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tanto o Exemplo a respeito d’este instituto, quê o decreto de 9 de agosto teve em vista extinguir, que esta questão fóra por elle orador amplamente desenvolvida, quando na ultima sessão da camara dissolvida foi discutida esta materia, e que para não cançar de novo a camara se reportava ao que então dissera, limitando-se unicamente a ponderar, que mesmo no caso de poder applicar-se o decreto de 9 de agosto ao instituto das irmãs da caridade, estas na conformidade do mesmo decreto não podiam deixar de prestar obediencia ao seu chefe, porque ahi se manda positivamente, que os diocesanos mandarão observar as regras das ordens ou dos institutos.
Nem se diga, como disse o sr. ministro das justiças, que a jurisdicção ordinaria dos bispos fica reduzida a nada uma vez que se admitta a obediencia ao superior do instituto no que toca ao regimen interno. Para mostrar com factos recentes até que ponto chega a jurisdicção do diocesano sobre o instituto, basta notar que o proprio chefe do mesmo instituto para exercer as suas ordens na ultima vez, que esteve em Portugal teve elle mesmo de prestar obediencia ao sr. cardeal patriarcha, e de pedir-lhe licença para o exercicio das suas ordens. O mesmo aconteceu quando um dos directores das irmãs da caridade pretendeu ir confessar as ditas irmãs da caridade residentes no hospicio de Vianna do Alemtejo, pois todos sabem que tendo-lhe sido concedida licença em um anno, nos posteriores se lhes denegou; tendo hoje áquellas irmãs por confessor o ecclesiastico que lhes foi designado pelo arcebispo de Evora. Mas isto ainda não é tudo: o diocesano tem direito a conhecer segundo os canones da administração do instituto, e já se vê portanto que se labora em grande equivoco, quando se sustenta, que a jurisdicção dos diocesanos fica reduzida a nada.
Não prova mais o argumento que se pretende deduzir do decreto de 9 de julho de 1845, pelo qual foi creada uma casa das irmãs da caridade na cidade do Porto. Observou o digno par, que um tal argumento fóra produzido com um certo ar de triumpho, por imaginarem os seus adversarios que fornecia materia para mostrar que existe contradicção entre as doutrinas, que se acham consignadas n'aquelle decreto, e as que o orador tem sustentado ultimamente. Que não tem duvida em tomar a responsabilidade de uma medida adoptada por um dos ministros seu collega, e sobre a qual todavia não foi ouvido por se achar na data d'esse decreto ausente da capital, e tratando da sua saude nas Caldas da Rainha, se bem que poderia para obrar em sentido contrario auctorisar-se com o procedimento de um dos ministros actuaes, havido ha poucos dias na outra casa do parlamento. Que n'esse decreto referendado por seu irmão o conselheiro Silva Cabral, se não estabelecem doutrinas differentes, antes conformes ás que elle orador tem sustentado, pois que emquanto no mesmo decreto se manda que as irmãs da caridade prestem obediencia ao diocesano, se ordena ao mesmo tempo, que o instituto no Porto seja governado segundo as direcções que foram dadas por S. Vicente de Paulo. Que estas duas disposições ou são contradictorias entre si, e tal contradicção não póde nem deve admittir-se, ou aliás querem dizer, que as irmãs da caridade são obrigadas a prestar na conformidade dos canones e da sua propria regra, obediencia canonica ao diocesano, e submissão ao seu chefe no regimen interno do mesmo instituto.
Que é seguramente em virtude d'esta intelligencia natural e obvia, que o actual sr. patriarcha fundando-se n'aquelle mesmo decreto, diz que a existencia do instituto de S. Vicente de Paulo em Portugal, nem é contrario á legislação vigente, nem á disciplina ecclesiastica.
O orador leu n'esta occasião varios trechos de differentes consultas do sr. cardeal patriarcha D. Guilherme, e do actual sr. cardeal patriarcha D. Manuel, e concluiu que a intelligencia dada por aquelles dois emminentissimos prelados era bem differente da que fóra ultimamente dada pelo governo. O sr. Ministro da Justiça: — Tem V. ex.ª a bondade de, me dizer a data da informação que acaba de lêr. O Orador: — É de 27 de agosto de 1858. O sr. Ministro da Justiça: — Obrigado. * O Orador: — Poderia fazer leitura do alguns outros documentos, nos quaes se contém materia igual, mas deseja não cansar a camara, e por isso passa a outro ponto. Que se admira haverem os oradores de opinião contraria recorrido constantemente ao decreto de 1845 citado, mostrando-se inteiramente ignorantes do outro decreto de 1850, pelo qual foi auctorisada a creação do hospicio das irmãs da caridade em Vianna do Alemtejo; que um tal decreto, por estar referendado por elle, orador, era 0 que verdadeiramente, e em boa fé, devia ser adduzido para mostrar as suas antigas opiniões sobre tal assumpto. Que ninguem em vista d'este decreto poderá mostrar que elle, orador, julgou jamais applicavel ás irmãs da caridade o decreto de 9 de agosto de 1833; mas que se alguma duvida existisse sobre a intelligencia d'esse decreto, estava ella resolvida pelo outro decreto de 3 de julho de 1852, referendado pelo maior reaccionario d'este paiz o sr. Rodrigo da Fonseca Magalhães (riso).
Pede o orador á camara que consulte o mencionado decreto, e encontrará que no artigo 2.° § 2.° se determina mui expressamente, que o prelado diocesano nó intervirá nos actos da administração daquelle hospicio de Vianna do Alemtejo nos casos e pelo modo expressamente declarados no mesmo regulamento, ficando-lhe comtudo sempre salva a sua juridicção especial e ordinaria, que por direito lhe compete sobre o culto divino, capella, capellães, e sobre as relações espirituaes do seu subditos diocesanos.
Que no § 3.° explica mais claramente o objecto em discussão, porque determina positivamente que as irmãs da caridade, quanto á observancia do seu instituto religioso e á economia interior do hospicio do Vianna do Alemtejo, e quanto a sua permanencia n'elle, substituição, ou regresso, fiquem sujeitas ás ordens e instrucções do director e prelado da casa de Lisboa.
Que depois d'estas determinantes disposições não espera o orador que alguem possa em boa fé dizer que a interpretação e a intelligencia do decreto de 9 de agosto de 1833 fóra sempre official e praticamente a mesma.
De passagem observará que não obstante ser partidario e desejar o instituto de S. Vicente de Paulo estando n'elle reunidas as irmãs da caridade portuguezas e estrangeiras, sente que o governo nos documentos officiaes mostrando a maior indifferença pelas irmãs da caridade portuguezas diga que tem especial consideração pelas francezas (apoiados).
Que não vae isto muito de accordo com as accusações que o governo tem dirigido á opposição dentro e fóra do paiz, pretendendo apresenta-la sempre como partidaria do instituto estrangeiro, quando a verdade é que a opposição ou a parte d'ella que sustenta o instituto de S. Vicente de Paulo não vê nem descobre nas pessoas que o compõem nacionaes ou estrangeiras, senão cantas creaturas, votadas do coração a consolar e tratar os doentes e educar as crianças infelizes e pobres.
Notará igualmente de passagem, que não comprehende o procedimento do governo era quanto diz que o decreto de 22 de junho comprehende as irmãs da caridade portuguezas e francezas; quando é certo que estas (as francezas) são consideradas, não como communidade, mas como individuos residentes no paiz.
A camara ha de por certo admirar-se de saber, que as irmãs da caridade francezas para poderem residir no paiz tiram annualmente o respectivo bilhete de residencia; se isto é assim para que tanta celeuma, para que tantas portarias e decretos, para que tanto fallarem em reacção religiosa, a que servem de instrumento as irmãs de caridade francezas? Se ellas existem no paiz é porque o governo quer que existam. Se sabe, e quer ser governo, use do direito que lhe compete, negue o bilhete de residencia, e não consinta que esses corações obstinados (segundo a phrase do sr. marquez de Loulé), persistam no solo portuguez.
Que passando em revista os fundamentos da medida ministerial, observa que o governo decreta a dissolução das irmãs da caridade, porque na fórma da lei portugueza não póde existir no paiz communidade alguma religiosa, que preste submissão ou obediencia de qualquer natureza a superior estrangeiro. Em tal caso é elle, orador, tentado a accusar de parcialidade o governo, o qual seguramente por um acto de fraqueza consente que existam no paiz, pelo menos dois verdadeiros exemplos, pois que a communidade religiosa das freiras denominadas inglezinhas, tem por seu superior tanto no seu espiritual como no temporal, o nuncio de sua santidade; e que o mesmo acontece a respeito do collegio de S. Pedro e S. Paulo, denominado dos inglezinhos, o qual, desligado de toda a obediencia ao prelado diocesano, a presta ao cardeal Wiseman, por delegação da Propaganda. Mas quer a camara saber porque o governo procede com tanta fraqueza e parcialidade (exclamou o orador), é porque o governo dobra o joelho diante da bandeira que vê arvorada diante d'aquelles estabelecimentos.
Chama ainda a attenção da camara sobre uma circumstancia que prova evidentemente que os governos têem considerado por differente maneira as communidades religiosas professas o o instituto das irmãs da caridade; nas primeiras, na conformidade da lei, não se tem permittido entrada de noviças, emquanto que no instituto das irmãs da caridade sempre têem sido admittidas, pela rasão de não se julgar que é applicavel o decreto, que extinguiu as ordens religiosas, assim como ultimamente se entendeu que não era applicavel ás Ursulinas, pois que se permittiu a entrada de seis noviças.
Deve chamar ainda a attenção do governo sobre o que ultimamente dispoz a lei de 4 de abril do corrente anno, artigo 11.º. Determina este artigo, que todos os bens, que constituirem a propriedade ou dotação de algum convento, que for supprimido na conformidade dos canones, serão exclusivamente applicados a manutenção de outros estabelecimentos de piedade ou do instrucção, e á sustentação do culto e clero. D'esta tão determinante disposição deduz elle orador um argumento, a que espera não deixará de responder o sr. ministro da justiça. Ou o instituto das irmãs da caridade é considerado communidade religiosa professa, ou não: n'este ultimo caso ninguem dirá que é-lhe applicavel o decreto de 9 de agosto de 1833; no primeiro caso, e na conformidade d'esta lei, só póde a sua suppressão ser decretada na conformidade dos canones, e ninguem dirá que é equivalente d'elles um decreto ministerial.
Depois de tudo que tem dito, julga ter mostrado que se por um lado tem sido differente a intelligencia e a interpretação do decreto de 9 de agosto de 1833, com applicação ás irmãs da caridade, o governo tem andado por outro lado com bastante leveza, menos circumspecção, arbitrariedade e parcialidade em todos os actos que tem publicado sobre tão ponderoso assumpto; sendo fóra de toda a duvida que, em circumstancias taes, pedia o bom senso, e aconselhava a prudencia, que o mesmo governo, em logar de marchar de abysmo em abysmo, fizesse resolver a questão pelos poderes constitucionaes do estado.
(Entrou o sr. ministro da fazenda.)
Julga que o governo, applicando a lei ao facto, e applicando por um decreto seu parte das penas que se acham consignadas no artigo 4.° do mencionado decreto de 9 de agosto de 1833, o que só póde ter logar em um processo criminal instaurado competentemente, usurpou as attribuições do poder judicial; julga igualmente que ampliando o mencionado decreto ao instituto de S. Vicente de Paulo, quando n'elle não é comprehendido, usurpou as attribuições do poder legislativo; e que um governo que procede por tal fórma não póde continuar a merecer o apoio das camaras, e deve por isso retirar-se do conselho da corôa.
Pede por fim o orador licença á camara para fazer leitura de um documento impresso, no qual se dá conta de uma questão bem similhante a esta.
Na contenda que existiu, entre o cardeal Pereira, bispo do Algarve, e os padres bernardos de Alcobaça, sobre pretenderem confessar as religiosas, suas súbditas do convento de Tavira, sem approvação do dito em.mo ordinario, nesta apparece a resposta de Henrique de Carvalho, provincial da companhia de Jesus ao dito em.mo cardeal Pereira, e n'ella encontra-se esta notavel passagem, tão apropriada para ser applicada a todos os parlamentos, a todos os ministerios, a todos os prelados na questão das irmãs da caridade, I
«E confesso ingenuamente que a minha litteratura se não poderia animar a condemnar de menos pios e observantes das disposições ecclesiasticas, de menos zelosos da honra de Deus, descuidados das obrigações do seu officio; ou arguir de ignorantes, de nescios e ineptos a. tantos e a todas as luzes, tão avultados prelados; porque ou elles souberam e conheceram que era abuso e corruptela o que se praticava, e que as confissões, faltando a approvação do ordinario, eram nullas e sacrilogas, e o poder approvar para confessar as freiras era privativo á sua dignidade, ou o não conheceram; se o conheceram e souberam, e consentiram que se praticasse, foram pusilânimes, foram impios, foram traidores á sua mesma dignidade, infiéis a Deus o á sua obrigação, ficando réus de peccados irremediaveis; se o não conheceram nem souberam, foram nescios, foram inhabeis, foram ignorantes em materia do seu officio, por isso muito incapazes do ministerio que exercitam. E quem, em,™ sr. se atreverá a condemnar por réus de tantos peccados, de tantos sacrilégios, de ignorancia tão crassa, a tantos, tão pios e tão doutos religiosos, a tantos e tão esclarecidos, e em todo o genero tão eminentes prelados, como florescem e têem florescido em Portugal e nos seus dominios, e muito mais sabendo que V. em.mª (cujas superiores letras e zêlo do bem das almas sempre venerei) tantos annos consentiu ou mandou praticar, quia qui peccare non vetat, cumpossit, et teneatur, jubet, sem que a esta pratica se oppozesse.»
Mutatis mutandis, applico aos que mandaram ou consentiram que o instituto de S. Vicente de Paulo continuasse durante tantos annos sujeito ao regimen interno do chefe superior da missão em París, e que nunca, pelo julgar comprehendido no decreto de 9 de agosto, nem combateram essa sujeição, nem impediram que naquelle instituto fossem admittidas novas irmãs contra a expressa determinação da legislação vigente a respeito das casas religiosas.
Dirigindo-me mais particularmente ao sr. marquez de Loulé, digo a s. ex.ª que se está tão seguro da sua opinião, se tem a illimitada confiança do chefe do estado, como dizem os seus amigos...
O sr. Vellez Caldeira: — Jesus!...
O Orador: — Como! Acaso disse eu alguma cousa que não possa dizer-se? Repito, que se tem a illimitada confiança do chefe do estado, se obteve pela ultima eleição uma grande maioria na camara dos srs. deputados, se a obteve igualmente n'esta casa pelas ultimas nomeações de pares, se tem portanto todos os elementos de resolver a questão constitucionalmente, não deve insistir em deixar progredi-la, porque não é questão em que o governo e os partidos politicos devam consumir a força de que precisam para tratar as importantes questões do estado.