7 DE MARÇO DE 1964 507
- qualquer dignidade criminal especifica - para abrir uma excepção quanto ao uso ilegal (sem licença) de acendedores ou isqueiros.
Tendo o Decreto-Lei n.º 39 187, de 25 de Abril de 1953, amnistiado "todas as contravenções puníveis com pena de multa" (artigo l º, n º 2), levantou-se o problema de saber qual o âmbito de aplicação deste diploma em matéria fiscal. As dúvidas foram resolvidas pela Portaria n º 14 516, de 27 de Agosto de 1953, confirmada pelo Decreto-Lei n º 39 785, de 25 de Agosto de 1954, distinguindo entre crimes fiscais [fundamentalmente os actos ilícitos declarados puníveis e regulados pela lei penal, e sujeitos ao regime do direito criminal comum, mas incidindo sobre matéria fiscal-p. ex., a simulação em prejuízo do Estado, artigos 455 º do Código Penal e 99 º, § l º, do Regulamento de 23 de Dezembro de 1899, hoje revogado e substituído pelos artigos 162 º e seguintes do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (16)], contravenções de natureza penal, fundamentalmente (17) quando punidas com multa convertível em prisão, e infracções de natureza administrativa, quando punidas com multa não convertível. E indica a mesma portaria três exemplos de contravenções de natureza penal.
As transgressões aduaneiras (18), cuja gravidade advém do prejuízo que causam a uma economia proteccionista,
As infracções fiscais de funcionários fiscais, particularmente obrigados a absterem-se delas (19),
O uso ilegal de acendedores e isqueiros, nos termos do Decreto-Lei n º 28 219.
Salta à vista a desproporção entre a gravidade dos dois primeiros exemplos e do último. Na verdade, não descobre a Câmara Corporativa qualquer razão para considerar o uso sem licença de um acendedor ou isqueiro facto mais grave do que a maioria das transgressões fiscais, e por isso a qualificar como infracção de natureza penal, e não administrativa.
Acresce que, segundo o regime actualmente vigente, a imposição de uma sanção potencialmente pessoal é cometida, não a um órgão de soberania (como o tribunal - artigo 71 º da Constituição Política), mas ao chefe de secção de finanças (embora com recurso) - artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n º 28 219, de 24 de Novembro de 1937, e é aplicada, não mediante a due process of law, per legale judicium, mas "sem estrita observância de fórmulas" (artigo 6.º do mesmo diploma). É certo que a conversão em prisão é requerida pelo Ministério Público ao juiz (artigo 11 º), mas a função deste é - parece - meramente homologatória. Talvez não formalmente, mas materialmente, há aqui uma violação do básico princípio nulla poena sinc judicio.
9. O exame à luz do direito criminal e financeiro do sentido geral da inovação proposta parece assim à Câmara justificá-la inteiramente, quanto ao seu mérito actual.
Quanto ao conteúdo e em mérito potencial
10. Mas não seria possível, para regular o uso de acendedores e isqueiros, um regime mais perfeito ainda?
Refere-se a justificação da apresentação do projecto em análise, feita à Assembleia Nacional por um dos seus autores, o Deputado Sr. Alberto de Meireles, à "circunstância de ser desconhecida nos restantes países a exigência de licença para uso de acendedores e isqueiros" (20).
Em regra, realmente, o regime é diferente em países estrangeiros (21), e um regime, muito usado nesses países, e que portanto se apresenta como possível e assim como alternativo em relação ao do projecto, é o regime da cobrança de um imposto único sobre o isqueiro ou acendedor, imposto que, como todos os indirectos, seria pago imediatamente pelo fabricante ou importador, ou pelo vendedor, mediante a aposição de um selo metálico ou contrastaria oficial, mediatamente pelo adquirente, cujo preço seria aumentado pelo mesmo imposto. Seria portanto um imposto de fabrico e importação, ou então de consumo, integrado no regime tributário especial dos flamíferos.
Esta solução é diversa, quer da vigente, quer da do projecto. Parece à Câmara Corporativa dever limitar-se a lembrá-la como possível, sem a sugerir ou defender. Na verdade, tal solução oferece vantagens, mas também inconvenientes. Tem a vantagem da maior comodidade - o adquirente do acendedor ou isqueiro paga de uma vez só o direito à sua utilização, sem se ter de preocupar com o pagamento anual da licença ou com os riscos da sua omissão, que se podem figurar como imposições de natureza pessoal, de certo modo vexatórias. Talvez tenha até a vantagem de uma maior rentabilidade - abrangerá mesmo os isqueiros e acendedores de uso doméstico, os quais, dado que aos fiscais não é permitida a entrada em casa alheia para fiscalização, hoje de facto não pagam licenças, e além disso facilita a tarefa da fiscalização e diminui assim o respectivo custo. Tem, porém, a desvantagem da oncrosidade para o contribuinte primeiro, porque o imposto único, para ser correspondente (22) ao valor do anual (mesmo tomando em linha de conta a duração provável dos objectos), terá forçosamente de ser relativamente elevado, elevado sobretudo em relação ao custo do próprio objecto (aliás, de forma alguma indispensável e cuja venda e consumo fortemente se ressen-
Rosa, "Natureza Jurídica das Penas Fiscais", in Boletim da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos n.º 19, pp 1269 a 1277, n.ºs 20-21, pp 1571 a 1575, n.º 22, pp 1759 a 1770, Dr. Mouteira Guerreiro, "Em torno da Infracção Fiscal", in Ciência e Técnica Fiscal n.ºs 37-38, p. 129, Vítor da Silva Garcia, "A Infracção Fiscal", in Ciência, e Técnica Fiscal n.º 46, p 512, Domingos Martins Eusébio, "Subsídios para Uma Teoria da Infracção Fiscal", in Ciência e Técnica, Fiscal n º 55, pp 127 e 128. "A multa fiscal é assim uma pena não criminal" - Dr. Cortes Rosa, ob. cit., p 1278; cf Prof. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, vol. II, p 162.
(16) Aprovado pelo Decreto-Lei n º 41 969, de 24 de Novembro de 1958.
(17) A portaria indica como característica da contravenção fiscal de natureza penal a intransmissibilidade aos herdeiros da multa correspondente antes do trânsito em julgado da sentença que a imponha.
(18) Artigos 11. º, 50.º, 51.º e 151.º do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei n º 31 664, de 22 do Novembro de 1941.
(19) Decreto n.º 17 731, de 7 de Dezembro de 1929.
(20) Diário das Sessões, 1964, p 2935.
(21) Mas em Itália, um decreto-lei de 11 de Junho de 1956 substituiu o direito único sobre o isqueiro por um direito anual a cargo do utente ou detentor, pago mediante a aquisição de um selo "que o utente pode aplicar sobre o aparelho ou sobre um qualquer documento de identificação pessoal" - Renato Alessi, Monopoli Fiscali, Imposte di Fabricazione, Dasi Doganali, Turim, 1956, p 232.
(22) Parece à Câmara Corporativa que seria inconstitucional, por força da parte final do artigo 97.º da Constituição Política, um projecto de lei abolindo a licença de isqueiro, sem criar uma fonte de receita em princípio equivalente e compensatória.