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podiam justificar a inserção de um preceito no sentido do projecto agora apresentado.
Para bem aquilatar do alcance deste projecto importa fazer um breve resumo das vicissitudes verificadas na evolução do regime jurídico da faculdade legislativa. do Governo. Pelo texto primitivo da Constituição de 1933, fora da hipótese de prévia autorização legislativa, o Governo poderia publicar decretos-leis nos casos de urgência e necessidade pública, ficando esses diplomas sujeitos à ratificação da Assembleia Nacional: não se estabelecia assim distinção entre diplomas publicados no período de funcionamento da Assembleia - ao tempo limitado a três meses- ou nos intervalos das sessões legislativas, pois uns e outros eram passivos de ratificação pela Assembleia.
Pela Lei n.º 1:885, de 28 de Março de 1935, modificou-se o sistema, ficando a ratificação restrita aos diplomas publicados durante o período das Sessões legislativas, fórmula esta em breve substituída (Lei n.º 128, de 18 de Dezembro de 1937) pela de período de "funcionamento efectivo da Assembleia Nacional", isto para harmonizar o sistema com a faculdade de suspensão dos trabalhos da Assembleia pelo seu Presidente, introduzida pelo artigo 2.º da mesma Lei n.º 1:963.
Nova e mais profunda alteração - pelo menos no campo dos princípios - veio a sofrer o regime da faculdade legislativa, do Governo: pela reforma constitucional constante da Lei n.º 2:009, de 17 de Setembro de 1945, deixam de ser condição de constitucionalidade dum decreto-lei a alegação de urgência e necessidade pública.
As razões que conduziram a esta modificação constam do respectivo parecer da Câmara Corporativa 1 e podem sintetizar-se na seguinte conclusão: o desejo de adaptar o texto da Constituição à realidade dos factos, que na verdade acusava uma intensa actividade legislativa do Governo, com à constante invocação de razão de urgência e necessidade como que traduzindo um estado febril da vida pública, em flagrante desarmonia com a tranquilidade de que a Nação com tanta razão se pode ufanar no último quarto de século.
3. Desde que é mantido como principio constitucional o sistema da ratificação dos decretos-leis publicados durante o funcionamento da Assembleia Nacional, quando a votação parlamentar não conclua pela ratificação pura e simples ou pela rejeição do diploma, e fique, portanto, este pendente de ulteriores modificações, deverá ser obrigatoriamente mantida a sua aplicação imediata? 0 texto constitucional, a este respeito, não tem sofrido alteração, sempre fixando a regra da continuidade da vigência dos decretos-leis que, ao serem presentes à apreciação da Assembleia, esta delibera ratificar com emendas.
Importa não perder de vista que a inserção de tal regra na Constituição foi feita contemplando um sistema em que, por um lado, a ratificação abrangia também os diplomas publicados no interregno das sessões legislativas e, por outro lado, os decretos-leis só seriam publicados sob a alegação de urgência e necessidade pública. E, assim, quanto a este último aspecto, a presunção de conveniência de imediata execução do diploma constituía argumento a favor da norma em causa; e quanto àquela primeira parte, a suspensão da vigência do diploma tornar-se-ia, na maior parte dos casos, inoperante, pois, em relação ao período de encerramento da Assembleia, para o qual sinceramente era de prever um mais intenso labor legislativo por parte do Governo, o decreto-lei só viria a ser apresentado á ratificação numa época em que, porventura, a sua execução se poderia considerar já completa.
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1 Diário das Sessões de 16 de Junho de 1945, p. 642-(5).
Hoje, porém, como se deixou acentuado, o panorama é diferente, e assim a intenção que determinou a aplicação do problema em 1935 encontra base segura para justificar, na generalidade um voto favorável desta Câmara ao projecto agora apresentado.
4. Efectivamente, se o problema só é de colocar quando a Assembleia se encontra em funcionamento e se a suspensão da vigência do diploma ratificando não encobre já a negação duma circunstância de urgência e necessidade expressamente invocada, é de lógica incontestável reconhecer ao órgão constitucional que tem de dizer a última palavra a possibilidade de obstar a que se criem situações prematuras ou irreparáveis. À semelhança do que sucede nas relações entre ao autoridades administrativas e os organismos jurisdicionais aos quais se acha afecta a respectiva função contenciosa e em que se admito o direito de estes, ao assenhorearem-se do objecto dois actos impugnados, suspenderem a execução deles no caso de dano irreparável ou de difícil reparação, também no campo da acção legislativa se deve reconhecer idêntica faculdade ao órgão que constitucionalmente tem de emitir juízo definitivo sobre o novo regime jurídico.
A manutenção irrestrita da executoriedade de um decreto-lei ratificado com emendas, se por um lado pode conduzir a graves prejuízos para os serviços ou para os funcionários pelas modificações que o texto definitivo venha a introduzir, por outro lado dá lugar, na prática, a um verdadeiro cerceamento da acção do órgão de revisão, que encontra como obstáculo a uma definição, de princípios a realidade dum facto consumado.
As considerações até agora desenvolvidas deixam desde já exteriorizar, no acolhimento favorável à iniciativa do ilustre Deputado Dr. Cancela de Abreu, a convicção de que o campo de acção da faculdade instituída no projecto deve ser mais vasta, como rapidamente se vai mostrar.
II
Apreciação na especialidade
5. A matéria visada no projecto representa, sem dúvida, um dos aspectos em que com maior nitidez se avolumam os inconvenientes do regime vigente. No entanto não é difícil considerar, para além da criação de serviços com alteração de quadros do pessoal, outras hipóteses em que a execução dum diploma pendente de ratificação dê lugar a situações de grande delicadeza.
Ocorre-nos, por exemplo, o caso dum decreto que envolva modificações na competência judiciária e que, mesmo sem criação de novos serviços, dê lugar a transferências de processos amanhã inutilizadas pela solução definitivamente adoptada pela Assembleia Nacional. Será ainda o caso dum diploma com medidas punitivas que não venham a ser consagradas no texto definitivo.
Por este motivo entendo a Câmara Corporativa que a faculdade conferida à Assembleia, Nacional não deve ter objecto definido, confiando-se ao seu alto critério o uso prudente da mesma faculdade.
6. Também no tocante ao quórum de votação a Câmara Corporativa julga mitigada a solução do projecto. É certo que em vários preceitos da Constituição se revê uma votação de dois terços do número de Deputados na efectividade de funções 1: mas há que reconhecer que os
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1 Ver, por exemplo, o § único do artigo 98.º (não promulgação dum projecto votado na Assembleia Nacional) e o § 1.º do artigo 134.º (antecipação da revisão constitucional).