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II SÉRIE-A — NÚMERO 53
PROJECTO DE LEI N.« 530/V1 (PROTECÇÃO AOS ANIMAIS)
Novo texto
1 — Como disse um dia Victor Hugo, a protecção dos animais faz parte da moral e da cultura dos povos.
O movimento mundial contra a crueldade para com os animais, que corresponde a uma experiência profunda da sensibilidade humana, coincidiu com o arranque da era industrial, na segunda metade do século xrx.
Mas foi sobretudo no século xx — a partir da criação, após a ultima guerra, das grandes instituições político-culturáis europeias e mundiais, em particular o Conselho da Europa, a CEE e a UNESCO, e acompanhando o movimento humanista que conduziu à consagração internacional dos direitos do homem — que o movimento pela protecção dos animais adquiriu uma dinâmica internacional que o tomou um dado irreversível da cultura ocidental dos nossos tempos. ^
Os conhecimentos recentes da biologia, da ecologia e da etnologia confirmaram que o mundo está em perpétua evolução e que as formas de vida dependem de um conjunto complexo de factores interdependentes, em estado de equilíbrio dinâmico, que se interinfluenciam. O. homem é apenas o último e mais aperfeiçoado, elo dessa ininterrupta cadeia de seres vivos. Porém, perante o sofrimento, nenhuma diferença especial existe entre o homem e os animais: os comportamentos destes são os mesmos daquele — a ansiedade, a angústia, a fuga, os gritos, a agressividade—, e a biologia apurou também que os animais experimentam as mesmas necessidades fundamentais de se alimentarem, de se reproduzirem, de terem um habitat, de serem livres.
A única diferença em relação ao homem reside em que este, por ser dotado de razão e capaz de pensamento abstracto, é consciente e responsável pelos seus actos, cuja prática deverá subordinar a valores de natureza ética; e é precisamente à luz dessa responsabilidade de ordem moral que devem entehder-se as Suas obrigações em relação aos animais, com quem compartilha a existência na Terra, que com ele são capazes de sofrer física e psiquicamente, mas que, ao contrário dele, são fracos e vulneráveis, incapazes de se defenderem ou de fazerem ouvir a sua voz.
Por isso, o fundamento actual da protecção dos animais, para além de razões antropocêntricas e egoístas, económicas, estéticas e culturais, radica sobretudo num motivo de ordem ética: o homem tem uma obrigação moral em relação aos animais.
Daqui decorre uma das recentes posições da zoofilia: os animais, em vez de serem considerados, como na concepção jurídica clássica, simples coisas, passaram a ser sujeitos de direito, designadamente de direito à protecção, envolvendo, antes de mais, o direito de não serem vítimas de torturas ou sofrimentos inúteis.-
A protecção faz assim parte do grande princípio da protecção da vida èm geral. Entre os direitos do homem e os direitos do animal não há qualquer contradição, mas, sim, complementaridade.
2 — Os direitos do animal foram compendiados, em 1978, na Declaração Universal dos Direitos do Animal, promulgada na UNESCO em 15 de Outubro desse ano.
Em todo o mundo civilizado e, em particular, na Europa, o movimento legislativo para-a protecção dos animais tem-se acelerado e aperfeiçoado nos últimos anos, sob o impulso,
sobretudo, do Conselho da Europa e da Comunidade Europeia.
- Produziu, com efeito, o Conselho da Europa, no domínio da protecção dos animais, uma importante obra legislativa supranacional, traduzida em vários tratados internacionais, alguns dos quais, como a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Abate (Decreto n.° 99/81, de 19 de Junho), a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais nos Locais de Criação (Decreto n.° 5/82, de 20 de Janeiro), alterada pelo Protocolo de Alteração, constante do Decreto n.° 1/93, de 4 de Janeiro, e a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais em Transporte Internacional (Decreto n.° 33/82, de 11 de Março), já foram ratificados por Portugal e são, portanto, lei interna portuguesa.
Foram ainda elaboradas pelo Conselho da Europa e já foram ratificadas por Portugal a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia (Decreto n.° 13/93, de 13 de Abril) e a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais Vertebrados Utilizados para Fins Experimentais e Outros Fins Científicos.
Acompanhando esta acção do Conselho da Europa, numerosos países europeus têm publicado leis de protecção aos animais, as mais recentes das quais são as leis sueca e alemã (1972), a suíça (1978), a luxemburguesa (1981) e a dinamarquesa, de 14 de Abril de 1993.
Também a Comunidade Europeia, através da Comissão, tem desenvolvido uma relevante actividade no campo da repressão da crueldade contra animais, donde resultaram várias recomendações e directivas comunitárias neste sector.
3 — A legislação portuguesa de protecção aos animais, com excepção das convenções internacionais já ratificadas atrás referidas e das directivas comunitárias já transpostas, data da I República (sobretudo os Decretos n.05 5650, de 10 de Maio de 1919, e 5864, de 12 de Junho de 1919, e a Portaria n.° 2700, do Ministro do Interior, de 6 de Abril de 1921). '
Para além deste imenso atraso, pode afirmar-se que a situação em Portugal tem vindo a degradar-se, sobretudo porque as multas previstas naqueles diplomas legais como sanção para os actos de crueldade para com os- animais (2$ e 15$} (!) deixaram de ter qualquer valor intirnidatório e ainda porque a fiscalização pelas autoridades da escassa legislação avulsa existente deixou praticamente de ser feita. Quanto às disposições convencionais e as directivas comunitárias, embora sejam direito interno português, de facto não são cumpridas, ou só o são em escassa medida, devido, sobretudo à falta de sanções adequadas.
Portugal não pode continuar a permanecer «orgulhosamente só» numa Europa que considera a protecção dos animais como uma aquisição cultural irreversível, do que é índice a declaração anexa ao Tratado de Maastricht em que se convidam os Estados membros a «terem plenamente em conta na elaboração e aplicação da legislação comunitária o bem-estar dos animais». É, por isso, imperioso que a legislação portuguesa sobre a protecção dos animais se aproxime das suas congéneres europeias, designadamente das dos restantes países da União Europeia.
4 — O projecto lei que se segue inspira-se nos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Animal, nas mais modernas leis europeias da especialidade, que são as que atrás ficaram referidas, e ainda nas convenções internacionais de iniciativa do Conselho da Europa e nas directivas da Comunidade Europeia.
Como afirmou'o Papa João Paulo II, «ao aprender a amar e respeitar as criaturas inferiores, o homem aprenderá também a ser mais humano com os seus iguais».