29 DE JANEIRO DE 1953 549
A prova do que afirmo é que precisamente a acalmia em que temos vivido há bastantes anos resulta em boa parte de seguirmos persistentemente um pensamento que foi posto em marcha e que todavia é preciso completar.
Muito pior que o movimento pendular entro as boas e más de entre as colheitas que sobejam e as que se mostram insuficientes é a flutuação permanente das orientações, o pegar e largar de medidas pensadas, estudadas e amadurecidas.
Esse tem sido o grande mal.
Entre este movimento das colheitas insinua-se, como causa largamente perturbadora, aquilo que chamarei o milagre das bodas de Canaã. Este milagre é como o camaleão, amolda-se às circunstâncias, adapta-se ao ambiente, mas prossegue sempre persistente e teimosamente.
Para que não se julgue que estou a exagerar, vou ler o testemunho de um passado relativamente longínquo:
Em 1901 Francisco Simões Margiochi, Par do Reino, dizia no preâmblo de um projecto apresentado na Câmara dos Pares:
Entre as causas da crise vinícola está a concorrência do álcool industrial, que desviava da caldeira de destilação massas de vinhos menos bem classificados, que tinham nessa aplicação o seu destino mais apropriado.
E mais adiante:
Daqui resultava apurar-se que em Lisboa entravam vinhos de elevada graduação (14º e l5.º) e os que a fiscalização encontrava à venda acusavam uma percentagem notavelmente mais baixa (10º).
Devo recordar que nesse tempo a cidade de Lisboa cobrava o chamado «real-d'água», era circundada por uma barreira e só se podia entrar pelas chamadas «portas da cidade». O vinho pagava um tanto por litro e é evidente, que, quanto mais graduado entrava mais barato ficava o imposto em face do desdobramento.
Depois, em 1905, sendo Ministro das Obras Públicas, pasta por que corriam estes assuntos, o conselheiro Dias Costa, dizia este o seguinte no relatório de uma lei aprovada na Câmara dos Deputados:
Deve notar-se que o consumo actual do vinho em Lisboa não é representado pela totalidade do vinho despachado, mas sim por essa quantidade e mais 25 por cento.
Quer dizer que, do vinho que nesse tempo se consumia em Lisboa, 25 por cento era de água. Não direi pura, mas água em todo o caso.
Neste decreto, e confirmando aquilo que disse há pouco a VV. Ex.ªs - já então se falava em adegas sociais, que hoje chamamos cooperativas -, já se procurava instituir sociedades vinícolas destinadas a retirar do mercado vinhos excedentes - função que hoje é cometida à Junta Nacional do Vinho - e poucos meses mais tarde criavam-se os Armazéns Gerais e mais tarde ainda a warrantagem das aguardentes - funções que, em parte, continuam entregues à Junta Nacional do Vinho.
Quando às vezes pensamos que existem ideias novas, lucramos muito em relancear a vista por velhos números do Diário do Governo, pois, talvez, como sobre um assunto que em breves dias referirei a VV. Ex.ªs, ali esteja mais do que se deseja.
Toda esta legislação foi absolutamente inútil e a crise continuou durante nove anos, até 1914, data em que a guerra fez finalmente subir o preço do vinho.
Poderíamos filiar, com toda a razão, os motivos por que todas estas medidas, aliás tão inteligentes, foram inoperantes na falta de sequência a que me referi.
Publicaram-se medidas efectivamente criteriosas e bem estudadas: simplesmente, quando se tratou de as aplicar, não houve a persistência necessária para se colherem os seus resultados.
Esta espantosa crise, que durou nove anos, teve uma causa que, para não baralhar as coisas, daqui a pouco referirei.
Já sobre a vigência da actual situação, se não me engano, quando Ministro da Agricultura o nosso ilustre colega Sr. Linhares de Lima - por cujas melhoras eu faço sinceros votos (apoiados gerais), por todos os motivos, não só porque S. Ex.ª nos merece, a todos, muito respeito, consideração e amizade, mas ainda porque não posso esquecer que S. Ex.ª foi um grande Ministro da Agricultura, pondo em todos os trabalhos da sua pasta muito da sua inteligência e vontade de acertar, laço também votos para que dentro em breve vejamos de novo aqui S. Exa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Quando S. Exa., repito, foi Ministro da Agricultura, os técnicos apresentaram uma ideia para acabar com o tal milagre das bodas de Canaã.
Não seria considerado vinho o que não tivesse pelo menos 3,5 g de acidez fixa por litro, 20 g de extracto seco e menos de 1,5 g de acidez volátil.
Destas exigências resultaria que o vinho passaria a ser óptimo, e, mais do que isso, puro.
Simplesmente, esqueceram-se de que o vinho era para ser bebido e acabaram com a «prova».
Aqui tem VV. Ex.ªs o motivo por que se vende por aí vinho que de vinho só tem as características.
Parece-me, pois, que para um produto que se destina a ser consumido seria indispensável conservar a «prova» como um elemento concludente da análise.
Quer dizer, Sr. Presidente, o milagre, o tal milagre em que eu falei a VV. Ex.ªs, realizou-se, adoptou-se, civilizou-se e, com alguns ingredientes químicos e álcool de figo, prosseguiu na sua marcha vitoriosa, com graves prejuízos para a viticultura e para o comércio honesto.
Já se reconheceu há muito tempo, Sr. Presidente, que as características já estão desactualizadas. Era preciso revê-las, e para isso existe há alguns anos uma comissão para realizar o estudo da legislação sobre comércio de vinhos.
Esta comissão dividiu-se depois em subcomissões, mas, que eu saiba, até agora ainda não apareceram os resultados do seu trabalho.
Parece-me, pois, que era tempo de acabar com este sistema de comissões, cujos trabalhos se arrastam por meses e anos, embaraçando, em vez de facilitar, a resolução dos assuntos.
Eu imaginava que seria muito conveniente que existisse uma comissão permanente, sempre atenta ao aparecimento das espertezas e habilidades, uma espécie de luta entre a bala e a couraça, mas para isso era indispensável que fosse expedita.
O que não compreendo é que uma comissão nomeada para estudar um assunto de tanta importância económica como este deixe passar os meses e os anos sem apresentar as conclusões do seu trabalho. Numa palavra: a viticultura não entende que o vinho seja considerado meramente um produto químico e pretende que a prova volte a fazer parte das análises de vinhos; sabe que o produto que fabrica precisa de ser melhor defendido e deseja naturalmente que se concentrem nesse objectivo os esforços necessários.
Sr. Presidente: falei há pouco em álcool de figo e é este o momento de dizer o que penso sobre o assunto.
Quando, precisamente em 1905, tive a desastrada ideia de me fazer viticultor estava-se em plena crise de