844 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 89
A resposta, conforme logo se disse, é francamente afirmativa e será até ocioso entrar em largas considerações a esse respeito.
Na verdade, o Estado, ao chamar licitamente a ai neste caso concreto a tarefa de desenvolver um vasto plano de doutrinação, não se propõe doutrinar arbitrariamente; fá-lo em subordinação ao critério de promover o bem comum, propondo-se difundir uma doutrina que é, no domínio do social e económico, a que melhor com esse bem comum se harmoniza e mais razoavelmente a ele conduz.
Ninguém ignora, efectivamente, que a doutrina corporativa vai buscar à noção tomista e cristã do bem comum o seu principal fundamento filosófico; e que ela é, com apoio na doutrina social da Igreja e noutros (pressupostos de inspiração crista 2, a fórmula mais feliz até hoje encontrada para alcançar aquele objectivo, a «O seu apelo aos valores tradicionais de hierarquia e ordem, o seu propósito de conciliar o progresso económico com a justiça social, o seu método de procurar pela evolução aquilo em que a revolução tinha falhado e a afirmação de um ideal de paz e de justiça a contrapor ao de luta e retaliação» - como alguém recentemente a caracterizou em síntese perfeita 3 - fazem que ela seja a doutrina que melhor tem sabido colocar o indivíduo ao serviço da colectividade, sem quebra da liberdade e dignidade que lhe são inerentes como pessoa humana, antes colocando a própria colectividade ao serviço dos fins transcendentes- do homem como pessoa 4.
E, para além desta perfeita identificação do corporativismo com o ideal cristão do bem comum - que só por si bastaria para legitimar o propósito do Estado de o fazer objecto de uma campanha de doutrinação-, não pode esquecer-se que proclamar e difundir a sua doutrina é ir ao encontro das realidades económicas e sociais do nosso século, que têm obrigado, a generalidade dos países livres- a adoptá-la, apesar de teimarem em não querer, na maioria dos casos, dar-lhe o seu verdadeiro nome 5.
Propondo-se empreender uma campanha de doutrinação corporativa, o Estado Português, portanto, além de proceder em inteira obediência lógica aos princípios doutrinários que lhe servem de fundamento, demonstra
1 Cf. Teixeira Ribeiro, «Princípio e Fins do Sistema Corporativo Português», no citado volume do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, pp. 8 e segs.; Fezes Vital, Curso de Direito Corporativo, pp. 24 e segs.; e Pires Cardoso, Corporativismo, vol, I «Introdução», Lisboa, 1950, pp. 35 e segs., e especialmente a p. 53.
2 Cf. Marcelo Caetano, Lições de Direito Corporativo, Lisboa, 1985, p. 12; Fezes Vital, ob. cit., p. 44; Marcelo Caetano, Posição Actual do Corporativismo Português, Lisboa, 1950, p. 21; e João Manuel Cortês Pinto, A Corporação. Subsídios para o seu Estudo. vol. I «A Corporação e o Estado», Coimbra, 1955, p. 13.
3 João Manuel Cortês Pinto, ob. e vol. cit., pp. 13 e 14.
4 Toda a doutrina tomista do bem comum gravita realmente em torno desta conhecida distinção entre indivíduo e pessoa humana, cujo significado, por demais sabido, não temos que estar aqui a explicar. A sociedade civil, em nome da realização do bem comum imanente, sou fim intrínseco, pode exigir o sacrifício dos interesses do homem como indivíduo; mas, no serviço do bem comum transcendente, seu fim extrínseco, está subordinada ao próprio homem, como pessoa. É senhora absoluta do homem como indivíduo, para se tomar escrava do mesmo homem como pessoa, ou, como disse o Prof. Teixeira Ribeiro numa fórmula clara e precisa, «é fim supremo do indivíduo, e domina-o, subordina-lhe os interesses próprios às condições da vida virtuosa de todos, que formam a ordem do bem comum; mas é simples meio ou instrumento ao serviço do que há de mais íntimo e superior no homem: o seu destino transcendente» (ob cit., p. 24). Sobre a doutrina tomista do bem comum, além do citado trabalho de Teixeira Ribeiro veja-se especialmente o livro de Suzanne Michel, La Notion Thomiste du Bien Commun. Quelques-unes de ses Applications Juridiques, Paris, 1932.
5 O presente trabalho, dada a sua Índole especial, não tem que entrar na demonstração do rápido crescimento da ideia corporativa nas valias, nações do mundo livre; tem e limitar-se a registar o facto, que anda, de resto, sobejamente demonstrado nos livros da especialidade.
Quando a Itália perdeu a guerra de 1939-1945, não faltou quem supusesse que a derrota, do fascismo acarretaria consigo a derrota do corporativismo. Hoje, a mais de dez anos de distância do termo da guerra, os factos já se encarregaram de desmentir totalmente esses vaticínios. Apenas o nome de «corporativismo» parece ainda inspirar certos escrúpulos, em alguns países, com medo de que a palavra possa ser tomada como rotulo de um disfarçado fascismo. A ideia, essa, ganha terreno a passos agigantados, e o Mundo «organiza-se corporativamente com uma rapidez assombrosa», como disse recentemente Cortês Pinto (ob. cit., p. 15).
Em Portugal, cabe a Teixeira Ribeiro o mérito de primeiro ter vaticinado esta perenidade do corporativismo no campo económico, para além do efémero insucesso que a queda do fascismo lhe fez sofrer. Num estudo que saía a lume no próprio ano em que findava a guerra («O destino do corporativismo», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano I, 1945-1946, pp. 44 e segs.), o ilustre mestre da Faculdade de Direito de Coimbra chamava a atenção para a tese do fatalismo histórico do corporativismo, defendida dez anos antes por Mihaïl Manoilesco, no seu conhecido livro Le Siècle du Corporatisme, perguntando se a derrota da Itália, acabada de verificar, não acarretaria consigo a derrota do corporativismo, em formal desmentido aquela tese. A sua resposta, depois de uma cuidada análise do problema, foi claramente formulada: «O destino do corporativismo não está, como alguns supõem, férreamente ligado à sorte vária dos regimes políticos. Sejam estes da esquerda ou da direita, queiram servir de ponto de passagem para a colectivização ou reforcem ainda a propriedade privada - em ambos os casos haverá que dirigir mais ou menos a economia; e como o Governo, decerto, o não fará sozinho, haverá que recorrer ao concurso dos produtores e tecemos corporações. Não importa o nome nem os detalhes da organização. Não interessa que seja muito ou pouco acentuada a ingerência dos poderes públicos na vida delas. O facto, despido de todas as suas contingências, é sempre o mesmo: é o Governo que renuncia, em benefício dos particulares, ao controlo exclusivo da produção ou dos mercados». Cf. ob. cit., p. 52.
Outros corporativistas portugueses voltaram ao assunto em trabalhos posteriores, sempre para frisar a ideia da perenidade da doutrina corporativa e do inevitável caminhar do mundo livre para ela, ou para registar as primeiras confirmações práticas trazidas a essa tese pelo pós-guerra. Pires Cardoso, numa conferência proferida em 1949, alem de uma justa colocação do problema no plano teórico, podia já apontar a Suíça como exemplo concreto de um país onde as realizações corporativas ganhavam rapidamente terreno, quatro anos volvidos sobre o termo da guerra. Cf. Uma Escola Corporativa, Portuguesa, Lisboa, 1949, pp. 7 a 9. E Marcelo Caetano, numa outra conferência proferida poucos meses depois, de novo chamava a atenção, em termos bem vivos, para essa justificada sobrevivência do corporativismo por sobre es ruínas da última guerra. Cf. Posição Actual do Corporativismo Português, Lisboa, 1950, p. 24.
Mais recentemente, Adérito Sedas Nunes, no seu excelente livro Situação e Problemas do Corporativismo, Lisboa, 1954, pp. 48 e 49, autorizado já pela lição dos factos, podia concluir uni dos capítulos do seu trabalho com a afirmação de que corporativismo é uma doutrina que se crê situada sobre a linha da evolução social dos nossos tempos». E noutro trabalho de indiscutível merecimento, aparecido em fins do ano transacto, da autoria de João Cortas Ponto, A Corporação. Subsídios para o seu Estudo, Coimbra, 1955, pp. 40 e segs., fornecia-se ao público português a surpresa de um estudo descritivo das realizações corporativas mais recentes de vários países estrangeiros tidos e havidos como fiéis detentores da tradição liberal.
Os factos têm vindo assim a confirmar o que o Presidente do Conselho pôde afirmar, com a sua habitual clarividência, no discurso de inauguração da Conferência da União Nacional proferido no Porto em 7 de Janeiro de 1949: s... o operariado não tem diante de si senão duas perspectivas, quero dwer, dois caminhos - comunismo e corporativismo: o primeiro com posição-definida quanto aos meios de produção, quer esta se verifique mais conveniente, quer menos, para a riqueza geral e para os mesmos trabalhadores; o segundo livre de escolher os processos de maior rendimento colectivo e de maior benefício para o operariado; o primeiro obrigado, por força da socialização, a dirigir rigidamente a vida e a suprimir toda a liberdade; o segundo assegurando, dentro do condicionalismo da produção, os interesses materiais e morais do trabalho e respeitando a liberdade do homem, do membro da família, do trabalhador, do cidadão; o comunismo criando a miragem de os trabalhadores serem eles o Poder e o Estado; o corporativismo dando-lhes- a realidade da sua comparticipação no Estado e da sua solidariedade com todos os outros portugueses nos interesses da Nação». Cf. «O Meu Depoimento», in Discursos, vol. IV. p. 369, e Antologia, p. 197.