ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 124 1246
Setembro de 1900, e, finalmente, o § 3.º do artigo 88.º do Regulamento das Estradas Nacionais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36 816, de 2 de Abril de 1948.
Da simples leitura destas normas legais tira o relatório a conclusão de que nunca o citado artigo 2317.º do Código Civil foi aplicável aos proprietários particulares em relação às árvores do domínio público, designadamente as implantadas nas estradas nacionais, conclusão aliás consagrada pela jurisprudência (n.º 2) e que se abona ainda com as soluções dadas ao mesmo problema pelo direito vigente e pela jurisprudência firmada em França (n.º 3).
3. Em seguida o relatório do projectado decreto-lei refere, resumidamente, a alteração de regime jurídico feita pela Assembleia Nacional, da qual resultou a situação que o diploma em estudo se propõe fazer desaparecer.
Ora, convém fazer a Listaria do preceito vigente com um pouco mais de pormenor.
Publicado em 2 de Abril de 1948 o Decreto-Lei n.º 36 816, na sessão da Assembleia Nacional do dia 16 do mesmo mês propôs o Sr. Deputado Antunes Guimarães, que ele fosse submetido a ratificação (Diário das Sessões n.º 146). Seguindo esta petição seus trâmites, foi aquele diploma apreciado em sessão da Assembleia Nacional e, submetido a ratificação, foi esta concedida com emendas (idem, n.º 182).
Deste facto resultou, nos termos regimentais, ter-se o diploma transformado em proposta dê lei, pelo que, tendo esta sido enviada à Câmara Corporativa, aqui foi elaborado sobre ela o parecer n.º 36 da IV Legislatura (ideia, suplemento ao n.º 189).
No § 3.º cio artigo 88.º do estatuto aprovado- pelo Decreto-Lei n.º 36 816 dispunha-se textualmente:
Se houver árvores que, embora situadas fora da faixa referida no corpo deste artigo, estendam os seus ramos sobre a zona da estrada definida no artigo 10.º e desse facto possam resultar quaisquer inconvenientes para a mesma ou para o trânsito, poderão ser cortados pelo pessoal dos serviços de estradas os ramos que ultrapassarem o plano vertical que passa pela linha limite da referida zona, se o dono dessas árvores, sendo avisado, o não fizer no prazo de três dias.
A esta disposição nada opôs ou observou o citado parecer n.º 36 [idem, idem, pp. 526 (9)]. Mas, enviado este à Assembleia Nacional e fazendo-se aí a discussão da nova proposta de lei, foi pelo Sr. Deputado Antunes Guimarães apresentada uma proposta de aditamento àquele §.3.º, que dizia textualmente:
... reconhecendo-se o mesmo direito aos proprietários confrontantes, em relação a árvores existentes na área das estradas.
Posta em discussão esta proposta, não suscitou qualquer observação, e, submetido a votação, foi o aditamento aprovado (idem, n.º .199, p. 715). E no texto aprovado pela Comissão de Legislação, e Redacção, decreto da Assembleia Nacional, ao § 3.º do artigo 88.º do Estatuto das Estradas Nacionais foi aditado o seguinte:
Igual direito é reconhecido aos proprietários interessados, em relação a árvores existentes na área das estradas (idem, 7.º suplemento ao n.º 199).
Tal é a redacção que se acha transcrita ipsis verbis no lugar próprio do diploma em vigor - o § 3.º do artigo 88.º do Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pela Lei n.º 2037, de ] 9 de Agosto de 1949.
4. Delineados os termos do problema posto pelo projecto de decreto-lei à consideração da Câmara, é fácil tirar uma ilação. O Governo pretende eliminar uma parte de um preceito de lei por cuja força, sem, atenção nos antecedentes reguladoras da matéria, se torna aplicável às relações entre o Estado e os particulares, em certo sector delimitado, o regime jurídico próprio da mesma matéria aio campo do direito privado.
Não lia dúvida de que esta intromissão de um princípio de direito civil aia esfera de acção do direito administrativo é anómala. Mas a infinita variedade das situações sociais pode, em princípio, levar o legislador a agir sem preocupações rígidas de equilíbrio e de harmonia de sistema. Daí aquilo que aparenta, ser ilógico e mesmo aberrante poder ser, afinal, socialmente útil e, portanto, digno de consagração legal.
Por este modo, o problema agora em discussão deve ser visto não somente pelo seu aspecto formal e, por assim dizer, abstracto, mas também pela sua face substancial e concreta: tem ou não razão de ser o preceito que o Governo se propõe eliminar?
É o nó da questão.
5. Para optar pela negativa pode dizer-se que a arborização das estradas se reveste de utilidade pública, pela segurança dos terrenos que facilita, pelas sombras que proporciona durante o Verão, pelo relevo que muitas vezes dá às paisagens. E é fora de dúvida que uma bela fieira de árvores ornamentais pode transformar-se num motivo de desfeamento se as copas delas aparecerem desequilibradas por cortes feitos somente segundo o critério do respeito por uma linha limite imaginária, isto é, se os golpes dados revelarem mutilações sistemáticas.
Em reforço desta orientação podem invocar-se por analogia e até por maioria de razão as restrições ao direito de propriedade que o Estatuto impõe aos donos dos terrenos marginais das estradas.
Com efeito, só por motivo de consideráveis prejuízos em. prédios existentes pode ser autorizada a remoção de árvores do Estado sitas na zona da estrada, devendo, ainda assim, ser pagas pelo interessado as despesas a efectuar (artigo 138.º).
Por outro lado, a nenhum, proprietário é, em geral, permitido fazer cortes de árvores, não só na zona da estrada como ainda na faixa de terreno que se estenda até 5 m da linha limite desta zona, sem prévia autorização [artigos 87.º e 127.º, alínea 7;)].
E também aos proprietários confinantes será negada autorização para o corte ou poda profunda das árvores cuja manutenção tal como se encontram seja conveniente por contribuir para o embelezamento ou segurança da estrada (artigo 133.º).
Se os direitos dos proprietários à livre utilização, remoção e transformação das suas próprias árvores estão assim cerceados, seria decerto incongruente admitir que a simples invocação de um prejuízo pudesse permitir-lhes exigir ou fazer cortes nas árvores do Estado.
6. Mas é preciso ver a outra face do problema.
A falta de discussão na Assembleia Nacional acerca do aditamento ali proposto, do qual resultou o acrescentamento ao primitivo § 3.º do artigo 88.º do Estatuto das Estradas Nacionais, priva o intérprete de um dos melhores elementos para o apuramento da justificação da vontade da Assembleia. Mas, por outro lado, a facilidade com que, submetido a votação, foi aprovado induz a crer ter o discutido aditamento significado que essa vontade era geral e tinha um fundamento óbvio; e este só pode ter sido o intuito de impedir os prejuízos que podiam dimanar da situação legal anterior.