5 DE FEVEREIRO DE 1998 1217
mente o Parlamento que durante todos estes anos não exerceu as suas funções de fiscalização com suficiente determinação para o exigir.
Mas põe também em causa as organizações cívicas nacionais incapazes de manterem uma pressão permanente com vista a viabilizar a legislação vigente, só se comprometendo de tempos a tempos no viva da polémica e assumindo, de molde enfadonhamente repetitivo, os mesmos pontos de vista radicais.
Não podendo eu próprio recusar também um «mea culpa»: como porta-voz do PS para a saúde de 1992 a 1995 e como Deputado, não dei a esta problemática a importância que ela merecia.
Quando legislação cuidada não é aplicada, nem avaliada após aplicação, abrem-se as portas à cultura da facilidade.
Sendo, todavia, certo que a problemática em questão é tão complexa que não é por acaso que é tão maltratada ê desleixada. Propicia surtos de debate apaixonado. Mas em que a desinformação ainda existente e a capacidade dos fundamentalismos clericais e feministas em monopolizarem-na a nível da opinião pública obrigam o debate a regressar quase sempre ao ponto de partida.
Quando as sondagens ultimamente reveladas nos reconfortam, mostrando que a grande maioria dos portugueses recusa os fundamentalismos que têm ocupado o espaço da quase totalidade do debate. E têm opiniões muito diferenciadas sobre esta questão muito para lá do simplista ser a favor ou contra o aborto. Sendo já cansativo ter que intervir em requentados, num debate que parece não sair do mesmo sítio desde 1984. quando pela primeira vez nele intervim, neste Parlamento, a pedido do Grupo Parlamentar do PS.
Não se descortina, é certo, qualquer acréscimo de legitimidade, no já fragilizado de legitimidade debate de 1997, como a que poderia ter resultado de eleições legislativas sufragando claramente a opção liberalizante! Não se descortina inteligência política, ao serviço do País, no agendamento de um assunto que divide profundamente os portugueses e mesmo o eleitorado socialista, quando o Primeiro-Ministro nos tinha prometido estabilidade após as eleições autárquicas. Apenas se descredibiliza o PS, o grupo parlamentar e o próprio Primeiro-Ministro.
Quando parecia mais oportuno que se manifestasse a função fiscalizadora do Parlamento exigindo do Governo o prometido: tornar exequível a legislação vigente.
Mas, graças à decisão da Comissão Política do PS de desvincular os Deputados de qualquer orientação partidária, surgem hoje dois projectos de legislação subscritos por Deputados socialistas, o que dificulta a lógica do afunilamento a que conduziria a omissão da sensibilidade que se exprime no projecto que subscrevo. Sensibilidade que. de outro modo, deixaria de se sentir representada no grupo parlamentar a que pertenço e que, a acreditar nas sondagens conhecidas, é mesmo maioritária a nível do eleitorado.
De uma coisa tenho a certeza enquanto for Deputado socialista e cidadão deste país: não professando nenhuma religião, procurarei evitar que este debate se polarize entre católicos abortófilos e não católicos abortófilos. Sendo de esquerda, procurarei impedir que esta questão se crispe num conflito entre a esquerda e a direita. Sendo homem de partido, e defendendo o referendo se passar uma lei liberalizante. acaso esta resista ao Tribunal Constitucional, privilegiarei a iniciativa popular à iniciativa dos partidos para procurar despartidarizar esta temática.
Sei que assim estou a fazer um bom serviço a um país extremamente tolerante quanto aos valores. Onde a esquerda dos amigos de Alex e dos seus discípulos ainda não compreendeu que o nosso Alex é Presidente da República. E a direita fundamentai-la não tirou a devida lição do que significou a vitória de Sá Carneiro na liderança da AD. Os portugueses, de direita ou esquerda, na sua maioria, são tolerantes quanto aos costumes. Pelo que nos diz respeito, procuraremos impedir a bipolarização do País atrás de fundamentalismos feministas (direito de a mulher dispor do seu corpo) ou clericais (recusa de qualquer tipo de interrupção voluntária da gravidez).
Em 1984, nesta Assembleia, foi dei rolado o segundo, o fundamentalismo clerical No ano passado, também aqui. foi derrotado o primeiro, o fundamentalismo feminista.
Entre estes fundamentalismos há um larguíssimo espectro permitindo melhorar a legislação vigente. E nesse campo e nessa atitude que nos colocamos e onde, segundo as sondagens, se encontram a maioria dos portugueses. Nele se reconhecem direitos à mulher e ao casal e direitos a vida intra-uterina. Admite-se o aborto, em condições e situações específicas, como resultado de um conflito de direitos. Essas situações e condições deverão ser especificadas por lei no seguimento do enquadramento legal vigente.
Surpreendente me parece também saber que os principais protagonistas da postura liberalizante prevejam que o Tribunal Constitucional, se solicitado, não deixará passar um diploma desse teor. Parece satisfazerem-se apenas com circo. Também acreditamos que dificilmente a actual Constituição seja compatível com uma proposta liberalizante.
Com esta iniciativa legislativa, não pretendemos dar circo ao povo, até porque, se tivéssemos que optar entre pão ou circo, optaríamos sempre pelo pão.
Foi nesse sentido que procurámos melhorar a legislação em vigor, respeitando as bases éticas que fundamentam a nossa Constituição e com a qual estamos de acordo, onde, presumimos, que o direito a vida dá ao embrião direitos desde a concepção, mas, sobretudo, estamos preocupados com os interesses das camadas mais desfavorecidas da população no direito à maternidade pelos mais humildes, que correm o risco de ser cada vez menos representadas por Deputados que só conseguem traduzir os valores das classes médias a que geralmente pertencem e as facilidades institucionais a que têm acesso. Sem compreenderem que também têm de ser garantidas às camadas mais desfavorecidas da população o direito à maternidade. Triste sina a das mães das camadas sociais mais desprotegidas, se a esquerda só lhes reserva o direito ao aborto livre!
Passamos a esclarecer certos aspectos do projecto que António Braga e eu próprio, sem proselitismo, vos propomos.
A civilização que a União Europeia penosamente procura construir, baseada no Estado de direito, respeitando as liberdades democráticas, defendendo políticas sociais extensivas à universalidade dos cidadãos, e o respeito pelo ambiente, tem, contudo, pés de barro.
Para que esta civilização sobreviva é necessário que a demografia garanta a transmissão de valores a nível familiar, protegendo-se, a União Europeia, do recurso à emigração de populações avessas aos nossos valores. Tem também que possibilitar que as gerações mais novas forneçam aos idosos cuidados sociais dignos e que o meio ambiente, extremamente humanizado no nosso continente.