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23 DE MARÇO DE 1950 585

Sr. Presidente: o Teatro de S. Carlos tem, em parte, na sua função dar ao público que o frequenta uma temporada de ópera.
Muito bem.
Não conheço quais os preceitos regulamentares que determinam a profundidade da sua actuação neste sentido.
E digo mais: não conheço nem necessito conhecer. Porque, se for como se está fazendo, está muito mal.
E por ser esta a minha opinião, e até a opinião do grande público, aqui trago as observações que passo a expor.
O Teatro de S. Carlos, que se chama Nacional, não inclui na sua temporada de ópera óperas portuguesas.
Porquê?
Não cabe tal na sua função?
Onde deverão, pois, ser representadas as óperas dos compositores portugueses cujo mérito as torne dignas desse galardão?
Parece-me, salvo o devido respeito, que obrigatoriamente seria seu mister acarinhar, proteger e pugnar pela representação do maior número de obras portuguesas e com artistas portugueses. Sim, com artistas portugueses.
Isto, sim, seria próprio do Teatro Nacional de S. Carlos.
O que acontece, porém?
Vamos ao que se passou nos últimos cinco anos, rapidamente.
Houve realmente amas épocas de ópera portuguesa. Situou-se a sua representação em Dezembro, em pleno Inverno.
O que sucedeu?
O público, que não tem o hábito de ir a S. Carlos em Dezembro, não compareceu. E daí concluir-se que não havia obras musicais portuguesas capazes de serem cantadas.
Duas ou três épocas neste estilo e acabou-se... não mais compositores portugueses.
Porquê?
Diz-se agora: não há verba!
Mas então não há verba para os compositores portugueses e há-a para os estrangeiros?! É isto a protecção ao que é nacional? Mas há mais.
Os cantores sofrem uma certa diminuição de possibilidades da voz nos meses mais frios, e então escolheu-se o Inverno para fazer brilhar os cantores nacionais. Claro está que esta circunstância os colocou em grau de inferioridade artística.
Quero acreditar que não houve tal propósito da parte de quem de direito. Suponho que a direcção do Teatro foi levada a isso por poderosas razões. Mas a verdade é ter-se marcado o Inverno, às vezes rigoroso, deste belo clima de Portugal para exibição da ópera portuguesa, com cantores portugueses.
Mas, diz-se, não há cantores portugueses para que seja possível formar um elenco de artistas suficiente para uma perfeita execução das partituras.
Mas não há porque se não protege o seu aparecimento ! Ou nós, portugueses, somos afónicos para cantar ópera?!
Vejamos, Sr. Presidente. Duas ou três pinceladas!
A ópera teria a sua origem remota no ano de 534 a. C., em que se representou a primeira tragédia musicada na Grécia.
A ópera como peça de teatro, com solos, coros vocais, bailados e orquestra, foi invenção de um grupo de artistas que tinha por hábito reunir-se num pequeno cenáculo em Florença. Mas o primeiro teatro de ópera, teatro público, foi o de S. Cassiano, em Veneza.
A ópera italiana apareceu em Portugal, pela primeira vez, no reinado de D. Afonso VI, em 1662, e definitivamente ganhou foros, quando representada como manifestação cultural, nas festas do casamento do rei D. João V com a princesa Maria Luísa de Áustria, em 1708. Só, porém, em 1735 começou o espectáculo a ser pago.
A primeira ópera portuguesa foi da autoria de Francisco António de Almeida. Cantou-se em 1733 e em italiano.
A primeira ópera em língua portuguesa foi a Vida do grande D. Quixote de la Mancha, da autoria de António José da Silva, o Judeu, cuja música e nome do autor são desconhecidos hoje.
O compositor português António Teixeira, que viveu nesta época, tem o seu nome ligado à ópera portuguesa.
O Teatro de S. Carlos foi inaugurado em 30 de Junho de 1793. Recebeu o nome que ainda hoje conserva em homenagem à esposa do rei D. João VI.
O primeiro director da orquestra do Teatro de S. Carlos foi o maestro António Leal Moreira.
Pois muito bem. Desde a sua fundação até 1908 foram representadas no Teatro do S. Carlos cerca de oitenta óperas portuguesas, de que foram autores os «portuguesíssimos» compositores Leal Moreira, Marcos Portugal, José do Rego, António Soares, Pereira da Costa, Luís Miro, João Guilherme, José Vila, Santos Pinto, Inocêncio dos Santos, Sá Noronha, Freitas Gazul, Miguel Ângelo, Castro Braga, Frederico Guimarães, João Arroio, Augusto Machado e outros.
Isto sucedeu na época em que não havia corpo coral, corpo de baile e orquestra sinfónica. Agora existem estes agrupamentos artísticos, constituídos por altos valores portugueses, aos quais rendo neste lugar as minhas melhores homenagens e aplausos calorosos.
Nesse tempo podia fazer-se a representação de óperas portuguesas, e agora, que contamos com elementos nacionais de primeiro quilate, não podem ter lugar representações de óperas com música portuguesa?!
Não há então razão para subsistir o Teatro de S. Carlos, dirão os maldizentes, os eternos demolidores do que se chama nacional.
E continuam os mesmos: nós não sabemos cantar! Somos um povo triste, possuindo uma língua que não tem o ritmo e a musicalidade necessários para o belo canto.
Mas, digo eu: tal não é verdade! Há muitos séculos atrás, por ser considerada a língua galaico-portuguesa especialmente prestável para o canto, teve grande preferência dos trovadores.
Alguns dos nossos reis da primeira dinastia foram trovadores de nomeada.
E, além deles, dezenas de trovadores, entre os quais o célebre Pai Soares de Traveiros, cantaram na língua portuguesa. E até o próprio Afonso X, o Sábio, rei de Castela - rei de Castela! -, que foi um notável trovador, adoptou a língua portuguesa para cantar as suas trovas.
E de então até hoje quantos bons cantores portugueses! Alguns alcançaram renome mundial, disputando aos maiores cantores da sua época a primazia como o meio-soprano Maria Luísa de Aguiar Todi, os irmãos Andrade e outros.
E também houve sempre em Portugal compositores portugueses, podendo admitir-se que Gil Vicente foi o precursor do teatro musicado, muito embora não se conheçam obras musicais suas.
Mas é conhecimento corrente que num dos seus autos se diz: «acabada assim a sua adoração, cantaram a seguinte cantiga, feita e ensaiada pelo autor».
Além disto, conhecem-se muitos trechos musicais intercalados pelo autor nas suas comédias.
Damião de Góis foi considerado um grande compositor e a ele se atribui a autoria de um tratado de teoria