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26 DE ABRIL DE 1996

média; a segurança traduzida num terror; a intimidade desfeita numa devassa; a consciência ultrajada numa tutela; a informação expressa num diktat; as colónias incendiadas numa guerra; as relações exteriores balizadas num cerco; o cidadão atolado num pântano.
É profiláctico lembrar. Lembrar que vivemos com um esbirro em cada esquina; um ouvido em cada telefone; um pé de cabra em cada porta; uma espreitadela pidesca em cada carta; um expurgo em cada intimidade; um cassetete em cada grito; um mandato de captura em cada capricho; uma ordem de morrer em cada jovem; uma injustiça em cada salário; uma violação em cada consciência».

Aplausos do PS, do PCP e de Os Verdes.

Acabo de ler passos da caracterização do anterior regime naturalmente fascista, Manuel Alegre -, que aqui fiz na cerimónia comemorativa do sexto aniversário do 25 de Abril. Nada tenho a corrigir nesta comemoração do vigésimo segundo. O tempo só apaga a memória do que se não sofreu.
Mas assinalo uma diferença: se nesse então a indignação era mais próxima, a compensação da liberdade reconquistada era seguramente mais débil. Viriam a fortalecê-la as revisões da Constituição de Abril que estruturaram a Democracia Aberta e Plural e o Estado de Direito que agora somos. Viria a subordinação do poder militar ao poder civil. Viria a adesão de Portugal às Comunidades Europeias e a comunhão com outros no projecto de criação de um Mercado único Europeu, logo complementado pelo projecto, agora in itinere, de uma União Europeia.
Éramos um percurso, somos um ponto de chegada. Éramos um país recém amputado da sua extensão ultramarina e ainda não compensado pela sua integração europeia.
Somos, então, enquanto País, uma reestruturação perfeita, e enquanto regime, uma revolução acabada?
A resposta é não!
A insatisfação é própria dos homens, logo dos povos. Para além disso, ocorre que o projecto europeu é um desafio indefinidamente renovado, e que a revolução de Abril, enquanto ideia, isto é, enquanto projecto e regime, está em grande medida por fazer.
Esgotámos um desígnio, temos agora outro: o de, integrados na Europa dos cidadãos europeus, iniciarmos uma nova etapa civilizacional, escalão porventura intermédio entre um universo de Nações organizadas em Estados, e outro tendencialmente unificado, com cada vez mais numerosos centros de poder de jurisdição universal.
Na sequência de inovações tecnológicas que mudaram o mundo, envelheceu a convicção de que já tinham sido inventadas todas as ideias capazes de promover a felicidade dos homens.
Sabemos hoje que temos de reinventa-las. De repente, tudo está de novo em causa: os equilíbrios demográficos e ecológicos, o Estado, a representação política, a cidadania, os sistemas jurídicos, os modelos de desenvolvimento e de segurança social, os valores, entre eles a própria liberdade.
Daí que não existam mais as revoluções já feitas. Do futuro hão-de ser as revoluções que se vão fazendo. Já por diversas vezes tive a oportunidade de chamar a atenção para sintomas de rebelião social que estão aí, entre nós como nas demais democracias, a exigir formas crescentes de participação cívica, política e de correcção da democracia representativa através de experiências de democracia directa, e a exigi-las de forma cada vez mais impositiva, desrespeitosa e até brigona.
Estamos lembrados da luxúria libertária com que vivemos a embriaguez de sermos livres após meio século de mal disfarçado cativeiro. Corrigidos os naturais excessos, nem por isso ficámos imunes à tentação das recaídas.
É bom que aproveitemos a memória das coisas e a comemoração do que de bom houve nelas para colocarmos a nós mesmos a questão de saber se temos conseguido difundir e defender as liberdades conquistadas, inclusive salvaguardando-as dos riscos inerentes ao seu próprio exercício.
As respostas que encontro não me satisfazem. Se, por um lado, temos consentido numa talvez perigosa exautoração do Estado, concretizada na emergência de poderes difusos de difícil enquadramento democrático, e de incontrolados poderes de facto, por outro, continuamos a tolerar, aparentemente resignados, manchas de discriminação, de ignorância e de pobreza impeditivas do normal acesso às liberdades mais irrecusáveis.
Está, de facto, por fazer o 25 de Abril dos marginalizados, dos excluídos e dos injustiçados. Teremos direito ao conforto de considerar livre - como cidadão ou como ser humano - o que desconhece o sentido dos direitos que formalmente tem, ou o que, em estado de necessidade, alimentar ou qualquer outra, não pode resistir à tentação de aceder ao que lhe falta, deixando manipular a sua vontade?
Estamos assim a celebrar uma obra inacabada. E eu não sei o que mais mal pode fazer às instituições democráticas: se uma liberdade que coabite com formas de injustiça social que impeçam o acesso a ela, a gerar rebelião cívica; se uma liberdade tão da fronteira da anarquia que corra os risco de concitar de novo os demónios do autoritarismo.
É um dado histórico que os cidadãos que mais convictamente defendem o indivíduo e a sua liberdade, contra o Estado e os seus constrangimentos, podem ser os mesmos que, ao sentirem-se inseguros, com igual convicção clamam por ordem e aceitam a tutela de um ditador que lha prometa.
Já se disse que, em situações de crise de autoridade, «é a liberdade que oprime é a lei que liberta».
Que fazer, então? Creio eu que abrir o sistema à participação política dos cidadãos até antes da fronteira-limite da necessária salvaguarda da autoridade do Estado. Até que a participação torne dispensável a revolta. Incutir em cada cidadão um sentido de liberdade responsável que implique a aceitação voluntária de constrangimentos cívicos, e até de sofrimento, em nome da dignidade e da felicidade de todos; convencer os que, disso conscientes ou não, voltam a dizer do Estado - e cada vez mais dizem do Estado - o que estultamente disseram todos os arautos da sua dispensa; convencê-los de que a liberdade total não existe, e que a liberdade fácil é, ela também, do reino da utopia; e sobretudo combater a cultura de antipoder que parece assenhorear-se 'do cidadão, subitamente convicto de que pode ser, ou voltar a ser, uma autarquia individual.
Apesar de tudo, é consolador que possamos enfrentar as angústias do presente, e fazer as "revoluções" do futuro, integrados num espaço comunitário que a si mesmo se integra, se auto-defende, e progressivamente se federa.
Sei que esta afirmação é polémica. Para vos ser franco, não usa seduzir-me a comodidade das afirmações que o não são. Não cuido agora de saber se é bom ou mau, para a República, que a Europa se federe. Não posso é