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26 DE JANEIRO DE 1972 3075

O grande erro de uma reforma exclusivamente tecnocrática da educação médica é consagrar e reforçar a sua alienação, isto é, considerar n preparação científico-técnica como um absoluto, sem qualquer referência à personalidade de cada educando e às características da sociedade concreta a cujo serviço, de uma ou de outra forma, se destina. Tal reforma permite, pois, uma trágica transferência, de posições, em que à ciência e tecnologia é reconhecida natureza de sujeito a categoria teleológica.

Ao tratar, há pouco, do objectivo da educação médica, declarei que ela deve habilitar os médicos para a satisfação, nos domínios da sua competência, das necessidades da sociedade real a cujo serviço irão estar ou estão. A este propósito, cito agora o que se diz na Certa Médica Europeia (declaração conjunta dos médicos do Mercado Comum): "O objectivo comum da política sanitária do Estado e da actividade da profissão médica é a protecção da saúde de todos os cidadãos."

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ora isto aplica não só uma cultura científico, e técnica orientada pelas exigências da colectividade, como ainda competência médico-social e uma consciência formada segundo a justiça -, justiça de que o médico, enquanto médico, deve ser obreiro.

Nestes termos, entende-se que u essência da grave crise da nossa educação médica é ter-se perdido da sua referência fundamental: a sociedade real, a concreta, a que está. Ora a sociedade que está é muito diferente - em sua organização, valores, dinamismos, serviços, necessidades, aspirações - daquela que se foi para não mais voltar e em relação à qual, contudo, a nossa educação médica se mantém orientada. O impacte brutal e a reacção vigorosa consequente que, noutras latitudes e longitudes, os transformações sociais provocaram na educação médica não se verificaram cá, onde ela continua, serena, mantendo-se o que era nas bons velhos tempos.

É tal a celeridade - em progressão geométrica - do desenvolvimento das ciências e técnicas médicas que hoje um estudante de Medicina, mesmo excelente, chegado ao termo do seu curso, apenas 'assimilou parte mínima do património imenso dessas ciências e dessas técnicas. O plano de estudos continua, porém, vaidosamente enciclopédico - 38 disciplinas -, na pretensão estulta de preparar médicos completos e definitivos, pretensão que o diploma final ratifica tio garantir a competência do seu possuidor para todas as actividades médicas, incluindo, naturalmente, as cirúrgicas. E se é verdade que o uso do título de especialista requer uma formação complementar, é verdade também que a prática de qualquer especialidade é legalmente permitida a todo o licenciado em Medicina; a educação pós-graduada fica, assim, facultativa. Quanto à actualização médica, está limitada a esporádicas, restritas, e, em regra, poupou úteis iniciativas. Desligada das realidades sociais, a nossa educação médica está também desinserida das realidades científicas e técnicas.

Já acentuei ser indispensável uma política de saúde bem definida para que haja convergência da educação médica com o tipo de serviços sanitários postos no dispor de toda a população, em ordem à fruição de uma medicina integral. E isto não só porque a preparação dos médicos há-de estar coordenada com essa política, como também porque na sua formação deve incluir-se o conhecimento crítico dos condições em que irá processar-se o seu trabalho profissional. Sem esquecer que, por inerência das suas funções, às instituições de educação médica - muito especialmente em Portugal e agora às Faculdades de Medicina - cabe participar no planeamento, execução, avaliação e correcção das actividades integrantes de uma política de saúde. Ora tal política não tem, pura e simplesmente, existido, o que muito contribui para o assinalado isolamento da educação médica face à realidade social. Finalmente, ela anuncia-se agora, por cartão de visita - o Decreto-Lei n.º 413/71, de 27 de Setembro, a que tenciono referir-me, caso tenha oportunidade de segunda intervenção.

São estes, a meu ver, os aspectos essenciais da profunda desadaptação da nossa educação médica às necessidades do País. E não há reforma que lhe valha se não realizar a ligação da educação médica com a sociedade, a ciência e a política de saúde - três ligações, mas, em verdade, passe a expressão, um só casamento.

Seria agora o momento de referir um sem-número de mazelas, de todos os tamanhos e feitios, que afectam o curso geral de Medicina ministrado nos respectivas Faculdades, que é a única fase da educação médica que de facto está institucionalizada. Esses males são muitos e diversos, e tocam docentes, estudantes e restante pessoal, instalações, apetrechamento, remunerações, investigação científica, tempo de escolaridade, programa de estudos, métodos pedagógicos, produtividade escolar ... Não me deterei n considerá-los agora, não porque os subestime - como, se os sofro na minha carne l -, mas porque, por um lado, indicarei adiante remédios para os ourar, o por outro, porque já testemunhei aqui sobre a matéria ao analisar a situação da Universidade portuguesa 7 no debate do aviso prévio do Sr. Deputado Miller Guerra. O que não posso nem devo silenciar é a relação causa-efeito entre essa situação - consequência da omnipotência do Governo, que, transformando a Universidade em repartição pública docilmente obediente às ordens superiores, a que se recorre a requerer e receber títulos profissionais para ganhar a vida, quase nela apagou a chama criadora e muitos das deficiências da nossa educação médica. Os autênticos universitários - os servidores, não os mercenários - anseiam por que se converta em clarão a aurora de esperança que Marcelo Caetano e Veiga Simão fizeram raiar na Universidade.

No mais alto interesse do País, a reforma da educação médica é, pois, urgente, e esta urgência impõe acções imediatas, corajosas, drásticas, oportunas e eficazes.

2. Amplitude da reforma. - A vastidão e complexidade da medicina nas suas facetas fundamentais de ciência, profissão e serviço público impõem a diversificação da competência dos médicos em grandes vias, cada uma das quais com sucessivas ramificações: medicina preventiva, medicina curativa, medicina reabilitadora, medicina social, educação medida, investigação biomédica. Trata-se de sectores interligados e interpenetrados, o que exige uma formação básica comum a todos os médicos, a preceder especialização ulterior, em, que se associam, num domínio particular do conhecimento, várias das grandes vias indicados. Formação básica polivalente - educação pré-graduada - e especialização - educação pós-graduada - constituem, pois, os duas etapas indispensáveis de uma educação medida que efectivamente habilite para o exercício competente da profissão.

Esta habilitação Dão é, porém, definitiva, já que, dado o ritmo altamente acelerado do progresso científico e técnico em medicina, ela estará obsoleta decorridos dez anos, e ao fim de cada vez menos tempo no futuro. Daqui a necessidade de contínua actualização.

Finalmente, considerando o carácter cada vez mais científico, mais social e mais pluridisciplinar da medicina, é indispensável que os candidatos ao curso médico adqui-

7 Em 14 de Abril de 1970.