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10 DE DEZEMBRO DE 1954 169

homem excepcional a homenagem que mais cara deve ser ao seu alevantado e fino espírito.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Cortês Pinto: - Sr. Presidente: é esta a primeira vez que, neste ano parlamentar, aqui faço uso da palavra, e aproveito, por isso, a oportunidade para manifestar a expressão da minha profunda consideração e respeito por V. Ex.ª

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Dirijo também as minhas saudações aos Srs. Deputados, meus ilustres colegas.
Sr. Presidente: chegaram a seu termo os celebrações do primeiro centenário, prestadas pela Nação à memória de Garrett. E isto significa, não que passaram cem anos depois da sua morte, anãs que a história começou a contar o primeiro século da perenidade da sua vida.

A cem anos de distância a figura de Garrett não se dilui esfumadamente na bruma dos tempos. Pelo contrário, a sua imagem, luminosa e firmemente recortada, não espera que o esforço da nossa evocação consiga ressuscitá-la. Desprende-se para nós da, tela do passado e caminha gloriosamente ao nosso encontro.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Na gentileza do seu porte, na elegância da sua atitude, na transparência dos seus olhos, na inteligência e serenidade da sua fronte transluz ao nosso olhar aquele toque de luminosidade que revela nos homens superiores a essência original da criação humana: tessitura vibrátil de matéria impregnada de espírito, estatuária palpitante, feita de barro amassado com luz.

Ei-lo ante nós: Garrett, o elegante. Garrett, o mundano. Garrett, o clássico. Garrett, o romântico. Garrett, o prosador, o dramaturgo, o poeta. Garrett, o artista. Garrett, o erudito, o educador, o estadista. Garrett, o político. Mas, acima deste caleidoscópio de imagens, deste Garrett fragmentado, deste cintilar espectral, irisação de mil facetas duma só jóia que o é o espírito multilapidado dum homem superior, um Garrett integralmente único -totus, solut et unus-, aquele que transparece em toda a vasta galeria das suas múltiplas perfigurações: o Garrett nacionalista, que mais do que em tudo se revela no Garrett parlamentar.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - E através deste Garrett parlamentar que nós divisamos o drama duma consciência que luta nobremente pela integridade da própria alma, procurando resgatar os erros duma juventude incautamente dominada pelas exteriorizações arrebatadas dum Garrett que bem poderemos acrescentar à vasta galeria dos seus retratos: Garrett, o equivocado.
O nacionalismo que tão notavelmente se afirma em Garrett parlamentar está longe de participar do exibicionismo ou da simples superficialidade de tantas das suas atitudes. Não se trata dum simples caso de sensibilidade estética aplicada aos sentimentos e entregue desenfastiadamente a um culto ameno da tradição.
0 nacionalismo de Garrett não se resume à exteriorização duma tendência literária inspirada nas baladas de Bürger ou nos recentes romances historiados de Walter Scott.

Não. O seu nacionalismo vai beber a seiva ao terreno profundo da história e ao espírito da própria Nação.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Pelo que toca às inclinações da sua emotividade sentimental, elas provinham de mais longe. Vinham quase do berço, a florescer aos ritmos das xá-caras e solaus da velha Brígida, que lhe haviam embalado os sonhos e envolvido o espírito naquela melancolia saudosa a que o poeta se refere.
Todo o interesse imaginativo que lhe excita a fantasia infantil e juvenil de criança e de poeta viria a ser filtrado pela meditação intelectual do pensador e do erudito. Anos depois duma cultura humanista (onde havia de colher o equilíbrio e a justa medida do espírito clássico), procura incansavelmente reaportuguesar as fontes naturais do nosso lirismo e da nossa literatura. Para isso, dizia Garrett, era necessário que nos salvássemos da tirania formal e convencional infligida por aqueles estranhos que ele designava por «invasores gregos e romanos».

Relembro esta evolução literária de Garrett para chamar a atenção de VV. Ex.ªs para o paralelismo entre o desenvolvimento do nacionalismo literário do autor da Mérope e do Catão e a evolução política do mesmo homem que,, vangloriando-se de expulsar os invasores gregos e romanos da nossa literatura, introduzira os invasores franceses e ingleses dentro da nossa vida política. Por suas mãos, pela espada e pela pena, se introduzia a Carta e o Contrato Social dentro das nossas leis.
A tentativa infelizmente levada a efeito de desnacionalizar os nossos costumes e as nossas legítimas instituições foi o pecado mortal dum Garrett equivocado, que o Garrett nacionalista havia de redimir num mea culpa, mea culpa, mea, mea culpa, que mais do que tudo nobilita a figura de Garrett parlamentar.
Perante o País inteiro, ele faz e refaz continuamente o seu exame de consciência. Penitencia-se publicamente dos seus erros. E realiza o maio pertinaz e nobre esforço para a conquista e dignificação duma personalidade.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Perante os seus pares e em face da Nação, aquele Garrett perfumado, postiço e espartilhado, do figurino janota e romântico de 1820, desprende dos ombros a capa flutuante das opiniões acomodatícias, despe-se de todos os maneirismos, de todas as futilidades, e sobrepõe à elegância exterior do seu vestuário a elegância interior da sua nobreza espiritual.
E aqui nas lides do Parlamento que mais se afirma n nobreza de alma dum Garrett que não teme arrostar o desfavor da opinião pública, não apenas no isolamento do seu gabinete de trabalho, que essa é a, força dos tímidos, mas olhando tranquilamente, e face a face, muitos dos amigos e correligionários, cujo despeito e hostilidade pressente.
O mesmo que durante a vida inteira desperdiçara uma grande parte do tempo e do espírito no culto de artificialismos que lhe haviam de conquistar o agrado mundano não hesita em provocar o desagrado dos políticos, as insídias dos despeitados e as reacções dos apaixonados, que o apodam de trânsfuga do liberalismo maçónico da Constituição. Em respeito pela sua alma, despreza nobremente os êxitos fáceis que da tribuna parlamentar se repercutiriam sobre uma sociedade que vivia num clima de exaltação.
Desta atitude, em que o em espírito se manifesta ainda mais rendido ao culto da elegância moral do que