848 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 89
Os factos vinham mostrar que a reforma da mentalidade levada a efeito nos primeiros anos de vida da organização não fora tão larga nem tão profunda como julgou poder-se acreditar no meio do entusiasmo reinante, apesar do muito que nesse sentido conseguira fazer-se em tão pouco tempo; e vinham mostrar, sobretudo, que o grande ponto fraco da organização era a falta de dirigentes adestrados, com cultura e conhecimentos técnicos suficientes para resolver os difíceis problemas que o nosso corporativismo fora abrigado a enfrentar. Mesmo entre aqueles onde a mentalidade fora efectivamente reformada e onde fora possível criar um ambiente de fé e de esperança nos destinos do corporativismo, faltava o natural complemento de uma cultura adequada para dirigir os destinos da organização. Muitos deles, julgando servi-la de alma e coração, não faziam mais do que comprometê-la e expô-la nos ataques inimigos.
12. Assim sé explica que, passada a perplexidade dos primeiros momentos da crise, doutrinadores e políticos voltem a insistir, nos seus estudos e mós seus discursos, na grande necessidade de continuar a formação da consciência corporativa e, especialmente, na grande urgência da preparação e formação cultural dos dirigentes. Essa nota especial, que tinha desaparecido ou passado para segundo plano nos discursos e conferências dos responsáveis, desde fins de 1934 aos começos de 1939 - para dar lugar ao tom optimista que acima salientámos -, volta agora a ser a nota dominante sempre que se alude ao futuro da organização.
Logo em 1939, é Marcelo Caetano quem denuncia que «não se curou com o desvelo preciso da educação dos dirigentes e das massas» 1, insistindo na necessidade de formar uma consciência corporativa, porque «não há reforma social que vingue quando não se faça através da reforma dos indivíduos» 2. E em 1941 volta a afirmar que «os três pontos fundamentais em que é preciso insistir no nosso país para se levar a bom termo a implantação do sistema corporativo são a formação de dirigentes, a aprendizagem de métodos de trabalho e a criação da consciência corporativa» 3.
No mesmo sentido, o Chefe do Governo, com a objectiva serenidade que lhe é característica, num discurso proferido em 1942, analisa nestes termos a situação do corporativismo português: «Por mim atribuo as faltas verificadas a estes dois factores: primeiro, vivemos um caso em que a revolução mental, em vez de preceder, teve de seguir-se à revolução legal, a qual por isso mesmo encontra, por força da inércia, muitos espíritos descansados em princípios opostos (muitos de nós raciocinam à liberal ou à socialista, mesmo quando pretendem ser corporativistas); o segundo factor é à falta de propaganda formativa para a massa e de cultura apropriada para os dirigentes. A boa vontade de que, se não todos, o grande número tem dado provas nesta difícil época de transição não basta; e há muito tento a intenção e sinto a necessidade de retomar em bases diversas o Centro de Estudos Corporativos e ampliar os estudos destinados à formação dos dirigentes sindicais» 4.
13. O que assim se dizia ainda em plena guerra - num momento em que o corporativismo português, longe de superar a crise que o atingira, a via agravada pelas circunstancias do momento - havia de repetir-se depois de terminadas tis hostilidades, quando o regresso à normalidade começava lentamente a verificar-se e a hora se tornava propícia para um balanço de contas sobre as futuras possibilidades do sistema.
Nos discursos e escritos deste período - que se prolonga já até aos - nossos dias - são três, fundamentalmente, as ideias que dominam:
1.ª A crise do corporativismo português, iniciada antes da guerra e por esta fortemente agravada, longe de comprometer a organização, só veio demonstrar a sua vitalidade e as suas extraordinárias possibilidades. Se o sistema conseguiu prestar ao País os serviços que prestou, apesar de desviado nas suas finalidades e de nem sempre bem servido por alguns dos seus dirigentes, isso significa que tem virtudes próprias muito superiores ao condicionalismo de cada momento e a qualidade dos homens que o servem 1;
2.º Todos os esforços se devem conjugar para libertar a organização corporativa dos desvios de que foi vítima, restituindo-a u pureza dos princípios que a inspiram, libertando-a do excessivo paternalismo estadual e completando a sua estrutura com a criação dos corporações 2;
3.ª A grande lição da crise que o corporativismo português sofreu é a da urgência da doutrinação e, muito especialmente, a da formação de diligentes. Sem essas condições mínimas a organização poderá estagnar sob a permanente tutela do Estado, anãs não poderá progredir, como convém, no campo da restituição aos seus princípios inspiradores.
Sem entrar na apreciação dos dois primeiros pontos - cuja verdade se afigura, aliás, evidente -, cumpre-nos chamar a atenção para a insistência com que,
2 Cf. «Pela Formação da Consciência Corporativa» (conferência pronunciada em 1939 e hoje publicada na colectânea Problemas da Revolução Corporativa), Lisboa, 1941, p. 82.
2 Cf. ibidem, p. 82.
3 No prefácio da citada colectânea, a p. 31. O tema é depois desenvolvido de p. 31 a p. 34.
4 Cf. «O Corporativismo e os Trabalhadores» (resposta à mensagem dos dirigentes sindicais lida no Coliseu dos Recreios, em 23 de Julho de 1942, na sessão ali realizada pelos sindicatos nacionais), in Discursos, vol. III (1938-1943), pp. 366 e 367, e Antologia, p. 193.
Em passagem anterior do mesmo discurso tinham-se já apontado como fundamentais deficiências da organização corporativa as próprios deficiências dos homens que a serviam: «E agora, que já fizemos um começo de justiça, podemos dizer algum mal da organização. Apesar da sua vasta obra, ela revela com efeito deficiência» de espirito e de técnica; mas ambas as faltas passam à margem da» principio» do sistema para residirem na pessoa dos executantes. Entendemos por espirito a compreensão exacta dos princípios e finalidades do corporativismo, a adesão e fidelidade à sua doutrina, a observância da sua ética, a dedicação pela sua obra. Por técnica pode entender-se o conjunto de regras e de processos pelos quais se chega à realização dos objectivos corporativistas, e que vão desde o segredo da chefia ao conhecimento da administração e da contabilidade». Cf. Discursos, vol. cit., pp. 365 e 366.
1 Já demonstrada no relatório da comissão parlamentar de inquérito aos elementos da organização corporativa - a que presidiu o Deputado Mário de Figueiredo-, esta tese foi retomada num elucidativo estudo de Carlos Hermenegildo de Sousa, saído a lume em 1947, sob o titulo «O Panorama da Organização Corporativa em Portugal» (na revista Brotéria, vol. XLV, fase. 5.º). Posteriormente, foi de novo exposta por Marcelo Caetano (Posição Actual do Corporativismo Português, 1950, pp. 16 a 18) e encontrou eco em muitos escritos sobre corporativismo.
2 Pode ver-se o desenvolvimento desta ideia, entre outros, nos seguintes trabalhos: Oliveira Salazar, Discursos, vol. IV, pp. 433 e 484, e Antologia, p. 198 (o discurso é de 1949); Fezas Vital, «Desvios do Corporativismo Português», 1950, no loc. cit., pp. 7 e 8; Marcelo Caetano, Petição Actual do Corporativismo Português, 1950, pp. 25 a 27; Correia de Barros, ob. cit., 1951, pp. 8 e segs.; e Pires Cardoso, «O Problema Actual da Corporação Portuguesa» (discurso proferido na sessão plenária comemorativa do 20.º aniversário da Câmara Corporativa, em 10 de Janeiro de 1955, e editado pelo Gabinete de Estudos Corporativos do Centro Universitário de Lisboa da Mocidade Portuguesa).