27 DE MARÇO DE 1952 597
que alguns Srs. Deputados - entre os quais me conto , que foram de opinião que seria conveniente fazer-se uma ligeira alteração na redacção, ficaram vencidos. Portanto, a base I é a da proposta do Governo, integralmente. A base II é a do texto do parecer da Câmara Corporativa, sem alteração.
Sobre mim tomei a responsabilidade, que VV. Ex.ªs me relevarão, de prestar à Assembleia ligeiros esclarecimentos sobre a oportunidade e o sentido, o âmbito e a finalidade da proposta em discussão. Como se colhe do relatório da proposta do Governo, ela tem em vista temperar o regime de responsabilidades atribuídas aos gerentes ou administradores no caso de alcances ou desvios praticados por elementos sujeitos à sua fiscalização. Mas porque só agora surge a oportunidade desta proposta, quando é certo que a doutrina em matéria de fiscalização de fundos públicos tem mais de um século de existência?
Podemos dividir esta vigência em três períodos: 1849-1910. Embora haja legislação anterior, podemos fixar esta data como a da primeira reforma em matéria de fiscalização. Assim será o primeiro período, o de 1849 a 1915, que podemos definir como de constituição jurídica, pois durante ele se publicaram nada menos de oito diplomas, regimentos e decretos orgânicos sobre fiscalização e responsabilidades financeiras. Um segundo período, de 1915 a 1930, em que foi reorganizado o Tribunal de Contas.
O terceiro período é o que vai de 1930 até 1952. Ora o primeiro período podemos considerá-lo, como já disse, de construção jurídica; mas como as leis publicadas não chegaram a ter execução, nunca incomodaram ninguém! Não chegou a haver experiência dos princípios que elas continham. O segundo período podemos definido como uma época de anarquia administrativa: não se aplicaram princípios de fiscalização nem havia possibilidade de o fazer. O terceiro período, que podemos definir de ordem financeira e acção fiscalizadora, principiou, quanto a esta, com a reorganização do Tribunal de Contas em 1930. Foi então que principiou a notar-se a dureza de alguns princípios.
Eis a razão, a meu ver, de só agora surgir a oportunidade de lhe fazer o temperamento reclamado. Mas quais os princípios que se procuram temperar?
Como VV. Ex.ª sabem, além da responsabilidade civil e da responsabilidade penal, podemos considerar ainda as responsabilidades administrativas e disciplinares e as responsabilidades propriamente financeiras.
Ora, o que vêm a ser estas responsabilidades financeiras propriamente ditas?
São, segundo creio, as que derivam de infracções feitas às leis da contabilidade pública e às normas que regulam a cobrança, a arrecadação e o dispêndio dos fundos públicos. Destas responsabilidades podemos considerar ainda as directas, as solidárias e as subsidiárias. Julgo que a proposta se mantém apenas no âmbito destas últimas, isto é, das responsabilidades subsidiárias.
Desconheço se os compêndios contém doutrina em que possam enquadrar-se estas distinções que me permiti fazer, para melhor esclarecimento.
Para que não surjam confusões entre u que considero responsabilidades solidárias e responsabilidades subsidiárias, vou dar um exemplo das primeiras.
Responsabilidade solidária é, por exemplo, a do secretário de finanças com o tesoureiro, visto que existe uma disposição que obriga taxativamente o secretário de finanças a conferir o cofre todos os dias com o tesoureiro, tornando-os por isso solidários na fiscalização e nas responsabilidades.
E deve dizer-se que a maior parte dos alcances verificados em tesourarias resultaram sempre da falta de fiscalização dos secretários de finanças. Se esta fosse efectiva, não se teriam verificado.
Por conseguinte, aqui há responsabilidade solidária.
Responsabilidade subsidiária é a dos gerentes e administradores, porque têm função fiscalizadora sobre aqueles que lidam com os fundos e praticam as operações, resultando a sua responsabilidade subsidiária da obrigação legal de responderem quando os agentes que praticaram o alcance não tenham meios por onde.
É isto que chamo responsabilidade subsidiária e suponho que esta proposta de lei se mantém exclusivamente no âmbito destas responsabilidades e que portanto não quis alterar nem as responsabilidades administrativas, nem as responsabilidades disciplinares, nem as responsabilidades propriamente financeiras directas e solidárias.
Diz, porém, o douto parecer da Câmara Corporativa, ao apreciar a proposta na generalidade, que esta quis abandonar o sistema tradicional das responsabilidades financeiras, considerando tímida e frouxa a aplicação dos princípios perfilhados e entendendo que a orientação a seguir deve ser naturalmente a da socialização dos danos.
Parece-me, salvo o devido respeito pelo douto parecer, que a proposta de lei em discussão não quis nenhuma destas coisas.
Não quis abandonar o sistema tradicional.
Como acabo de dizer a VV. Ex.ª, não quis tocar nem nas responsabilidades administrativas e disciplinares, nem nas responsabilidades financeiras, directas ou solidárias, e o seu âmbito mantém-se apenas na responsabilidade subsidiária.
Ê a própria proposta do Governo que nos diz no seu relatório:
2. Não pode, é claro, ir-se até ao ponto de frustrar a função de fiscalização que aos administradores incumbe exercer sobre os que têm a seu cargo os dinheiros ou valores ...
Se quis temperar, não quis inutilizar, nem quis pôr de parte as responsabilidades que pertencem àqueles que têm a função fiscalizadora, a fim de que se não perca a severidade administrativa que é preciso manter.
De maneira que, sobre este aspecto, a proposta do Governo não quis abandonar o sistema tradicional.
Aos gerentes e administradores serão, segundo a proposta do Governo, estendidas as responsabilidades nas hipóteses que estão fixadas nas alíneas a), b) e c) da base I, que VV. Ex.ªs conhecem pela proposta.
Quanto ao texto da alínea c), pela análise feita nas sessões das duas Comissões entendeu-se que a palavra «culpa» tinha aqui o significado técnico de «responsabilidade culposa», e não propriamente o significado de a dolo», que também cabe dentro da designação genérica de «culpa». E, dando-lho o significado de «culpa» ou de «negligência», todos os membros das duas Comissões estiveram de acordo com a palavra «grave».
Nisto consiste o abrandamento ou temperamento do rigor.
Considerar que a simples negligência leve do um administrador ou gerente, nas condições em que essa responsabilidade tem de se exercer, era o suficiente para, em todos os casos e circunstâncias, levar a atribuição da responsabilidade completa do «alcance» ou «desvio» praticado por um agente era um extremo rigor que não é compatível com as possibilidades humanas.
Só a manutenção do rigor do princípio justificaria esta rigidez. Mas fica de pé a negligência grave, e é esto o significado que se atribui à palavra «culpa».
Culpa ou negligência grave, quereriam alguns Srs. Deputados, mas a maioria entendeu que não era necessário.