25 DE ABRIL DE 1963 2407
exaltados pelo ilustre Deputado Sr. Dr. José Manuel da Costa, na sessão de 27 de Fevereiro do ano findo.
Este livro, que se situa entre as mais notáveis obras do seu tempo, não se limita a dar notícia exacta de países ou de coisas distantes ou desconhecidas.
Ele partilha, naturalmente, do alto mérito informativo dos escritos de Duarte Barbosa, de Gaspar Correia, de Castanheda, de João de Barros, de Fernão Mendes Finto, de Diogo do Couto e de tantos outros que se impuseram a missão de desvendar e de relatar, ao Ocidente, os mistérios longínquos do Oriente, na era de Quinhentos.
Para além desse valor, há, porém, outro que o livro revela à evidência - o de haver sido Garcia de Orta precursor do método científico experimental, que havia de abalar, nos três séculos seguintes, a rigidez e os erros da escolástica tradicional, abrindo assim novos e mais amplos caminhos à incontida avidez do saber humano.
Garcia da Orta não foi um simples curioso da Natureza nem tão-pouco um irrequieto espírito que buscasse aventuras nas terras distantes do Indostão.
Adolescente ainda, ele partira de Castelo de Vide, onde nascera, para a Universidade de Salamanca - «essa mãe de todas as artes e de todas as virtudes» (como a considerava Siculo) -, e já então, alheio às estúrdias estudantis, ele se revelava de índole pacífica e estudiosa.
Aristóteles continuava a ser ali o grande oráculo dos filósofos e teólogos da Idade Média, girando os estudos da Medicina em torno dos escritos gregos de Hipócrates e de Galeno, como se fosse um autêntico prolongamento da Escola de Cós.
Nesse tempo, grandes sábios portugueses, como Pedro Nunes, Aires Barbosa, Pedro Margalho e outros, ornavam o corpo docente daquela afamada Universidade, havendo ainda nas cadeiras inerentes à Medicina professores como Tomé da Veiga, João Rodrigues (Amato Lusitano), António Luís, Luís de Lemos e Henrique Jorge Rodrigues.
Garcia de Orta devia, pois, sentir-se não só intelectualmente satisfeito com tão extraordinário ambiente espiritual, mas ainda sentimentalmente enlevado e amparado com a presença de tão ilustres compatriotas.
A ânsia de melhor conhecer as ciências naturais levou-o, porém, a transferir-se para a Universidade de Alcalá de Hefiares, onde então pontificava o célebre professor Nebrija.
Uma vez ali, ele pôde não só aprofundar os ensinamentos contidos na matéria médica de Díoscórides, nos livros de história natural de Plínio e nos escritos árabes de Avicena e Averróis (que, aliás, já lhe haviam sido ministrados em Salamanca), como ainda dedicar-se à nova cadeira de Botânica, que pela primeira vez surgia na culta Espanha.
Passados dez anos de estudos aturados, Garcia de Orta, já então licenciado em Medicina, pôde regressar à sua terra natal e aí exercer clínica durante seis anos, depois de haver obtido licença «para montar mula», como físico de el-rei.
Após este estágio na vida prática, que ao tempo parecia indispensável para bem se poder disputar a cátedra, Garcia de Orta concorre a professor dos Estudos Gerais de Lisboa, para os quais entra, como simples contratado, em 1532, a reger a cadeira de Súmulas.
Pouco tempo se irá, porém, manter nessa precária situação.
Garcia de Orta era de ascendência judaica e, como tal, não só sabia terem sido seus pais perseguidos e expulsos da Espanha, pelas hostes de Torquemada, como ainda tinha visto sua irmã Isabel ser perseguida e presa em Lisboa pela fúria intransigente da mesma Inquisição.
A insegurança, pois, da sua família na metrópole e da sua posição na Universidade, aliada à ânsia natural de mais querer ver e conhecer, não deve ter sido estranha a resolução de seguir para a Índia em 1534 como médico pessoal de Martim Afonso de Sousa, de quem sempre foi amigo e protegido.
Com este valente capitão-mor do mar Garcia de Orta não só chega nesse mesmo ano a Goa, como logo a seguir percorre toda a costa setentrional daquela grande península, acompanhando, sempre as arriscadas empresas bélicas da armada.
É no intervalo dessas perigosas campanhas que ele visita, pela primeira vez, em Bombaim, o templo de Elefanta e atravessa, de lês a lês, as terras do Guzarate, colhendo informações da turbite e de outros produtos vegetais.
E depois de atravessar o golfo de Cambaia que ele estagia em Diu, por duas vezes, e dali sai para o Sul, para as costas do Malabar, onde, depois de assistir às tremendas batalhas de Repelin e de Beadala, chega a Cochim, por volta de 1537, e aí toma contacto com a pimenta, os cocos e a gengibre. Por fim, visita Ceilão, onde estuda a canela e outras especiarias, para regressar, depois da monção favorável, a Goa, onde então se estabelece, no ano de 1538, e aí fica até aos últimos dias da sua vida.
Como se vê por este pequeno relato, Garcia de Orta quando chega ao Oriente é já o erudito e o homem experiente e viajado que merece o destaque e o apreço das personalidades mais eminentes daquela região.
Ele passa a ser médico de vice-reis, como Martim Afonso de Sousa e D. Pedro de Mascarenhas; ele visita assiduamente o palácio do Nizamoxa, onde conferencia, na corte de Buhran, com doutores da Pérsia, da Arábia e da própria índia; ele relaciona-se com Frei Ambrósio e outros graduados jesuítas, por quem fica a conhecer a etnologia de Alepo e de outras cidades da Turquia; ele aproxima-se dos padres abexins e deles recebe notícias dos beduínos.
Com o bispo Arménio discute Pic de la Mirandolle e o significado de algumas palavras em caldaico; com fidalgos, como Diogo Pereira, aprende o que era o âmbar-gris; com Jorge Gonçalves ... «hum mercador discreto, grande enqueredor de verdades e de muy bom saber» ..., passa a conhecer as coordenadas geográficas da Babilónia e de Bagdade; de Micer André recebe notícias do Pegu, na Indochina; de Perculim colhe informações sobre o comércio do aloés.
O seu bom e ilustrado amigo Tomé Dias Caiado dedica-lhe, em latim, o epigrama que se vê no começo dos seus Colóquios; o seu colega valenciano e reconhecido erudito Dimas Bosque, com quem lhe era sempre aprazível «desencovar a verdade não sabida de todos», para ele escreve as duas cartas que antecedem o texto da sua obra, dizendo a certa altura: «duvido achar na Europa quem em seu estudo lhe fizesse vantagem».
Finalmente, é o grande Luís de Camões que a ele se afeiçoa, e por tal modo que não só lhe oferece a ode laudatória e implorativa dirigida ao vizo-rei (e, provavelmente, o soneto dirigido a Martim Afonso de Sousa), que ilustra as primeiras folhas do seu livro, como ainda insere em algumas estrofes de Os Lusíadas referências elogiosas ao seu valor e nelas derrama profusos conhecimentos botânicos, cuja fonte não podia ser outra senão a que jorrava do saber especializado do seu amigo.
30 anos vai viver Garcia de Orta em Goa, reunindo, na sua casa e no seu jardim da Bua dos Namorados, um valioso repositório de produtos vegetais e um selectivo viveiro de plantas medicinais, ora colhidas directamente