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842 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 89

cada vez mais numerosas as necessidades individuais e colectivas insusceptíveis de serem satisfeitas pela iniciativa privada. Mas isso em nada altera o título que justifica a sua intervenção nesse domínio, que é sempre o de completar e suprir as deficiências da iniciativa dos particulares.
Ora a tarefa de doutrinar e educar - quer se trate de doutrinação no plano individual, quer no plano colectivo - não é mais do que um aspecto dessa realização do bem-estar social e, por intermédio dela, da própria realização do bem comum; o que equivale a dizer que a medida da legítima intervenção do Estado na actividade educativa e doutrinadora deve ser determinada pelos próprios limites da sua actividade na promoção do bem-estar social e na realização do bem comum 2. Daqui se inferem logicamente as seguintes conclusões:

1.ª Em matéria de educação, como nos demais aspectos da realização da prosperidade pública, ao Estado compete, antes de mais nada, promover e proteger as iniciativas privadas; e só na hipótese de estas se mostrarem insuficientes, ou inadaptadas aos fins em vista lhe compete supri-las e completá-las, arvorando-se ele próprio em doutrinador e educador;
2.º Quando haja o Estado de substituir-se aos particulares na missão de doutrinar e educar, não pode ensinar qualquer doutrina ou fixar a seu bel-prazer o tipo de educação que deve ministrar. Tem de subordinar-se sempre ao critério da promoção do bem comum; e só lhe é lícito propagar doutrinas ou difundir ideias que com ele se harmonizem e a ele conduzam;
3.º Assumindo a posição de educador, o Estado só como educador deve proceder. Não lhe é lícito ceder à tentação da força de que dispõe para impor doutrinas; é-lhe lícito tão-sòmente propô-las à aceitação dos particulares, deixando-lhes sempre plena liberdade de as aceitarem ou repudiarem 3.

4.º O problema que nos propusemos apreciar reduz-se agora simplesmente a verificar se o Estado, no plano de doutrinação social e corporativa que se propõe empreender, se enquadra ou não nos princípios acabados e enunciar.
A resposta parece dever ser francamente afirmativa em relação a qualquer das três regras formuladas. Mas isso não quer dizer que o problema não mereça ser objecto de um pouco mais de meditação, especialmente pelo que toca à concordância da proposta do Governo com a primeira das regras em causa.
É que essa regra, levada às suas últimas consequências, obriga logicamente a aceitar uma outra, que pode formular-se assim: se o Estado se arvorar em doutrinador ou educador, com fundamento em que a iniciativa privada não pode levar a cabo a doutrinação ou educação que as circunstâncias exigem, deve estar sempre pronto a ceder o seu lugar àquela, logo que ela se apresente em condições de assumir por si o encargo de tal doutrinação.
E, em face disto, o problema que pretendemos solucionar complica-se algo mais, pois desdobra-se em dois: saber se, nas circunstâncias actuais, é impossível contar com a iniciativa privada para empreender uma campanha de doutrinação social e corporativa do género da que o Governo se propõe levar por diante; e, na hipótese afirmativa - que desde logo legitima a iniciativa do Estado de tomar conta de tal doutrinação -, saber se é de prever ou não que, num futuro próximo, alguma instituição ou instituições extra-estaduais estejam em condições de tomar sobre si este encargo de doutrinar.
O primeiro ponto - quer-nos parecer - não oferece discussão. De quem poderia esperar-se, neste momento, uma campanha de doutrinação com a amplitude e a eficiência que se impõem? Certas organizações existentes, como a União Nacional, a Legião e a Mocidade Portuguesa, estão já demasiado absorvidas com outras tarefas de responsabilidade para que delas se possa esperar uma iniciativa deste género; pode pedir-se-lhes que colaborem, dentro do seu campo próprio de actividade, mas não se pode contar que tomem sobre si totalmente a iniciativa dum empreendimento deste vulto 2.
A organização corporativa é que pareceria naturalmente indicada para orientar e dirigir esta doutrinação, que para ela própria assume importância vital. Mas é evidente que, enquanto as corporações não se encontrarem em, perfeito funcionamento, ela não dispõe da unidade de estrutura e direcção para tanto necessárias. Não há dúvida, pois, de que só o Estado, através do Ministério das Corporações e Previdência Social, pode neste momento propor-se a execução dum plano como o que consta da proposta de lei em apreciação.
Se tudo isto é certo, não se afigura menos certo, porém, que é de prever, num futuro próximo, um estado de coisas substancialmente diverso. Na verdade, à medida que as corporações se forem progressivamente estruturando e dotando dos meios de acção indispensáveis, em termos de poderem realmente orientar e dirigir por ei toda a vida corporativa da Nação, o ambiente tornar-se-á propício a que sejam elas próprias à tomar sobre si o encargo da doutrinação social e corporativa, que as circunstâncias obrigam, de momento, a depositar mas mãos do Estado 3.
Se o Plano de Formação Social e Corporativa, a que a presente proposta de lei se refere, tivesse carácter puramente, transitório, o problema a que estamos a referir-nos talvez não tivesse razão de ser. Poder-se-ia dizer que a perfeita estruturação e funcionamento das corporações não depende da sua simples criação por via legislativa, antes exige numerosos e demorados esforços, que hão-de absorver meses e anos; e que, nesse meio tempo, a execução do Plano teria chegado ao seu termo. O problema da sua eventual transferência para as corporações não chegaria ... a ser problema.

2. Observa «acertadamente o Prof. Marcelo Caetano, a este propósito: «Há um século, era possível conceber um Estado que tivesse por fins quase exclusivos e Justiça e a Segurança e deixasse à iniciativa privada, em regime de livre concorrência, a realização do bem-estar (Estado liberal); hoje, tal sistema é pràticamente inconcebível, e todo o Estado é, como os ingleses dizem, um Estado dirigido ao bem-estar. Cf. Lições citadas, p. 118.
3 V. Braga da Cruz, Direitos e Deveres do Estado na Educação, p. 22, e Problemas de Educação - Direitos da Família, da Igreja e do Estado, p. 18.
3 V. Mário da Figueiredo, ob cif., pp. 22, 23 e 34.

1 V. Braga da Cruz, Direitos e Deveres do Estado na Educação, p. 24.
2 Aliás, dado o carácter destas organizações, não seria lícito dizer, em tal hipótese, que a doutrinação revestia totalmente o carácter duma iniciativa privada.
3 Queremos referir-nos, evidentemente, a tudo o que no Plano representa verdadeira doutrinação corporativa e acção social. Já não será exigido forçosamente pela lógica do nosso raciocínio que também o Centro de Estudos Sociais e Corporativos, a que se referem es bases IX a XI da proposta, transite da alçada directa do Estado para a alçada dos corporações. Trata-se dum organismo de estudo e consulta que o Ministério podia ter vantagem em conservar sempre ligado a si.