27 DE MAIO DE 2021
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Odemira e as várias «Odemiras» do País são o retrato de um modelo de negócio que atropela o território e
os direitos humanos, que põe a nu a ausência de planeamento infraestrutural, que revela a submissão do Estado
às estratégias privadas de acumulação de lucro (como ficou patente nas regras para o «armazenamento» dos
trabalhadores), que resulta de uma divisão internacional do trabalho assente na exploração de imigrantes
através de falsas empresas prestadoras de serviço.
O problema não é de agora. Foi há quase cinco anos, no verão de 2016, que o Parlamento aprovou uma
nova lei para combater as formas modernas de trabalho forçado. Na altura, por iniciativa do Bloco, abriu-se um
debate que permitiu introduzir no Código do Trabalho uma alteração que despertou a fúria das confederações
patronais: a responsabilização solidária de toda a cadeia de contratação pelas violações dos direitos dos
trabalhadores, pelos créditos e encargos sociais, bem como pelo pagamento das respetivas coimas.
O objetivo era contrariar a impunidade. Era impedir que, numa obra ou numa exploração agrícola, quem
recorre ao trabalho temporário e subcontrata mão de obra a angariadores pudesse alegar ou fingir
desconhecimento aquilo que ali se passa.
Nessa altura, a dimensão do trabalho forçado e da exploração laboral, nomeadamente na produção agrícola
no Alentejo, era conhecida.
O modelo económico, aliás, não era diferente do de hoje: exploração de mão de obra imigrante,
subcontratação, aproveitamento da condição clandestina de uma parte dessa mão de obra, produção agrícola
intensiva e insustentável, condições de habitação e de saúde miseráveis, proprietários que encontravam já então
no aluguer de quartos, onde amontoavam pessoas, uma verdadeira mina de ouro.
A direita esteve contra esta alteração e as quatro confederações patronais divulgaram um comunicado
conjunto em que diziam repudiar veementemente o conteúdo do diploma, em resultado do qual, alegavam as
confederações patronais, as empresas de trabalho temporário, as agências privadas de colocação e os
respetivos utilizadores ficam, na prática, proscritas, atento o enorme risco que passam a comportar.
Foi constrangedor o modo tão desabrido como os representantes do patronato exibiram a sua afeição por
estes esquemas de subcontratação, verdadeiros biombos através dos quais se precariza o trabalho, se dificulta
a ação inspetiva e se permite aos utilizadores finais da mão de obra lavarem as mãos de todas as violações de
direitos que ocorrem nos locais por eles tutelados.
Infelizmente, contudo, as confederações patronais não tinham razão para tanta farronca. A aplicação da lei
mostrou-se muitíssimo difícil e o problema continuou, tendo até aumentando de escala.
Na realidade, mais do que condenações, as empresas agrícolas de Odemira tiveram, nos últimos anos,
sobretudo a lambugem dos benefícios fiscais. Em 2019, mais de meio milhão de euros, sobretudo, no âmbito
dos impostos especiais sobre o consumo, para a Atlantic Growers, agora Frestia, Vitacress Portugal e Vitacress
Agricultura Intensiva, Discroll’s; SudoBerry — são algumas das empresas que lideram esta lista.
Da inspeção de trabalho, que tem levantado centenas de autos, sobretudo neste último mês, o testemunho
que nos chega é de dificuldade. Dificuldade, desde logo, em identificar e notificar as redes mafiosas encapotadas
através de empresas na hora, que se constituem em 48 horas, criadas por falsos empresários que funcionam
como testas-de-ferro.
Estas empresas, basicamente, existem até serem intercetadas pelas autoridades, momento em que se
extinguem ou desaparecem da circulação, para no dia seguinte ser formada uma outra empresa na hora, com
outro trabalhador que passou a ser um suposto empresário sob comando da mesma rede.
Este esquema tornou-se uma estratégia para os engajadores escaparem à lei, porque, mesmo que a
Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) os apanhasse, mesmo que levantasse os autos, mesmo que
se apurassem as dívidas à segurança social, quando as autoridades inspetivas fossem fazer a notificação do
processo, já não haveria a quem fazê-lo. Na morada identificada, nenhuma empresa em funcionamento e o
responsável já em parte incerta. Sem interlocutores, o processo é normalmente arquivado e a impunidade
garantida.
Continuam, pois, a existir dificuldades significativas e também algumas resistências operacionais em
materializar esta responsabilidade solidária. Os arguidos no processo são empresas que contratam os
trabalhadores e se esfumam e se os instrutores não autonomizam os processos, não se conseguindo punir estas
empresas em primeiro lugar, não se responsabilizam as outras solidariamente.