19 DE FEVEREIRO DE 1955 359
4. Como acima se disse, houve no decurso do tempo homens cultos - portugueses na Inglaterra, ingleses em Portugal - que, mercê das oportunidades oferecidas pelas actividades comerciais, pelas perseguições religiosas (movimento irradiante dos judeus portugueses para os países nórdicos nos séculos XVI e XVII), pelas expedições militares, pelas emigrações políticas, puderam estabelecer contactos directos, mais ou menos longos, com os acontecimentos, as instituições e os homens do país aliado, adquirindo experiência que lhes permitiu publicar, não apenas livros de viagens, mas obras científicas e literárias de relevante interesse para ambos os povos. Houve também letrados e sábios, em qualquer das nações, que exerceram a função docente nas Universidades da outra (desde Buchanan, aliás escocês, até Prestage), ou pertenceram a claustros académicos do país irmão, como ar Sociedade Real de Londres e a Academia das Ciências de Lisboa. A isso se referem, em trabalhos ricos de informação, Henry Thomas (English translations of portuguese books); Saavedra Machado (O pensamento inglês em Portugal na Idade Média); Fran Paxeco (The intellectual relations be-tween Portugal and Great Britain); Felix Walter (La litterature portugaise en Angleterre à l'époque romantique); Chapman e Shillington (The commercial relations of England and Portugal); Prof. Amorim Ferreira (Relações cientificas entre Portugal e a Grã-Bretanha); e muitos outros. Estes factos, porém, não alteram de maneira sensível a posição do problema. Não se tratou, propriamente, pelo menos até certa data, de relações culturais regulares entre Portugal e a Grã-Bretanha, mas - o que é diferente - de casos isolados, mais ou menos frequentes e mais ou menos brilhantes, que se produziam, não como expressão do entendimento das duas nações, mas perante a sua quase total indiferença. Actividades individuais de homens cultos, e não uma intercultura organizada. Essa, só depois veio, estabelecendo-se lentamente a partir de 1929-1930 - época heróica da nossa política intelectual de cooperação -, em que fundámos a Junta da Educação Nacional (a que sucedeu o Instituto para a Alta Cultura) e em que os primeiros bolseiros modernos portugueses, com o seu Baedecker e as suas ilusões, partiram a caminho das Universidades estrangeiras. Foi então especialmente considerada a colaboração com a Grã-Bretanha. Aí criámos cátedras e leitorados de língua e literatura portuguesa, em Londres (King's College), em Oxford, em Liverpul; depois em Glasgow, em Cardife, em Manchéster; por fim em Leeds. Em
1933, em plena lua-de-mel dos acordos intelectuais - «les mots dorés», como lhe chamava o Embaixador conde de Saint-Aulaire -, um inglês insigne, Gilbert Murray, professor de Filologia Grega na Universidade de Oxford, assume em Genebra a presidência do mais alto organismo intelectual da Sociedade das Nações. Em 1934 a Grã-Bretanha cria o British Council - central imperial da política de cultura inglesa. Em 1938 inaugura-se em Lisboa o Instituto Britânico, para cuja fundação contribuiu a sugestão oportuna de um português, o Prof. Moses Amzalak, junto de Lord Tyrrell. Tinham começado pouco antes a funcionar o Instituto Inglês da Universidade de Coimbra, a Sala Inglesa da Universidade do Porto, o Gabinete Britânico de Documentação Económica e Financeira da Universidade Técnica de Lisboa. Então, sim, podia já afirmar-se a existência de relações culturais, não apenas entre indivíduos, mas entre Estados; não apenas entre alguns ingleses e portugueses ilustres, mas entre Portugal e a Grã-Bretanha. Faltava, porém, a autoridade de um estatuto, de um instrumento diplomático que a um tempo definisse o sistema de cooperação, estabelecesse as suas bases jurídicas e políticas, assegurasse os meios, os métodos e os limites da obra de organização e de coordenação internacional que se impunha. Para isso os dois Governos negociaram e assinaram a presente Convenção, remetida para preparação de ratificação a Assembleia Nacional e agora submetida ao estudo da Câmara Corporativa. Corresponde, de facto, este instrumento diplomático ao alto pensamento que anima os dois Governos?
5. O projecto de Convenção Cultural entre Portugal e a Grã-Bretanha, de iniciativa, como se disse, do Governo de Sua Majestade Britânica, foi enviado à nossa Secretaria de Estado no dia 36 de Novembro de 1948, acompanhando ofício do embaixador cessante, Sir Nigel Ronald. A grande nação acabava de celebrar acordos intelectuais semelhantes com a França e o Brasil e propunha-se concluir connosco uma convenção do mesmo tipo. Era um diploma de linhas clássicas, com um breve preâmbulo em que se definiam os objectivos das Altas Partes Contratantes («promover, mediante intercâmbio e cooperação amigáveis, o mais perfeito conhecimento e compreensão recíprocos das respectivas actividades intelectuais, artísticas e científicas, bem como dos seus modos de viver»), e um corpo de dezanove artigos, nos últimos dos quais se continham as disposições escatocolares habituais (ratificação, troca dos instrumentos, prazos). Remetido o projecto à Secretaria de Estado da Educação Nacional, foram pelo Instituto de Alta Cultura, com exemplar clarividência e zelo, suscitadas algumas dúvidas. Não pareceu, em primeiro lugar, aceitável o princípio do acordo-standard, quer dizer, a adopção de um tipo de acordo uniforme para países diferentes, cada um dos quais possui, naturalmente, o seu condicionalismo próprio, o seu volume de interesses, o seu conceito de cultura, as suas reacções psicológicas, o seu índice de civilização. «Estes acordos - observou o Instituto - não podem ser planeados numa dimensão única nem estruturados segundo o mesmo padrão». Semelhante observação - convém esclarecer - referia-se especialmente ao conteúdo, não à forma, porquanto é sabido que a evolução formal, exterior ou diplomática destes instrumentos se tem feito, a partir de 1935, quanto possível no sentido da unidade. Pareceu ao Instituto, também, que o projecto confundia a «noção humanista de cultura, única de que aquele organismo se considera tributário», com o «conjunto das actividades e manifestações da vida dos povos modernos», incluindo nos objectivos definidos no preâmbulo o mais perfeito conhecimento das «maneiras de viver» («ways of life») das duas nações, e considerando no artigo III o intercâmbio do «academic personnel» (professores, estudantes, investigadores científicos) extensivo a outras profissões e ocupações («other professions and occupations»). A confusão do «cultural» com o «social» e com o «económico» repugna a esta espécie de acordos, de âmbito restrito aos interesses intelectuais. O alto organismo consultado chamou ainda a atenção do Governo para dois pontos a que atribuiu especial importância: não considerava necessária a nomeação de uma Comissão Mista (Mixed Commission) para a execução do Acordo, porque essa função, por definição legal, pertencia no nosso país ao Instituto de Alta Cultura; reputava inconveniente a aplicação imediata da Convenção aos territórios ultramarinos das duas Potências contratantes, dispersos pelas cinco partes do Mundo (§ 2.º e alíneas do artigo XVI do projecto inglês), porquanto, dado o desnível das civilizações e dos culturas, não era por enquanto possível negociar acordos intelectuais de tão vasta extensão geopolítica. O Instituto fez acompanhar o seu relatório de um contraprojecto da Convenção remetido ao Governo em 17 de Janeiro de 1949.