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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
intelligentemente applicadas, e que é essa uma das maiores causas por que os nossos orçamentos são mais rachiticos do que era de esperar da nossa legislação.
Se isto é assim, e o que acabo de dizer foi um incidente que peço á camara me releve; se isto é assim, se os ministros da fazenda em geral têem meios para poderem tornar possivel a mobilisação do imposto, de fórma que este acompanhe a par das necessidades do thesouro, para que é estar a recorrer a remedios novos, que nada remedeiam e que ao contrario deixam talvez as cousas em muito peior estado do que aquelle em que tem estado até aqui? Não vejo necessidade alguma de similhante procedimento.
Ainda ha uma outra serie de considerações que me levam ao mesmo resultado, isto é, a votar contra o artigo 1.° do projecto; e é porque m'o representam como impolitico e perigoso.
Quem ha hoje que não conheça aquella maxima do duque de Broglie, que os melhores impostos são os que menos se sentem, ou a resposta de Gaudin a Napoleão I, quando este se aconselhava com elle sobre a maneira de salvar o fisco francez dos apuros em que estava no principio do imperio? «En matière d'impôts, les vielleries sont souvent ce qu'il y a de meilleur»; os impostos quanto mais velhos, melhores. Quer dizer, os impostos antigos são melhores mesmo pelo principio a que o sr. ministro da fazenda se tem referido tantas vezes, e é que não carecem de destruir nem as antiphathias dos habitos nem os preconceitos que estão derramados por todas as classes da sociedade contra as innovações, principalmente em materia de finanças.
Aqui tem v. ex.ª a rasão por que me parece impolitico este artigo do projecto; é porque vae substituir uma cousa velha, usada no paiz desde 1852 para cá, uma disposição legal a que todos os contribuintes estão já habituados e que conhecem, por uma cousa nova, e cujas vantagens, repito, são um pouco problematicas para muitos, e para mim totalmente negativas.
Até agora a responsabilidade do gravame da contribuição sobre cada contribuinte recaía sobre o ministro da fazenda, sobre a commissão de fazenda, sobre o parlamento, sobre as juntas geraes dos districtos, e por ultimo sobre as juntas dos repartidores. Era uma responsabilidade dividida, por assim dizer, por todo o paiz; não feria ninguem, não era pesada mais para uns do que para outros.
Hoje não é assim. A responsabilidade ha da pesar unica e simplesmente sobre o ministro da fazenda, ou antes sobre a auctoridade fiscal; isto é, sobre o governo que ella directamente representa. Portanto ha de ser o governo a victima de todas as malevolencias, de toda a má vontade que se levantar contra as exacções e injustiças das auctoridades fiscaes. Porque é desgraçada verdade que nem todos os funccionarios fiscaes cumprem os seus deveres; se uns, como o zeloso delegado do thesouro de Lisboa, pretendem cumprir a lei, quantos succumbem diante de influencias illegitimas! Quantos tambem, é justiça dize-lo, se tornam victimas de preconceitos injustos, de vinganças atrozes!
Veja v. ex.ª, veja a camara, que nova Pandora o projecto tende a entornar sobre os nossos ministerios, que seguramente não parecem atreitos a apoplexias.
Anida me parece que o projecto ataca os principios liberaes.
Vejo que nas camaras de 1642, se a memoria me não engana, tratando-se de providenciar sobre as necessidades dos povos, estabeleceu-se a decima inteira ou direito de 10 por cento; mas apparecendo reluctancias e difficuldades, pelo alvará de 28 de abril de 1646 tomaram-se novas providencias, que, deixando ficar o mesmo principio de quotidade, pretenderam evitar alguns inconvenientes que tinham escapado ás côrtes de 1642; depois o alvará de 9 de maio de 1654 veiu completar esta mesma serie de providencias, modificadas, alteradas, explicadas, etc. depois n'uma extensa serie de alvarás, decretos, etc. O que é certo é que, durante a ultima metade do seculo XVII, durante o seculo XVIII e o primeiro quartel do seculo XIX conservou-se sempre o principio de quotidade de 10,4 1/2, 15, 20 e 30 por cento, como foi no principio do seculo XIX. Foi necessario que viessem os principios liberaos, manifestados no nosso paiz na revolução de 1820 e 1821, e que partiram da constituição franceza de 1789, 1790 e 1791, e da constituição hespanhola de 1812, para que se introduzisse nos artigos 103.º e 227.° da nossa constituição de 1822, o principio da repartição tirada da constituição hespanhola de 1812, artigo 131.°, n.º 15, artigos 339.º e 344.° (apoiados); principio que passou para a constituição de 1826, artigo 15.°, § 8.°, e para a de 1838, artigo 27.°, n.º 12.
Se o decreto de 16 de maio de 1832 ainda conservou o principio velho da quotidade, isso se explica por uma d'estas aberrações que se encontram sempre na historia das nações, e pela difficuldade de innovar de repente.
(Interrupção do sr. Barros Gomes.)
Isto não é um argumento a favor das idéas do illustre relator da commissão, foi uma contradicção e nada mais dos legisladores de 1832. O auctor do decreto de 1832 entendeu que não devia refundir completamente o systema financeiro, queria seguir as maximas de Gaudin.
Os abusos, porém, tornaram-se tão graves, que quando se apresentou n'esta camara em 1840 um projecto para a quotidade ser substituida pela de repartição, o ministro que então apresentou esse projecto mostrou por documentos que uns districtos pagavam 20 por cento, outros 25 por cento, outros 32, outros 65, outros 100 por cento; ahi têem o nobre ministro e o sr. relator da commissão, n'uma epocha não muito distante da nossa, o que produzia o principio de quotidade.
E perguntou o sr. ministro da fazenda se com o systema de repartição não acontecia o mesmo? Respondo, não devia acontecer, e se tem acontecido é porque os governos não têem cumprido os seus deveres.
É verdade que a contribuição pessoal, em vez de estar elevada a mais 40:000$000, 50:000$000, ou 100:000$000 réis, como podia estar, se a lei fosse uma realidade, acha-se n'um estado miserando, como assevera o sr. ministro, o que obriga s. ex.ª a substituir por outro o systema de repartição, que s. ex.ª se não atreve a dizer que é mau, mas que assevera não ser aproveitavel na occasião presente, porque os resultados não são favoraveis para o fisco.
Eu peço licença para dizer ao nobre ministro que está equivocado. Os resultados não têem sido favoraveis para o fisco, será verdade; mas não é por causa do systema de repartição, mas por causa da maneira como tem sido executado (apoiados).
Ponha-o s. ex.ª nas mãos de auctoridades zelosas pelo cumprimento dos seus deveres, use s. ex.ª das attribuições que a lei lhe dá, e verá o resultado. O defeito não é da instituição. Por melhores que sejam as instituições, degeneram quando as falseiam na execução.
Pois que melhor instituição que o christianismo, e não obstante como ella degenerou nas mãos dos torquemadas...
Uma voz: — Por causa do fanatismo.
O Orador: — Sim, pelo fanatismo. Pois o que é o fanatismo senão a negação completa, ignara ou perversa de todo o principio de probidade e de honradez em todos os ramos da auctoridade humana, quer seja na religião, quer nos costumes, quer na legislação? (Apoiados.)
Em 1840 o ministro da fazenda apresentava aqui um projecto para estabelecer o systema de repartição, mas não pôde ir ávante, e só na lei de 19 de abril de 1845 é que o novo systema de repartição substituiu o antigo systema de quotidade.
Não permaneceu, porém, porque a revolução de 1846 o impediu. Só mais tarde, em 1852 e 1860, é que esse principio se estabeleceu definitivamente na legislação tributaria, na contribuição pessoal, como na predial e industrial.
O espirito liberal é favoravel á repartição. E deve sê-lo,