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0015 | II Série A - Número 002 | 21 de Setembro de 2006

 

Na Europa a percentagem de mulheres que morrem em consequência do aborto clandestino é de 20% relativamente ao total de mortes maternas. As Nações Unidas, num documento divulgado no ano de 2005, afirmam criticamente: "E mesmo na União Europeia alguns países restringem ou proíbem mesmo o aborto, especialmente o aborto medicalizado, ou exigem complicados formalismos que desencorajam as mulheres de recorrer ao aborto legal forçando-as ao aborto ilegal e inseguro".
Ambroise Cardier, médico-legista francês, no seu livro Étude médico-legale sur lávorteement, publicado em 1916, apresentava uma estatística pequena e, mesmo assim, aterradora: "de 116 casos de aborto criminoso, 60 tiveram por resultado uma morte mais ou menos imediata". Um outro médico, Balthazard, indicava que 6% das mulheres que se submetem ao aborto clandestino morrem. A morte era, e continua hoje, em 2006, a ser o preço por que muitas mulheres pagam a sua impossibilidade de terem filhos que, noutras condições, desejariam ter.
Em Portugal julgam-se mulheres. Condenam-se algumas. Condenam-se mesmo quando não se fazem julgamentos e se força as mesmas a aceitarem o pagamento de indemnização, para expiação da sua culpa, a instituições determinadas pelo tribunal. É esta a solução da suspensão provisória do processo que rejeitamos.
Outras são absolvidas. Mas passam pela traumática prova de exposição da sua intimidade em praça pública.
Deverá o direito penal considerar como crime a conduta da mulher que recorre ao aborto? Seja em que circunstâncias for?
A resposta já foi dada na França há muito tempo. Em 1975 o Parlamento francês aprovou a Lei Veil (de Simone Veil), nos termos da qual a mulher, ainda que recorrendo ao aborto fora das condições legalmente permitidas, nunca comete um crime. A lei só criminalizou as condutas dos que praticassem o aborto na mulher.
Solução que temos no nosso projecto de lei. Porque a mulher que recorre ao aborto age em situação de angústia e na comunidade não se encontra interiorizada a reprovação que merece que uma conduta seja considerada um crime.
Situação idêntica se encontra, por exemplo, nas legislações dinamarquesa, holandesa, polaca. O que há que criminalizar é o comportamento daqueles que, ainda que a solicitação da mulher, fazem um aborto clandestino, pondo em risco a saúde e a vida das mulheres.
Desde 1982 que o PCP tem vindo a lutar, na Assembleia da República e fora dela, pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez e pelo consequente fim do grave problema de saúde pública que constitui o aborto clandestino.
A Assembleia da República chegou a aprovar, na generalidade, em 1998, um projecto de lei de despenalização, cujo processo legislativo viria a ser interrompido pela convocação de um referendo sobre a matéria, acordado da noite para o dia entre os líderes de então do PS e do PSD.
Por isso rejeitamos a ideia de que por "escrúpulo democrático" seria necessária a realização de um novo referendo antes de qualquer alteração da lei penal nesta matéria. Escrúpulo democrático foi, na verdade, o que faltou quando, após a referida aprovação na generalidade de uma iniciativa de despenalização, dois partidos - PS e PSD - acordaram a realização de um referendo enxertado num processo legislativo em curso, em total desrespeito pelo papel da Assembleia da República no exercício do poder legislativo.
O referendo de 1998 nunca sequer teve valor vinculativo, visto que votaram apenas 31,9% dos eleitores. Mesmo que tivesse tido mais de 50% de votantes o seu efeito vinculativo já teria há muito terminado, tendo em conta que passaram mais de nove anos desde a sua realização e que estamos na terceira legislatura posterior àquela em que a consulta popular se efectuou. Não obstante, o referendo de 1998 tem sido sucessivamente invocado para tentar negar a plena legitimidade jurídica e também política da Assembleia da República para legislar sobre a matéria.
Em Março de 2004 a Assembleia da República, em debate agendado pelo PCP, discutiu mais uma vez esta questão. Nesse debate, em que se votaram em primeiro lugar iniciativas de despenalização e depois iniciativas de convocação de referendo, ficou, aliás, expressa uma ampla convergência dos partidos então na oposição sobre esta matéria. O debate e a votação foi essencial para desmascarar a hipocrisia dos partidos da direita, com o PSD preso a um acordo pós-eleitoral com o CDS-PP em que se garantia a não aprovação de qualquer iniciativa, mas também para confirmar a total legitimidade da Assembleia da República para proceder à alteração legislativa em causa.
A 20 de Abril de 2005 a discussão voltou à Assembleia. À imagem do sucedido em 2004, discutiram-se e votaram-se, em primeiro lugar, iniciativas de despenalização e depois iniciativas de convocação de referendo. E, mais uma vez, a direita saiu vencedora. Partido Socialista e Bloco de Esquerda, ignorando as condições políticas existentes para a resolução do problema, desperdiçaram-nas, comprometendo o futuro de milhares de mulheres. Aprovada que foi a convocação do referendo, esta foi impossibilitada por motivos constitucionais. Afinal, tudo mudou para que tudo ficasse na mesma. Mudaram as condições políticas e permaneceu a criminalização, o aborto clandestino, os julgamentos, a coarctação do direito de optar por uma maternidade e paternidade conscientes.
Despenalizar a interrupção voluntária da gravidez na Assembleia da República sem referendo prévio não significa, pois, fugir à consulta popular, especialmente num momento em que a ampla maioria parlamentar de forças que afirmam defender a alteração da lei penal lhe atribui particular legitimidade nesta matéria;