16 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 54
existentes cinco séculos atrás, que Estado, que nação, que soberania, que fronteiras, na Europa, na América, na Ásia ou na Oceânia, se poderiam manter ou ter direito a existir? Que revisão apocalíptica ou que ordenamento catastrófico não seria necessário? Quantos séculos viriam a exigir-se para a consolidação de tratados, a delimitação de fronteiras, a estratificação de entendimentos e formas de convivência entre os povos? Referem-se estas teses, não pelo seu perigo imediato para o Mundo, mas pelo delírio da sua própria extravagância.
Fala-se hoje muito na autodeterminação dos povos, como corolário do direito natural de os agregados humanos dirigirem por si os seus próprios destinos. Fora da afirmação solene de princípios tanto em moda no fecho das conferências internacionais, aquela invocação aparece-nos feita a maior parte das vezes ao sabor de intuitos políticos ou necessidades de ocasião e, portanto, sem o rigor correspondente à transcendente dificuldade do assunto. O nosso exemplo pode talvez ilustrar esta.
Em virtude da orientação que tomaram o nosso desenvolvimento e agência no Mundo, adveio que a Nação Portuguesa se formou, complexa na sua estrutura, dispersa nos seus territórios, diversificada nos povos que a constituem, sem prejuízo, antes com bem vincada afirmação, de uma unidade nacional, intencionalmente prosseguida e consolidada pelo esforço de muitas gerações. Nestas circunstâncias, Portugal não pode, com a ligeireza corrente, professai princípios que seriam agentes de dissociação e de quebra da sua integridade - no fundo a negação de si próprio, sem vantagens visíveis mais que para terceiros (porque há sempre neste Mundo vário quem esteja disposto a colher os frutos das tolas filosofias alheias). Esta prudente reserva não quer, no entanto, dizer que não haja no aludido princípio uma parte de justiça e de razão.
De facto, quando um povo, pela sua base territorial e desenvolvimento demográfico, pelos laços e produtos do sangue, por essa misteriosa criação de uma alma colectiva, representa profunda diferenciação, se não antinomia de interesses, e atinge, pela existência de um largo escol responsável, o que se pode chamar a maturidade política - a autodeterminação traduz-se pela constituição reconhecida de um novo Estado independente. Não negamos, pois, o facto nem o princípio, e quem aceitou, depois de três séculos de íntima história comum, a separação amigável e passou a rever-se na independência do Brasil pode bem discutir problemas desta ordem.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas é este o caso de Goa? Adiante me referirei ao ponto com mais desenvolvimento. Aqui apenas observo que o princípio não só é mal invocado, como de modo algum pode sê-lo pela União Indiana. Em primeiro lugar, o Governo da união não pretende a independência do Estado Português da Índia, mas a integração dos territórios no seu próprio território, a fusão das populações na sua massa de população. Em segundo lugar, todos poderão aceitar o princípio da autodeterminação dos povos menos a União Indiana. Quando esse princípio pudesse ser pacificamente invocado e receber satisfação, a União Indiana voltaria rapidamente à poeira de Estados e soberanias e à simples expressão geográfica que através dos tempos quase sempre fora.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Goa seria ainda Portugal e já as numerosas raças, línguas e religiões do Indostão haviam de constituir bases de edificações políticas muito mais diferenciadas que as nossas províncias ultramarinas.
Isto me leva à consideração das últimas razões invocadas do lado da União Indiana.
Dos numerosos discursos feitos no Parlamento de Nova Deli e das declarações a agrupamentos políticos deduz-se que, ao princípio destes lamentáveis incidentes, os dirigentes da União Indiana pareciam estar convencidos, como de duas evidências, do seguinte: inexistência de qualquer diferenciação de Goa em relação à índia; vontade dos Goeses de deixarem de ser súbditos inferiorizados de uma potência colonial, para se converterem em cidadãos de um Estado soberano. Essas populações, amputadas da mãe-India, não teriam recebido, com a mistura de sangue, a influência de uma cultura e a cristianização do maior número, os benefícios de uma elevação social e de uma categorização política. Continuariam párias na sua própria terra, dominada ainda por estranhos, insensíveis e parados ante o movimento da história. Assim o caso afigurara-se, em precipitado simplismo; como libertação de concidadãos e pura questão de política interna.
Os factos posteriormente verificados, as alegações produzidas, a observação porventura mais cuidadosa, levaram, porém, o Primeiro-Ministro, Sr. Nehru, às seguintes posições, que consideramos benefícios adquiridos em relação aos seus modos de ver anteriores:
Goa constitui de facto uma unidade cultural, linguística, racial, diferenciada socialmente da União Indiana pela sua ocidentalização; e essas características diferenciais têm de ser respeitadas e mantidas;
A questão de Goa não é de modo algum questão interna da União, mas questão de política externa, por contender com uma soberania legítima estrangeira, sempre reconhecida como tal e garantida por tratados internacionais.
Nós consideramos estas duas atitudes como posições mestras na questão, das quais muitas conclusões se hão-de tirar, e a primeira é já que a «falta de liberdades democráticas em Goa» não tem de ser rebatida por nós quando alegada pela União Indiana. Podíamos confrontar constituições, textos de lei, práticas de vida, mas não são questões que em princípio possamos discutir com potências estrangeiras a nossa organização política e as prerrogativas dos cidadãos portugueses.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Isto é simples consequência da não intervenção de um Estado na vida interna de outro, tão solenemente afirmada pela União Indiana no acordo do Tibete.
O desejo, porém, de nada deixar por esclarecer nesta matéria induz-me a aceitar por momentos a discussão sobre o problema de saber se a falta de certa liberdade em Goa prejudica a prova de uma asserção da União Indiana.
Nós afirmamos o seguinte: Goa encontra-se ligada sentimental e patriòticamente a Portugal e os Goeses não têm mostrado preferir a recente soberania indiana à do velho país que teve, pelo menos, o mérito de, em recuados tempos, abrir à Índia os caminhos marítimos do Mundo e pô-la em contacto com a civilização ocidental.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Do lado oposto afirma-se que, se Goa não se tem levantado a favor da sua integração na União Indiana, é que não tem liberdade para isso.