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2399 | I Série - Número 60 | 16 De Março De 2001

mente o modelo que consagra uma capacidade e uma auto-exigência de maior doação. Ora, toda a pessoa capaz de dar mais tem de ter prioridade e vir sempre antes da pessoa capaz de dar menos, de assumir menores responsabilidades, de privilegiar a troca sobre a doação. Por tudo isto, entendo que a relação conjugal merece uma protecção acrescida e um conjunto de direitos mais alargado.
A História tem mostrado que as comunidades que não favorecem os que são capazes de contribuir mais e melhor para a sua continuação e para a transmissão da vida e dos seus valores às novas gerações acabam por estiolar, por vezes mesmo por perecer.
Não vale a pena produzir entretanto discursos ou escritos catastrofistas sobre a realidade e a ausência de valores, prevendo futuros cada vez mais negros, fazendo de algum modo o mal e a caramunha. Essas jeremíadas nada adiantam e nada resolvem. Quem não privilegiar os que assumem maiores responsabilidades e mostram maior capacidade de doação está, de facto, a estimular o triunfo, tornado inevitável, dos que pensam sobretudo em si próprios.
Ao afastar-se da perspectiva cristã que acompanhou e iluminou a comunidade portuguesa desde os seus primórdios, o texto votado põe em causa «o lugar de encontro de várias gerações que se ajudam mutuamente a alcançar uma sabedoria mais alargada e harmonizar os direitos da pessoa com as outras exigências da vida social» (Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral «Gaudium et Spes»).
A família é, na verdade, o instrumento primeiro e fundamental da «humanização» de cada indivíduo, da sua transformação em pessoa aberta aos outros e empenhada no bem de todos, capaz de amar o próximo e de superar as pulsões egoístas e hedonistas primárias ou mesmo primitivas. Ela é, assim, a expressão primeira, natural e original da dimensão social da pessoa, sendo o primeiro espaço que potencia o seu empenhamento na vida da comunidade.
Outras razões justificam também o meu voto contrário ao texto aprovado. Por um lado, não se garante que na sua aplicação se evitem abusos que levem à atribuição de vantagens tão extensas a pessoas cuja comunidade real de vida e apoio mútuo seja inexistente. Por outro lado, não protege claramente o inalienável direito à intimidade, que pode levar pessoas, mesmo vivendo anos em economia comum, a querer preservar o chamado «jardim secreto», não querendo beneficiar de qualquer vantagem pública, antes recusando que o Estado se arrogue o direito de lhes atribuir um regime que não pretendem. Também foi esquecida alguma modulação possível nos apoios, os quais deveriam ser mais ou menos alargados consoante as maiores ou menores dificuldades económicas e sociais e as necessidades reais verificadas em cada caso.
Finalmente, o texto votado contém, a meu ver, um segundo erro capital: a implícita consagração do automatismo na atribuição de um regime de direitos equiparado ao dos cônjuges. Parece resultar do texto que se a estes forem atribuídos novos direitos ou vantagens, designadamente fiscais, outros têm de beneficiar sempre deles por arrastamento.
Penso tratar-se de um afloramento de filosofias voluntaristas, transpersonalistas e construtivistas, mais próprias de regimes totalitários ou totalizantes do que sistemas democráticos. Na verdade, ao reivindicar para os legisladores ou governantes o poder de construir uma ordem social inalterável, irreversível e sujeita a opções deterministas, o construtivismo não respeita o primado da pessoa, nem a liberdade e as necessidades das gerações futuras e ignora o carácter essencialmente variável e efémero das opções políticas ou das soluções legislativas, sejam elas quais forem.
Encontro ainda no texto votado reflexos do positivismo jurídico, que tantos danos causou já no passado. Ao validar uma norma não pela sua essência, pela sua conformidade aos valores permanentes, às aspirações das pessoas, à protecção dos mais fracos, em especial das crianças, mas apenas pela sua consonância com uma opinião ou moda ocasionalmente dominantes ou pela regularidade formal da sua aprovação por um órgão de soberania competente, consagra-se a pretensa supremacia do direito positivo sobre o direito natural e a pretensa neutralidade do direito em relação à ética. Ora, o processo jurídico pode ser moralmente neutro, mas o seu conteúdo não o é.
O legislador tem de determinar-se sempre a partir de um exame realista das situações sociais, dando prioridade às convicções profundas, às aspirações da maioria, bem como às soluções que assegurem a continuidade natural da comunidade, não comprometendo o futuro.
Penso que o automatismo implícito da equiparação ad aeternum do regime da economia comum aos direitos dos cônjuges nega um principio que é indissociável da essência da política: a possibilidade do estabelecimento de novas prioridades em cada tempo, distribuindo os meios disponíveis, sempre escassos, de acordo com a importância e premência das opções a tomar, beneficiando algumas situações se a salus populi assim o exigir. Não é aceitável que se possa vir a impedir ou a dificultar muito na pratica um favorecimento futuro do regime dos direitos dos cônjuges devido à imposição legal que obriga a estendê-la por força a outras situações, sejam uniões de facto ou de economia comum. Não é possível tentar coarctar assim a liberdade essencial de o legislador no futuro se poder determinar e encontrar soluções de acordo com as necessidades e prioridades da comunidade nacional na altura em que tiver de deliberar e de optar, à luz da hierarquia de valores e de acordo com os programas que o eleitorado vier a sufragar.
Penso, aliás, que todas as tentativas de criar situações e consagrar soluções irreversíveis estão votadas ao fracasso. Bem o mostraram o fiasco e a derrocada dos regimes deterministas ditos de socialismo real, bem como das suas «conquistas eternas», não esquecendo o que aconteceu a outros regimes como a ditadura do Estado Novo português e às suas proclamações de «eternidade» de algumas situações. Lembro ainda, noutro plano, as nacionalizações constitucionalmente «irreversíveis» em 1976, cuja irreversibilidade durou cerca de doze anos...
Em conclusão, o texto votado, pesem embora as intenções certamente boas dos seus autores, terá de vir a ser, o mais rapidamente possível, em parte revogado e em parte clarificado, para o adequar à liberdade e dignidade das pessoas, à luz do humanismo personalista que tem sido vivido, com alguns percalços, pelos portugueses. Através dele se vê a pessoa em relação, integrada nas suas comunidades naturais, capaz de se dar e de se projectar com os outros, criando novas vidas e transmitindo valores, sem nunca se sujeitar a espartilhos, pretensamente definitivos, de modelos legislativos ocasionais ou de vontades políticas inexoravelmente efémeras e passageiras.

O Deputado do PSD, Pedro Roseta.