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Discurso pronunciado nas sessões de 9, 10 e 11 de abril, pelo sr. deputado João de Andrade Corvo

(Continuado do n.º 91)

Sessão de 11 de abril

Depois de haver tomado tanto tempo á camara, procurarei na ultima parte d'esta exposição que estou fazendo do estado da instrucção publica em Portugal, resumir-me o mais possivel. Vou fazer algumas considerações que me parecem importantes, que, a meu ver, o são ácerca da instrucção superior.

A instrucção superior deve necessariamente na sua organisação distinguir-se das duas divisões da instrucção publica, sobre as quaes eu procurei chamar a attenção da camara, a instrucção primaria e a instrucção secundaria, porque a sua natureza e fins são inteiramente distinctos. A primeira tem por fim, como v. ex.ª e a camara sabem, derramar no povo uma certa porção de idéas justas, simples e uteis, e os principios fundamentaes da moral e da religião; tem por fim habilitar o povo a poder comprehender a palavra escripta e a poder pela escripta exprimir o seu pensamento e tratar dos seus interesses.

A instrucção secundaria occupa um grau superior; é tambem uma instrucção generica, mas n'ella expõem-se os fundamentos das sciencias e alargam-se as bases do ensino litterario. Já se vê pois a relação em que estão estas duas grandes divisões da instrucção. A instrucção secundaria tem já um caracter elevado. É para uns complemento de instrucção, para outros preparação para entrar em estudos transcendentes.

Não devemos esperar da instrucção secundaria mais do que ella póde dar, mais do que têem alcançado outros paizes, onde é mais perfeito o ensino publico. O fim da instrucção secundaria, como instrucção complementar, é facilitar a todos os que não podem cursar a instrucção superior, o estudo dos fundamentos das sciencias physicas, mathematicas e naturaes, o estudo da lingua patria e das linguas vivas.

O fim da instrucção secundaria, como preparatoria, é preparar com solidos conhecimentos litterarios, e com uma instrucção scientifica positiva e séria, ainda que pouco ampla, todos os que desejam ir ampliar e especialisar nas escolas superiores a sua educação.

Como consequencia d'isto, julgo que nos lyceus de 1.ª classe ha a alargar e não a restringir o ensino: julgo tambem que a instrucção secundaria precisa ter estabelecimentos de segunda ordem, cujo fim principal seja, sem descurarem o estudo da lingua e litteratura patria, o ensino das sciencias mathematicas, physicas e naturaes, que podem applicar-se aos usos da vida e ao aperfeiçoamento de todas as industrias do paiz.

A instrucção superior, tendo a preencher fins diversos, necessariamente se divide segundo esses fins. Organisar a instrucção superior, é applicar o methodo á organisação dos estabelecimentos de ensino; é definir o modo porque se devem dispor as escolas especiaes para cada um dos resultados que se precisam alcançar. No nosso paiz a instrucção superior está extremamente confundida. A instrucção superior é representada por um numero consideravel de estabelecimentos. Ha duplicações, ha superfluidades, e ao mesmo tempo ha deficiencia, ha falta de vigor no ensino, ha confusão, ha defeitos, vicios que demandam prompto remedio.

Em todas as nações, que desejam occupar um logar eminente na civilisação moderna, a cultura da sciencia pura é uma necessidade imperiosa. É preciso que a sciencia se eleve alto, para uma nação ter direito de collocar-se a par das grandes nações do mundo. Grandes pela illustração, grandes pela sua influencia no progresso da humanidade, porque não ha outra grandeza hoje. Para promover a cultura da sciencia e das letras, para fazer sabios e eruditos, devem servir as universidades. É essa a sua funcção no quadro do ensino publico, sem que deixe comtudo de actuar sobre ellas a influencia do espirito pratico e energico do nosso solo.

O ensino, das letras deve ser largamente constituido; deve ser profundo e dominado pela sã philosophia; aquella que se formou sob o influxo dos methodos racionaes das sciencias de hoje.

O ensino das sciencias, na mais vasta accepção d'esta palavra, deve encaminhar-se ao mais elevado fim a que ao homem é permittido chegar; deve nas universidades ter por intuito principal preparar espiritos elevados para trabalharem n'uma grande obra, commum a todas as nações da Europa a toda a humanidade no progresso da civilisação. É este o logar das universidades, é este o logar que lhes cumpre occupar no vasto quadro da instrucção superior.

As universidades representaram já nos primeiros seculos da sua constituição o principio da independencia e da liberdade do pensar. Foi a invasão da rotina, do pedantismo que esterilisou as universidades e lhe deu um papel secundario, hostil muitas vezes, no grande periodo do renascimento das letras. O velho espirito da meia idade ainda domina em muitas, das universidades da Europa — nas universidades inglezas, por exemplo, e por isso a missão de algumas d'essas universidades é melhor em relação ao desenvolvimento actual das sciencias. As universidades têem, um logar no ensino superior actual, um logar eminente. É preciso que o venham occupar. A região elevada que lhes pertence não as deve asphyxiar. Para viverem, as universidades devem contribuir para o movimento intellectual moderno, devem abandonar o espirito de corporação, para se deixarem inspirar pelo espirito nacional.

O nosso ensino superior tem sem duvida alguma um largo desenvolvimento, que de certo não está em harmonia com o desenvolvimento da instrucção popular, e que alem d'isso se liga mal com a organisação pouco racional da instrucção secundaria.

É á entrada dos grandes institutos scientificos, quando se trata de procurar as habilitações dos alumnos, que se avalia bem a deficiencia da instrucção secundaria.

Os deputados que são professores, sabem perfeitamente, e a camara tambem o sabe, que nos exames de habilitações para a entrada nas escolas superiores e na universidade se observa pouco saber, uma notavel superficialidade nos alumnos. É isto devido á organisação imperfeita, á pouca intensidade e pouca extensão do ensino dos lyceus; e para mim, tambem é devido ao methodo defeituoso por que é dado o ensino; methodo que ficou dos antigos habitos da instrucção publica em Portugal. O modo de ensinar tem soffrido grandes transformações e entre nós ainda ellas não penetraram.

Ao lado da universidade, cuja posição no ensino deve ser aquella que hoje compete tomar ás universidades, nós temos escolas superiores, cada uma das quaes deve representar, em harmonia com as necessidades dos serviços technicos da administração e da actividade industrial do paiz, um papel definido; deve ter um caracter distincto, uma funcção especial. Toda a escola que não tiver em vista, como base da sua organisação e do seu ensino, o preenchimento de uma funcção bem caracterisada e distincta, confundir-se-ha com outras escolas, tornar-se-ha uma duplicação, uma superfluidade e desde esse momento perderá a sua rasão de ser.

Nós temos, como têem todos os paizes da civilisação moderna, grandes serviços publicos e grandes necessidades particulares a satisfazer.

Alem dos individuos que nos serviços publicos devem, com instrucção e aptidão, auxiliar poderosamente os progressos da nação, já occupando logares no exercito, já logares na magistratura, já logares na engenheria civil, já logares na administração, nós carecemos de quem encaminhe e fecunda, pelo trabalho intelligente, as industrias particulares, de toda a especie, que tão essenciaes são ao progresso publico e social.

A França, por exemplo, tem bem distinctas as funcções dos seus numerosos estabelecimentos de instrucção superior. Nas faculdades da universidade o ensino é ostentoso, elevado e transcendente muitas vezes. Ensina-se ali a sciencia pura e as letras e a philosophia.

No collegio de França os cursos têem ainda um caracter, não digo mais transcendente, mas de certo mais ousado, mais de actualidade, mais progressivo do que os da universidade. Ali os grandes mestres da sciencia vão expor a um publico instruido o resultado dos seus trabalhos. A sciencia na sua expressão mais pura, a sciencia desinteressada, que esquece os interesses actuaes para cuidar só dos interesses do futuro, deve achar e acha ali muitas vezes os seus interpretes. Ao lado da universidade e do collegio de França existe a escola polytechnica, cujo fim é muito especial.

É preciso não esquecer o que estava na mente do legislador quando estabeleceu a escola polytechnica em França; é preciso não confundir essa escola com as escolas industriaes ou especiaes, denominadas algumas institutos polytechnicos, que existem na Europa, em Allemanha particularmente. Qual foi o fim da creação da escola polytechnica em França? Foi preparar homens habilitados para os altos serviços publicos, cujas especialidades se ensinam em escolas de applicação; as sciencias physicas e naturaes e as altas mathematicas, constituem a base do ensino na escola polytechnica. Precisa essencialmente este ensino um complemento que é dado nas escolas militares, de pontes e calçadas, de minas, etc.

Em França, alem da necessidade de preparar homens habilitados para os serviços publicos, reconheceu-se tambem uma outra necessidade não menos urgente, a de crear uma escola central para a industria, para a sciencia applicada á industria. Foi ao principio puramente a acção individual que creou e deu forças a esta importante escola, que mais tarde o estado adoptou.

A escola central que teve por fim preencher uma das lacunas da instrucção especial d'aquelle grande paiz, desenvolver e propagar o estudo das sciencias nas suas applicações, para que a industria particular achasse um corpo habilitado que a podesse servir em todos os seus multiplicados ramos. Esta escola central, que foi adoptada pelo governo, é um modelo que muitas nações hão de copiar com proveito. Os institutos polytechnicos da Allemanha são muito similhantes na natureza e tendencias do ensino á escola central franceza. Nós não temos hoje nada organisado á similhança d'estes institutos e da escola central.

Mas, não tendo nós escola central, isto é, uma escola para preparar homens de sciencia, de sciencia verdadeira para servirem a industria, temos comtudo institutos industriaes com um numero consideravel de professores; mas com um caracter ainda mal definido, como se reconhece mesmo nos documentos officiaes. No Porto temos nós um estabelecimento de ensino scientifico com excellentes elementos de desenvolvimento e progresso. Parece-me que na classificação methodica dos estabelecimentos de instrucção superior podia esse estabelecimento, a academia polytechnica occupar um logar similhante ao dos institutos polytechnicos allemães; podia preencher no nosso paiz importantissimas funcções analogas ás da escola central, que na França está prestando os maiores serviços á industria. Se os estabelecimentos superiores de instrucção publica em Portugal se compenetrassem bem da sua posição; se a escola polytechnica de Lisboa e a academia polytechnica do Porto não quizessem ser faculdades universitarias, e se a universidade não quizesse ser escola ou academia polytechnica, se cada um dos estabelecimentos de ensino superior occupasse o logar que lhe compete, em relação com as necessidades publicas, se houvesse para isto commum accordo entre todos elles; o ensino ganharia, e a importancia dos estabelecimentos ganharia tambem. É preciso dizer e repetir, que tem ha s vido uma rivalidade incontestavel e pertinaz entre os estabelecimentos de ensino superior; essa rivalidade não me parece nem justificavel, nem util ao paiz. Não é justificavel, porque todos estes estabelecimentos podem occupar um logar eminente e perfeitamente distincto no ensino publico. Não é util, porque nenhum d'esses estabelecimentos occupará nunca o logar eminente que lhe compete, emquanto não perceber bem qual é a sua missão, e não a preencher desassombrado de todas as rivalidades.

Eu percebo as competencias entre os homens da sciencia, respeito-as, estimo-as e desejo-as; percebo-as mesmo, entre estabelecimentos scientificos; mas quero que essa competencia dê em resultado o trabalho util, o progresso da sciencia, o aperfeiçoamento do ensino; não quero que d'ella resulte o estado confundir, com incoherencia incomprehensivel, todos os estabelecimentos scientificos. Confundi-los, para que? Para ter um grande numero de professores, um pequeno numero de discipulos, e nenhum d'elles habilitado para os serviços publicos (apoiados).

E póde-se facilmente provar esta verdade. Póde-se demonstrar com factos numerosissimos. Homens de verdadeiro talento, homens tendo feito bons estudos nos estabelecimentos scientificos do paiz, ao chegarem aos serviços publicos têem desanimado diante das difficuldades da pratica, e têem desanimado porque a sua educação scientifica os não preparou para vencerem essas difficuldades (apoiados).

Eu bem sei que estou sobre um terreno perigoso, e que n'esse terreno a minha posição é difficil, difficilima. Eu sou professor de uma escola superior; da escola polytechnica, onde recebi a primeira instrucção; onde colhi os primeiros conhecimentos das sciencias physicas, naturaes e mathematicas; tenho amor a esse estabelecimento. O amor a mim não me céga. Nenhum amor me cegou nunca; e por isso não é para admirar que este amor me não cegue tambem. É fóra de duvida que todos têem tendencia para ver com bons olhos os estabelecimentos onde aprenderam, e que são, por assim dizer, a sua familia scientifica. Eu desejo dizer a verdade, desejo repetir aqui no parlamento o que por muitas vezes tenho procurado provar, onde me cumpria dar o meu voto sobre a direcção do ensino publico, e em particular do ensino, na escola onde professo.

A escola polytechnica de Lisboa tem uma funcção a preencher; é o ensinar as sciencias preparatorias para as escolas especiaes que preparam para os serviços do estado; é esse principalmente o seu destino, segundo determina a lei da sua creação. Todos os excessos de sciencia, assim como todas as deficiencias, são prejudiciaes aos que se preparam na escola para os serviços publicos, e ao proprio estabelecimento. Não posso deixar de notar que a escola polytechnica, imitação em parte da escola polytechnica franceza, está desacompanhada das escolas especiaes que em França intimamente se ligam com esta e a completam.

Parece-me que se considerarmos a conveniencia de pôr em harmonia o ensino com os fins a que os estabelecimentos se destinam, a observação que fiz ácerca da escola polytechnica de Lisboa se póde applicar igualmente á universidade. O ensino de certos ramos especiaes de sciencias applicadas tem-se ido introduzindo successivamente na universidade de Coimbra. Com que fim? Com o fim, supponho eu, de manter ao nivel, que se julga dever ser o mesmo para todos os estabelecimentos, a universidade de Coimbra e as outras escolas. Parece-me que ha uma illusão n'isto, uma illusão completa. A questão do nivel entre os estabelecimentos de instrucção superior não está em terem todos o mesmo numero de cadeiras, com as mesmas denominações, em habilitarem todos igualmente, para tudo; está na fórma do ensino, e sobretudo está em ter cada estabelecimento um caracter definido, uma rasão de ser, uma perfeita harmonia em cada uma das suas partes, em satisfazer cada um cabalmente ao seu fim, em contribuir cada um dentro da sua esphera para o progresso da instrucção no nosso paiz. É escusado dizer que do estado actual das cousas resulta grave inconveniente, não só para a perfeição do ensino das sciencias e das suas applicações, senão tambem para o orçamento do estado. Para o orçamento do estado onde eu não quero ver de modo algum diminuir a verba destinada á instrucção publica, mas desejo ver essa verba melhor applicada. Já disse hontem que a verba destinada á instrucção popular era insignificante, mais que insignifican-