O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

18 DE JUNHO DE 1999 3459

Declarações de voto enviadas à Mesa, para publicação, relativas à votação final global da proposta de lei n.º 135/VII
Sem prejuízo de considerarmos indispensável a entrada em vigor no ordenamento jurídico português de uma lei que regule a procriação medicamente assistida e não esquecendo as significativas melhorias introduzidas no texto muito deficiente e cheio de erros graves da proposta que o Governo apresentou à Assembleia da República, as quais se ficam devendo, em grande parte, ao trabalho dos Deputados do PSD, com especial destaque para os Deputados Barbosa de Melo e Roque da Cunha, não podemos deixar de declarar a nossa posição contrária ao texto votado motivada pelas razões a seguir expostas.
Entendemos que se a procriação medicamente assistida (PMA) homóloga é ética e socialmente aceitável, as disposições do artigo 15.º e seguintes que consagram a possibilidade da PMA heteróloga - ou seja, com recurso a sémen de dadores - não deveriam ser aceites por atentarem contra a dignidade da pessoa humana, cujo primado está consagrado no artigo 1.º da Constituição.
Em nossa opinião, tal prática viola princípios fundamentais da ética e, além disso, é inútil.
Viola, em primeiro lugar, o princípio basilar da não instrumentalização da pessoa humana. Como se afirma no Parecer 3/CNE/93 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, verifica-se a instrumentalização do dador que é reduzido a um simples produtor de gamelas. Por outro lado, ele vai transmitir a vida desresponsabilizado de qualquer projecto parental.
Mas, o que é mais grave, o nascituro é também ele instrumentalizado, vindo a sofrer mais tarde consequências psicológicas e sociais resultantes da dissociação das paternidades genética e social.
Por outro lado, nem o casal nem os médicos nem o Estado têm o poder (ainda que, no primeiro caso, para resolver os seus próprios problemas psicológicos) de violar o direito do nascituro às suas raízes genéticas, privando-o das relações filiais com um dos seus progenitores, como se faz no texto votado. As crianças não querem ser diferentes das outras e sofrem quando essa diferença lhes é imposta! Os princípios éticos da beneficência e da não maleficência (obrigação de promover positivamente o bem e não o mal) são assim violados, com prejuízo daqueles que nascerão com um potencial de sofrimento de consequências graves.
E certo que, graças ao empenho dos Deputados do PSD, quer no debate na generalidade quer na votação na especialidade, foi possível excluir a prática do anonimato dos dadores, evitando a posterior correcção depois do erro cometido como aconteceu na Suécia. A proibição de um ser humano conhecer as suas raízes genéticas criaria uma discriminação intolerável em relação aos outros seres humanos que jamais poderíamos aceitar. Pensamos que o direito ao património genético inclui o direito a conhecer a origem e o modo de transmissão dele.
Não ignoramos que a favor da PMA heteróloga se invocam razões de satisfação do desejo legítimo de alguns casais e de operacionalidade: é tecnicamente possível. Mas, tal como o CNECV, entendemos que, «nem tudo o que é tecnicamente possível é necessariamente desejável para a vida e para a dignidade humana».
Na verdade, outra regra basilar e conhecida da ética diz que os fins nunca justificam os meios. Se os meios são violadores dos princípios éticos, como é o caso, não podem ser utilizados, ainda que haja um fim supostamente aceitável: satisfazer os desejos de um casal.
Além disso, tudo isto é inútil porque os desejos dos casais nessa situação podem ser satisfeitos de outra forma. Na verdade, como sublinha o Prof. Joaquim Pinto Machado no seu relatório apresentado ao CNECV em 1997, já sobre a proposta de lei do Governo agora em votação, (Parecer 23/CNECU/97) «os resultados sistematicamente já conseguidos, em muitos países, com a técnica de injecção intracitoplasmática de um espermatozóide (mesmo imaturo, de epididímio ou até de testículo) e até do seu percursor imediato, a espermátide, levam a pensar que num futuro próximo o recurso a dadores de sémen seja praticamente desnecessário».
Por outro lado, o desejo legítimo de um filho pode ser alcançado através da adopção. Não se diga que esta situação é semelhante à analisada. De um ponto de vista ético, é radicalmente oposta: adoptar uma criança é fazer o bem, é utilizar um meio bom para reparar um mal preexistente (o abandono, a miséria de um ser humano).
São estas razões que explicam que, além de o Parlamento Europeu ter rejeitado, em 1989, na sua recomendação sobre os problemas éticos e jurídicos da manipulação genética, todas as formas de reprodução heteróloga, várias instituições e instâncias se tenham pronunciado nesse sentido. Para além das conhecidas posições da Igreja Católica e de outras confissões religiosas, vários países têm vindo a rejeitar tais práticas, sendo de sublinhar a votação do Parlamento de Itália, no mês de Maio findo.
Recordamos que o CNECV, em dois pareceres fundamentados, se mostrou contrário à introdução daquela prática na nossa legislação por carecer de fundamentação ética.
Alguns membros do Conselho acrescentaram outros argumentos em declarações de voto.
Um dos princípios da ética ainda não referidos é o princípio da justiça, que nos leva a afirmar deverem os recursos da comunidade serem dedicados a questões mais prementes. Recordando que a PMA destrói uma herança cultural milenar e que «apaga marcas identitárias étnicas e religiosas que pareciam indeléveis, e é em diversos países um escandaloso negócio», o Dr. Silvério Marques verifica que «questões socialmente muito mais relevantes em termos individuais de bem comum (...) não são estudadas nem consideradas com a mesma atenção, quer a nível da sociedade, dos media, ou dos profissionais».
Parece-nos, com efeito, que havendo ainda gritantes carências, entre outras, em matérias de saúde pública em Portugal, a PMA heteróloga, no contexto sócio-económico da sociedade portuguesa, é uma violação clamorosa do princípio de justiça, da própria hierarquia de valores, consagrando uma inversão de prioridades. A menos que se queira deixar a PMA heteróloga só à iniciativa privada, mas aí abrem-se as portas a uma escandalosa discriminação e a Assembleia não pode legislar só para os ricos.
Sem esquecer as objecções de ordem filosófica, psicológica e psicanalítica que se opõem à PMA, muito bem desenvolvidas pela Eng.º Maria de Lourdes Pintasilgo na sua declaração de voto no CNECV, concluímos com o Prof. Daniel Serrão que o uso de sémen exterior ao casal é ilegítimo e eticamente inaceitável também porque falsifica a relação de conjugalidade e não trata a infertilidade do casal, não sendo um acto médico com finalidade terapêutica.
A solução adoptada de permitir a identificação do dador não deixa de trazer graves consequências, ser perturbadora no plano psíquico e afectivo para o ser assim gerado.