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SESSÃO N.° 30 DE 26 DE FEVEREIRO DE 1907 305

pesando as condições do seu temperamento, as suas taras hereditarias, todos os elementos biologicos, emfim, que podem ter determinado a acção condemnavel.

Noli esse multum justum, dizia o Ecclesiastico: - Não queiras ser demasia damente justo. É este o lemma da justiça civilizada.

Sejamos justos, sim, mas associemos á infinita justiça a infinita bondade.

E a suprema honra?

A suprema honra não é muitas vezes mais do que a suprema vaidade e o supremo orgulho.

Sejamos em tudo razoaveis para não parecermos ridiculos. Contentemo-no em ser honestos e não nos julguemos isentos das faltas que os homens se perdoam uns aos outros.

Para quê, pois, tanto rigor com a critica dos nossos actos?

E depois, Sr. Presidente, serão efficazes, no sentido desejado pelo legisla dor, as leis oppressoras do pensamento humano?

Evitarão essas leis a livre expressão do pensamento?

Quem affirmar isso não conhece historia.

O pensamento vence tudo.

Não ha regimen por mais forte, vontade por mais energica, forca por mais resistente que possa dominar o pensamento.

Consulte V. Exa. a historia.

Até sob o imperio de Nero achava Lucano maneira de verberar o despota.

Quem ler as grandes obras da literatura latina fica pasmado ao ver as audaciosas accusações feitas ao cesarismo, sob o dominio da legislação mais cruel. Arrancavam a vida aos escriptores, ou suggeriam-lhes o suicidio, mas havia uma cousa que ninguem conseguia tirar-lhes: era a liberdade do seu pensamento.

A mim faz-me uma impressão tão grande a ideia de que alguem pode opprimir o meu pensamento, que me parece sentir no cerebro o peso de uma massa de chumbo ou a pressão de um traumatismo doloroso!

Na minha mocidade combati o celibato clerical, defendi a perfilhação dos filhos sacrilegos, e tive o prazer de ver essa doutrina sanccionada pelos nossos tribunaes.

Fui condemnado pelos clericaes e creio que posto no Index; essa condemnação nunca obstou, nem obstará a que eu manifeste o meu pensamento em qualquer assumpto religioso, como e quando eu julgar conveniente.

Hoje, com esta lei, e com o Ministerio Publico ás ordens dos reaccionarios, tinha com certeza seis meses de prisão. (Riso).

Os dois grandes inimigos do pensamento humano foram sempre a Igreja e o Estado. Porque ambos são tradicionalistas e conservadores. Não que rem ser perturbados na sua acção.

O que faz o Estado?

Espreita o pensamento, e quando o pensamento se exterioriza castiga-o, porque é demasiadamente atrevido.

O que faz a Igreja?

Essa, toda espiritual, colloca dentro do proprio cerebro a lei divina e apenas o pensamento desponta, já se apossa d'elle para o considerar como um peccado.

De sorte que, apenas gerado e ainda por sair á luz, já está sob a acção de um policia. Quando vem cá para fora o Estado ou a Igreja, ou ambos juntos, apertam-no de tal modo que seria esmagado, se não fosse invencivel o seu poder de resistencia.

E tão invencivel é o pensamento humano que até resistiu á propria censura previa.

Basta que V. Exa. veja a historia portuguesa narrada pelos nossos chronistas.

Podia referir um grande numero de passagens, todas destinadas a provar que, não obstante as diversas especie de censura, elles sempre diziam o que queriam dizer.

O nosso velho Fernão Lopes, por exemplo, narrando os acontecimentos do reinado de D. Fernando, quando chega á morte do Conde de Andeiro, caido proximo da Rainha D. Leonor, attribue a esta a seguinte phrase que cito de memoria: «Ámanhã irei S. Domingos pôr as mãos no fogo», e accrescenta maliciosamente: «O que ella tinha pouca vontade de fazer».

Se vigorasse então a lei de imprensa, á estaria o bom chronista incriminado em falta de respeito e condemnado por accusação do Ministerio Publico.

Toda a Camara conhece as apostrophes vigorosas de Vieira contra os ladroes que elle dizia existirem em Portugal, nas ilhas adjacentes e no ultramar. É a celebre conjugação do verbo rapio. Pois com esta lei o grande orador, não se livrava de seis mezes de cadeia, embora tivesse escapado á censura.

Tenho aqui uma passagem que eu não posso deixar de ler á Camara; em primeiro logar porque o auctor d'este livro é talvez no primeiro escriptor portuguez. Um dos maiores, com certeza.

É um classico, um d'aquelles auctores que todos os que usam da palavra pela penna ou na tribuna deviam ter a cabeceira. Ninguem escreve, como elle, esta formosa lingua portugueza, que soluça, geme e chora para exprimir as grandes dores, ou troveja tam lura como as armas que em nosso prol terçavam nas pelejas.

V. Exa. vae ver; este livro foi impresso e publicado em 1728 perante a face beatifica e majestatica do Rei D. João V.

Tem licença da congregação, do Santo Officio, do ordinario e do Paço.

Antes de citar a passagem, devo fazer uma declaração: é que eu não concordo com a doutrina aqui expressa, nem tem applicação alguma á actualidade; viria n'este sentido fora de proposito e abrangeria amigos meus dedicados, a quem devo a maxima lealdade e estima. Ninguem deve ver, por consequencia, a mais ligeira referencia n'esta passagem que vou ler, leio-a unicamente para mostrar a liberdade com que se escrevia.

O auctor é o Padre Manuel Bernardes e descreve a camarilha. Enuncia primeiro as palavras de certo imperador e depois tira duas illações. «Uma, diz elle, que nos paços dos nossos reis costuma haver muita hypocrisia; outra que os mais dos homens (uns mais, outros menos) teem alguma cousa de hypocritas».

Adeante:

«Quanto á primeira não é facil crer, como as aulas dos principes e grandes do mundo são terreno fertil, esphera propria das lisonjas, affectações, supposições, embustes, dolos, contraminas, dissimulações, cautelas, trêtas, verrinas, mascaras, tramoias, estratagemas, emboscadas, armadilhas, solapamentos, nós gordianos e labyrinthos».

Tudo isto nos palacios dos principes e grandes do mundo!

E depois, com aquella fina elegancia no dizer, accrescenta:

«Multipliquei as vozes a ver se podiam adequar o significado».

Ora, Sr. Presidente, se o frade dissesse isto hoje, onde estaria em face da nova lei?

A mim não me admira que a congregação desse licença para se imprimir a obra. Ella não feria os interesses da Ordem e não atacava os confrades; não me admira tambem que o Santo Officio deixasse publicar o livro, isto não tinha nada com a religião; não me admira ainda que alcançasse licença do ordinario; o auctor não combatia os decretos episcopaes nem as constituições do bispado. O que realmente me causa admiração é o representante do Paçô applaudir e elogiar o livro, dizendo que não contem cousa alguma contra as regalias d'estes reinos e que augmenta o credito de que o auctor goza entre os maiores homens de todas nações.

É que a liberdade do pensamento escapa ás prohibições, ás censuras previas, a tudo.