram obrigados a cessar temporariamente as suas actividades nas zonas afectadas, pondo assim em risco a subsistência de centenas de famílias, e ameaçando, igualmente os países limítrofes, podendo vir a ter consequências para Portugal.
É de salientar que, quando surgiu a iminência de perigo para Portugal, o Governo defendeu o interesse nacional ao fazer saber, com a actuação da Marinha, que não aceitaria a rota de aproximação do petroleiro à Zona Económica Exclusiva nem permitiria que o petroleiro viesse atracar a Portugal. A Assembleia da República congratula-se com essa tomada de posição.
O Governo actuou adequadamente ao reagir ao desastre ecológico com a disponibilização de militares para operações de limpeza; caso o crude chegasse à nossa costa.
Cabe ao debate político definir uma estratégia necessária e as medidas urgentes para o combate aos crimes ambientais e para o reforço da segurança marítima, nomeadamente no âmbito do reforço ou construção de meios próprios nacionais para o combate à poluição.
A Assembleia da República exprime a sua solidariedade com as populações do litoral da Galiza e manifesta o seu apoio a todas as iniciativas nacionais e da União Europeia que possam resultar em medidas urgentes de segurança
Página 121
0121 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
no transporte marítimo, para evitar catástrofes como a do Prestige e para melhorar a coordenação internacional no combate aos crimes ambientais.
A Assembleia da República regista e apoia a disponibilidade manifestada pelo Governo para enviar, a curto prazo, voluntários portugueses da protecção civil para a Galiza para o auxílio na limpeza das suas praias.
Assembleia da República, 28 de Novembro de 2002. - Os Deputados: Luís Marques Guedes (PSD) - Telmo Correia (CDS-PP) - Francisco Louçã (BE).
Nota: Este voto substitui os votos n.os 27 e 30/IX.
PETIÇÃO N.º 7/IX (1.ª)
(APRESENTADA POR JOSÉ ANTÓNIO MENDES REBELO E OUTROS, SOBRE O NEGÓCIO E O TRÁFICO DE ARMAS LIGEIRAS)
Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
I - Introdução
Ao abrigo do exercício do direito de petição previsto na Lei n.º 43/90, de 10 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/93, de 1 de Março, os peticionários vêm apresentar à Assembleia da República a petição "Ousemos Desmascarar os Comerciantes da Morte", solicitando "que aborde com a maior urgência o tema e legisle, contribuindo para a clarificação do negócio e o combate ao tráfico ilícito das armas ligeiras em Portugal".
Esta petição é promovida pela Associação de Imprensa Missionária (Missão Press), Amnistia Internacional (AI) - Secção Portuguesa, Rede Fé e Justiça África-Europa (AEFJN), Comissão Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, Agência Ecclesia e Fundação Pro Dignitate, que para o efeito fizeram circular um abaixo assinado.
A petição, subscrita por mais de 95 mil assinaturas, deu entrada na Assembleia da República em 7 de Junho de 2002, em audiência do Presidente da Assembleia da República, que igualmente a subscreveu e despachou para a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
A petição cumpre os requisitos constantes do artigo 9.º da Lei n.º 43/90, nada obstando à sua admissibilidade.
II - Do objecto, motivação e conteúdo da iniciativa
Através da petição, os subscritores, manifestando-se "como cidadãos responsáveis e preocupados com os direitos humanos, não querendo ser cúmplices das mortes provocadas pelo armamento fabricado em Portugal ou pelos tráficos que se valem do secretismo português para tornar o País numa placa giratória de armas ligeiras, sobretudo para África", pretendem, como referido, o agendamento urgente de um debate em Plenário sobre o negócio e o tráfico das armas ligeiras e que a Assembleia da República aprove legislação semelhante à recentemente adoptada em Espanha, no sentido de permitir aos "cidadãos acesso aos dados referentes ao negócio do armamento, que até aqui se processou em segredo e nas suas costas".
As entidades que promovem a petição são de reconhecida idoneidade e a motivação da sua diligência sustenta-se num longo percurso de defesa dos direitos e da vida humanos, conforme é reconhecido pelo acto simbólico da subscrição da petição pelo Presidente da Assembleia da República, que assim se associa à iniciativa.
De acordo com a petição e os documentos que a instruem, a preocupação dos peticionários encontra eco em inúmeros organismos internacionais, como a ONU ou a União Europeia, e é confirmada pelo "Relatório de Segurança Interna - 2001".
Como documentos de suporte, os peticionário anexam vários artigos profundamente esclarecedores sobre o tema publicados na revista missionária Além-Mar, dois comunicados de imprensa da Amnistia Internacional - Secção Portuguesa sobre a petição, o Código de Conduta da União Europeia Relativo à Exportação de Armas, em versão inglesa, o primeiro Relatório Anual nos termos da disposição operacional n.º 8 do Código de Conduta, também em versão inglesa, e The Framework Convention on International Arms Transfers, uma proposta de convenção internacional promovida por uma comissão de laureados com o Prémio Nobel da Paz sob a direcção do antigo presidente da Costa Rica, Dr. Óscar Árias.
III - Enquadramento sumário da questão
Segundo dados divulgados pela ONU, estima-se que o número total de armas pessoais e ligeiras no mundo ascenda a 639 milhões, sendo que entre 40 a 60% dessas armas são ilegais.
Não existem definições universalmente aceites de "armas pessoais" e de "armas ligeiras", em alguns documentos também referenciadas como de "armas de pequeno calibre". Em todo o caso, têm vindo a ser acolhidas as definições dadas pela ONU que entende como "arma pessoal" aquela que pode ser disparada, mantida e transportada por uma única pessoa e "arma ligeira" a que pode ser usada por uma pequena equipa e transportada num veículo ligeiro ou animal de carga.
Estas definições abrangem, assim, armas tão omnipresentes como as pistolas, espingardas de assalto, pistolas-metralhadoras, lança-granadas, morteiros com calibre inferior a 100 mm e os lança-mísseis anti-tanque e anti-aéreos que se disparam ao ombro.
De acordo com o Small Arms Survey 2002 (The Small Arms Survey Yearbook é uma publicação do Small Arms Survey, um projecto sediado no Graduate Institute of International Studies da Universidade de Génova, e é uma colaboração do Governo Suíço, outros governos, pesquisadores e organizações não-governamentais), cerca de oito milhões de novas armas deste tipo são produzidas por ano em mais de mil companhias em 98 países, com um valor estimado de quatro a cinco mil milhões de dólares, sendo 80% a 90% das transacções efectuadas legalmente.
Este estudo revela que aproximadamente 59,2% das armas ligeiras em circulação estão em mãos privadas, enquanto que as forças armadas governamentais possuem 37,8%, a polícia, 2,8% e os insurrectos, 0,2%.
Essas armas têm características que as tornam atraentes para a maioria das partes envolvidas em conflitos armados, isto é: são fáceis de comprar (em certos países, uma espingarda de assalto AK-47 pode ser adquirida por apenas 15 dólares), fáceis de usar (com um treino mínimo, até uma criança as consegue empunhar e usar), fáceis de esconder e de transportar e fáceis de manter, podendo durar décadas.
Página 122
0122 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
Em virtude dessas características, foram estas as armas de eleição em 46 dos 49 conflitos registados na última década do século XX, e não as armas convencionais como os tanques e os aviões de combate.
A proliferação deste tipo de armamento tem vindo a fomentar um modelo de conflitos, em franco crescimento, em que as partes implicadas são, não exércitos clássicos de um Estado contra outro, ou mesmo de forças governamentais contra forças rebeldes, mas uma multiplicidade de facções instáveis, entre milícias, grupos armados ou auto-denominados rebeldes, muitas das vezes meros bandos de criminosos, envolvidos em campanhas de terror, em que os civis são alvos sistemáticos, as normas internacionais completamente ignoradas, e em que a guerra tem como móbil único a pilhagem, nomeadamente, dos recursos naturais.
A facilidade de manuseamento desse armamento tem permitido a utilização de crianças-soldados nos conflitos, num número estimado de 300 000 (Human Rights Watch e Child Rights Information Network), com sequelas devastadoras, sobretudo para as próprias crianças.
Mas este tipo de armas não se circunscreve a cenários de guerra, encontrando-se também amplamente disperso pela comunidade criminosa, com consequências lamentáveis, em que as forças de segurança se confrontam em manifesta inferioridade de armamento.
A disseminação dessas armas tem-se assim revelado uma ameaça global para a segurança das pessoas e para os direitos humanos, estimando-se que mais de 500 000 pessoas morram por ano em resultado do seu uso, sendo que dos quatro milhões de mortos relacionados com os conflitos registados durante a última década do século XX, 90% ocorreram entre civis (enquanto que, por exemplo, na I Guerra Mundial rondaram os 5%) e, dessas, 80% foram mulheres ou crianças, tendo dezenas de milhões de pessoas perdido os seus modos de vida, lares e família.
Em resultado desta multiplicação de conflitos sustentados em armas pessoais e armas ligeiras, assiste-se a um desmembramento da sociedade civil, à destruição da actividade produtiva e à deslocação de enormes massas de população, muitas das vezes para fora das fronteiras do seu próprio país, para além dos números desmesuráveis de mortos e de estropiados, com prejuízos incalculáveis e irrecuperáveis.
Só na América Latina, o Banco Inter-americano de Desenvolvimento estima os custos directos e indirectos da violência causada pelas armas ligeiras em 140 a 170 mil milhões de dólares por ano.
A questão central que tem sido debatida é a de saber o que constitui uma transferência "ilícita" de armas e outra, a de saber se as transferências "lícitas" (isto é, sancionadas pelos governos) não são elas próprias fontes da proliferação das armas que necessitam de ser cerceadas para permitir algum progresso nesta matéria.
Para muitos dos governos envolvidos no comércio de armamento, a transferência ilícita de armas é definida de uma forma restrita, abrangendo apenas as que ocorram fora do controlo ou contra os desejos dos Estados exportadores.
Ora esta interpretação restritiva retira, por exemplo, a qualificação de "ilícitas" a transferências de armas efectuadas para equipar entidades não-estatais, como movimentos rebeldes, que possam ter um ocasional interesse geo-estratégico, sendo que invariavelmente esse armamento acaba por ser utilizado para fins diferentes ou com objectivos antagónicos aos inicialmente previstos.
Do mesmo modo, a venda de armas a regimes não-democráticos escapa a tal definição e também aqui a capacidade de controlo do material transferido é manifestamente diminuta.
Mas mesmo no âmbito do comércio de armamento legítimo entre Estados para satisfação de justificáveis necessidades de autodefesa se geram situações em que, nomeadamente, a revenda de equipamento excedentário ou obsoleto se realiza mediante o recurso a intermediários sem se conhecer ou controlar o destino final das armas.
Acresce que inúmeros países não possuem legislação nem mecanismos administrativos que lhes permita o controlo do destino final das armas transferidas ou mesmo do trânsito desse material pelo seu território ou ainda da actividade de corretagem de armamento na sua jurisdição, pelo que é diminuto ou inexistente o controlo pelas autoridades dessas acções.
IV - Iniciativas no âmbito da comunidade internacional em geral
A comunidade internacional tem assumido como preocupação principal ao longo dos anos, sobretudo desde a II Guerra Mundial, o controlo das armas de destruição maciça, como os sistemas de destruição nuclear, químico ou biológico.
Na década final do século XX, a comunidade internacional começou a ganhar consciência da importância das armas pessoais e ligeiras nos conflitos em curso e das suas consequências, nomeadamente, em termos de vítimas civis.
Porém, a produção de armas pessoais e ligeiras continua a ser uma actividade muito lucrativa para muitos Estados e indivíduos, com um valor estimado de quatro a cinco mil milhões de dólares, sendo 80% a 90% das transacções efectuadas legalmente, implicando um elevado número de postos de trabalho.
De entre os 13 Estados que dominam o mercado encontram-se os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, a Alemanha, a Holanda, a Itália, o Canadá e a Espanha, o que impõe um tratamento cuidado e empenhado da comunidade internacional na sua resolução.
Conscientes dos interesses em jogo e de que qualquer solução para a proliferação das armas pessoais e ligeiras tem de ter em consideração a enorme variedade de armas e os muitos usos, legítimos e ilegítimos, que lhe são dados, a comunidade internacional percebeu, desde o princípio, que para haver uma solução uniforme e estável tinha de se envolver o maior número possível de Estados e realizar-se em todos os níveis - nacional, regional e mundial - mediante um programa de acção que estabelecesse uma lista de áreas potenciais onde poderiam ser tomadas medidas.
Foi, todavia, através de mecanismos regionais que se iniciaram os primeiros progressos na regulamentação do comércio ilícito e fabrico de armas pessoais e ligeiras, com os Estados a trabalharem conjuntamente com base nas características específicas das suas regiões e em interesses comuns mais facilmente identificáveis.
Em 1997, os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) assinaram a Convenção Interamericana contra o Fabrico e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Similares, que constitui o único acordo internacional juridicamente vinculativo, estabelecendo medidas comuns, explícitas e jurídicas para controlar o movimento internacional das armas de fogo.
Página 123
0123 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
Também no continente africano se verificaram desenvolvimentos importantes nesta área, com a Organização da Unidade Africana (OUA) a elaborar directrizes politicamente vinculativas relacionadas com as armas pessoais, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (ECWAS) a estabelecer uma moratória de três anos relativa à importação, exportação e fabrico de armas pessoais, e os Estados da Comunidade para o Desenvolvimento da África Meridional (SADC) a comprometerem-se a reforçar a legislação nacional sobre a propriedade, registo e comércio de armas pessoais.
Ainda em África, no âmbito dos trabalhos de preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio Ilícito de Armas Pessoais e Ligeiras em Todos os Seus Aspectos, é de salientar a "Declaração de Bamako", aprovada na Reunião Ministerial da OUA, em Dezembro de 2000, que estabeleceu a "Posição Africana Comum relativamente à proliferação, circulação e tráfico ilícitos de armas pessoais e ligeiras", preconizando medidas a nível nacional, regional, continental e internacional.
Em Julho de 2001, em Nova Iorque, realizou-se a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio Ilícito de Armas Pessoais e Ligeiras em Todos os Seus Aspectos, que veio a aprovar, por consenso, o Programa de Acção para Prevenir, Combater e Erradicar o Comércio Ilícito de Armas Pessoais e Ligeiras em Todos os Seus Aspectos contendo 41 medidas a serem tomadas a nível nacional, regional e global [Report of the United Nations Conference on the Illicit Trade in Small Arms and Light Weapons in All Its Aspects (A/Conf.192/15)].
De entre as iniciativas com incidência nacional, destacam-se as seguintes:
- Criar leis, regulamentos e procedimentos administrativos adequados para exercer um controlo efectivo da produção de armas pessoais e ligeiras que se encontram em territórios sob a sua jurisdição e da exportação, importação, trânsito ou retransferência dessas armas, a fim de impedir o seu fabrico ilegal e tráfico ilícito ou o seu desvio para destinatários não autorizados;
- Criar organismos coordenadores, a nível nacional, que sejam responsáveis pela orientação das políticas, investigação e fiscalização dos esforços para prevenir, combater e erradicar o comércio ilícito, nomeadamente aspectos do fabrico ilícito, controlo, tráfico, circulação, corretagem e comércio, bem como do rasteio, financiamento, recolha e destruição de armas pessoais e ligeiras;
- Identificar grupos e pessoas envolvidas no fabrico, comércio, armazenamento, transferência e posse ilegais, bem como no financiamento da aquisição de armas pessoais e ligeiras ilícitas e tomar medidas no âmbito da legislação nacional contra esses grupos e pessoas;
- Assegurar a responsabilidade por todas as armas pessoais e ligeiras que se encontram em poder do Estado ou são distribuídas pelo Estado e tomar medidas eficazes de rasteio de tais armas;
- Criar e aplicar leis, regulamentos e procedimentos administrativos adequados para garantir o controlo eficaz da exportação e trânsito de armas pessoais e ligeiras, nomeadamente o uso de certificados autenticados do utilizador final;
- Envidar todos os esforços, sem prejuízo do direito de os Estados a reexportarem armas pessoais e ligeiras que tenham sido anteriormente importadas, para notificar o Estado exportador original, nos termos de acordos bilaterais, antes de proceder à retransferência das armas;
- Criar e aplicar, sempre que possível, programas eficazes de desarmamento, desmobilização e reintegração, nomeadamente de recolha, controlo, armazenamento e destruição de armas pessoais e ligeiras, em especial em zonas em situação de pós-conflito, bem como procurar satisfazer as necessidades especiais das crianças afectadas por conflitos armados.
Nas acções regionais a promover, salientam-se as seguintes:
- Incentivar as negociações regionais com o objectivo de concluir os pertinentes instrumentos legalmente vinculativos, tendo em vista prevenir, combater e erradicar o comércio ilícito e, no caso de já existirem tais instrumentos, ratificá-los e aplicá-los integralmente;
- Incentivar o reforço e o estabelecimento de moratórias ou iniciativas semelhantes, nas regiões ou sub-regiões afectadas, sobre a transferência e o fabrico de armas pessoais e ligeiras e/ou de programas de acção regionais para prevenir, combater e erradicar o comércio ilícito, e respeitar essas moratórias, iniciativas semelhantes e/ou programas de acção;
- Criar, quando for caso disso, mecanismos sub-regionais ou regionais, em especial de cooperação entre serviços aduaneiros transfronteiriços e redes para a troca de informação entre organismos responsáveis pela aplicação da lei e controlo fronteiriço e aduaneiro.
Dos compromissos no plano global, distinguem-se os seguintes:
- Cooperar com a ONU de modo a assegurar uma efectiva implementação dos embargos de armas decididos pelo Conselho de Segurança;
- Encorajar, em particular em situações de pós-conflito, o desarmamento e desmobilização de ex-combatentes e a sua reintegração na vida civil;
- Incentivar os Estados e a Organização Mundial das Alfândegas (OMA/WCO) a intensificar a cooperação com a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), a fim de identificar os grupos e pessoas envolvidos no comércio ilícito de armas pessoais e ligeiras em todos os seus aspectos, para que as autoridades nacionais possam instaurar processos contra eles nos termos da legislação do respectivo país;
- Intensificar a cooperação dos Estados na marcação e rasteio das armas pessoais e ligeiras ilícitas;
- Desenvolver entendimentos comuns sobre as questões básicas e a extensão dos problemas relacionados com a corretagem ilícita de armas pessoais e ligeiras, com vista a prevenir, combater e irradiar as actividades dos envolvidos nesse tipo de corretagem.
Página 124
0124 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
Não foi, no entanto, possível alcançar um acordo em duas das questões mais importantes em discussão: a manutenção e controlo da propriedade privada de armas ligeiras por indivíduos e a transferência desse tipo de armas para intervenientes que não sejam um Estado.
O Programa não constitui um tratado juridicamente vinculativo mas uma mera declaração de intenções, um documento de consenso politicamente relevante mas sem coercibilidade.
É de realçar que, em reconhecimento de um combate integrado e em várias frentes deste flagelo, a ONU adoptou, em complemento à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, o Protocolo Contra o Fabrico e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, as suas Partes e Componentes e Munições [Protocol against the Illicit Manufacturing of and Trafficking in Firearms, Their Parts and Components and Ammunition, supplementing the United Nations Convention against Transnational Organized Crime (Resolution no. A/RES/55/255)], já assinado por Portugal, em Setembro último, mas que ainda não está em vigor.
Este Protocolo visa promover a adopção pelos Estados, entre outras, de medidas de criminalização do fabrico e do tráfico ilícito de armas de fogo, as suas partes e componentes e munições, de registo e marcação das armas, de licenciamento e autorização da importação, exportação e trânsito desses bens, bem como de regulamentação da actividade de corretagem.
Uma referência deve ser feita à proposta intitulada The Framework Convention on International Arms Transfers, em virtude de se tratar de um dos documentos juntos com a petição.
Como anteriormente mencionado, trata-se de uma proposta de convenção internacional elaborada e promovida por uma comissão de laureados com o Nobel da Paz, presidida pelo antigo presidente da Costa Rica, Dr. Óscar Árias, estabelecendo certos princípios e mecanismos relativos à transferência internacional de armas, à transferência de tecnologias e à corretagem, impondo que os Estados signatários transponham essas regras para o seu ordenamento jurídico nacional e aprovem medidas para a sua efectiva implementação e coercibilidade.
Esta proposta, que é a mais rigorosa e completa quer em termos de critérios a ter em consideração quer em termos de actividades a que se aplica, ainda não foi subscrita por nenhum organismo internacional oficial, mas tem servido como um poderoso elemento de pressão sobre os Estados exportadores no sentido de imporem regras mais apertadas e verificáveis contra a venda de armas a países não-democráticos ou que sejam susceptíveis de vir a fomentar guerras locais ou regionais.
V - Iniciativas no espaço europeu
Em 8 de Junho de 1998, o Conselho aprovou o Código de Conduta da União Europeia relativo à Exportação de Armas, baseado nos critérios comuns para a exportação de armas acordados nos Conselhos Europeus do Luxemburgo e de Lisboa, em 1991 e 1992.
A aprovação do Código de Conduta, que abrange todo o tipo de armas e não apenas as pessoais e ligeiras, introduziu uma nova fase de desenvolvimento na abordagem conjunta das exportações de armas, componente da política externa e de segurança comum da União nos termos dos artigos 11.º e 17.º do Tratado da União Europeia.
O Código de Conduta estabelece um conjunto de normas mínimas para a gestão e moderação da transferência de armas convencionais por parte de todos os Estados-membros, a fim de reforçar o intercâmbio de informações relevantes e assegurar uma maior transparência nas transacções de armas, e traça um processo de convergência das políticas nacionais de controlo dessas exportações.
Em concreto, o Código de Conduta estipula oito critérios a ter em conta no âmbito da actividade de exportação de equipamento militar:
- Respeito pelos compromissos internacionais dos Estados-membros, nomeadamente em matéria de sanções decretadas pelo Conselho de Segurança da ONU e pela Comunidade, de acordos sobre não-proliferação e assuntos conexos e demais obrigações internacionais;
- Respeito pelos direitos humanos no país destinatário final das armas;
- Situação interna do país destinatário final, em função da existência de tensões ou conflitos armados;
- Preservação da paz, segurança e estabilidade regionais;
- Segurança nacional dos Estados-membros e dos territórios cujas relações externas são assumidas por um Estado-membro, bem como dos países amigos e aliados;
- Comportamento do país adquirente perante a comunidade internacional, nomeadamente no que se refere à sua atitude em relação ao terrorismo, à natureza das suas alianças e ao respeito do Direito Internacional;
- Risco de os equipamentos serem desviados no interior do país comprador ou reexportados em condições indesejáveis;
- Compatibilidade das exportações de armas com as capacidades técnicas e económicas do país destinatário, tendo em conta a conveniência de os Estados satisfazerem as suas necessidades legítimas de segurança e de defesa consagrando um mínimo de recursos humanos e económicos ao armamento.
Estes critérios não têm, todavia, todos a mesma graduação valorativa: uns critérios determinam uma recusa; outros estabelecem um mero dever de "precauções especiais" ou de "estreita vigilância"; e os restantes prescrevem um simples dever de "ter em conta" certos factores.
Encontram-se, no primeiro caso, as exportações que violem as próprias obrigações do Estado (critério n.º 1), as que envolvam equipamento que constitua um claro risco de utilização em repressão interna [alínea a) do critério n.º 2] ou para agressão externa contra outro Estado (critério n.º 4); no segundo, as exportações para "países onde, segundo as instâncias competentes das Nações Unidas, do Conselho da Europa ou da União Europeia, se verifiquem violações graves dos direitos humanos" [alínea b) do critério n.º 2]; e no terceiro, as previstas nos critérios n.º 5 a n.º 8.
O Código contém também 12 disposições operacionais, cujo objectivo é harmonizar a sua aplicação pelos Estados-membros e aumentar a transparência do processo de avaliação dos pedidos de licenças de exportação de equipamentos militares apresentados mediante um sistema de consultas.
Deste modo, apesar de a decisão de autorizar ou recusar a transferência de qualquer artigo militar ser da competência
Página 125
0125 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
interna de cada Estado-membro, a recusa de uma licença de exportação deve ser notificada aos restantes Estados-membros, acompanhada de uma explicação.
Caso um Estado-membro pretenda conceder uma licença de exportação para uma transacção essencialmente idêntica a outra cuja licença de exportação tenha sido recusada por outro ou outros Estados-membros nos três anos anteriores, deve consultar previamente o ou os Estados-membros que recusaram a referida licença; se, após a consulta, o Estado-membro decidir, mesmo assim, conceder a licença de exportação, deve notificar do facto o ou os Estados-membros autores da recusa e transmitir-lhes uma explicação detalhada dos motivos dessa decisão.
Corolário do dever de informação subjacente às disposições operacionais é o compromisso de os Estados-membros distribuírem aos outros Estados-membros um relatório anual sobre as suas exportações de material de defesa e da forma como aplicou o Código. Estes relatórios são posteriormente consolidados num único relatório anual. Inicialmente confidenciais, os relatórios passaram a ser públicos, por decisão do Conselho de 1999, em reconhecimento da necessidade de aumentar a transparência nesta área.
Em conformidade com a disposição operacional n.º 8, foram já produzidos três relatórios anuais com o balanço de todos os aspectos do Código, ou seja, a interpretação e aplicação dos critérios para a exportação de armas convencionais e a aplicação das disposições operacionais.
No último relatório disponível, divulgado em 2001, constata-se que o funcionamento do Código se caracterizou pela realização da maior parte dos objectivos prioritários e pela identificação de novas pistas de reflexão para a prossecução dos trabalhos, tendo os Estados-membros identificado as seguintes orientações:
1 - Continuar a envidar esforços para conseguir um maior grau de harmonização dos relatórios nacionais anuais, tornando mais claro e transparente o quadro de síntese;
2 - Atingir o objectivo da adopção definitiva de um sistema de controlo da exportação de bens não militares de segurança e polícia;
3 - Prosseguir os trabalhos no domínio da corretagem com base em directivas já aprovadas;
4 - Prosseguir os trabalhos no sentido de uma concepção harmonizada das informações que deverão constar dos certificados de destino final;
5 - Estudar a problemática da produção ao abrigo de uma licença em Estados terceiros;
6 - Dar início aos trabalhos destinados a submeter a controlo efectivo, pelas autoridades de cada Estado-membro, as transferências de software electrónico associados aos bens enumerados na lista comum. O sistema de controlo das exportações de bens de dupla utilização poderá servir de modelo para este efeito;
7 - Prosseguir os esforços de promoção dos princípios e critérios junto dos países terceiros e organizações internacionais, inclusive com base na União Europeia - Estados Unidos sobre as responsabilidades dos Estados e a transparência no domínio das exportações de armas;
8 - Trabalhar no sentido de uma implicação mais larga dos países candidatos na aplicação do Código de Conduta.
Estes relatórios foram por sua vez apreciados pela Comissão dos Assuntos Externos, dos Direitos do Homem, da Segurança Comum e da Política de Defesa do Parlamento Europeu, que igualmente elaborou os seus respectivos relatórios.
No mais recente relatório, publicado em Setembro de 2002, esta Comissão entende que o Código de Conduta continua a acelerar o desenvolvimento de uma efectiva política europeia comum em matéria de exportações de armas e que não podem ser subestimados os progressos feitos até agora numa área que sempre esteve rodeada de secretismo e suspeita mútua.
A Comissão considera, contudo, o terceiro relatório anual, em grande medida, como uma declaração de boas intenções que não estabelece um calendário claro e concreto para a obtenção de progressos, o que torna difícil detectar e avaliar resultados reais, concluindo que, apesar do muito feito, muito haver ainda por fazer.
De acordo com a disposição operacional n.º 5, o Conselho adoptou uma lista comum de equipamento militar, a actualizar periodicamente, que desempenha um papel de ponto de referência das listas militares nacionais e não de substituto directo das mesmas.
O Código de Conduta tem sido objecto de considerável criticismo, sendo a principal fraqueza apontada o facto de ser uma mera declaração de intenções sem carácter vinculativo.
No que concerne ao conteúdo, o Código tem sido criticado, primeiro, por alguns critérios, nomeadamente, os referentes aos direitos humanos no país destinatário, não serem suficientemente explícitos e, de um modo geral, serem ambíguos, permitindo uma enorme latitude de interpretação por parte dos Estados-membros; segundo, por não incluir as violações de direitos humanos no país destinatário como causa de recusa das transferências; terceiro, por respeitar exclusivamente à exportação de armas e não se debruçar sobre matérias tão importantes como a corretagem e as licenças de produção.
Quanto às disposições operacionais, a debilidade do Código de Conduta assenta no facto de a autorização ou recusa de transferência de qualquer artigo de equipamento militar ser uma decisão discricionária das autoridades nacionais que não pode ser contestada e na falta de transparência do processo: as informações sobre a recusa trocadas entre os Estados mantém-se confidenciais, o processo não está sujeito ao escrutínio parlamentar e os Estados-membros não estão obrigados a informar regular e cabalmente o público sobre a implementação do Código de Conduta.
Não obstante as críticas, a adopção deste Código traduz-se num desenvolvimento importante na promoção da responsabilização e da transparência da transferência de armas, sendo de assinalar que desde essa data, o âmbito geográfico da sua aplicação, originalmente limitado aos 15 Estados da União Europeia, foi consideravelmente alargado pela adesão aos seus princípios por parte dos Estados da Europa Central e Oriental e também do Chipre, Malta e Turquia.
Ainda neste âmbito, o Conselho da União Europeia adoptou o Regulamento (CE) n.º 1334/2000 [com a redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) n.º 2432/2001, do Conselho, de 20 de Novembro] que cria um regime comunitário de controlo das exportações de produtos e tecnologias de dupla utilização, mediante autorizações, que podem ser específicas, globais ou gerais, a conceder pelas autoridades nacionais.
Página 126
0126 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
O Regulamente estabelece regras relativas ao intercâmbio de informações e à consulta entre os Estados-membros no que se refere às decisões de conceder autorizações de exportação e cria um "Grupo de Coordenação", presidido pela Comissão, no qual cada Estado-membro está representado, a fim de apreciar as questões relativas à aplicação do regulamento.
Mais recentemente, em 12 de Julho de 2002, foi adoptada a Acção Comum do Conselho, relativa ao contributo da União Europeia para o combate à acumulação e proliferação desestabilizadoras de armas de pequeno calibre e armas ligeiras, tendo como objectivos:
- Combater e contribuir para pôr termo à acumulação e à proliferação desestabilizadoras de armas de pequeno calibre;
- Concorrer para reduzir a actual acumulação dessas armas e respectivas munições para níveis compatíveis com os legítimos interesses dos países em matéria de segurança,
- e contribuir para resolver os problemas suscitados por essa acumulação.
Para o efeito, a acção comum estabelece princípios relativos, por um lado, aos aspectos preventivos de uma nova acumulação desestabilizadora de armas de pequeno calibre como de redução das actuais existências de armas de pequeno calibre e respectivas munições e, por outro lado, aos aspectos repressivos no âmbito da resolução de conflitos armados. Além disso, define a contribuição da União Europeia para acções específicas, a fim de permitir a concessão de assistência financeira e técnica a programas e projectos que se revelem constituir um contributo directo e identificável para os princípios e medidas expostos.
Anteriormente, em 1984, a União Europeia adoptou a Convenção Europeia sobre o Controle da Aquisição e Detenção de Armas de Fogo por Particulares, aprovada, para ratificação, através do decreto do Governo n.º 56/84, de 28 de Setembro.
Também a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) adoptou, em Novembro de 2000, directivas (OSCE Document on Small Arms and Light Weapons) que comprometem os Estados-membros, nomeadamente, no combate ao tráfico ilícito em todos os seus aspectos mediante a adopção e implementação de controlos nacionais sobre as armas pessoais, incluindo o fabrico, marcação e registo de modo a contribuir para o melhoramento do rasteio, em controlos mais estritos dos intermediários de armas que operam nos seus territórios, na proibição de transferência de armas pessoais não marcadas, e na cooperação e intercâmbio de informações entre serviços e forças de segurança e de alfândegas, a nível internacional, regional e nacional.
VI - Situação em Portugal
Em Portugal, o acesso e o exercício da actividade de indústria e comércio de bens e tecnologias militares encontra-se vertida na legislação nacional seguinte:
- Decreto-Lei n.º 371/80, de 11 de Setembro, que estabelece as normas que regulam a exportação de bens e tecnologias militares e importação de componentes, estabelecendo também a participação do Ministério dos Negócios Estrangeiros na emissão de parecer político sobre a conveniência das operações de exportação, tendo em conta os países destinatários;
- Decreto-Lei n.º 1/86, de 2 de Janeiro, que regulamenta a transferência de tecnologia que possa lesar os interesses do País, e estabelece o poder do Ministro da Defesa Nacional de proibir a exportação de bens produzidos em Portugal, previamente importados ou que se encontrem em trânsito pelo território nacional;
- Decreto-Lei n.º 436/91, de 8 de Novembro, que regulamenta o controlo das importações e exportações de bens de dupla utilização, bens militares, e respectivas tecnologias, que possam afectar os interesses nacionais;
- Portaria n.º 439/94, de 29 de Junho, que institui a lista dos bens de dupla utilização, bens militares, e respectivas tecnologias, cuja produção e comércio são objecto do controlo respectivamente, do Ministério da Economia (Direcção-Geral das Relações Económicas Internacionais) e Ministério da Defesa Nacional (Direcção-Geral de Armamento e Equipamentos de Defesa);
- Decreto-Lei n.º 396/98, de 17 de Dezembro, que estabelece as normas sobre o acesso e autorização das empresas para desenvolver o exercício da actividade de indústria de armamento;
- Decreto-Lei n.º 397/98, de 17 de Dezembro, que estabelece as normas sobre o acesso e autorização das empresas para desenvolver o exercício da actividade de comércio de armamento.
Nos termos da legislação, a produção e o comércio de bens e tecnologias militares estão sujeitas a autorização e controlo por parte do Ministério da Defesa Nacional, sendo as operações de exportação e importação sujeitas também a parecer do Ministério dos Negócios Estrangeiros, tendo em vista a salvaguarda dos interesses estratégicos do País, da sua defesa, e dos compromissos assumidos por Portugal na União Europeia e no seio das organizações internacionais em que participa.
A constituição de empresas que pretendam exercer a actividade de indústria ou de comércio de armamento, ou passar a incluir qualquer destas actividades no seu objecto, depende de autorização do Ministro da Defesa Nacional e são objecto de credenciação pela Autoridade Nacional de Segurança.
As operações de exportação e importação estão sujeitas a registo, bem como estão sujeitos a registo os contratos celebrados entre residentes em Portugal e não residentes em que ocorra cedência de bens ou de serviços que possam pôr em causa a defesa ou os interesses estratégicos nacionais.
Quando se trate de operações de importação, exportação, exportação temporária e reexportação de equipamentos, produtos e tecnologias que possam ser utilizados para fins diferentes daqueles a que geralmente se destinam e que possam também pôr em causa a defesa ou os interesses estratégicos nacionais, as operações ficam sujeitas a licenciamento ou certificação prévios pelos Ministérios da Defesa Nacional e da Economia.
Foram criados mecanismos com vista a controlar essas operações, através da emissão de certificados internacionais de importação ou exportação, da emissão de certificados de garantia de entrega, do estabelecimento de prazos para a utilização dos certificados e da devolução de certos exemplares, confirmados pelos serviços ou autoridades competentes, nacionais e internacionais, conforme o caso.
Página 127
0127 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
É também estabelecido um regime sancionatório, nos termos do qual toda a operação efectuada sem a emissão de certificado ou de certificado obtido mediante a prestação de falsas declarações será púnico com prisão de um mês a cinco anos, se ao facto não couber penas mais grave por força de outra disposição legal, sendo punível a tentativa.
As falsas declarações, por sua vez, são punidas com prisão até dois anos e a não devolução dos certificados sujeita os infractores ao pagamento de uma coima.
No domínio da publicitação, o sítio do Ministério da Defesa Nacional (MDN) na Internet contém informação útil, nomeadamente, a legislação aplicável, bem como um resumo da documentação, procedimentos e condicionantes relativos a estas actividades.
Num esforço de transparência, encontram-se também disponíveis no sítio do MDN, os relatórios anuais da actividade de exportação e importação desenvolvida. O último disponível reporta-se ao ano de 2000 (Relatórios de outros Estados podem ser consultados no sítio da Small Arms Survey).
No respeitante a outro tipo de armas, a legislação portuguesa é também extensa, demasiadamente fragmentada e alterada, mantendo-se em vigor, no seu essencial, um diploma de 1949.
O fabrico, importação, exportação, comércio, detenção, manifesto, uso e porte de armas e munições é regulado pelo Decreto-Lei n.º 37313, de 21 de Fevereiro de 1949, com as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei n.º 42054, de 27 de Dezembro de 1958, Decreto-Lei n.º 42356, de 3 de Julho de 1959, Decreto-Lei n.º 43696, de 17 de Maio de 1961, e pela Lei n.º 22/97, de 27 de Junho.
Este diploma vem definir as armas de caça, precisão, recreio, ornamentação e valor estimativo, bem como as armas proibidas e ainda o material de guerra e as munições.
No tocante ao fabrico de armas e munições, o diploma impõe o licenciamento para laboração desta indústria e a habilitação com alvará emitido pelo Governo Civil, anualmente renovável, ouvida a Polícia de Segurança Pública (PSP), o registo nesta Polícia, e, caso pretenda também fazer vendas directas ao público, o alvará de armeiro.
O decreto-lei estabelece também os requisitos e os procedimentos para a importação e exportação das armas e munições ao abrigo deste regulamento, apenas permitido aos importadores que se encontrem habilitados para o exercício do comércio de armas e munições, sendo todavia autorizada aos particulares importar arma de caça, recreio e defesa desde que se encontrem munidos da respectiva licença de uso e porte.
A venda de armas de fogo e as respectivas munições é apenas permitida em estabelecimentos habilitados para este tipo de comércio, mediante alvará de licença, anualmente renovável, concedido pelo Governador Civil nas capitais de distrito e pelo presidente da câmara nos respectivos concelhos, obtida prévia informação favorável da PSP, inscrição como importador-vendedor ou unicamente como vendedor nesta Polícia, e prestação de caução.
As vendas de armas e munições, bem como as transacções entre armeiros, estão igualmente sujeitas a requisitos, sendo imposto aos armeiros, entre outros deveres, o de manter livros de registo de importações, de compras e de vendas.
A reparação de armas é apenas permitida em oficinas, anexas ou dependentes, de estabelecimentos de armeiros, sendo que lhes é vedado receber armamento não manifestado.
Importante é sublinhar que as medidas restritivas no uso de armas impõem mesmo a proibição do empréstimo de armas, mesmo a portadores de autorização ou licença.
O diploma atribui à PSP a competência para a organização do cadastro e fiscalização de armamentos e munições já existente ou que venham a ser importados ou fabricados no País, no domínio privado, através de livrete de registo a entregar aos proprietários.
O diploma estabelece, por fim, um regime sancionatório, actualmente contra-ordenacional por força do Decreto-Lei n.º 399/93, de 3 de Dezembro.
A importação temporária de armas e munições é, por sua vez, regulado pelo Decreto-Lei n.º 49439, de 15 de Dezembro de 1969, e destina-se hoje aos turistas de países fora da União Europeia, que se deslocam a Portugal para a prática do desporto de caça ou para a participação em torneios.
Já a aquisição e a detenção, bem como a transferência de armas no espaço da comunidade europeia é regulado pelo Decreto-Lei n.º 399/93, de 3 de Dezembro, transpondo a Directiva n.º 91/477/CEE, do Conselho, de 18 de Junho, adoptada na qualidade de medida de acompanhamento da supressão dos controlos nas fronteiras internas na Comunidade.
O Decreto-Lei n.º 207-A/75, de 17 de Abril, estabelece o regime das armas proibidas, fixando a interdição do uso de, porte ou simples detenção, por parte de elementos estranhos às forças armadas ou militarizadas, de armamento que pelas suas características, equipe ou possa ser usado como material de guerra, própria dessas forças.
Através da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, alterada pela Lei n.º 93-A/97, de 22 de Agosto, pela Lei n.º 29/98, de 26 de Junho, e pela Lei n.º 98/2001, de 25 de Agosto, foi alterado o regime de uso e porte de armas, fixando a classificação e as condições da concessão da licença de uso e porte de armas de defesa, bem como os requisitos para a atribuição da licença de uso e porte de armas de caça, precisão e recreio.
Esta Lei estabelece o regime sancionatório da detenção ilegal de arma, determinando que quem detiver, usar ou trouxer consigo arma de defesa ou de fogo de caça não manifestada ou registada, ou sem a necessária licença, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. Pena igual incorre quem transmitir entre vivos e a qualquer título arma de defesa ou de fogo de caça a pessoa que não tenha para ela a obrigatória licença (artigo 6.º, com a redacção dada pela Lei n.º 98/2001).
Por seu turno, o Código Penal estatui, no n.º 1 do artigo 275.º (com a redacção dada pela Lei n.º 98/2001, de 25 de Agosto), que quem importar, fabricar ou obtiver por transformação, guardar, comprar, vender, ceder ou adquirir a qualquer título ou por qualquer meio, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer consigo arma classificada como material de guerra, arma proibida de fogo ou destinada a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes, radioactivas ou corrosivas, ou engenho ou substância explosiva, radioactiva ou própria para fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
No caso dessas condutas se reportarem a armas proibidas não incluídas naquele número, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Página 128
0128 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
VII - Comentários finais
Como resulta do exposto, não existe um método único ou conclusivo para lidar com o problema da proliferação das armas pessoais e ligeiras, que envolve muitos interesses, alguns legítimos, e movimenta um enorme volume de negócio, significando um elevado número de postos de trabalho em várias indústrias e em vários países.
Neste contexto, a questão da proliferação de armas e do tráfico ilícito tem de ser analisado em várias vertentes e a resposta terá de ser múltipla, passando, nomeadamente, pela adopção de medidas legislativas não só na regulação do comércio de armamento, mas também do controlo da actividade criminal, nomeadamente, através do ataque às fontes de financiamentos.
Cerca de três quartos dos Estados-membros da ONU já reconheceram a gravidade do problema e criaram enquadramentos para a resolução desta questão a níveis nacional, regional ou internacional, mas os resultados têm sido mais férteis em boas intenções do que em medidas concretas juridicamente relevantes, com capacidade sancionatória.
As soluções estão apontadas, desde que haja vontade para as aplicar.
Dado que a maior parte das armas pessoais e ligeiras ilícitas começa a sua existência como armas legais, deve ser dada muita atenção ao controlo das armas na fonte, colocando em vigor legislação para exercer um controlo eficaz sobre o fabrico, transferência e posse dessas armas, que passa também por um controlo de exportação mais rigoroso, com certificados de utilizador final melhorados para garantir que as armas apenas são exportadas para destinatários legítimos, garantindo a punição daqueles que infringem essas leis.
Ainda neste domínio, devem ser instituídos controlos mais apertados de posse e acesso a armas pessoais e ligeiras, tanto por parte dos organismos governamentais autorizados (polícia, forças armadas) como dos particulares.
Como grande parte das transacções de armamento são efectuadas mediante o recurso a intermediários, deve ser instituída a regulamentação desta actividade.
Outra medida fundamental é a criação de um sistema de marcação das armas, suas partes e componentes e munições padronizado, de modo a que possam ser rasteadas no caso do seu uso ou transferência ilegais, devendo ser destruídas todas as armas não marcadas.
Mas todos estes propósitos devem ser enquadrados por acordos internacionais juridicamente vinculativos, com a harmonização das leis nacionais relativas a esta matéria e o reforço da cooperação e do controlo fronteiriço e aduaneiro, sob pena de se gorarem os esforços individuais de cada Estado.
Indispensável é também o combate ao crime organizado, uma vez que o tráfico ilícito de armamento implica a utilização de meios sofisticados e envolve, muitas das vezes, vastas redes de contactos que ultrapassam as fronteiras, revestindo consequentemente a maior relevância as relações entre os Estados e a colaboração transfronteiriças das polícias.
Esta cooperação adquire relevância acrescida com o alargamento da União Europeia e a abertura das fronteiras aos países de leste.
Nesta vertente, é imprescindível instituir mecanismos que impeçam o acesso aos proventos e lucros de actividades ilícitas, designadamente, através do combate ao branqueamento de capitais, à corrupção e à criminalidade económica e financeira.
Questão que tem levantado alguma celeuma é a da divulgação das listas das armas importadas e exportadas.
Este problema não tem, no entanto, razão de existir. Muitos são os países em que existe uma maior divulgação dessas listas ou se verifica mesmo uma consulta prévia antes da concessão das licenças.
Encontra-se neste último caso a Suécia, onde todos os meses uma comissão parlamentar, envolvendo representantes de todos os partidos, reúne com elementos do Governo para ser informada sobre as licenças de exportação. Os membros da Comissão podem formular perguntas e levantar objecções a determinadas exportações. A Comissão funciona como um órgão consultivo e o Governo reporta no mês seguinte as decisões tomadas.
No caso dos EUA, existe uma obrigação legal de a Administração informar o Congresso de todas as licenças de exportação. Empresas que pretendam exportar armamento em valor superior a 14 milhões de dólares têm de notificar o Congresso com, pelo menos, 14 dias de antecedência.
Aliás, a legislação dos EUA deve ser das mais exigentes, uma vez que nos termos da Secção 655 do Foreign Assistence Act o Governo deve informar sobre a emissão de todas as licenças comerciais relativas a todo o tipo de armamento, com o valor da licença, o nome da Estado cliente, e a descrição do sistema de armas envolvido.
Infelizmente, também neste caso, a publicitação das listas só ocorre um ano ou dois depois da emissão das licenças, nada informando sobre se as armas foram de facto entregues ao cliente previsto.
VIII - Conclusões
Face ao exposto, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias é do seguinte parecer:
Parecer
Que a petição em análise encontra-se em condições constitucionais, legais e regimentais de ser apreciada em Plenário, reservando os grupos parlamentares as suas posições quanto ao exercício de qualquer iniciativa para o debate.
Assembleia da República, 27 de Novembro de 2002. - A Presidente da Comissão, Assunção Esteves - O Deputado Relator, Vitalino Canas.
Nota: O relatório e parecer foram aprovados por unanimidade, tendo-se registado a ausência do BE e de Os Verdes.
A Divisão de Redacção e Apoio Audiovisual.
Página 129
0129 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002
Página 130
0130 | II Série B - Número 022 | 30 de Novembro de 2002