604 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 36
valor e ao mesmo tempo cheio de dificuldades, para cuja apreciação receio não estar ainda completamente habilitado.
E isto acontece, embora tenha podido ponderar um parecer que pode classificar-se, sem favor, como uma peça modelo no seu género. Na verdade ele revela não só o mestre da língua que o relatou - o escritor Júlio Dantas - mas ainda o esclarecidíssimo técnico das coisas do teatro e da sua história, que há bem pouco tempo recebeu justa e condigna homenagem a propósito do seu jubileu como autor teatral representado.
Além disso, Sr. Presidente e meus senhores, sou professor de Psicologia e não desconheço, por esse motivo, que um estímulo quando repetido com frequência, perde quase sempre muito da sua eficácia. Ora, eu tenho falado ultimamente várias vexes nesta Assembleia e, sinceramente, temo que V. Ex.ª e os meus ilustres colegas comecem a fatigar-se de ouvir-me. Quero, no entanto, tranquilizar todos desde já. Serei tão breve quanto possível nas minhas considerações.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Délio Santos: digo, como toda a sinceridade, que as palavras de V. Ex.ª nunca me fatigaram. V. Ex.ª tem à sua disposição o tempo regimental normal e ainda o de possível tolerância.
O Orador: - Muito obrigado a V. Ex.ª
Depois é muito difícil falar em seguida ao ilustre Deputado que me precedeu. É uma tarefa superior às minhas forças, dada a forma elevada como abordou nesta tribuna o mesmo assunto.
Um elementar sentido das proporções obriga-nos a repudiar a ideia de que a proposta de lei em discussão corresponda a um estatuto do teatro, como limito bem se observa no parecer da Câmara Corporativa. Falta-lhe a amplitude necessária e não pretende uma solução definitiva do problema do teatro em Portugal. Mas é indiscutível que ela é de uma flagrante oportunidade e as medidas propostas correspondem a soluções de problemas sem as quais o tal estatuto do teatro, que todas as pessoas cultas em Portugal desejariam ver surgir, não poderá tornar-se realidade.
As medidas «gora apresentadas constituem, portanto, um primeiro passo, indispensável ao início de uma marcha ascendente da arte do teatro em Portugal.
Os homens, levados pelo dinamismo da técnica e pela fisionomia mecânica da vida moderna, projectaram o seu ser para o exterior e perderam-se nas teias cerradas de uma vida constantemente variada, mas superficial. O que deste modo ganharam em extensão, por uma experiência sensorial larga, uras fugidia, perderam em intensidade, e profundeza, e todas as formas de arte se ressentiram deve facto. Devido à diminuição de intensidade da vida interior dos povos, o nível de cultura baixou extraordinariamente. Veja-se o que aconteceu com o livro e a leitura. É um paradigma: nunca se leu tanto na história da Humanidade e, no entanto, nunca se leu tão mal. A recomendação de Seneca acerca do «homem de um só livro» nunca teve tanta actualidade como em nossos dias.
A crise do teatro filia-se, em parte, nesta atitude do homem moderno, que precisa de ser reeducado de modo a poder descobrir, além do mundo das formas e das cores, que o cerca e o encanta, a existência do riquíssimo mundo interior das emoções e sentimentos, não menos valioso.
O teatro, no domínio da arte cénica, corresponde a uma visão da vida em profundidade e é por isso que ele faz parte integrante, como elemento principal, da verdadeira cultura. Os antigos atribuíam-lhe, e a meu ver com razão, uma origem divina.
Ora, penso eu: não pode haver bom teatro «em público. E não podemos, por esse motivo, perder de vista, na redacção da forma definitiva da lei que se discute, esse aspecto do problema. Temos de realizar um esforço enérgico para quebrar o círculo vicioso que impede entre aios a plena expressão de uma das manifestações mais belas da alma de um povo: não se fazer bom teatro por falta de público que o aprecie devidamente; e faltar o público nas casas de espectáculo à míngua de boas peças e bons actores nos palcos. Quando penso no bom teatro não me refiro apenas ao alto teatro. Englobo no meu pensamento o teatro ligeiro, quando de nível elevado.
Os dados do problema são, pois, estes: público, artistas, casas de espectáculo e empresas e, por fim, autores.
Em relação ao público, o despertar nele do bom gosto é trabalho difícil e lento, que deve ser realizado por muitos organismos culturais e educativos simultaneamente, através de espectáculos, conferências e publicações, as mais variadas.
Pelo que se refere aos artistas, precisamos de melhorar o seu nível técnico, sem dúvida, mas precisamos igualmente de não estancar uma das principais fontes que durante muito tempo alimentaram com tão grande êxito os nossos palcos. Quero referir-me ao aproveitamento dos amadores, por vezes tão útil à arte, como no caso de Chaby Pinheiro e Adelina Abranehes, que cito só a título de exemplo. Neste ponto estamos ainda muito longe de ter alcançado o objectivo desejado e deveríamos, talvez, tomar por modelo o que se passa na Inglaterra, indiscutivelmente um país de bom teatro, ou o que se passou na Alemanha com a iniciativa dos teatros municipais.
Ao Estado compete, portanto, fomentar o aparecimento de grupos de actores teatrais amadores, venham elas das escolas universitárias ou de simples sociedades de recreio.
Às empresas é necessário oferecer condições de êxito comercial, impedindo, porém, a exploração injusta dos artistas pelos trunfo ou a falta de cumprimento de outras obrigações instituídas pela lei. Ao referir estas cautelas tenho em mente o típico caso Piero Benardon.
O trust dos teatros foi exercido em Portugal por esse empresário italiano, que reteve nas suas mãos, durante um longo período, os Teatros Variedades, Avenida e Apoio, de Lisboa, e o Sá da Bandeira, do Porto.
Esse monopólio só foi possível porque as autoridades responsáveis consentiram, com uma complacência ilegal, que aquele empresário acumulasse todo o género de dívidas que as leis proíbem: aos seus artistas, coristas e demais contratados; aos autores; à Fazenda Pública. As cauções que as leis estabelecem foram completamente descuradas, e quando soou a hora da escandalosa falência nada existia para cobrir esses débitos senão uma reduzida massa falida. Dívidas que as lei não consentem, em vez das cauções que as leis impõem; foi este o quadro.
Não pretendemos, por agora, acusar, mas esclarecer, para que semelhantes anomalias, imprevidências e desprezo das leis não voltem a repetir-se.
É nossa convicção que tais factos não se teriam dado se a Inspecção dos Espectáculos fizesse parte, como deveria ser, do Ministério da Educação Nacional e tivesse colaborado mais intimamente com os organismos encarregados de defender os direitos dos trabalhadores teatrais e dos autores.
A falência do empresário Piero explica também que, apesar da crise de palcos, se encontrassem durante algum tempo encerradas em Lisboa e no Porto algumas casas de espectáculos.
Eis porque não posso deixar de aplaudir com todo o entusiasmo a sugestão feita no parecer da Câmara Cor-